A Ordem: O círculo das armas

58. A voz da terra [Final – Parte II]

*

Érion desceu as escadas que levavam ao subsolo do palácio envolto em uma alegria quase infantil. Ele riu quando chegou ao último degrau e viu-se diante de um corredor que, de tão bem iluminado, até parecia ser dia. Era ladeado por dezenas de portas que levavam a outros corredores e portas. Um pequeno, mas cruel, labirinto no subsolo do palácio.

O som dos passos dele reverberava pelas paredes milenares a cada metro que avançava. Caminhou por vários corredores, atraído pela magia dos Portões. Sem isso, talvez tivesse se perdido.

Ele estacou na metade de um corredor. Observou, divertido, os homens e mulheres que o aguardavam ao fim dele. Os trajes denunciavam que não eram soldados comuns e, sim, a elite do exército florinae. Eram comandantes de todas as castas, incluindo Manirs aurivas. Os magos e soldados mais habilidosos do reino.

Em outros tempos, alguns foram seus amigos íntimos. Frequentaram seu reino, palácio e até mesmo o leito. Naquela época, Érion ansiava pela companhia e respeito deles. Agora, havia outros anseios e objetivos a serem alcançados. Aquelas pobres almas estavam destinadas ao esquecimento, já que tinham optado por ir contra ele.

Certamente, teria sido um combate épico, milênios atrás, e Érion se encontraria em grande dificuldade diante de adversários tão poderosos. Entretanto, naquele momento, não passavam de “crianças” ante o poder que ele acumulou.

O “cavaleiro” passou por eles, assim como fizera com os soldados na entrada do palácio. Não foi um embate longo, embora Érion tivesse sido obrigado a despender um pouco mais de esforço e magia, do que imaginou, para subjugá-los. Ele não se preocupou em matá-los, afinal seria um desperdício de tempo e magia, já que o Círculo de Armas o impedia de absorver o poder deles. Contudo, mortes ocorreram.

Ao fim da luta, Érion caminhou pelo corredor com orgulho, pisoteando o sangue e ouvindo os gemidos dos sobreviventes. Uma mão agarrou-lhe a bota, impedindo seu avanço. Ele baixou a vista para a mulher que o fizera. Havia tanto sangue sobre o rosto dela, que demorou um pouco para reconhecê-la. Adna, era seu nome. Era uma comandante sagaz e a segunda na linha de sucessão do Reino do Norte. Érion olhou-a por tempo suficiente para recordar da época em que seu pai, Tarik, almejou casá-los com o intuito de que a união fosse capaz de diminuir os conflitos entre os dois reinos e, assim, Sulitar e Norobor pudessem formar uma aliança e impedir a guerra pelo trono de Flyn.

Não era amor, jamais seria. Casamentos assim raramente aconteciam em Flyn, mas o Érion daquela época teria se casado com Adna cheio de orgulho; não só por estar cumprindo o desejo do pai e agindo em prol de Sulitar, mas porque aquela fora uma das mulheres mais belas e cobiçadas de Flyn. E, sobretudo, era dona de uma inteligência admirável que, muitas vezes, rendeu fortes discussões entre eles nos festivais da capital.

Ele sorriu de lado, pensando na sua ingenuidade no passado. A mão de Adna escorregou, deixando uma mancha de sangue onde o tocou. A mulher inspirou fundo e com ruído, fechou os olhos e ficou imóvel, então Érion retornou ao seu caminho sem olhar para trás.

Quanto mais ele avançava, mais forte se tornava a presença dos Portões.

Ao fim do corredor, ele deparou-se com portas imponentes e tão lustrosas que poderia se dizer que tinham acabado de serem confeccionadas. Inspirou fundo, deslizando os dedos longos pela madeira. Magia impregnava-a. Era antiga e poderosa e ele molhou os lábios com a ponta da língua, como se estivesse diante de uma saborosa refeição.

Não havia dúvidas de que aquelas portas guardavam seu objetivo.

A entrada não tinha tranca e ele simplesmente empurrou a madeira, deixando a mão deslizar por ela até o centro onde as duas se encontravam. As dobradiças rangeram alto antes de fornecerem a visão do que havia além das portas. Érion observou um salão tão largo e espaçoso quanto o do trono, andares acima de onde estava.

O lugar estava completamente vazio, exceto, por cinco pedras negras em formato circular. Uma leve corrente de ar trouxe o aroma de sândalo e ervas, que o envolveu, como se tivesse vida própria. Ao mesmo tempo, Érion foi tomado pela sensação de estar sendo sugado para o desconhecido, mesmo não tendo se movido nenhum centímetro.

No momento em que planejou adentrar no salão, o laço que compartilhava com Zefir foi desfeito. A dor o atingiu como se uma flecha estivesse lhe rasgando a carne. Érion curvou-se, expulsando o ar dos pulmões junto com borrifos de sangue. A agonia cresceu dentro dele; mais parecia que fora atirado em um oceano de dor. As mãos pousaram nas coxas e juntaram o tecido das calças entre elas até que toda a cor fugiu dos nós dos dedos.

Ajoelhou-se, depois se dobrou sobre o próprio corpo, observando o sangue que escorria dos lábios e nariz, formar uma pequena poça no chão.

Ele sabia que seria doloroso, mas cometeu o engano de imaginar que a dor da morte de Zefir se assemelharia àquela que o acometeu quando Zarif deixou de existir. Sua ligação com o spectu sombrio era muito mais forte do que a que teve com o antigo spectu de Virnan, graças a Sombra em sua alma. Logo, o impacto foi mais intenso e ele tomou algum tempo a respirar forçosa e intensamente antes de voltar a endireitar o corpo, remoendo a raiva por ter perdido mais um aliado.

Todavia, não se ressentia completamente. Zefir era apenas um experimento. Poderia criar milhares iguais a ele quando unificasse o “Todo”.

Inspirou fundo, passando a mão sobre o amuleto que trazia pendurado junto ao peito. O objeto brilhou rapidamente, transmitindo as vivências do “reflexo” no Templo Castir. Sua versão mágica estava divertindo-se com a herdeira de Midiane depois de aprisioná-la. Érion enviou-lhe ordens para que não demorasse muito. Estava ansioso pelo poder de Marie há muito tempo. Na verdade, ele ansiava por uma alma como a dela muito antes de atacar Flyn, milênios atrás.

O mundo mudou consideravelmente enquanto esteve aprisionado. A magia ainda existia nele, entretanto não era mais tão abundante quanto na época em que nasceu. Certamente, isso era uma consequência do fechamento dos Portões.

Os não-mágicos se tornaram mais numerosos que os magos e ele, Érion, não tinha condições de sair pelo mundo à procura destes. Contudo, havia outras maneiras de alimentar seu poder. No momento certo e com a ajuda de Ilan Dastur, ele articulou guerras e aproveitou-se das lendas que o povo de Axen contava sobre Virnantya L’Castir. O nome dela havia se perdido no tempo, na miscigenação dos aurivas que, pouco a pouco, assimilaram outras culturas. Ainda assim, algumas histórias permaneceram e tornaram-se lendas, como a do “Cavaleiro Vermelho”, um poderoso guerreiro que montava um dragão.

Quando Ilan, em sua inocência, falou da lenda, Érion não hesitou em assumir o título, ciente de que isso abriria as portas que o levariam de volta à Flyn.

As guerras refizeram as lendas e o poder do Cavaleiro Vermelho, então ele deu o passo seguinte. Os conflitos alimentaram o amuleto e a Sombra em sua alma. Não necessitava mais se preocupar com a magia. Todavia era necessário tornar-se ainda mais forte e ele começou a criar um novo amuleto. Para isso, exigiu sacrifícios. Mas não qualquer sacrifício.

O conhecimento que ficou para trás no Templo Castir lhe deu a ferramenta de que precisava. Com a conjuração correta, ele conseguia identificar pessoas que poderiam despertar um tipo de magia raro, mas extremamente poderoso. Os “eleitos” eram, na verdade, possíveis amitshas. Se consumisse a alma de um amitsha, poderia ter toda a magia que desejasse sem fazer esforço e ninguém mais poderia lhe deter.

Érion passou a mão no nariz, enxugando o sangue que escorria até a ponta do queixo. Limpou-o na capa, focalizando o círculo de pedras com os lábios crispados de ansiedade. Inspirou fundo, endireitando-se. Apoiou-se na madeira da porta até a respiração normalizar e, finalmente, adentrou no salão.

Em um piscar de olhos, as paredes estreitas e escuras deram lugar a um ambiente completamente diferente. A transformação ocorreu rápido, mas de uma forma quase musicada. Érion viu-se no meio de um lugar sem paredes ou teto à vista, apenas vazio. Até mesmo o chão não podia ser visualizado, graças a névoa densa que se agitava sobre ele. Vez ou outra, a névoa erguia-se por alguns metros e tomava as formas de pessoas perdidas no tempo.

O “Cavaleiro” deu alguns passos, então voltou-se para a direção de onde viera. A porta ainda estava lá, assim como o corredor e os guerreiros abatidos no chão. Mas ele se encontrava, de fato, no Salão de Cazz. Aquele lugar fazia parte dos Portões e não importava onde eles estivessem, seriam sempre precedidos pelo Salão.

Certa vez, o Grão-mestre Castir lhe explicou que o Salão de Cazz encontrava-se entre mundos e que sua existência tinha a finalidade de abrigar as almas dos mortos antes da travessia para as Terras Imortais. Muito tempo depois, Érion descobriu que a verdade era um pouco mais complicada e sombria. Enquanto reconstruía a lenda do Cavaleiro Vermelho e colocava seus planos em ação, ele debruçou-se sobre os livros da biblioteca secreta do Grão-mestre, que Lyla acabou por deixar para trás quando transferiu os documentos da Ordem Castir para Flyn.

O Salão de Cazz era exatamente o que seu nome dizia. Era o resquício da união do Círculo de Cazz. Quando o “Todo” foi separado, o Círculo de Cazz sacrificou-se, mas ao fazerem isso suas almas se fundiram e dispersaram ao mesmo tempo, criando um lugar entre mundos que tinha “vida” e protegia os Portões. Espíritos eram guiados facilmente até eles, entretanto os vivos, se adentrassem naquele lugar, eram conduzidos à loucura e condenados a caminhar na imensidão sem fim do Salão, incapazes de retornarem à realidade ou de encontrarem a morte.

Somente os castirs conseguiam andar pelo Salão em harmonia com ele. Mesmo os castanes tendo magia espiritual, eram afetados pela atmosfera do Salão. Por isso, a Ordem Castir os proibiu de irem até lá.

Érion acreditava piamente que nada lhe aconteceria. Mesmo assim, tomou precauções mágicas para resistir a magia do lugar. Logo notou que tinha acertado ao fazê-lo, pois a cada instante, percebia o Salão tentando envolvê-lo e dispersar seus pensamentos.

Decidido, ele tornou a se voltar para o interior do Salão. Foram poucos passos, mas teve a impressão de andar uma centena de metros, contudo as portas por onde entrou continuavam próximas e ao seu alcance. Ele fitou-as por cima do ombro e quando voltou a olhar para frente, estava diante das cinco pedras.

Não havia nada de especial nelas. Sequer possuíam entalhes que justificassem algum interesse. Todavia, naquele ponto, a névoa que recobria o chão do lugar, se dissipava, deixando que visualizasse o piso liso e branco.

Um sorriso moldou as feições de Érion, quando parou no centro do círculo de pedras. Sua presença fez com que emitissem um brilho suave, mas nada além disso ocorreu. Ele baixou a vista para o chão. Um objeto circular, que ostentava uma pedra verde no centro, havia sido inserido no entalhe de mesmo tamanho. A Pedra do Coração brilhou suavemente e apagou-se para brilhar novamente um instante depois. Ela pulsava, exatamente como um coração a bombear sangue.

O “cavaleiro” agachou-se para observá-la melhor. Se a Pedra estava em seu lugar de origem, os Portões estavam abertos.

Não demorou muito para que chegasse à conclusão de que a magia de Lyla ainda influenciava o tempo em Flyn. Sendo assim, mesmo com a Pedra em seu devido lugar, as barreiras permaneceram de pé até o momento em que ele e Zefir destruíram a última.

“Esforço inútil”, ele pensou com um esgar.

Esticou o braço e os dedos resvalaram no chão. O fato de a Pedra ter retornado para os Portões facilitava as coisas para ele. Com a passagem aberta, o ritual de união seria menos desgastante e simples. Acariciou a Pedra e a magia dela o repeliu, rejeitando a presença da Sombra em sua alma. Mas isso não seria um obstáculo quando o momento de unificar os mundos chegasse.

Agora, ele só tinha de esperar a lua vermelha alcançar o ápice para dar início a um novo mundo.

Uma forte rajada de vento interrompeu o sorriso que iniciava e ele foi empurrado para longe do centro do círculo. Rolou pelo chão frio até parar fitando a escuridão acima dele. Érion encarou sua própria mão estendida, onde um fiapo de sangue escorria de um corte superficial. Na verdade, havia cortes como aquele em várias partes do seu corpo. Ele ergueu-se com rapidez e se voltou para a entrada a tempo de ver a mulher parada no limiar da porta.

Mestra Fantin o fitava ofegante, com argolas douradas e luminosas nos punhos cerrados. Ela endireitou a postura, ainda se recuperando da corrida até ali, e entrou no salão. Seus passos fizeram eco enquanto avançava, deixando para trás Laio e outros aurivas. Os guerreiros a seguiram de perto assim que conjurou o círculo do ar e retornou para a cidade. A porta que Fantin cruzou era o limite para eles, que permaneceram no corredor, auxiliando os feridos que Érion deixou para trás.

— Você faz parte do círculo dela… — Érion a reconheceu.

Fantin não respondeu. Em vez disso, retirou as lanças do suporte nas costas e as fez crescer.  Arrastou as pontas pelo chão, levantando faíscas em meio a névoa que o ocultava.

Érion fez um gesto brusco e outra rajada de vento varreu o salão, empurrando Fantin em direção a porta, mas a mestra fincou uma das lanças no chão para não ser atirada para fora do lugar, então firmou os pés e girou a outra lança à frente do corpo. A tusciana brilhou por um momento e a ventania se dissipou, arrancando um esgar do cavaleiro. Então, a ordenada reforçou a magia das argolas nos pulsos e atirou a lança.

A arma brilhava cada vez mais forte enquanto atravessava os metros que a separavam do alvo, rompendo a magia defensiva que Érion conjurou. Fantin ansiou pelo momento em que a lança atravessaria o corpo dele, sem temer os juramentos que a tornaram uma ordenada. Não porque o que fazia naquele momento era oriundo do pouco que aprendeu nos dias passados em Flyn, mas sim porque naquele caso específico, ela acreditava que uma morte era necessária para salvar o mundo que habitava. Entretanto, a mestra estava longe de se sentir em paz com isso.

Teria sido um fim rápido para uma luta que se arrastava por séculos e Fantin admitiu para si mesma que havia sido um desejo inocente. Ela assistiu Érion inclinar-se para o lado e desviar do ataque, como se ele não lhe oferecesse qualquer risco. A lança passava pelo cavaleiro quando ele a pegou, girou o corpo em seguida e devolveu a arma com uma força assombrosa. Fantin pôde sentir o poder do contra-ataque antes mesmo da lança alcançar a metade do caminho até ela.

A pressão que a tucsiana exercia no ar era tamanha que o corpo da mestra cedeu a ela, assim como o chão e a névoa. Fantin sequer havia sido tocada, mas já sentia a dor lhe tomar o corpo, como se milhares de pequenas agulhas estivessem sendo introduzidas nele. A ordenada aumentou a resistência do ar à sua volta, contudo a lança permaneceu em sua cruzada para o coração dela até encontrar outro tipo oposição.

Cristais de gelo se esfacelaram à passagem da arma que, aos poucos, foi aprisionada por eles. Fantin engoliu em seco, mirando a ponta da lança. A lâmina brilhou, ameaçadora e mortal, a não mais que dois dedos de distância do seu peito. Ainda que o metal não tivesse encontrado o couro da armadura, ele se rasgou ante a pressão e um fio de sangue escorreu do local trazendo mais dor para Fantin do que o esperado.

Com um suspiro de evidente alívio, ela percorreu com o olhar toda a extensão da arma e o gelo que tomou forma em volta desta. Era um bloco maciço e pontiagudo, ligeiramente deformado pela força da magia que Érion empregou para atirar a lança. Por um momento longo, ela só conseguiu se concentrar no gelo, na lança e o bater forte do coração. Então, com o canto do olho, percebeu um vulto. Alguém passou ao seu lado correndo e a mestra captou, ligeiramente, o balançar da trança que prendia os cabelos de Tamar. Ergueu o olhar em tempo de ver a esposa chicotear o vazio. A magia se desprendeu da ponta do chicote dela e pequenas hastes de gelo se formaram no ar e lançaram-se contra Érion.

Foi apenas um relance, mas Fantin pôde ver a expressão no rosto da escriba, que dispensava palavras. Naquele átimo, a esposa lhe pareceu uma estranha, tamanho o ódio que brilhava em seus olhos. Até mesmo a postura dela havia se modificado.

Enquanto o gelo avançava em direção ao “cavaleiro”, Tamar tocou o chão com as pontas dos dedos e, ainda que a névoa ocultasse suas mãos, um brilho intenso pôde ser distinto. De repente, o chão tornou-se úmido e Fantin sentiu a água invadir suas botas.

Verdade fosse dita, ela não se cansava de admirar o quão forte Tamar havia se tornado em tão pouco tempo. Claro que fazer parte de um círculo influenciara drasticamente nisso, mas o conhecimento que ela carregava também a tornava espetacular no uso da magia. Se antes ela se exauria rapidamente após conjurar uma proteção, agora Tamar parecia cheia de energia, mesmo após conjurar um círculo de armas, criar incontáveis estacas de gelo na floresta e ajudar a apagar os incêndios que Zefir causou.

Desta vez, Érion não desviou o ataque, tampouco foi atingido por ele. O gelo passou direto por sua figura e despedaçou-se às suas costas. Ele ergueu um dos pés, apenas para constatar que estava molhado, Ouviu a provocação de Tamar com um rilhar de dentes:

— Não é tão fácil evitar a magia alheia quando tem de caminhar nela, certo?

Para reforçar o que disse, a mestra fez estacas se projetarem do chão. Érion inclinou-se para trás e uma delas resvalou no braço dele, rasgando o tecido que o recobria e deixando um veio de sangue no lugar. Ele cambaleou por um passo e o gelo mudou de forma. Tornou-se líquido novamente e envolveu as pernas dele, prendendo-o. Irritado, Érion usou magia para libertar-se, mas a água estava por todo o lugar e modificava-se a cada movimento seu.

— Maldição! É assim que querem me deter? Usando truques infantis? — Berrou ele.

— Parece estar funcionando muito bem. — Tamar retrucou, fazendo o gelo crescer até a altura do peito dele.

Nesse meio tempo, Fantin recuperou a tucsiana do bloco de gelo e varreu o chão com magia. As gotículas de água que atingiam o ar tornavam-se pequenas pedras de gelo, as quais ela empurrou em direção a Érion. O cavaleiro ergueu as mãos à frente do corpo e o gelo foi bloqueado. As pequenas pedras geladas, despencaram no chão e Érion uniu as mãos, elas brilharam e toda a água do ambiente se aqueceu ao ponto de virar vapor.

A temperatura tornou-se sufocante e o vapor uniu-se a névoa do chão que se elevou, ocultando o inimigo. Coube a Fantin trazer um pouco de refresco ao ambiente. A magia aerare dela, empurrou o vapor para longe, permitindo que vissem que Érion já não estava lá.

— Inferno! Pra onde ele foi?

Mal concluiu a frase, ela sentiu o ar se deslocar suavemente, alertando-a para o ataque que viria pelas costas. Tentou erguer uma barreira para proteger-se e a Tamar, mas foi lenta demais. As duas receberam todo o impacto da magia destrutiva de Érion e foram atiradas por uma dezena de metros até o meio do círculo de pedras. Fantin ouviu e sentiu os ossos estalarem quando trombou com uma das pedras, enquanto Tamar viu-se fitando o vasto vazio que era o teto do salão ao mesmo tempo em que buscava oxigênio para os pulmões. Entretanto, por mais que a bibliotecária se esforçasse, o ar não chegava até eles.

A mestra sufocava dolorosamente.

Diante do seu desespero, Fantin esqueceu as próprias dores e a visão vertiginosa da fratura exposta no braço esquerdo. Ficou de pé, quase esquecida do inimigo que, no entanto, continuava longe de suas vistas.

A agonia de Tamar aumentou. Ela contorceu-se no chão, buscando Fantin com o olhar. A mestra loira planejou ir em socorro da esposa, mas assim que deu o primeiro passo em direção a ela, algo invisível enroscou-se em seu pescoço, forçando-a a ficar de joelhos. Agora, ela também sufocava.

Os olhos azuis se prenderam aos castanhos e suplicantes de Tamar. Um pouco mais e a escriba perderia os sentidos e, provavelmente, a vida. Em desespero, Fantin usou de toda a sua vontade para arrastar-se por alguns centímetros, mas aquela presença invisível a atirou no chão outra vez.

A mestra esticou o braço e seus dedos resvalaram nos de Tamar. Não era possível que tivessem cruzado um caminho tão longo para morrerem ali, diante das Portas da Morte, sem nem ao menos terem a chance de lutar com todas as suas forças. Novo esforço e, finalmente, ela alcançou a mão da esposa. Estava fria e úmida. Sentí-la assim foi tão chocante para Fantin quanto no dia em que a sugadora a matou. Aquele momento parecia ter ocorrido séculos atrás, ainda que poucas semanas tivessem se passado. Entretanto, a dor permanecia viva, assim como o medo constante de perder Tamar outra vez.

Agora, seu pior pesadelo voltava a tomar forma e ela não via escapatória. A única coisa que poderia consolá-la, era o fato de ter feito um voto de união com Tamar. Elas poderiam se reencontrar além dos Portões, em Inamia, mas isso também estava ameaçado por Érion.

Fantin pensou que nunca odiou nada ou alguém como odiava aquele homem. Se os deuses ou qualquer que fosse a força suprema que regia o universo, lhe permitissem, ela iria fazê-lo sofrer também. Naquela vida, naquele mundo ou no que viesse depois. Com esses pensamentos, lutou contra a vontade de fechar os olhos. Queria que Tamar soubesse que estavam juntas até o fim. Foi então, que a esposa traçou um gesto sofrido no vazio, apontava para algo, para cima. Mas não havia nada lá, exceto a névoa.

Tamar bateu uma das mãos espalmadas no chão por um par de vezes até que Fantin deu-se conta de que a névoa não tocava mais o chão. Em vez disso, ela circulava acima das suas cabeças. Foi então que percebeu que a força invisível que as subjugava, era o elemento com o qual sua magia mais tinha afinidade: o ar.

Novamente, Tamar espalmou a mão no chão e Fantin compreendeu o que tinha de fazer. Reunindo os últimos resquícios de consciência, ela usou a única arma a qual tinha acesso no momento, já que as suas lanças estavam dispersas pelo salão e, definitivamente, não conseguiria concentrar-se o suficiente para conjurá-las. Envolveu o cabo da adaga na cintura e a arrastou para fora da bainha, então fincou-a no chão e luz forte as envolveu, erguendo-se da adaga em forma de redemoinho que, literalmente, sugou todo o ar e névoa do salão.

Por um momento, Fantin viu um piso lustroso e tão branco quanto o algodão, enquanto o teto era, na verdade, uma infinidade de estrelas espalhadas em uma noite sem fim. Então, a adaga deixou de brilhar, tudo se tornou um breu, exceto pelas estrelas no teto. A pressão que aprisionava as mestras desapareceu, todavia não havia ar para respirar, mas então a adaga voltou a brilhar e a luz retornou ao salão junto com o oxigênio. A força com que a tusciana realizou isso empurrou as duas mestras por alguns metros.

Entre gemidos e tosses, as duas mulheres voltaram a respirar e Fantin arrastou-se até Tamar, deixando um rastro de sangue pelo chão, cuja névoa começava a cobrir novamente. Ambas tremiam descontroladamente, mais pelo medo de se perderem do que pela morte que andou tão próxima.

— Você está bem? — Fantin conseguiu perguntar.

A esposa gemeu uma resposta abafada em seu ombro e a abraçou mais forte. Mas o que acharam ser um momento de trégua, tornou-se outro de terror. Fios luminosos surgiram acima de suas cabeças, cruzavam-se como se estivessem em um gigantesco tear. Eles começaram a descer em direção às duas e Tamar, ainda fragilizada, fez colunas de gelo se projetarem do chão. Por sua vez, Fantin aumentou a resistência do ar.

As linhas desceram rápida e mortalmente até elas, partindo o gelo e rompendo a barreira de ar. A morte, novamente, parecia certa para elas. Porém, ouviram um estrondo, uma voz familiar ecoou no Salão e luzes multicoloridas invadiram o ambiente quando as linhas mágicas foram rompidas.

Um redemoinho luminoso ainda girava à volta delas quando Virnan e Melina se aproximaram.

— Deixe-me ver isso. — Melina tomou o braço de Fantin, enquanto Virnan passava a vista em todo o local.

— Eu estou bem! Não é algo para ser curado rapidamente ou de forma leviana. — A própria Fantin avaliou-se. — Basta que me façam uma atadura.

A ausência de sinais inimigos incomodava Virnan, que tomou o braço da amiga de modo brusco e a fez morder o lábio de dor.

— É nobre da sua parte não querer nos preocupar, Fantin, mas não está sendo inteligente neste momento.

Linhas mágicas deixaram a mão da castir e deslizaram sobre a pele de Fantin, fazendo a mestra suspirar de alívio quando a dor diminuiu. De repente, as linhas se tornaram mais grossas e o osso exposto retornou ao lugar correto, arrancando um grito da mestra. Todavia, a ferida permaneceu aberta.

Enquanto falava e conduzia a magia curativa, os olhos de Virnan vagavam pelo lugar em busca de Érion. Nesse meio-tempo, Melina deu uma rápida olhada nos ferimentos de Tamar e depois armou-se do arco para seguir o exemplo de Virnan e vigiar o entorno.

— É o melhor que posso fazer. — A guardiã disse para a amiga. — Curar, vocês sabem, não é o maior dos meus dons e sou melhor fazendo isso com espíritos. Pelo menos, isso irá interromper o sangramento e diminuir a dor até acabarmos nossa missão. Seria bem melhor se fosse Marie a fazê-lo…

Por um instante, ela abandonou a pose de guerreira implacável e deixou a preocupação com a esposa transparecer. Havia algum tempo, uma sensação que poderia ser definida como medo, a tomava sempre que olhava para a tatuagem na mão.

Um laço de amor certamente não poderia ser comparado ao laço de um Círculo, contudo também transmitia algumas impressões aos parceiros. Eram sensações mais presentes durante momentos de carinho e no ato sexual, mas também ocorriam em situações de grande stress.

Enquanto o laço matrimonial lhe transmitia desconforto, o laço do Círculo dizia que Marie estava bem. Isso estava deixando Virnan confusa e ainda mais apreensiva. A verdade era que nunca tivera tantas conexões antes e, com efeito, isso exigia um grande poder de concentração da sua parte, a fim de evitar se dispersar nos sentimentos alheios e esquecer o foco do momento.

Obviamente, essa situação não fora um problema até aquele dia chegar. A batalha vinha acompanhada por sentimentos punjantes e bastante distintos. Consequentemente, cada um dos seus laços tornava-se mais intenso.

— Vai ser um pouco difícil, mas eu posso me virar com apenas um braço. — Fantin declarou, recebendo um sorriso cético de Melina e uma olhadela atravessada de Tamar.

Para demonstrar que poderia fazer o que disse, a mestra segurou, debilmente, uma das lanças. Recostou-a ao corpo e conjurou a outra. Ainda que devagar, ela conseguiu encaixá-las, transformando-as em apenas uma arma. A nova arma reduziu bastante de tamanho para que a mestra conseguisse manejá-la com mais eficiência.

Enquanto Virnan lhe dava uma tapinha no ombro, aprovando a ideia, a mão sã de Fantin brilhou forte, emanando magia para a lança. A mestra expandiu sua aura mágica de forma ameaçadora e Virnan focalizou os olhos dela. De tão claros, a castir viu-se refletida neles, assim como Érion, movimentando-se às suas costas. Ela inclinou-se para o lado um instante antes de Fantin fazer a tucsiana crescer. A haste se expandiu rapidamente e Virnan acompanhou o movimento dela, enquanto passava a meros centímetros do seu rosto e mesmo que não a tivesse tocado, a magia impregnada na arma cortou sua bochecha.

A lança alcançou o alvo, mas não o feriu. Como fizera antes, Érion segurou a tucsiana. Ele apertou a haste com firmeza e com a mão livre continuou a investida contra a meia-irmã. Virnan inclinou-se para a frente e a espada dele passou muito próximo do seu pescoço; tão perto que algumas gotas de sangue escorreram por ele.

Aproveitando o movimento, Virnan rolou pelo chão e se colocou de pé na ação seguinte. Ela estreitou a adaga entre os dedos delgados e sujos, executando um golpe transversal, que liberou uma faixa de luz cortante. Érion defendeu-se da investida, aproveitando-se da lança de Fantin, a qual ainda segurava.

Em verdade, ele não tocava a tucsiana; Virnan o notou. Em vez disso, usava uma fina camada de magia aerare para evitar o contato. Era como se estivesse vestindo luvas de ar, já que ele tinha uma Sombra na alma e tocar uma tucsiana diretamente poderia ser bastante desconfortável, ainda mais se fosse ferido por uma.

O cavaleiro soltou a lança, finalmente, e Fantin a trouxe para junto do corpo, enquanto ele desviava do chicote de Tamar e recuava alguns passos. A bibliotecária fez a arma se dividir e aumentou seu alcance, conjurando água. O líquido uniu-se às pontas do chicote e ele tornou-se tão longo quanto uma corda, a qual Tamar manipulava à sua vontade. A arma parecia ter ganhado vida e perseguia Érion em todas as direções que tomava.

Aproveitando-se da distração que a amiga proporcionou, Virnan desferiu novo golpe no vazio. O ar deslocou-se com fúria, dividindo a névoa como se esta fosse sólida. Ao perceber a investida, Érion parou de fugir, ergueu uma das mãos e o ataque dela se chocou com uma barreira mágica, assim como o chicote líquido de Tamar.

Outra vez, Érion desapareceu, deixando no ar apenas o rastro luminoso da sua magia.

Os olhos de Virnan percorreram o chão com cuidado, antes que a névoa voltasse a cobrí-lo. Apesar da concentração, ela continuava se mantendo atenta ao seu redor, tentando adivinhar de onde o próximo ataque viria. O som da respiração forçada de Tamar a fez erguer os olhos para encontrar os dela. Tudo acontecera muito rápido, mas por duas ocasiões os ataques líquidos da mestra foram barrados por Érion, enquanto se movimentava à volta delas. Durante todo o tempo, ele manteve-se a uma distância específica e quando precisou bloquear os ataques, recuou por não mais que um metro.

A apreensão de Tamar era compartilhada por Virnan, que soprou os fios de cabelo que caíam sobre os seus olhos à medida que uma dezena de palavrões na língua Enaen lhe passavam pela mente.

Como deixara isso acontecer?

Como se pudesse ler seus pensamentos, Tamar balançou a cabeça um par de vezes. Não era surpresa que a bibliotecária tivesse percebido o que se passava já nos primeiros movimentos; mas àquela altura, à medida que o silêncio crescia e a temperatura do Salão diminuía, todas já sabiam o que estava acontecendo.

Elas tinham caído em uma armadilha e, agora, estavam presas em um círculo conjurado por Érion.

Tamar balançou a cabeça novamente, também lamentando não ter percebido a manobra do inimigo. Analisando rapidamente tudo o que tinha se passado após entrarem no Salão de Cazz, estava certa de que o momento exato em que Érion agiu foi durante sua tentativa de asfixiá-las. Ele sabia que não tardaria para que Virnan e Melina chegassem e se ocultou por tempo suficiente para preparar o terreno para um círculo.

— Confesso que teria ficado decepcionado de matá-la tão facilmente, mas você tem amigas interessantes, Castir. São mulheres observadoras e bastante ágeis para curandeiras ordenadas. Devo matá-las antes ou depois de você?

A voz de Érion soou provocativa, mas havia um cansaço perceptível. Ainda que fosse muito poderoso, estar naquele lugar sem ser um castir o consumia em demasia. Em contrapartida, as ordenadas, mesmo sendo castanes como ele, não sofriam o mesmo desgaste, graças ao fato de compartilharem um voto com uma castir. A magia de Virnan equilibrava a delas e vice-versa.

As palavras dele eram oriundas de todas as direções, amplificadas pelo círculo em que as aprisionou. Aos poucos, a névoa que recobria o chão naquele ponto desapareceu e as ordenadas puderam divisar as linhas ligeiramente incandescentes que formavam a armadilha em que caíram.

— Zarif, Zefir, até mesmo o inútil do Ilan não pôde matá-la. — Érion continuou. — Eu mesmo falhei no passado…, mas a sua sorte acabará hoje.

A auriva apertou o cabo da adaga com tanta força que esta se iluminou rapidamente. Contrariando o gesto de raiva, ela o respondeu com sarcasmo:

— Você pretende fazer algo ou esta é a sua tentativa de me matar de tédio? Já ouvi essa baboseira antes.

Ela se movia lentamente, observando o vazio em volta e, para seu desgosto não conseguia ouvir nada, tampouco vê-lo. Contudo, o cheiro da Sombra dele estava espalhado no ar, mas Érion manipulava o elemento de forma a confundí-la.

Um momento de silêncio tenso se passou antes que o cavaleiro ressurgisse a alguns metros dela. Materializou-se como se fosse composto pela névoa que as cercava. E antes que realizasse qualquer ação, Melina o atacou. Érion ergueu a mão e uma das dezenas de linhas no chão se iluminou. A flecha que a grã-mestra atirou se desfez ao deparar-se com a barreira erguida a partir da linha.

A líder ordenada tentou novamente. Dessa vez, manipulou magicamente a trajetória da seta, que contornou a barreira e seguiu em direção ao flanco direito de Érion. Outra linha no chão brilhou, formando nova barreira de proteção para ele. Contudo, diferentemente da anterior, a barreira engoliu a flecha. Momentos depois, foi a vez de uma das linhas às costas de Melina brilhar forte. A seta que acabara de desaparecer, cruzou a luz e atingiu a grã-mestra.

A dor parecia irreal e Melina observou a ponta afiada se projetando do seu abdômen, enquanto gritava e arfava. O sangue pingava no chão em gotas grossas e, de repente, suas pernas decidiram que não podiam mais mantê-la de pé. Fraquejaram e ela caiu de joelhos. A dor se espalhou e Melina descansou a testa no chão frio, dobrada sobre o próprio corpo ao passo que tentava se concentrar o suficiente para fazer a flecha desmaterializar.

Érion desprezou-a e as outras mulheres. Voltou a atenção completamente para aquela que conquistou seu ódio muito antes de se conhecerem. Virnan trincou os dentes de preocupação pela amiga, entretanto foi Tamar quem tentou socorrer a grã-mestra. Contudo, Melina fez um gesto negativo, apontando para as marcas no chão. Não era possível antecipar o que poderia acontecer se a mestra tentasse cruzá-las.

— Você sente, Castir? A lua está chegando em seu ápice, como naquela noite 3000 anos atrás. Logo, estaremos diante dos Portões. — Érion falou baixinho, ciente da capacidade auditiva de Virnan.

Sim, ela sentia.

Realmente, havia algo familiar tornando-se “sólido” com o passar do tempo. Era uma sensação estranha e, ao mesmo tempo, bem-vinda. Para confirmar a declaração dele, pequenos pontos luminosos surgiram no ar. Se pareciam com estrelas. O chão inteiro começou a brilhar e estreitos veios de magia puderam ser divisados, já que a névoa se dissipava de todo o Salão.

As correntes mágicas começavam a se tornar visíveis e alcançáveis.

Érion quase salivou de ansiedade. Ainda que desejasse destruir Virnan e companhia, não fora escolha sua permanecer naquele embate por tanto tempo. A verdade era que, mesmo sendo um castane e agora um mago tão poderoso quanto um Círculo Castir, ele só poderia alcançar os Portões, em vida, durante a Lua Vermelha. Essa era a principal razão para que tivesse escolhido aquela noite para atacar Flyn. Pois, nas raras ocasiões em que a Lua Vermelha surgia, os mundos entravam em um ciclo de harmonia e o Salão de Cazz tornava-se quase um salão comum, permitindo que quem estivesse no local obtivesse total acesso aos Portões.

O som do chicote de Tamar rasgando o ar chamou a atenção dos dois. A bibliotecária resolvera testar a teoria de Melina. O chicote não foi barrado ao avançar por um metro além da linha mágica mais próxima dela, contudo, algo invisível passou por ele, deixando uma marca forte no chão, como se um objeto afiado tivesse se fincado ali. A cena fez Virnan estreitar os olhos, compreendendo o que se passava e Érion sorriu da mesma maneira que uma criança levada faria após pregar uma peça em um adulto. Ele desapareceu outra vez e ressurgiu às costas da irmã, que se voltou para encará-lo face a face e teve de inclinar a cabeça para trás a fim de conseguí-lo, já que era bem mais alto que Lyla.

— Não importa quanto tempo tenha se passado, nem o quanto você se esforçou para me impedir. Esta noite me pertence. — Érion afirmou.

— Esta noite pertence a nós dois. — Virnan retrucou. — Terminaremos, finalmente, o que começamos na noite em que Tarik revelou nosso laço de sangue.

Ele recordou rapidamente o embate, lamentando o fato do pai ter interferido. Na ocasião, as revelações sobre o parentesco só afirmaram o que ele, Érion, já sabia. Pois, em uma noite de inverno, alguns anos antes, ele acidentalmente ouvira uma conversa entre Tarik e Denna Dashtru. Jamais esqueceria do orgulho que percebeu na voz do pai quando pronunciou o nome da filha bastarda, principalmente, quando pediu a Denna que a preparasse para servir no Palácio do Sul. Tarik queria conhecer a filha, conviver com ela, ainda que jamais pudesse expressar o carinho de pai.

Por um instante, Érion reviveu o sentimento de traição que o acometeu naquela noite. Admirava o senso de honra e lealdade do pai e ansiava ser como ele. Se esforçou para ser um bom filho e se tornar um herdeiro digno do trono do Sul; alguém que pudesse orgulhá-lo. Mas tudo que recebera de Tarik foi um inclinar de cabeça singelo. Enquanto isso, o Demir derretia-se em elogios e cuidados para sua irmã gêmea, Lyla. Contudo, até esse carinho não poderia ser comparado ao que ele percebera na voz do pai ao falar de Virnan.

Descobrir que Tarik não era o homem que imaginara, o desnorteou. Mas não tanto quanto compreender que não importava o quão bom e esforçado fosse, nem o quão poderoso e respeitado poderia se tornar na Ordem Castir, Tarik jamais lhe dedicaria o mesmo amor e admiração que para Virnan, pelo simples fato de que ele nascera do ventre errado.

Certamente, esses dissabores deram início a jornada que o levou até aquele momento. Não fosse a decepção com Tarik, Érion talvez tivesse se contentado em ser apenas um mestre castane no Templo Castir. Em vez disso, se dedicou ao Templo e aos estudos, atraindo a atenção do Grão-mestre, que o tomou como pupilo e, de certa forma, tornou-se o pai que nunca teve.

Ele não era ingênuo ao ponto de achar que o afeto do grão-mestre era livre de interesse. O líder da Ordem Castir tinha um lado sombrio e Érion não passava de um joguete em suas mãos, um jovem ambicioso e talentoso que se fosse conduzido da maneira correta, poderia levá-lo ao Trono de Flyn. O que de fato ocorreu, já que devido ao impasse entre os Quatro Reinos, coube a Ordem Castir a liderança de Flyn enquanto a guerra pelo trono se perpetrou.

Érion sorriu de lado, afastando a torrente de lembranças que a declaração da meia-irmã trouxe.

— Temos coisas mais importantes para fazer do que relembrar algo tão prosaico quanto a nossa paternidade em comum. Estou prestes a criar um novo mundo e nele não há lugar para você! — Ele ergueu as mãos e Virnan sentiu a pressão do golpe antes mesmo de ser tocada.

A guardiã espalmou a mão esquerda, bloqueando o ataque, então girou a adaga na outra mão, mudando a posição em que faria a investida. Voltou a lâmina para baixo e levou-a até a altura do rosto dele em um corte transversal. Foi um ataque preciso, porém inútil. O corte do ar o atravessou sem tocá-lo e quando ela recolheu o braço, Érion já tinha desaparecido.

Virnan girou sobre os calcanhares avaliando o entorno, mas novamente se encontrou às cegas. Simplesmente não podia confiar nas percepções mágicas e muito menos nas físicas. O olfato apurado naquele momento parecia outro inimigo em vez de aliado. O cheiro pútrido da Sombra de Érion estava em todas as partes e não conseguia distinguir a direção exata de onde vinha.

Quando Érion voltou a se materializar, instantes depois, surgiu ao seu lado e Virnan não conseguiu ser rápida o suficiente para se proteger. Foi lançada contra a parede do círculo e, antes que caísse completamente, Érion voltou reaparecer perto dela. A guerreira expandiu sua aura mágica e ele foi repelido.

E quando ela acreditou que havia conseguido se defender com perfeição, notou que estava caída sobre uma das linhas que cruzavam o círculo. Como ocorreu com as amigas, a linha brilhou, mas em vez de erguer uma barreira translúcida, pedras pontiagudas se projetaram do chão. As pontas resvalaram no braço dela, embora tivesse se movido para evitar um ferimento mortal.

Enquanto se preocupava com as estacas, Virnan tentou reagir a mais uma investida de Érion. No entanto, se encontrava em uma posição desvantajosa para alguém que combatia um mago que podia alterar seu estado físico e projetar-se no espaço. Ela girou as pernas no ar de forma brusca e tentou ficar de pé, mas Érion a golpeou com uma grande quantidade de magia e ela interrompeu o movimento para rolar para o lado e esquivar-se, apenas para se dar conta de que se encontrava novamente aos pés dele.

A castir foi atirada no centro do círculo. Caiu com um baque seco e a certeza de que havia quebrado algum osso. Mal teve tempo de pensar em se erguer e Érion, literalmente, caiu sobre seu corpo. O joelho dele pressionava suas costas, enquanto uma das mãos mantinha o rosto dela grudado no chão.

Obviamente, era uma posição terrível, mas não impossível de se libertar. Todavia, Érion a pressionava, não apenas com o peso do corpo, mas também com magia. A força que ele exercia era tal que Virnan começou a sentir dificuldade para respirar. Com o canto do olho, ela divisou a outra mão dele ostentando a espada. Érion desferiu um golpe nas costas dela, porém a lâmina não chegou a tocá-la, já que a castir tornou a expandir sua magia de forma a criar uma camada de ar em volta do corpo, como se estivesse vestindo um escudo invisível.

Definitivamente, aquilo não duraria para sempre, principalmente, se Érion continuasse a exercer tanta pressão. Antes que isso ocorresse, Virnan precisava mostrar as amigas em que tipo de círculo foram aprisionadas e a forma de escapar dele, embora estivesse certa de que a mente de Tamar já estava trabalhando nisso.

Ligeiramente engasgada com o próprio sangue, Virnan viu Fantin tentar ir até ela. Tamar elevou a voz, pedindo que parasse, mas Fantin fazia jus a fama de impulsiva e adiantou-se antes mesmo de pensar nas possíveis consequências. Assim que a mestra cruzou uma das linhas com a brutalidade que lhe era característica aos movimentos, uma forte onda de magia a atirou contra os limites do círculo. Enquanto percorria a distância até o local da queda, objetos pontiagudos e invisíveis passaram pelo corpo dela, deixando ferimentos profundos. Ela caiu, inconsciente.

O desespero de Tamar escapou na forma de um grito e, por sua vez, a bibliotecária almejou ir até a esposa. Certamente, se encontraria na mesma situação que ela se algo não a tivesse barrado. Pois, assim que se mexeu, a mesma coisa que machucou Fantin, passou zunindo ao lado da sua cabeça. Curiosamente, Tamar fora capaz de se esquivar tão rápido quanto o objeto que a atacou. Mas a verdade era que algo deteve seu passo e a empurrou para longe do ataque.

Tamar observou as marcas no chão, retas e profundas, como se tivessem sido feitas por uma lâmina afiada. Piscou e voltou a atenção para o centro do círculo em tempo de ver os resquícios do esforço que Virnan fizera para impedir que se machucasse, quiçá morresse. As tatuagens do braço direito da amiga brilhavam, enquanto a mão desprendia fios luminosos até o lugar onde a mestra dos escritos se encontrava.

A bibliotecária baixou a vista para si mesma e notou que os fios envolviam seu corpo. Eles desapareceram suavemente, como fumaça carregada pelo vento, deixando nela apenas a impressão de uma suave carícia.

— Impressionante. — Disse Érion para Virnan, com deboche. — Sabia que você logo perceberia.

Ele riu baixinho, imprimindo mais força na espada, que ficou um centímetro mais perto das costas dela.

— Achei que seria divertido ver você morrer através de algo que a ajudou a se tornar quem é. Todas aquelas horas de treinamento extenuante no Templo, os ferimentos… ah, sempre torci para ver você morrer dentro de um Círculo de Treinamento Aerare. A simples ideia de vê-la despedaçada pelas lâminas de ar me instigava a assumir a responsabilidade de conduzir os treinamentos e a fazer os círculos cada vez mais difíceis. — A risada dele soou baixa e cruel, quando a lâmina da espada cedeu mais um pouco e Virnan deixou um gemido escapar. — Mas devo admitir que você tem mesmo o sangue do Sul correndo nas veias. Era e ainda é tão difícil de matar quanto o nosso pai!

A pressão aumentou e Virnan cerrou os olhos, sentindo a lâmina rasgar a couraça sem tocar sua pele. Quando a compreensão do significado das palavras de Érion se tornou tão sólido quanto o chão frio debaixo dela, gritou de ódio e revolta.

No fim das contas, ela sempre achou suspeita a morte de Tarik. Entretanto, não se apegou às dúvidas, já que na época viviam um conturbado momento pós-guerra e tornou-se necessário apressar a coroação da herdeira de Tarik, Lyla, para evitar novo conflito pelo trono. E também havia seu ingresso na Ordem Castir, novos deveres e responsabilidades para ocupar a mente.

Parte da fúria que a tomou, escapou em forma de fortes rajadas de vento que circundaram os dois. Mesmo assim, Érion não relaxou o peso sobre as costas dela e continuou a falar:

— Admito que gostaria de ter feito de uma forma mais bárbara para que o reino inteiro soubesse que o Demir Tarik Narhi foi despedaçado e que o seu sangue banhou o salão real do Sul. Mas, é claro, isso poderia ter dado início a outra guerra, então foi necessário fazer as coisas com cuidado e na surdina. Lyla tornou-se rainha de Flyn graças a mim e eu a teria sucedido dois anos depois, se você e os outros castirs não tivessem interferido. — Ele forçou a espada um pouco mais e a lâmina cedeu por mais um centímetro, penetrando a carne de Virnan. — Ah, tantas vidas desperdiçadas em vão… Você lembra, Castir?

Virnan, literalmente, rosnou em baixo dele.

Não era preciso muito esforço para entender ao que Érion se referia. Dois anos após Lyla assumir o controle do reino, uma estranha epidemia assolou a capital. De início, acreditaram se tratar da mesma febre que levara a mãe dela, décadas antes. Mas os sintomas, embora parecidos, tinham traços de magia. Coube aos castirs investigarem a origem do que consideraram um ataque ao povo florinae, mas eles nunca conseguiram descobrir o autor. Contudo, encontraram um meio de neutralizar os efeitos da doença. Fora por bem pouco que a então rainha, Lyla, não pereceu. Infelizmente, muitos de seus súditos não tiveram a mesma sorte.

— Foi esperto, não foi? — Érion indagou. — Esconder um assassinato, matando dezenas de outras pessoas. E falando nisso, onde está nossa irmã? Como seu spectu, ela deveria vir em seu socorro, não?!

O cavaleiro riu novamente.

— Sou capaz de apostar que você está usando sua soberania sobre o pacto para repelí-la e mantê-la a “salvo”. Sabe que isso não ajudará, não é mesmo? Ela sente sua dor e desespero e, assim que você morrer… ah, mal posso esperar por isso! Não poder chegar até você e ajudá-la deve estar deixando-a maluca!

Ele saboreava cada palavra, cada momento. E a cada centímetro que a espada penetrava na proteção de Virnan, seu sorriso se tornava mais aberto. Nem de longe recordava o homem de comportamento frio e taciturno que Virnan conheceu na juventude. Em verdade, mais parecia um louco.

Novos pontos luminosos e veios surgiram no Salão e a atmosfera começou a mudar drasticamente. O chão deixou de ser liso e lustroso e tornou-se composto por blocos de pedras cuidadosamente unidos e desgastados pelo tempo.

Érion ergueu a face para observar a transformação do lugar.

Ainda se encontravam em meio a um vasto vazio, mas agora havia uma espécie de espelho d’água no meio dele, ladeado por plantas rasteiras. Era circular como tudo que regia a arquitetura florinae. Mesmo que o vento frio circundasse o lugar, a água era quente e liberava pequenas nuvens de vapor. O solo no fundo da fonte era arenoso, firmando as cinco rochas negras que Érion encontrou quando adentrou no salão. Agora, as pedras abrigavam, cada uma, a estátua de um guerreiro.

Eram homens e mulheres de semblantes rígidos, onde podia-se notar a presença de uma determinação em comum. Os detalhes das estátuas eram tão perfeitos, que a impressão que se tinha era de que, a qualquer momento, elas sairiam andando pelo lugar.

— Aí está! — Érion falou empolgado.

Continuava não havendo teto acima de suas cabeças, no entanto podia-se divisar um céu estrelado, onde a Lua Vermelha imperava. Os veios mágicos no chão se projetaram no ar e cruzaram com os pontos de luz, ligando-os. Formavam uma rede intrincada e multicolorida que despejava energia pelo lugar. Do vasto vazio, imagens de pessoas, seres estranhos e lugares começaram a surgir e desaparecer, como se fossem de fumaça.

— S-são… Ah… Ai!

O murmúrio de Fantin trouxe alívio para todas. Ela havia despertado poucos instantes antes e assistiu a mudança do ambiente, dividida entre a dor, o ódio por Érion e o encantamento pela nova versão do Salão. A mestra gemeu baixinho, forçando-se a ficar de joelhos.

— …estátuas. Os Portões são estátuas! — A mestra balançou a cabeça, confusa.

Embora tivessem cruzado muitos lugares na noite em que fizeram o ritual no Salão Lunar, as ordenadas nunca chegaram a verem os Portões de fato. Na ocasião, Virnan não quisera entrar no Salão de Cazz e, portanto, elas só tiveram contato com seus falecidos entes queridos. Quando decidiram que a Pedra do Coração deveria voltar ao seu lugar de origem, a castir foi ao Salão sozinha.

— Você não contou para elas, Castir? — Érion pousou o olhar violeta na grã-mestra, reconhecendo nela a mulher que deveria ter sido sacrificada quarenta anos antes. — Não são estátuas. Esses são o primeiro círculo: Cazz. Pelo menos, isso é o que restou deles. Tornaram-se os guardiões eternos das portas dos três mundos que criaram.

Ele fez um gesto suave, indicando as imagens que se projetavam e desapareciam pelo lugar.

— Mas depois desta noite, somente eu serei eterno. — Afirmou. — E já está na hora disso acontecer, a lua está em seu ápice. Não posso mais brincar com vocês!

No chão, Virnan deixou um risinho dolorido escapar.

— Como sempre, você fala demais, Deminara. — Ela fez uma pausa, puxando o oxigênio para os pulmões. — Nosso destino foi escrito no dia em que Lyla fechou esses Portões. Somente o fim absoluto nos aguarda diante deles.

Ela tossiu forte. Começava a sentir as forças se esvaindo. Seus olhos buscaram os de Tamar e recebeu desta um gesto positivo e quase imperceptível. Passou a mirada para Melina.

A grã-mestra pressionava o ferimento no abdômen e respirava pesadamente, o sangue encharcava suas vestes e despencava para o chão em gotas grossas, enquanto ela se esforçava para se manter atenta. Assim como Tamar, a grã-mestra respondeu positivamente à pergunta silenciosa que a castir gesticulou através dos movimentos suaves de uma das mãos. Virnan não o fez de forma discreta, ciente de que Érion interpretaria os gestos como algum tipo de espasmo gerado pelos ferimentos ou, mais provavelmente, uma tentativa de se libertar.

Ainda sofrendo com as dores do ataque, Fantin passou a mão pelo galo na cabeça. Tinha um corte feio acima do supercílio direito e outros tantos em várias partes do corpo, todavia parecia estar bem. Ela se colocou de pé, recuperando a lança.

Envolto na ansiedade do momento que se aproximava, Érion desistiu de lutar contra a resistência da proteção que Virnan criou. Ele se pôs ereto e moldou a magia que a prendia de forma a deixá-la de pé também. Fitou o rosto moreno e ensanguentado.

Longe de estar mais confortável com a mudança de posição, Virnan cuspiu um pouco de sangue. A cada instante, ficava mais difícil respirar naquela prisão. Contudo, mesmo diante da situação desvantajosa, ela manteve a expressão altiva e observou o inimigo sem estranhar o fato dos olhos dele ficarem opacos por alguns instantes em que o medalhão no pescoço dele brilhou como uma tocha escarlate.

As impressões do “reflexo” na Cidade dos Eleitos chegavam outra vez para Érion, que piscou algumas vezes durante a absorção das informações. Por um momento, foi como se ele estivesse lá, diante do amuleto e da eleita de Midiane.

As imagens inundavam a mente dele rapidamente, trazendo junto sensações que há muito, ele desconhecia. A surpresa do cavaleiro misturou-se a da sua projeção no Templo Castir, assim como o terror que o tomou quando Marie chegou perto do amuleto e recitou as palavras que o destruíram.

Tanto tempo desperdiçado criando aquele amuleto magnífico, tanto poder perdido…

As mãos de Érion tremeram, tamanha a fúria que o tomava junto com o sofrimento físico pela destruição do seu “reflexo”. Gotas de sangue escorreram do nariz dele e os olhos também choraram o líquido escarlate. A pele do braço esquerdo enegreceu, como se estivesse sendo queimada. Ali, por debaixo da proteção de couro, que lhe envolvia o braço, estava a tatuagem que guardava a magia que lhe permitia a comunicação com o “reflexo” e, consequentemente, o acesso ao poder do grande amuleto.

Érion recuou um passo e berrou de dor. Era uma sensação dilacerante.

Por mínimo que fosse, ele usou um pedaço da sua alma para criar o “reflexo” e agora sofria as consequências de perdê-lo, assim como ocorreu com Zefir. Mas aquela sensação era diferente da que o tomou quando o spectu sombrio foi destruído.

Por um momento, a agonia foi tão intensa que ele se perdeu nela e pôde sentir quando a Sombra que carregava agitou-se em seu interior, ansiosa por devorar um pouco mais da sua alma. Érion dobrou-se sobre o próprio corpo, vomitando sangue e murmurando palavras desconexas. Talhos profundos surgiram no corpo e rosto dele promovendo uma visão nauseante, ainda mais quando o braço dele, literalmente, esfacelou-se, tornando-se um amontoado de pó negro que foi consumido pelo círculo. Em meio a esse tormento, o cavaleiro caiu de joelhos e dobrou-se sobre o próprio corpo.

A conjuração que aprisionava Virnan oscilou, ante o sofrimento dele e castir não perdeu tempo para liberar sua própria magia. Fios mágicos deslizaram pelos dedos dela e desceram até o chão, eram tão finos que quase não podiam ser notados, contudo se espalharam pelo círculo como uma teia de aranha, revelando os pontos frágeis das armadilhas de Érion e fornecendo uma rota de movimentação para as ordenadas.

Aproveitando o caminho traçado pela amiga, Tamar arriscou-se novamente e conseguiu alcançar Melina. Mesmo gravemente ferida, a grã-mestra mostrou-se preparada para investir contra o inimigo, quando o momento chegasse. Passos atrás delas, Fantin inspirou fundo e preparou-se para atacar. Enquanto isso, Virnan conjurou a adaga, que havia caído junto aos limites do círculo. A arma tomou forma em sua mão esquerda e a guardiã planejou usá-la para libertar-se de vez. No entanto, antes que pudesse agir, Érion voltou a ficar de pé.

Ao fazê-lo, ele ofereceu uma visão repulsiva para as mulheres. Seu rosto havia perdido metade da pele, como se algum animal o tivesse devorado. A carne que sobrou estava enegrecida e Melina recordou Ilan Dastur e sua Sombra no calabouço de Valesol.

Os olhos dele moveram-se em todas as direções, quase insanos, até focalizarem Virnan embebidos no ódio da derrota que acabara de sofrer. Ele respirava com dificuldade e cambaleou por um metro antes de conseguir se equilibrar. Érion queria gritar seu ódio e sofrimento, mas preferiu dar uma forma brutal à fúria, voltou-se para a verdadeira inimiga. Recolheu sua espada e apertou o cabo com tanta força que até parou de sentir a forma do objeto que segurava.

— Morra de uma vez! — Berrou para a meia-irmã, impregnando a espada com magia.

Ele atirou a lâmina, que refletiu as milhares de luzes que iluminavam o ambiente. O metal chocou-se com uma barreira mágica de ar, mas a espada se mantinha firme no intuito de atingir o coração de Virnan. Érion permanecia com o braço erguido e a mão espalmada enviando uma forte onda mágica para a espada. A proporção da força que ele usava era equivalente ao ódio que sentia e rompeu a barreira de ar que Fantin havia criado para proteger a amiga. A espada fincou-se no corpo de Virnan ao som do grito de Tamar.

A guardiã engasgou com o próprio sangue, enquanto a agonia da morte, entremeada pela angústia das mulheres com as quais dividiu seus pensamentos e momentos mais íntimos, a invadia.

Nada do que lhe disseram sobre a dor de um círculo ao perder um membro, poderia ser comparado aquilo. Palavras não eram capazes de descrever tamanho sofrimento. Não obstante, a dor de Lyla também lhe chegou, enquanto a tatuagem que simbolizava seu casamento com Marie ardia intensamente.

E foi imersa na sua e nas dores das pessoas que amava, que Virnan deu seu último suspiro.

A cabeça dela pendeu para a frente e, de repente, as tatuagens que lhe recobriam o corpo começaram a desaparecer como se fossem grãos de areia atirados ao vento. Érion foi até ela e recolheu a espada, aguardando o momento em que a alma dela deixaria o corpo e ele poderia destruir sua existência completamente. Mas a verdadeira vontade dele era de consumí-la e reaver as forças perdidas pela destruição do amuleto, mas não tinha tempo para isso e tampouco conseguiria fazê-lo. Pois, ainda que Virnan estivesse morta, as amigas dela tinham conjurado um círculo de armas e mesmo que, teoricamente, o Salão de Cazz existisse entre mundos, a forma física dos Portões continuava guardada na capital florinae, o que implicava que ele, Érion, ainda era afetado pela magia do círculo de armas.

As três mulheres olharam para o corpo sem vida da amiga pelo que lhes pareceu uma eternidade. A dor que Virnan sentiu antes de morrer, reverberava nelas, misturando-se às suas próprias. Era como se um pedaço delas tivesse sido, literalmente, arrancado.

Érion inspirou fundo, tremendo descontroladamente. Ele tentava equilibrar a sua mente em meio a dor, mas era extremamente difícil se concentrar. Todavia, transferiu cada gota de atenção para o corpo da mulher à sua frente e acabou por se incomodar com a demora para o aparecimento do espírito dela. Foi então, que resvalou o olhar para a mão dela, que segurava a adaga.

Naquele ponto ainda existiam tatuagens e o brilho suave e quase imperceptível de um fio prateado chamou a atenção dele. O fio escapava entre os dedos da castir e desaparecia como as imagens que se projetavam pelo salão.

O cavaleiro trincou os dentes e gritou:

— Nem na morte você me dá a vitória?! — Ele ergueu a espada, novamente. — Acha que se prender a essa tucsiana fará alguma diferença?

Desceu a espada em direção ao braço dela, mas outra barreira de ar diminuiu a força do golpe, o que fez grande quantidade de magia jorrar para os lados. Poeira se ergueu, balançando as folhas das plantas em volta da fonte e ondulações puderam ser vistas na superfície da água. Ao romper essa defesa, a espada se chocou com uma camada grossa de gelo, a qual formou uma espécie de arco sobre o corpo de Virnan. Lascas geladas caíram no chão, mas a magia na lâmina a fez continuar seu caminho. E quanto mais perto ela chegava de alcançar o objetivo, mais duro o gelo se tornava e, assim, as forças opostas acabaram por gerar um forte clarão.

Quando Érion conseguiu enxergar novamente, o chicote de Tamar já estava tão próximo que ele não pôde recuar e tampouco tornar-se transpassável. O chicote deixou um corte tão profundo na couraça dele que esta se partiu no local atingido. O sangue escorreu do ferimento, relembrando-o da sua mortalidade.

Tamar investiu novamente, mas dessa vez Érion fugiu do ataque. A bibliotecária girou o corpo e o chicote pareceu bailar a sua volta. A tucsiana se expandiu, tornando-se longa como uma corda e as extremidades se enrolaram nos braços dela. As pontas deslizaram por suas mãos e enrijeceram, como se fossem bastões finos. Voltruf não havia exagerado quando disse que aquela era a arma castir mais poderosa, afinal sua maleabilidade permitia que o usuário a manejasse de acordo com a imaginação, e a de Tamar não tinha limites, ainda mais diante da fúria que a tomava no momento.

Passos curtos aproximaram a mestra do adversário. A investida obrigou Érion a recuar e afastar-se do corpo de Virnan, reconhecendo que a bibliotecária era bastante ágil para alguém de compleição tão delicada. O breve alívio que ele sentiu ao colocar alguns metros de distância entre os dois, logo desapareceu quando Melina o atacou. A grã-mestra atirou flechas, as quais sabia que Érion tentaria desviar ou barrar. Uma das setas chocou-se com a proteção que ele criou, enquanto a outra a circundou. Érion percebeu a manobra, jogou-se para o lado e foi interceptado por uma terceira flecha, a qual passou rado pelo rosto dele e deixou um corte profundo na bochecha que, até então, ainda se mostrava sadia.

Como se despertasse de um terrível pesadelo, Fantin deixou um grito de ódio vir à garganta. Fincou a lança no chão, que abriu-se criando uma vala estreita. Ante o tremor que se seguiu, Érion perdeu o equilíbrio e outra flecha de Melina passou perto do seu peito. Enquanto ele esquivava, Tamar fez água brotar da vala. O vento de Fantin espalhou gotas pelo ar, que congelaram e foram empurradas em direção ao cavaleiro.

Para defender-se, Érion ergueu o braço e uma coluna de pedra se projetou do chão, fornecendo proteção. O cavaleiro tomou fôlego, mas as ordenadas não estavam dispostas a lhe dar um momento de descanso e ele viu-se acuado por uma grande coluna de fogo. Novamente, foi obrigado a expandir sua aura mágica para escapar dela. Uma espiral de vento se desprendeu do corpo dele e subiu em direção ao céu carregando o fogo consigo.

Ofegante, Érion se recostou na parede do círculo, observando a situação aparentemente desvantajosa em que agora se encontrava e achou graça disso. Havia superado muitas barreiras para chegar até aquele momento e não seria um grupo de castanes humanas que impediriam a realização dos seus sonhos.

Encarou o corpo de Virnan e depois as amigas dela, tentando imaginar como conseguiam se locomover dentro do círculo sem ativar as armadilhas nele. Defendeu-se outra vez da magia aerare de Fantin, sentindo a pressão que ela gerava. Mesmo ferida, a mestra conseguia ser tão brutal quanto em sua normalidade.

Perder o amuleto do templo havia custado a Érion muito mais que poder. Um membro decepado limitava suas conjurações, deixando seu corpo em desequilíbrio. Todavia, ainda era capaz de lidar com aquelas mulheres. Ele soprou o ar e fitou o chão, percebendo a forma estranha com a qual Fantin se locomovia.

A mestra dava passos largos e, às vezes, curtos demais. Ia ziguezagueando pelo lugar de forma atabalhoada, ainda que se mostrasse decidida e veloz. Foi então que Érion notou que as suas marcações, aquelas que ativavam as armadilhas do círculo, ainda estavam lá, mas também havia linhas de magia aerare.

No fim, Virnan era mesmo uma adversária formidável; ele não podia negar. Mesmo ferida e aprisionada, conseguiu identificar os pontos fracos da sua armadilha e ainda encontrou uma forma de mostrá-los às amigas.

O ataque de Fantin foi repelido, então ele abriu o braço, na medida do que lhe era possível. O medalhão no peito dele brilhou forte, encerrando o círculo e as mulheres foram jogadas alguns metros para trás. A luz as cegou por um momento e quando desapareceu, Érion estava agachado. A mão tocava o chão, enquanto sussurrava rapidamente, atropelando as palavras.

A magia jorrou do chão, como um pequeno vulcão a expelir larva, e foi de encontro a cada uma das ordenadas. As envolveu e imobilizou, como uma serpente faria à sua presa. Novamente, elas se encontravam prisioneiras.

Mais uma vez, Érion fitou o sangue que fluía para fora do corpo de Virnan, cuja magia dele ainda aprisionava e mantinha de pé. O sangue formou rapidamente uma poça rubra a volta dela, e começou a escorrer pelas reentrâncias do solo, indo em direção a água na fonte. Érion expulsou o ar dos pulmões, acompanhando o movimento da mancha vermelha.

Observou a Lua, se certificando de que ainda tinha algum tempo antes que ela começasse a se retirar. Deu alguns passos em direção aos Portões, acompanhado pelo grito de fúria de Fantin. O rosto dela estava vermelho pela força que empregava para tentar se libertar e isso arrancou um sorriso dele.

— Não precisa se desgastar, humana. Quando eu unificar os mundos, irei consumir sua alma e restabelecer parte do meu poder. Mas agora preciso me apressar.

Ele foi para a fonte, pisando no sangue derramado por Virnan. Os pés afundaram na água até os joelhos e com poucos passos estacou no centro do círculo de estátuas. A pedra do coração pulsava devagar, agora sobre um pequeno altar, que se elevara do chão, quando o ambiente se transformou.

Fora uma grande derrota perder o amuleto da Cidade dos Eleitos, mas Érion ainda tinha poder suficiente para alcançar seus objetivos. Ele retirou o amuleto que trazia no pescoço. Era uma pedra alongada e espiralada com a cor âmbar. A ergueu sobre a Pedra do Coração, então soltou. O amuleto despencou por meio metro e parou. Ele flutuava, alinhado com a Pedra. Fios de magia saíram de ambas as pedras e começaram se entrelaçar.

O cavaleiro murmurou inicialmente e depois elevou a voz até gritar as palavras mágicas que tornariam seus desejos realidade.

Envolta na sensação de derrota, mas incapaz de admití-la, Fantin continuava lutando para alcançar a liberdade. A pressão em volta do corpo dela era assombrosa, mas ela não estava disposta a deixar que aquele homem obtivesse a vitória tão facilmente e ainda havia Virnan…

Lágrimas grossas começaram a deslizar pela face machucada da mestra, quando vislumbrou o rosto sem vida da amiga. Ela engoliu o choro, baixando o olhar para a mão esquerda dela, que ainda segurava a adaga e continuava exibindo resquícios das tatuagens.

Fantin fechou os olhos brevemente, sentindo o calor que vinha da adaga na sua cintura.

Ela rilhou os dentes, aumentando a força que empregava para escapar. Alguns metros adiante, Melina e Tamar também se dedicavam a isso. Mais doloroso que a prisão mágica em que se encontravam, era o sentimento de vazio que as tomava. Quando Virnan morreu, todas sentiram no corpo, mas a sensação que restou era ainda mais cruel.

O piado longo e agudo de um pássaro percorreu o ambiente e invadiu seus ouvidos, trazendo consigo um misto de lamúria e fúria.

Entre as milhares de luzes que se projetavam pelo salão, algumas começaram a brilhar mais forte e se conectaram até que se misturaram em um redemoinho luminoso e dele um pássaro vermelho saiu, acompanhado por Marie e um tigre.

O pássaro tomou as formas de Lyla, que Virnan havia enviado em busca de Marie assim que derrotaram Zefir. O spectu chegou ao Templo Castir no momento exato em que Marie recitava as palavras finais do ritual que destruiria o amuleto. Foi por muito pouco, mas ela conseguiu usar a magia temporal por tempo suficiente para resgatar as duas mulheres, que só se deram conta do que acontecera quando já estavam viajando através das correntes mágicas.

As três recém-chegadas encararam a destruição em volta, imersas em um silêncio atônito, quebrado apenas pelas palavras cada vez mais altas de Érion. O cavaleiro ignorava-as, imerso em transe.

Lyla caiu de joelhos, diante do corpo da irmã. Não conseguia compreender como ainda podia estar separada dela. Enquanto seguiam pelas correntes mágicas até ali, sentiu a dor e desespero de Virnan. Era tudo tão intenso que por algumas vezes perdeu a noção de si mesma e do caminho que deveria tomar. Era enlouquecedor. Mas, de repente parou e ali estava a resposta.

Não fazia sentido que não tivessem se unido após a morte dela.

Um passo atrás dela, os olhos de Marie se prenderam na figura machucada e imóvel da esposa. Percorreram toda a extensão do corpo até pararem no buraco que ainda vertia sangue em seu peito.

— Marie… — Fantin falou, mas a mestra não lhe prestou atenção.

Para Marie, o mundo parou naquele momento. Era a visão mais triste que jamais sonhou ter. O ar lhe faltou e o coração acelerou loucamente no peito. Lágrimas grossas deslizaram pelo rosto dela, enquanto cerrava os punhos e deixava-se afundar mais e mais na dor. Foi arrastada para uma infinidade de lembranças felizes ao lado de Virnan ao longo dos anos que passaram juntas na Ordem e quanto mais fundo ia nessas memórias, maior se tornava o seu tormento.

Um grito lhe escapou, junto com uma enorme quantidade de magia. O corpo dela foi rodeado por incontáveis gavinhas de luz, que giravam à sua volta, agitadas. O chão sob seus pés começou a desintegrar-se e as amigas sentiram, na pele, o descontrole do poder dela.

A magia de Marie era esmagadora e cortante. As gavinhas cresciam conforme o seu descontrole e quando atingiram as ordenadas aprisionadas pela magia de Érion, as feriu como se fosse uma mistura nociva do poder de todas elas.

— Marie! — Melina a chamou, mas a sobrinha parecia estar cega para qualquer coisa além do corpo de Virnan.

— Deuses! Ela vai nos matar! — Fantin afirmou, ouvindo novo grito vindo de Marie.

A voz da mestra parecia se tornar milhares de facas a penetrarem os ouvidos delas, que logo começaram a sangrar. Não tardou para que notassem o desconforto das suas auras mágicas sendo sugadas pela mestra. Seus corpos liberavam fiapos de magia, que começaram a se unir às gavinhas em volta de Marie. Até mesmo Érion sentiu o impacto da voz dela, mas manteve-se firme na conjuração que manipulava.

Contudo, não era apenas a dor de Marie que impulsionava seu descontrole. Ela também sentia o sofrimento das amigas e, principalmente, a tristeza de Voltruf que se mesclava a um sentimento de ódio crescente e quase sufocante.

Marie sabia que precisava se controlar, pois pressentia que estava muito próxima dos limites do domínio da sua própria aura mágica. Mas sensações e percepções eram semelhantes as que a dominara mais cedo, naquele mesmo dia. Era como se ela tivesse retornado à sua viagem no interior do amuleto no Templo Castir. Sentia-se despedaçada, sufocada e perdida no sofrimento ao ponto de, por alguns instantes, perder a noção de si mesma. E nem mesmo a certeza de que poderia reencontrar Virnan em Inamia amainava seu tormento, pois sabia que Érion estava prestes a destruir tudo.

Em certo ponto, toda a angústia evoluiu para o ódio cego e Marie, finalmente, afastou o olhar do corpo sem vida da esposa e voltou-se para o cavaleiro, desejosa de causar a ele o mesmo mal que trouxe. Ela entregou-se ao chamado da destruição, para desespero de Melina e companhia. As gavinhas luminosas cresceram em direção a fonte e o chão estremeceu. A raiva de Marie chegou até Érion na forma de uma onda mágica, contudo o ritual que ele executava lhe fornecia proteção. Marie então, libertou ainda mais magia e Lyla pareceu acordar de seu torpor.

O spectu chamou o nome dela e quando não obteve resposta, tentou chegar até ela, mas era tanta poder que foi repelida. Voltruf assumiu a forma humana momentaneamente e impediu que Lyla caísse sobre um conjunto de pedras pontiagudas. A ex-castir observou, com ligeiro eto, o estrago que ser tocada pela magia de Marie fez nela. Fora apenas um instante, mas Lyla ganhou tantos cortes e queimaduras, que parecia ter saído de uma batalha contra um pequeno exército, o que a levou a inevitável inconsciência.

— Marie! Por favor! — Tamar implorou para a amiga, mas naquela altura, o único som que chegava a Marie em meio a bolha de magia que a cercava, era o da destruição. À medida que a mestra caminhava em direção à fonte, o chão a sua volta, literalmente, se despedaçava.

Voltruf depositou Lyla no chão, longe do alcance das gavinhas mágicas e depois foi em direção a elas. Embora estivesse assustada com o poder de Marie, a guerreira não o temia já que a sua nova natureza a fazia parte dele. Além disso, era a única pessoa, naquele momento, capaz de chegar até a mestra e lhe incutir um pouco de razão.

As gavinhas se agitaram quando Voltruf penetrou a bolha de dor e raiva insanas, que elas formavam. Ela o fez com aparência felina, por esta ser a verdadeira forma do laço que compartilhavam. Quando Marie viu-se diante dela, quase acreditou estar na presença de um fantasma. A mestra piscou e a fera havia desaparecido para dar lugar a mulher de semblante sério e olhos violetas, envolta em um silêncio arrasador.

Foi uma atitude quase inexpressiva, mas o laço castir era poderoso ao ponto de fazer do silêncio um grande evento, e esse simples ato começou a arrastar Marie para fora das profundezas da escuridão em que se deixou cair.

“Acalme-se. Nem tudo está perdido.” — Voltruf falou através do elo mental.

Ouvir a voz dela foi estranhamente reconfortante para Marie e a fez se sentir abraçadas. Havia uma sensação calorosa vinda de Voltruf e, pela primeira vez, a mestra compreendeu os sentimentos de Virnan quando lhe falou da união castir. Era uma percepção que nem mesmo o ritual no Salão Lunar foi capaz de lhe dar.

Voltruf deu mais um passo em sua direção e retornou à forma de tigre. A cabeça do felino resvalou na mão da ordenada, como um animal comum a pedir o carinho do dono. A sensação de tocá-la trouxe novo alento ao peito de Marie, que espalmou a mão sobre a cabeça dela, notando que os pelos eram finos e sedosos.

— Ainda não acabou. — Voltruf pronunciou, empurrando a cabeça contra a mão dela outra vez.

Marie ergueu a mão para, finalmente compreender o que ela queria dizer.

— Um círculo é união, Marie. Um círculo não tem fim, só recomeço.

A tatuagem da união com Virnan ainda permanecia vívida, como se tivesse acabado de ser feita. Em contrapartida, um dos círculos que formava a tatuagem do voto, entre ela e as amigas, desaparecia lentamente.

— Nem tudo está perdido! — O spectu insistiu. — Então, acalme-se e ajude suas amigas. O momento da vingança chegará.

A calma que ela emanava envolveu Marie e arrefeceu os sentimentos daninhos, trazendo o equilíbrio de volta para seu corpo e mente. Marie retrocedeu alguns passos e com algum esforço conseguiu voltar ao controle total da magia, fazendo as gavinhas desaparecerem para alívio das amigas.

Depois disso, o Salão se tornou puro caos. O chão tremeu, abrindo fendas que despejaram mais luz no lugar. As pedras subiram em direção ao vazio, desintegrando-se. Vento forte circulou, tornando difícil para Marie e Voltruf manterem-se de pé.

— Ah, eu venci! — Érion gritou, admirando a luz escarlate que conectava o medalhão nefasto com a Pedra do Coração.

Marie o olhou, sentindo o ódio agitar-se em seu interior, novamente. Só afastou a vista quando as garras de Voltruf arranharam o chão, deixando uma marca profunda. A mestra fitou as tatuagens outra vez, pegou as machadinhas e, com um movimento ligeiro, atirou-as no vazio. As armas desapareceram entre as milhares de luzes, enquanto novo estremecer no solo formou vincos que avançaram em todas as direções. Marie girou o corpo com brusquidão e magia desprendeu-se dela, aumentando os tremores de terra. Fluiu em ondas luminosas e penetrou o chão.

— O círculo da terra… — Érion riu, percebendo o que ela estava fazendo. — É inútil, Princesa! O equilíbrio do poder de vocês era oriundo de Virnantya. Sem um castir, vocês não passam de crianças ainda aprendendo a dar os primeiros passos. Mesmo que estejam unidas às tucsianas, isso nada quer dizer. Eu venci!

O chão estremeceu, depois ondulou e pedras se projetaram dele aumentando os sons de destruição. Eram estacas negras e pontiagudas, que preencheram o lugar misturando-se aos veios mágicos. O tremor parou gradativamente, assim como o surgimento das estacas. Estava feito, o último círculo havia sido conjurado e, agora, a magia de Marie fluía unificada a das amigas, assim como ocorreu na noite em que fizeram o voto. Todavia era uma sensação diferente. Onde, naquela ocasião, havia apenas harmonia e entendimento entre elas, agora percebia que existia força e agressividade, também.

— Talvez seja verdade, mas você não estará vivo para desfrutá-lo. — A mestra garantiu.

Agora que fazia parte do Círculo de Armas, ela falava sem medo de ferir as companheiras. Abriu os braços, as pontas dos dedos brilharam e a magia que prendia as amigas começou a dissolver-se. Em vez desse poder retornar para Érion, ele foi em direção a Marie, que o absorveu exibindo uma expressão cada vez mais vingativa.

— Enquanto nós estivermos aqui, você nunca será o vencedor. — Melina recuperou o arco com uma expressão dolorida. Ela conseguira desmaterializar a flecha e o ferimento no abdômen já não sangrava, embora continuasse aberto.

Érion escarneceu outra vez:

— Vocês não são nada sem ela. Não passam de insetos, mesmo com uma amitsha ao seu lado. — Ele caminhou até a borda da fonte e assim que pôs os pés fora dela, uma estaca se projetou do chão e penetrou seu pé esquerdo.

A surpresa misturada a dor, arrancou um berro do cavaleiro florinae, enquanto as mãos delicadas de Marie brilhavam, conjurando as machadinhas que regressaram do vazio despedaçando algumas estacas pelo caminho. Novamente, a mestra girou o corpo para tomar impulso, então atirou uma das armas em direção a Érion. A outra machadinha foi atirada no chão com ferocidade.

O cavaleiro ergueu o braço que lhe restava à frente do rosto e a lâmina da machadinha parou no ar, como se tivesse trombado com uma parede invisível. Mesmo assim, a força que a lâmina empregava para ultrapassar a barreira era assombrosa e ele sentiu a proteção se rompendo aos poucos. Nesse ínterim, notou o chão se dividindo e jogou-se para o lado, desviando do segundo ataque. Uma vala de dois metros de largura se abriu no exato local onde estivera. Érion ainda escorregou na borda do buraco, mas recuperou o equilíbrio rapidamente e antes que pudesse revidar, as garras de Voltruf deixaram uma trilha de sangue e carne dividida nas costas dele.

O tigre o jogou no chão, subiu nas costas dele, mordeu e arranhou. Entretanto, O cavaleiro expandiu a aura mágica e o spectu foi atirado para longe. Voltruf cruzou o ar por alguns metros, antes de cair ao lado de Lyla, que começava a retornar a consciência. O cavaleiro urrou de fúria e se colocou de pé, criando nova barreira de defesa contra as machadinhas de Marie.

A mestra manipulava as armas de um jeito semelhante ao que Tamar fazia com o seu chicote. Enquanto a bibliotecária alongava o chicote até o limite e manipulava água para aumentar o seu alcance, Marie expandiu sua magia e a moldou para tomar a forma de cordas, conectando-se às machadinhas. Na realidade, essa manipulação era oriunda da magia nata de Voltruf que, em outros tempos, fora a dona da arma de Tamar.

Enquanto se preocupava com Marie, Érion descuidou-se da retaguarda e as penas de Lyla o atingiram. Penetraram seu corpo e o atravessaram, deixando uma trilha de sangue. O cavaleiro distraiu-se com a dor e Marie recuperou as machadinhas para, em seguida, fazer novas estacas elevarem-se do chão. Érion escapou delas por meros centímetros.

Novamente, o salão tinha se tornado uma zona de guerra. As ordenadas atacavam o inimigo de todas as direções, enquanto o lugar, literalmente, se desfazia. A fonte começou a borbulhar e fissuras surgiram nas estátuas. O vento que percorria o local dificultava a movimentação deles; hora oferecendo resistência, hora atirando pedras e areia neles.

Érion jogou-se no chão para escapar de novo ataque de Lyla. Desta vez, ela estava tão perto que suas asas quase o decaptaram. Enquanto ele se erguia, Voltruf saltou sobre suas costas, outra vez, e as esporas na ponta da cauda fincaram-se no abdômen dele. O tigre rugiu e o mordeu no ombro, gelo se espalhou pelo local, mas antes que o envolvesse por completo, Érion jogou o spectu para longe e fugiu das chamas do ataque de Melina.

A presença de Marie havia dado novo fogo às amigas e elas se mostravam tão implacáveis quanto a mestra. Ao escapar de Melina, Érion tomou um rumo que inesperadamente o deixou cara a cara com Marie.

Ela tentou golpeá-lo com as machadinhas, mas apesar de ferido, Érion era bastante ágil. Enquanto investia novamente, auxiliada por Melina e Fantin, Marie fez o local em que ele pisava, tornar-se areia.  Tamar complementou sua magia, adicionando água e posteriormente gelo.

Ambas sabiam que aquela prisão só duraria alguns instantes, então Marie espalmou uma mão no vazio e o cavaleiro parou de se mover. Érion gritou em fúria e tentou projetar a magia para fora do corpo, mas nada lhe escapou.

Quando deu-se conta do que estava acontecendo, ele fitou Marie com uma mistura de calmaria e desprezo. Afinal, havia se tornado vítima da sua própria artimanha e agora se encontrava imobilizado, assim como fizera com as ordenadas. Outra vez, ele esquecera-se de que lidava com mulheres excepcionais e aquela, dentre todas, era a mais perigosa.

Absorver a magia alheia, descobrir como essas conjurações funcionavam e recriar essa magia, era um dos maiores dons de Marie, ainda que ela pouco o usasse por acreditar que se tratava de um dom imoral.

Érion sentia seu próprio poder na conjuração que o prendia. Também percebia o de Marie, que o envolvia na forma de um fio de fumaça esverdeado. Esse poder lhe queimava a pele, mas era uma dor suportável.

A mestra se aproximou devagar.

— Você gosta de almas, não é? — A voz dela soou sombria e perigosa. — Talvez esteja na hora de alguém devorar a sua.

A declaração trouxe um sabor amargo ao paladar de Melina. Ela caminhou claudicante em direção a sobrinha, mas foi obrigada a interromper os passos quando a magia de Marie jorrou espalhando-se à volta dela como as chamas de uma fogueira.

Marie fitou o corpo de Virnan por alguns instantes, então deixou-se abraçar pelo desejo de vingança. Tocou o peito de Érion, pronunciando uma palavra que jurou nunca mais repetir, desde o episódio em que sua magia despertou e quase matou Emya, ainda na juventude.

— Eu quero a sua aguha! — Ela quase gritou.

Um pequeno fio de luz dourado começou a deixar o corpo do inimigo. Era quase nada, Marie o notou. Mesmo assim, aquele fiapo de alma resistia ao chamado dela e Érion riu de forma escarninha.

— Sinto muito, Princesa, mas eu não tenho mais uma alma para lhe dar. Isso é tudo o que restou.

Com um mau pressentimento, Marie findou o que tentava fazer e recuou um passo. A mão que havia usado para tocá-lo, estava ligeiramente dormente. O cheiro dele penetrou suas narinas, trazendo a certeza de que, embora Érion tivesse uma aparência humana, havia muito tempo deixara de ser qualquer coisa próxima disso.

O vento aumentou e as linhas luminosas da conexão entre o amuleto e a Pedra do coração se espalharam pelo Salão como se fossem areia ao vento. Parte delas alcançou Érion e algo estranho começou a acontecer. A metade do rosto dele, que havia se desfigurado quando Marie destruiu o amuleto da cidade dos eleitos, começou a se regenerar e o mesmo ocorria com o braço decepado.

Marie o golpeou com as machadinhas, fazendo um corte profundo no peito dele. Quando retirou a arma, o ferimento não derramou sangue e começou a se fechar, assim como ocorria àqueles que as amigas fizeram.

— Você não pode me matar com uma tucsiana, Princesa. Nenhuma de vocês pode. Agora que o ritual de unificação começou, eu sou o elo entre os três mundos, logo serei o deus de um mundo novo. E agora que Virnan está morta, vocês não são capazes de alcançar a única arma que pode me matar.

Ele fez um pouco de força e a magia que o aprisionava começou a ceder. Era apenas uma questão de tempo até que conseguisse se libertar. Marie trincou os dentes, tentando manter a conjuração firme.

Alguns metros atrás, Fantin recuperou a lança, que tinha caída quando Érion a atingiu com uma rajada de vento cortante que a fez rolar até a base de uma estaca. Ela fez a arma encolher e prendeu no suporte das costas, então pegou sua metade da adaga e caminhou até o corpo de Virnan.

— Vocês, florinae, são irritantemente convencidos. Sempre atuam como se seus planos não pudessem fracassar. Sem falar no péssimo hábito de se acharem superiores a nós, humanos. Tenho uma novidade para você, imbecil, está cantando vitória antes do tempo. Essa batalha só pode acabar de um jeito e é com você morto. — Ela disse.

— Ah, por todo o sangue que já derramei neste mundo, você deve ter batido a cabeça muito forte, mulher! Eu já venci. É uma questão de tempo, apenas. Olhe à sua volta. O Salão de Cazz está ruindo! E quando aquelas estátuas ridículas se esfacelarem completamente, eu terei criado um novo mundo!

Fantin cuspiu o sangue que se acumulava na boca, o sabor férreo alimentava seu ódio. Continuou a caminhada claudicante até o corpo da amiga.

— Sabe, eu fiquei muito assustada e tive tanta raiva quando Virnan me deu isto dizendo que deveria destruir a alma dela, caso você conseguisse matá-la… — Mostrou a adaga, chegando ao seu destino.

Fitou amiga morta com um suspiro longo.

— Ideia idiota, né? Mas ela me fez prometer essa estupidez.

— Fantin… — Tamar a chamou, quase tão baixo que ela pensou ser apenas um sussurro do vento que varria o local.

Todavia a mestra loira voltou o rosto para a esposa, onde lágrimas tão grossas quanto as que Marie derramou, deslizavam. Agora a bibliotecária tinha uma boa ideia do que a atormentou naqueles últimos dias e, também, da razão dela fitar a adaga com tanta repulsa, quando acreditava que estava sozinha.

Érion riu alto, forçando um pouco mais a magia que o prendia. A cada instante, a aparência dele tornava-se mais humana.

— Que nobre sacrifício. — Caçoou o cavaleiro. — Eu teria mesmo devorado a alma dela, se tivéssemos um pouco mais de tempo. Nem por isso, foi menos satisfatório matá-la. Pena que toda a tortura que imaginei tenha ficado apenas na minha mente.

Marie se afastou dele completamente, mas ainda o fitava com olhar assassino. Em verdade, ela nunca imaginou que poderia odiar tanto uma pessoa, como o odiava. Ela fez uma pergunta através do elo mental, Voltruf rugiu baixinho e respondeu da mesma forma. Enquanto isso, Fantin limpou a lâmina da adaga na calça rasgada, ainda admirando o rosto moreno e inerte da amiga. A magia de Érion ainda a mantinha o corpo de Virnan de pé, como se ela pudesse se libertar e sair andando a qualquer momento. O sangue da guerreira auriva ainda gotejava, mas agora de forma lenta.

— Esta manhã, — Fantin esnobou a declaração dele — me ocorreu que morrer nunca foi a intenção de Virnan.

Ela fitou Lyla, imóvel como uma criança ao lado do corpo da irmã. Assim que Érion foi aprisionado, ela retornou para junto dela. Seu olhar era tão ou mais atormentado do que o de Virnan quando Zarif morreu.

— Estou enganada, passarinho? — Fantin indagou a ela.

Lyla não respondeu. Em vez disso, tomou a mão da irmã falecida. Pela primeira vez, Fantin tinha uma ideia do quão frágil a antiga rainha de Flyn era. De fato, ela e Virnan tinham mais em comum do que o laço de sangue.

— Diga, “Cavaleiro”, — Fantin pronunciou o título com escárnio — não acha estranho que após fazer um pacto com Virnan, sua outra irmã ainda esteja aqui depois da morte dela?

Pela primeira vez, Érion demonstrou dúvidas. Um cenário perigoso começou a desenhar-se na mente dele que aumentou a força para se libertar. Em contrapartida, Marie reforçou a conjuração e Tamar revolveu as memórias de seus estudos em Flyn. A bibliotecária quase sorriu quando deu-se conta de que as percepções de Fantin estavam corretas e tomou parte na conversa:

— Estarmos dentro de um círculo de armas conjurado por nós mesmas, implica que se morrermos dentro dele, nossas almas são consumidas pelo círculo para reforçá-lo.

— É o princípio de qualquer círculo, por isso sacrifícios são tão poderosos. O que há de mais nisso? — Érion quis saber.

— Você mesmo acabou de dizer: sacrifício. — Tamar observou.

Ele apertou os olhos entendendo do que se tratava.

— Isso nada quer dizer, já que ela não chegou a conjurar o círculo espiritual, portanto está fora dessa regra. — Érion retrucou, faltava pouco para que o laço de magia que o envolvia rompesse.

Uma risada baixa se fez ouvir, apesar do som do vento e destruição em volta. Lyla o fitou com olhos marejados.

Você sempre foi tão limitado em relação à Virnan! — Ela apertou os olhos. — Perdeu tanto tempo odiando-a, que esqueceu o quanto é boa em cumprir seu dever. E ela não precisou de muito para descobrir como conseguir uma vantagem sobre você. O seu orgulho é o motivo do seu fracasso, e o meu medo é a razão de termos chegado até este ponto.

Soltou a mão de Virnan devagar.

— Sempre considerei ver o futuro como uma maldição. Virnan, por outro lado, soube aproveitar bem esse dom. O futuro muda quando se fala sobre ele, mesmo que aparente ser sólido para as forças que regem nosso mundo. Todavia, há sempre uma forma de influenciá-lo e Virnan logo entendeu que pequenas coisas podem trilhar grandes caminhos, mas é o fator humano que conta. O desejo, o amor, o medo… Nada é definitivo.

Fez uma pausa focalizando a adaga que Fantin segurava. Falou para ela:

— E quando você pediu a Virnan que a deixasse ajudar com o peso em seus ombros, ela soube o que deveria fazer. Embora também tivesse outros objetivos quando lhe deu isso, Virnan sempre confiou no seu discernimento… talvez porque você está sempre com as emoções à flor da pele. Dentre todas, é a única que conhece as profundezas do ódio e nunca se deixaria cegar por ele em um momento como este.

O spectu fez um gesto positivo, inclinando a cabeça suavemente.

— Depois disso, eu vou matar ela de novo! — Fantin declarou, arrancando um meio sorriso de Lyla, que se voltou para Érion e contou:

— Irmão, o círculo de armas foi iniciado nas primeiras horas da manhã, um pouco depois do primeiro ataque às barreiras. O primeiro círculo a ser conjurado foi o espiritual.

— Impossível! — Érion rosnou. — Rituais exigem uma ordem. O círculo espiritual deveria ser o último, não o primeiro! Além disso, eu teria notado!

— Você é muito convencido! — Melina acusou. — Há uma grande diferença entre dever e obrigatoriedade. A ordem certa alcança o máximo de poder em um círculo, mas isso não significa que é realmente necessário segui-la.

Como todo mago, Érion cresceu sendo condicionado a seguir as regras dos rituais. Virnan, por outro lado, despertou tarde para a magia e aprendeu a dominá-la fugindo de seus princípios básicos. Embora não tivesse as habilidades de Marie, que podia, literalmente, desconstruir a magia alheia e reconstruí-la a seu favor, a jovem e inexperiente Virnan teve de se ater aos ensinamentos Manir para compreender o uso de poderes que jamais imaginou ter. Era contraditório, já que o manibut era uma arte que não envolvia magia, todavia se utilizava da observação do adversário a fim de compreender como a magia dele funcionava, desconstruir o caminho da execução e, por fim, encontrar o melhor lugar no corpo dele para atacar e bloquear seus poderes.

Desta forma, ela sabia que a ordem da execução da ação, não alterava o resultado final, com exceção de círculos de união.

— Que melhor momento para conjurar um círculo espiritual do que o início da batalha, quando a magia de ambos os exércitos ainda está em seu ápice e mistura-se facilmente às ondas mágicas liberadas pelos ataques às barreiras? — Melina pontuou.

Você, com certeza, está mais forte do que milênios atrás. — O tigre falou, assumindo a forma humana de Voltruf. — Naquela época, mal conseguiu se mexer quando o segundo círculo foi conjurado.

— Isso não importa mais — Érion falou, arrogante. — O círculo completo talvez tivesse me matado momentos atrás, mas você chegou tarde, Princesa. Estou me tornando parte do Todo. Logo, a única maneira de me derrotarem seria conjurando a Espada de Cazz, mas isso é impossível agora.

Ele exibiu um sorriso desdenhoso.

— É preciso cinco membros para conjurá-la e Virnantya está morta!

— Idiota arrogante! — Fantin o insultou, mostrando a adaga, outra vez. — Ela está morta, sim, mas é aí que retornamos a isso. Uma tucsiana se liga a alma do seu dono e enquanto o Círculo de Armas estiver ativo…

Érion agitou-se, compreendendo de vez o que a adaga na mão dela significava, além de toda aquela conversa sobre as regras do uso da magia em rituais. Ele fez o poder jorrar para fora do seu corpo, expulsava cada vez mais magia, até que Marie não foi mais capaz de segurá-lo e a prisão se rompeu. O cavaleiro correu em direção a Fantin, lançando lâminas de ar. Atenta, Lyla usou as suas penas para interceptar o ataque.

Disposta a impedí-lo, Marie espalmou uma das mãos em direção a Érion e gritou a palavra que Voltruf acabara de lhe ensinar:

— Parish!

O cavaleiro interrompeu os passos de repente. Ele engasgou-se e depois tossiu sangue. Baixou os olhos para o próprio corpo e onde sua pele podia ser visualizada, pontos e veios multicoloridos surgiram. Aqueles veios compunham os canais que transportavam a magia para o corpo dele e, agora, Marie havia ordenado que eles parassem, arrancando de Érion um grito quase animalesco.

A mestra cerrou as mãos devagar e ele se contorceu de agonia. Era como se estivesse sendo rasgado de dentro para fora. A destruição que a mestra causava no corpo dele era excruciante, mas enquanto ela destruía os canais de magia, novos começavam a se formar, graças ao poder da união da ligação dele com os três mundos.

Fantin observou o que se passava com desprezo, então se voltou para o corpo da amiga e fincou a adaga no peito dela. Gritou:

— Rectrum!

Novamente, o salão foi inundado por tanta luz e vento que foram cegados e atirados a metros de distância, uns dos outros.

Quando toda a luminosidade se foi, Érion arrastou-se por meio metro antes de se dar conta de que a meia-irmã estava a poucos passos dele, tão viva quanto as amigas. Virnan inspirou fundo, exibindo um sorriso sanguinolento.

As armas tucsianas haviam se realinhado em um círculo amplo e flutuante e se conectavam por correntes de magia. Era uma circunferência perfeita.

— Que tal continuarmos de onde paramos? — Virnan indagou com olhar assassino. — Mas, desta vez, é você quem morre!

Ela ergueu a mão e foi imitada pelas companheiras. As tucsianas no círculo flutuante liberaram uma grande quantidade de magia e cada arma duplicou-se nas mãos de suas respectivas donas, mas estas eram apenas uma projeção mágica das verdadeiras.

O que veio a seguir parecia ter sido ensaiado pelas ordenadas, todavia era fruto do instinto. Era como se as armas falassem com elas. Ao mesmo tempo, todas lançaram um ataque em direção a Érion. A magia percorreu a distância que os separava, convergindo no mesmo ponto. Quando se aproximou de Virnan, a castir girou o corpo unindo a sua adaga a onda mágica de poder, que finalmente alcançou a forma física de uma espada.

A nova tucsiana irradiava tanta energia que o medo da Sombra de Érion tornou-se tão doloroso para ele quanto a conjuração que Marie havia acabado de usar. De repente, a Sombra tentou fugir e abandoná-lo.  O demônio em sua alma deslizava para fora do seu corpo, arrancando do cavaleiro gritos de agonia.

A intenção do demônio propiciou uma visão vertiginosa para as ordenadas. A pele de Érion rasgou-se em alguns pontos, liberando algo lustroso e pegajoso como óleo. Carne e ossos puderam ser vistos, assim como o cheiro pútrido de decomposição se espalhou pelo local.

Enojada, Virnan não prolongou o momento. Ela foi sucinta e quase benevolente ao enfiar a espada no peito dele e encerrar seu sofrimento.

A mão de Érion alcançou o braço dela e o envolveu. Pela última vez, a castir observou os olhos dele, cujos lábios se moviam sem emitir som. Então, ela inclinou a cabeça para o lado, torceu a espada e a luz que a arma emanava abriu caminho pelo corpo dele, transformando carne em pedra até que tudo ruiu em uma pilha de pó.

Virnan fitou a mancha negra que era o último resquício da presença dele, antes de inspirar forte e tossir sangue. Marie tentou ir até ela, mas o caos se instalou completamente no Salão. Agora que Érion estava morto, o ponto de equilíbrio da união dos mundos se fora. Pedras esvoaçavam pelo lugar. Árvores surgidas de lugar algum cresciam e se despedaçavam pelo vento forte. E havia a chuva que, de repente, passou a ser granizo.

O círculo flutuante das tucsianas foi atraído para a fonte e as armas se encaixaram nas mãos das estátuas. As ordenadas se olharam sem saber o que fazer.

O que estão esperando?! Vão rápido! — A voz de Voltruf superou o som da destruição.

Ela e Lyla envolveram ajudaram Virnan e Melina a irem até a fonte, onde cada ordenada ocupou uma pedra ao lado de uma estátua.

— A droga do mundo está prestes a virar pó, alguém tem uma ideia do que devemos fazer? — Fantin questionou, tentando se manter de pé ante os fortes tremores de terra.

Virnan olhou para ela, antes de segurar a espada com todas as forças que lhe restaram e tentar interromper a conexão entre o amuleto e a Pedra do Coração. Quando o metal da arma encontrou o fio mágico que conectava as duas pedras, a guardiã foi jogada para fora da fonte.

Ela se pôs de pé com a ajuda de Lyla e retornou para junto das amigas. Tentou novamente. Desta vez, usou a magia aerare para manter-se firme no lugar. A magia que envolvia as duas pedras cortava-lhe a pele, fazendo o sangue escorrer pelo fio da espada. Ainda assim, Virnan persistia, ciente de que se soltasse aquela espada, tudo o que fizeram até aquele momento, teria sido em vão.

 Ela gritou, empurrando a lâmina para baixo, mas as forças começaram a lhe faltar. Foi quando sentiu a mão de Marie envolver a sua e, em seguida, cada uma das amigas fez o mesmo.

Por um momento, as tatuagens que recobriam a pele de Virnan se refletiram nas peles delas e, assim como aconteceu no Salão Lunar, elas unificaram sua magia e pensamentos. Juntas, empurraram a espada em direção ao amuleto e quando a lâmina prateada o tocou, nova explosão de luz e magia envolveu o lugar.

O amuleto se partiu e tudo se tornou escuridão e silêncio.

***

Emya fitava as dezenas de piras funerárias montadas diante dos portões de Flyn, com um nó preso na garganta. Ela se recusava a chorar diante da morte, mas não se poupava de fazer uma oração, para aqueles que se foram, a cada novo anoitecer.

Quase uma semana tinha se passado desde a grande batalha. Mesmo estando a dezenas de quilômetros de Flyn, a princesa midiana e companhia viram e sentiram os resultados da luta no Salão de Cazz. Uma imensa coluna de luz havia se erguido do chão aos céus, a terra tremia derrubando árvores, rolando pedras, dividindo-se. Os mares se agitaram e varreram vilas e cidades inteiras, o vento forte das tempestades destruiu casas e plantações, vulcões eclodiram derramando seu fogo líquido.

As notícias dos desastres em outros pontos do continente chegavam aos poucos, através de mensageiros e pássaros adestrados. Lentamente, a derrota do Cavaleiro Vermelho e a lenda de Flyn percorriam o mundo.

Os exércitos aliados acampavam além dos muros da cidade e, enquanto isso, os floras tentavam recuperar o que sobrou da capital. Diante desse cenário, ninguém pareceu se importar, nem mesmo os nobres, quando Laio começou a pôr ordem no reino. Até mesmo o Demir Karus não fez questão, mais interessado em sua própria saúde, já que tinha se ferido gravemente durante o combate.

A Ordem havia se instalado no palácio e seus membros trabalhavam até quase a exaustão, já que curar soldados florinae consumia mais magia do que a cura dos humanos. Envoltos no espírito da solidariedade, soldados humanos auxiliavam os ordenados da melhor forma possível e, também, contribuíam com a limpeza da cidade.

— É quase noite, eles vão acender as piras e é melhor não estarmos por perto quando isso acontecer. — A voz de Verne interrompeu os pensamentos de Emya.

A princesa baixou a vista para o chão antes de voltar-se para o esposo. Não importava quantas vezes o olhasse, continuava tendo a impressão de que o fato dele ainda estar vivo era um sonho, ante a gravidade dos ferimentos que sofreu.

Ela fitou o rosto magro e encovado pela enfermidade, satisfeita por ele ter demonstrado força e desejo de sair da cama após tantos dias, ainda que não devesse fazê-lo. Todavia, Verne não seria o homem com quem se casou, se não se mostrasse teimoso mesmo quando sabia que deveria arrefecer seus humores e assumir sua fragilidade.

O vento do fim de tarde soprou forte, trazendo o perfume das ervas que queimavam nos archotes entre as piras. Emya jamais esqueceria aquele cheiro, tampouco poderia apagar a desolação da guerra de seus olhos.

Verne mancou até ela, apoiado em muletas. Távio o acompanhava alguns passos atrás, caso fosse necessário amparar o lorde. Verne ainda se mostrava pálido como uma vela, graças a todo o sangue que perdeu, todavia encontrou forças para oferecer um sorriso para Emya. De fato, aquela era a primeira vez que ele saía do leito em dias. Contudo, aparentava estar bem e não demonstrava se importar com o fato de que agora só tinha uma perna.

Por mais habilidoso que mestre Pitacus fosse, e mesmo que Marie o tivesse orientado, os ossos da perna do badir não tinham remendo e a amputação foi inevitável.

Emya se esforçou para não baixar o olhar para o vazio abaixo do joelho direito dele. Ela sabia que Verne se importava, que lamentava o ferimento e as muitas dificuldades que lhe traria, mas também sabia que ele não iria deixar que isso arruinasse a nova chance de vida que recebeu. Definitivamente, o lorde não se entregaria a essa mágoa quando havia perdido algo muito mais precioso: “um grande amigo”.

O corpo de Fenris foi enterrado na floresta, próximo à Cidade dos Eleitos. Assim que se restabelecesse completamente, o badir voltaria para resgatá-lo e lhe dar um funeral adequado e digno de um cavaleiro, amigo e irmão de armas.

— Venha. Não devemos ficar aqui. — Disse o badir para a esposa.

Assim que ele findou as palavras, uma procissão de pessoas em trajes brancos cruzou os muros da cidade. Levavam tochas e pequenas caixas com oferendas para os mortos. Aos poucos, as pessoas se dividiram, parando diante das piras de seus respectivos parentes. O choro misturou-se a canção de um soldado auriva sobre a muralha. A voz dele cresceu, enquanto outros guerreiros dividiam-se entre as piras criando círculos e mais círculos mágicos que subiam aos céus e desapareciam. Então, a magia retornava em forma de pequenos pontos luminosos que lembravam flocos de neve. Por fim, os familiares daqueles que partiram acenderam as piras.

Esse ritual se repetia a cada anoitecer, desde o fim da batalha. Havia muitos mortos para lamentar, muitos corpos para os curandeiros florinae prepararem para a passagem para o próximo mundo. Ainda que soubessem que os espíritos eram atraídos para os Portões no momento de suas mortes, existiam as tradições e aquela provavelmente jamais seria esquecida ou modificada.

Era dever do rei ou rainha participar dessas cerimônias, mas desde o combate no Salão de Cazz, Virnan permanecia de cama. Os ferimentos que sofreu, embora já não fossem visíveis, graças a várias sessões de cura, continuavam tendo efeito sobre seu corpo. Sobretudo, havia o desgaste mágico, que influenciava a recuperação tornando-a tão lenta quanto a de um humano. Sendo assim, não havia previsão de quando ela seria capaz de assumir suas funções.

Sendo assim, Laio e Lyla tomaram a responsabilidade de representar a rainha nos ritos funerários. Mesmo que a sua natureza tivesse mudado e agora fosse um spectu, Lyla permanecia amada por seu povo e tê-la ali era um alento.

— É bonito. — Disse Emya para Verne.

Eles cruzavam os portões da cidade e a princesa interrompeu o passo para olhar mais uma vez para a cerimônia.

— É triste, mas é muito bonito — completou.

O badir concordou com um inclinar de cabeça singelo e a puxou para um abraço apertado. A soltou rápido, embora quisesse permanecer assim por mais algum tempo. Após tantos anos vivendo das lembranças de um amor impossível pela cunhada, ele finalmente começava a perceber que só alcançava a verdadeira paz quando estava nos braços de Emya.

Ele observou a face serena da esposa sob a luz das chamas das dezenas de piras ao longe. Escorregou os dedos pela tez delicada e ainda marcada por escoriações, então sentou um beijo na testa dela. Afastou-se devagar e ligeiramente desequilibrado, contudo, Emya o apoiou, enquanto a carroça conduzida por Mestre Pitacus parava ao lado deles.

O badir cofiou a barba, lançando uma última olhadela para as piras além dos portões da cidade, antes de aceitar o auxílio de Távio para subir na carroça. A melancolia se apossou dele o fazendo recordar os companheiros e amigos perdidos na estrada até ali. Todavia, era um alento ter a certeza de que havia um mundo além daquele, onde as almas dos mortos podiam descansar e renascer.

***

Virnan despertou sentindo a brisa que entrava pela porta, entreaberta, da sacada do aposento. Ela piscou algumas vezes para ter certeza de que não estava vendo coisas. Havia mesmo um tigre deitado junto à balaustrada, balançando a cauda longa com ar entediado.

Ela ainda não tinha se acostumado com aquilo, embora lhe agradasse a presença de Voltruf na forma animal. Parecia uma piada do destino que a mulher por quem se apaixonou no passado, agora, estivesse ligada por um pacto sagrado a mulher que amava no presente.

Apertou os olhos, inspecionando o entorno ligeiramente. Por vezes, encontrava o pássaro Lyla ao lado dela, o que não era o caso naquele momento.

A fera logo percebeu que estava sendo observada e devolveu-lhe o olhar antes de voltar a fitar o jardim com um suspiro ainda mais enfastiado. Por sua vez, Virnan demorou um pouco mais a prestar atenção no felino, antes de fitar o teto e assim permanecer por algum tempo. Ela ouvia o vento percorrendo a copa das árvores no jardim e, também, o som da cidade que despertava além dos portões do palácio.

Aos poucos, a vida retornava para Flyn, fluindo como as águas tranquilas de um riacho. Virnan bem sabia que assim que o luto passasse, a guerra que travaram seria uma história contada e cantada com orgulho. Os heróis que se foram para as Terras Imortais, seriam enaltecidos e apenas lágrimas de orgulho seriam derramadas.

Assim era Flyn.

A castir inspirou fundo, deslizando a mão pelo outro lado da cama. Ainda estava quente, contudo, Marie já não se encontrava no quarto. Certamente, devia estar com Melina e Tamar.

Apesar de ter passado por maus momentos e da gravidade dos ferimentos, a grã-mestra recuperou-se bem e rápido. Tão logo se viu capaz de ficar de pé, Melina reassumiu seus deveres perante a Ordem. E enquanto a maioria dos ordenados estivesse em Flyn, ela executaria os ritos matinais inerentes à sua função. Isso incluía longos e cansativos rituais de purificação para aqueles que mantinham contato direto com os enfermos. Como suas discípulas, Marie e Tamar deviam auxiliá-la.

A natureza extraordinária da magia de Marie a tirou da cama antes das outras companheiras. Com efeito, a união com Voltruf acelerou a cura dela ainda mais. Uma vez de pé e em posse de plenos poderes, a mestra passou a cuidar das amigas e esposa. Graças a isso, fazia alguns dias que Virnan não sentia mais dores, entretanto, continuava sofrendo com a fadiga por levar seu corpo aos limites da magia.

Um suspiro longo escapou de Virnan, quando resolveu levantar. O corpo reclamou, enviando pequenas ondas de desconforto quando escorregou para fora da cama. Era a primeira vez, em dias, que se animava a sair do leito sem que, para isso, Marie tivesse de empurrá-la para fora dele. Ainda não havia recuperado o domínio completo sobre o corpo e, tampouco, a magia. Por isso, espreguiçou-se devagar e deu passos incertos e arrastados até a sacada.

A tigresa se sentou, mirando-a com atenção. Virnan encarou os olhos violetas dela até que um sorriso se insinuou em seus lábios. Passou a mão na cabeça do spectu, enquanto dizia com voz rouca:

— Sabe, esta forma lhe cai bem… Bela e selvagem.

Deslizou as pontas dos dedos até a orelha de Voltruf, fez novo carinho ali e então se afastou. Pousou a mão sobre o parapeito, observando a noite que findava e o dia que chegava devagar. O chilrear dos pássaros começava a circular pelo jardim e a brisa que o rondava era agradável.

— Sabe, estou curiosa há algum tempo. O que aconteceu com Haniel, agora que você se tornou o spectu de Marie? Também gostaria de entender como isso foi possível. Achei que um castir que já morreu e uniu-se ao seu spectu não poderia firmar um pacto.

E você vem perguntar a mim? — Voltruf arranhou o chão com as garras afiadas, pensando no quanto a sensação de estar do outro lado de um pacto era diferente.

Agora, ela percebia que um spectu absorvia muito mais dos sentimentos e poderes do mestre do que lhe foi ensinado na Ordem Castir e a experiência com Haniel lhe mostrou. De fato, o laço que a conectava à mestra, incutia nela o desejo gritante de estar sempre perto para cuidá-la e protegê-la. Por vezes, era difícil se desvencilhar desse querer e dar espaço para Marie. E estava certa de que, quando a hora de partir chegasse, seria muito difícil dizer adeus.

— Não tenho a menor ideia de como isso pôde acontecer. Tivemos um momento muito complicado no Templo Castir, nós estávamos morrendo e ela encontrou um jeito de sobrevivermos. Só isso. Quanto a Haniel, ele ainda está comigo, mas é quase como se estivesse adormecido. Há momentos em que a sua presença é mais forte, principalmente quando estou longe de Marie, como agora, por exemplo. É um pouco estranho, mas eu não tenho motivos nem ânimo para procurar uma explicação para algo que deixará de ser importante assim que meus pés tocarem o solo de Inamia.

Ela retornou para a forma humana e também se escorou na proteção, deixando seus corpos tão próximos, que os ombros quase se tocavam.

Como se sente? — Perguntou.

— Me sinto como uma vela, cuja cera derreteu quase totalmente. — Respondeu Virnan, passando as unhas no queixo a fim de aplacar uma coceirinha imaginária.

— Comparação interessante. Mas, bem, o que você esperava?

— Certamente, não esperava estar viva ainda. Não sou tão otimista quanto tentei aparentar nos últimos tempos. — Virnan brincou com a verdade.

O espírito balançou a cabeça em concordância, então disse:

Vocês são um Círculo misto, afinal. Embora suas amigas sejam poderosas, ainda são humanas e você carregou a maior parte do peso mágico. Não é à toa que aquela espada só pode ser usada durante um círculo de armas e também me surpreende que você, que a empunhou, não tenha morrido com tanto poder a fluir pelo corpo. Enfim, seu cansaço logo irá passar e conseguirá usar a magia normalmente.

Virnan baixou a vista para as mãos trêmulas. Apesar de duas semanas terem se passado, ela ainda sentia os efeitos da extraordinária magia da espada de Cazz. Seus dedos e braços mantinham uma ligeira dormência que, vez ou outra, era interrompida para dar passagem a pequenas ondas de formigamento. Isso era pouco, comparado aos momentos de extrema fadiga, que chegavam e partiam sem aviso. De fato, jamais teria alcançado a vitória se as amigas não a ajudassem a empunhar a espada.

— Sabe, toda essa fadiga me recorda dos últimos doze anos na Ilha Vitta sem usar magia. Por vezes, me sentia tão cansada quanto estou agora. Era horrível e, ao mesmo tempo, uma benção.

Por quê? — Voltruf deixou-se levar pela curiosidade.

— Acharia estranho se dissesse que isso me lembrava daqui, de Flyn? — Virnan indagou em resposta.

Acho difícil entender essa comparação. — Voltruf admitiu, fazendo um biquinho, o que lhe conferiu um ar quase infantil.

— Não é tão complicado, Nária. — Sorriu devagar, pensando na Ilha Vitta com uma nota de saudade a apertar o peito. — Eu não tive magia abundante nos primeiros cinquenta anos da minha vida. O máximo que conseguia era canalizar o pouco que possuía para aumentar minha força física, e foi mais ou menos assim que passei os últimos anos.

Novamente, Voltruf balançou a cabeça como se tivesse uma ideia precisa do que ela viveu, entretanto, a magia fazia parte da sua existência desde a mais tenra idade e não conseguia imaginar-se sem ela. De fato, aquela era a primeira vez que tentava fazê-lo.

— Sinto muito por ter ajudado Lyla a fazer isso com você. — Disse ela, cabisbaixa.

A mão de Virnan lhe afagou as costas.

— Não há pelo o que se desculpar, Nária. Você cumpriu com o seu dever, todos cumpriram. — Findou o afago com um suspiro, antes de contar: — Estaria sendo hipócrita se dissesse que não odiei vocês por isso, mas diante de tudo que consegui neste tempo e, principalmente, após os momentos de sacrifícios que acabamos de viver, tenho orgulho de dizer que o passado agora é apenas isso: passado.

A cabeça de Voltruf balançou mais algumas vezes, e um sorriso amargo imperou nos lábios rubros e grossos. Seus dedos traçaram um caminho imaginário no mármore do parapeito e ela fitou o sol que se erguia, tão solitário quanto se sentia naquele momento.

Posso fazer uma confissão, Virnan? — Indagou, de repente.

Recebeu um gesto de incentivo e prosseguiu:

— Antes de tudo, quero pedir desculpas se o que estou prestes a dizer a deixar desconfortável, mas também desejo deixar algumas coisas no passado e, para isso, é preciso assumir certas verdades. Meu tempo em Domodo está chegando ao fim. Desde que nossa luta contra Érion acabou, sinto o meu laço com Marie cada vez mais fraco e percebo a crescente atração das Terras Imortais. Então, logo partirei deste mundo. Antes disso acontecer, gostaria de ter a certeza de que não deixei nada inacabado aqui.

Ela escorregou a mão sobre o mármore e alcançou a de Virnan, fazendo a auriva olhá-la diretamente nos olhos.

Eu te amo, Virnan. — Mostrou-se desconcertada, todavia continuou com a certeza de que se deixasse o momento passar, não teria outra oportunidade. — Sei que os meus sentimentos não são segredo para você, como deixou claro após o seu regresso para Flyn. Mesmo assim, eu desejava poder dizer essas palavras olhando em seus olhos, ao menos uma vez. Foi por este momento e pela bondade de Marie, que aceitei me tornar um spectu.

Esperou que Virnan afastasse a mão da dela, mas em vez disso a antiga companheira de círculo a apertou de volta e encaixou seus dedos nos dela com suavidade. O vento soprou mais forte, enquanto um sorriso singelo transformava o rosto moreno. Voltruf admirou a tonalidade quase transparente que os olhos dela adquiriram ao serem tocados pelos primeiros raios de sol. Eram tão bonitos, que teve dificuldades para desviar o olhar.

As folhas das poucas árvores nos jardins balançaram com o vento fresco da manhã que se iniciava. Em algum lugar ali perto, um pássaro piou e outro lhe respondeu ao longe. Enquanto isso, Virnan fazia um carinho suave na mão dela.

Eu só queria dar som ao que sinto. — Os lábios de Voltruf tremeram quando ela tentou sorrir ao fim da frase. Estava feliz pelo contato que as unia e ao mesmo tempo incomodada. Era como se aquele simples gesto fosse uma traição a Marie. Virnan chegou mais perto, tão próximo que Voltruf pôde sentir o calor da respiração dela antes que a forçasse a se curvar um pouco para sentar um beijo em sua testa e então se encaixar ao seu corpo em um abraço apertado.

O tempo dentro daquele abrigo foi longo e carinhoso e, embora não tivesse ouvido sequer uma palavra em resposta, Voltruf soube que, em algum momento da história longa e conturbada que tiveram, Virnan também a amou.

***

O sol do meio da manhã brilhava forte sobre Virnan, mas ela não se sentia incomodada. Pelo contrário, ela estava desfrutando o calor ameno, enquanto deixava a mente vagar pelo passado. Quando Marie a encontrou, estava recostada no parapeito do balcão, na exata posição em que Voltruf a deixou quando saiu do recinto, mais cedo.

A mestra sorriu, satisfeita por vê-la de pé por vontade própria, após tantos dias convalescendo. Se aproximou devagar e a abraçou por trás. Virnan endireitou-se, empurrando o corpo contra o dela, também sorrindo.

— Senti sua falta — ela disse, deixando-se abraçar com mais força.

As mãos que a seguravam brilharam e ela sentiu a magia percorrer o corpo de uma forma carinhosa, deixando rastros circulares na pele morena. Havia alguns dias, Marie vinha se comunicando com ela daquela maneira e Virnan começava a se acostumar com a sensação.

— Também senti a sua — disse Marie com voz ligeiramente rouca.

A magia que escapulia de seus dedos ondulou rapidamente como consequência da sua satisfação por poder conversar com a esposa através de palavras em vez de gestos. Marie vinha trabalhando naquela magia desde que Lyla, naquela mesma sacada, criou um círculo em sua pele para que pudessem conversar sem que ela machucasse Virnan. Na ocasião, desconstruiu a conjuração do spectu, reconhecendo todos os elementos necessários para criá-la e desenvolveu uma variação dela, de forma que pudesse, ela mesma, conjurá-la para proteger as pessoas de seus poderes.

Contudo, só teve coragem de usá-la poucos dias antes. Era agradável saber que poderia escolher quando “falar” com Virnan ou qualquer outro. Entretanto, era necessário que estivesse tocando o interlocutor de forma que a sua magia passasse por ele como se fizesse parte dela. Obviamente, só podia fazê-lo com uma pessoa de cada vez e isso implicava estarem sozinhos para evitar que outros não se machucassem.

— O que você fez para que Nária se sinta tão feliz?

— Por que acha que fui eu? — Virnan respondeu, brejeira.

Ela se voltou para Marie, sem deixar de ser tocada por esta e enfiou-se entre os braços dela novamente.

— Porque sinto suas emoções e ela só costuma ficar de bom-humor quando você está por perto.

— Você chama aquela carranca de bom-humor? — Virnan se fez de desentendida.

— Se eu não soubesse que você já se apaixonou por aquela “carranca”, como você diz, até acreditaria nessa sua expressão sem-vergonha!

A gargalhada de Virnan foi alta e ela escondeu o rosto no ombro de Marie, dizendo:

— Estou percebendo ciúmes?

— Você bem que gostaria disso, não é?

— Confesso que adoraria. É que você fica linda quando está com ciúmes, Mestra. — Provocou.

— E você se torna irritante quando quer me provocar. — Marie se afastou um pouco, mas não deixou de sorrir.

— Pode fingir que não gosta disso o quanto quiser. — Virnan sapecou um beijo nos lábios dela, antes de voltar a se encaixar nos braços amados para, finalmente, responder à pergunta inicial de Marie. Ela contou sobre a conversa com Voltruf, enquanto aspirava o perfume que os cabelos da esposa exalavam.

— Estou feliz que isso finalmente tenha acontecido. — Marie confessou, falando sobre o pedido de Voltruf quando estiveram à beira da morte no Templo Castir. — Ela precisava desse momento.

Virnan concordava, mas optou por não comentar. Algumas histórias, simplesmente, não deviam seguir adiante e o tempo dela e Nária havia se perdido. Nem por isso, deixaria de guardar os sentimentos que ainda tinha por ela e eram de total conhecimento de Marie.

Apertou-se um pouco mais à esposa, e um sorriso brejeiro iluminou o rosto moreno.

— E eu preciso de você. Sempre.

Os dedos de Marie pousaram no queixo dela, erguendo sua face um pouco mais. A mestra reconheceu o tom lascivo na frase e não se furtou de responder da mesma forma.

— Isso é um convite? — Indagou.

— O que acha?

— Eu acho que você mal consegue ficar de pé, então não deveria estar pensando nessas coisas.

Deu um pequeno peteleco no nariz dela com um sorriso largo e brincalhão.

— Só preciso de mais alguns dias de descanso, então você não irá escapar! — Virnan garantiu. — Você quer filhos, não é? Magia de fertilidade exige que “trabalhemos” nela até a exaustão. Então, prometo que não lhe darei trégua!

Ela gargalhou, diante da sobrancelha arqueada de Marie, que optou por não dar a devida resposta a fim de não lhe oferecer mais munição para outra piada sem-vergonha. Marie tomou a mão dela e a conduziu para o interior do quarto, pacificamente.

O desejo de Virnan era voltar para a cama e se enroscar no corpo de Marie até cair no sono, outra vez. Todavia, tinha responsabilidades das quais não podia fugir, então deixou que a esposa a auxiliasse na troca de roupas.

Um suspiro saudoso escapou entre os lábios de Virnan, quando Marie a ajudou a atar a faixa na cintura. Longe das cores e detalhes nobres da realeza proveniente de Sulitar, a faixa era de um verde singelo e entremeado por bordados dourados. Virnan passou os dedos pelo tecido grosseiro, que indicava sua posição no Círculo Protetor da Ordem.

Ela não queria esquecer a mulher que a Ordem moldou e na qual se baseava, agora, para continuar seus passos em Flyn.

As mãos de Marie percorreram seus ombros quando ela terminou de atar a adaga na sua cintura. Seus olhares se encontraram no espelho, diante do qual estavam. A magia fluiu pelos dedos da mestra, novamente, e ela disse:

— Sabe, não imaginei que um dia diria isso, mas eu vou sentir falta dela. — Confessou, retornando ao assunto Voltruf. — É estranho essa sensação de ter alguém comigo o tempo todo, mesmo quando estou sozinha em algum lugar. Contudo, não é desagradável, pelo contrário. É como se eu estivesse… Ah, não sei nem como nomear!

— Completa. — Virnan pousou a mão sobre a dela. — A palavra que você procura é essa.

— Sim, creio que tem razão. — Suspirou devagar e estalou os lábios. — É injusto da minha parte desejar que ela não vá?

— Não. — Virnan se voltou para fitá-la diretamente. — É perfeitamente natural. É impossível não se sentir dessa forma quando se conhece a verdadeira essência do que significa ter um spectu.

— O que acontecerá comigo quando ela se for?

— Não se preocupe com isso, Marie. Como o pacto de vocês foi estabelecido de forma a findar quando alcançassem seus objetivos, ela partirá sem que você perceba. Não haverá as mesmas consequências que para mim, quando perdi Zarif…

Ela engoliu o nó que se formou na garganta ao pensar no seu antigo spectu e no fim trágico dele. Sempre que se deixava envolver por essas lembranças, tinha vontade de esconder-se do resto do mundo e chorar até cair no sono. Todavia, já não tinha lágrimas para derramar.

Inspirou fundo, mostrando um sorriso débil para a mestra.

— Eu sei que ela quer ficar, Virnan, mas acredita que o seu tempo aqui acabou. Ela nem mesmo considera seguir o exemplo de Bórian.

Dias antes, Joran havia se despedido delas e partido para Inamia, o mundo dos espíritos. Bórian deu indicativos de que iria seguí-lo, mas então Virnan lhe pediu ajuda para restabelecer a Primeira Ordem. Então, contrariando seus próprios desejos, ele decidiu ficar em Flyn e, mais uma vez, servir à Ordem Castir.

— Muito antes de fazermos um pacto, Nária me confidenciou que não está preparada para partir e ainda se sente ligada a este mundo. Agora que nossas emoções estão conectadas, percebo que essa sensação é muito mais profunda do que as palavras dela deixaram transparecer. E independente das minhas percepções sobre o nosso pacto, eu não me importaria de tê-la por perto por mais algum tempo.

Virnan lhe fez um carinho na face, dona de uma expressão tão serena que Marie quase a estranhou.

— A decisão de partir ou ficar só pertence a ela, Marie. Todavia, deixe que Nária saiba que tem essa opção e que tê-la por perto a faz feliz.

***

— Qual será a punição?

A pergunta de Fantin, atraiu o olhar de Virnan para ela. A mestra havia chegado de mansinho e buscado abrigo junto à porta, no fundo do salão, onde a própria Virnan também se encontrava.

O salão do trono nunca esteve tão lotado, nem mesmo em grandes coroações. Dezenas de representantes do povo, membros de todas as castas, ocupavam cada centímetro livre do lugar e havia o triplo de pessoas do lado de fora das portas principais. O evento que levou tanta gente ao palácio era o julgamento dos três Demirs traidores.

— Aliás, você também não deveria estar lá na frente? Pensei que a rainha também participasse desse tipo de julgamento. — A mestra completou, fingindo não notar a inspeção que a amiga lhe fazia.

Apesar da penumbra em sua visão, estavam perto o suficiente para que conseguisse enxergar o rosto e os olhos de Virnan percorrendo o corpo dela de alto a baixo, procurando indicativos do seu estado de saúde. Incomodada, Fantin se pôs mais ereta antes de se recostar na parede.

— Pode parar com isso?! Eu estou bem! — Abriu os braços. — Veja!

Ainda sem respondê-la, Virnan a empurrou para fora do salão sem dificuldades, já que estavam junto de uma das saídas laterais. O corredor em que adentraram estava livre, exceto pelos guardas de prontidão nas portas. A castir fez a amiga percorrer uma dezena de metros até ter certeza de que tinham total privacidade.

Elas pararam atrás de um pilar e Fantin, outra vez, se tornou vítima do olhar perscrutador de Virnan. Mas, desta vez, a amiga não a inspecionava, apenas aguardava com os braços cruzados e uma expressão que denunciava expectativa e mágoa.

Fantin sabia o que ela esperava ouvir e compreendia perfeitamente que lhe devia isso. Tomou um alento, antes de falar:

— Desculpe.

O silêncio da amiga se manteve, aumentando seu desconforto, então desatou a falar tudo que lhe rondava a mente sem importar-se se poderia parecer bobo.

— Sabe, eu costumava gostar quando você ficava em silêncio e quieta, ainda que isso me desse a certeza de que estava maquinando alguma brincadeira estúpida. — Cruzou os braços, também, e se recostou no pilar, mais pelo cansaço físico do que para se mostrar relaxada diante de Virnan. — É uma pena saber que isso não voltará a ocorrer. A Virnan da Ordem, relaxada e brincalhona, não existe mais. Certo? Todas nós mudamos nos últimos tempos. Por um lado, fico feliz que toda essa confusão tenha acontecido. Afinal, finalmente pude falar dos meus sentimentos para Tamar e nos casamos. E, também, você e Marie assumiram o que sentiam uma pela outra. Melina obteve respostas para questões que a atormentaram por décadas, sem falar que teve a oportunidade de rever o marido e Maxine. Mas, por outro lado, eu lamento que nada mais será igual e que nossos dias de paz na Ilha Vitta se perderam…

Virnan gemeu baixinho, contrariada. Enfiou a mão entre os cabelos fartos e os bagunçou, finalmente quebrando o silêncio:

— Você sempre falou muita besteira. Nossos dias na Ordem sempre existirão e a única coisa que eu lamento é que não posso mais voltar para ela, exceto, se for de visita. — Inspirou fundo e a rudeza da voz desapareceu na frase seguinte: — Eu também lamento, Fantin. Queria te pedir perdão desde que saímos daquele Salão, mas você tem evitado ficar a sós comigo. Mesmo compreendendo sua necessidade de afastamento, me entristece que tenhamos chegado a esse ponto.

Fantin se remexeu, varrendo o chão com o pé. Sabia que não estava sendo sutil ao evitá-la e foi preciso que Tamar lhe chamasse a atenção para o fato de que estava deixando isso ir longe demais.

— Não me entenda mal, Virnan, só preciso de um tempo para assimilar tudo o que aconteceu e me recuperar completamente. É que é um pouco difícil ficar perto de você sem que uma enxurrada de pensamentos conflituosos invadam minha mente! Eu olho para você e sinto o seu medo e desespero. Seus últimos pensamentos antes da morte ressoam nos meus ouvidos, como milhares de tambores de guerra. Há tantos sentimentos… — sentou a mão no peito, amassando o tecido da túnica entre os dedos — eles não têm limites. É quase enlouquecedor estar na sua mente.

Ela não tinha percebido, mas chorava enquanto falava e Virnan engoliu em seco, repetindo:

— Eu… eu sinto muito, mesmo.

— Ah, por favor! — Fantin fez um gesto enervado. — Não me venha com esse tom tristonho. Não tenho paciência para a sua autopiedade.

Deu-se conta das lágrimas e as enxugou com o dorso das mãos.

— Eu aguento, assim como você aguentou quando ressuscitou Tamar. Afinal, foi por isso que me escolheu, não foi?

— Sim. — Virnan admitiu, curvando os ombros. — Assim como eu, você viveu e sobreviveu a tragédias, se reinventou, se superou… Você é muito forte física e mentalmente. Estou certa de qualquer uma das nossas amigas também poderia fazê-lo, mas eu teria que ser mais direta quanto ao que iria acontecer e falar sobre o futuro é arriscar-se a mudá-lo, você sabe. Além disso, você tinha conhecimento das consequências e entendia que era um preço justo a se pagar por quebrar as regras da vida e da morte, então estaria preparada para elas. É claro que eu também contei com a sorte. Não havia como saber se você perceberia as minhas intenções.

Um riso escarninho escapou de Fantin.

— Sabe, você é uma maldita sortuda, Virnan. Mas o fato é que, depois que saímos da Ilha Vitta, percebi que tudo o que você faz tem segundas intenções, por mais simples que seja o ato. E se não tivesse me deixado preocupada e assustada ao me dar a adaga, eu não teria passado tanto tempo pensando sobre isso.

Pela primeira vez, Virnan sorriu, balançando a cabeça.

— Realmente, sou afortunada por ter você e as outras. Obrigada, Fantin. E me perdoe pelo o que está passando agora. Não podia imaginar que as consequências para uma humana seriam tão devastadoras. — Inspirou fundo, tentando conter a emoção. — Sinto muito pelos seus olhos.

Ela encarou as íris que, um dia, foram de um azul intenso e, agora, pareciam opacos e sem viço.

— Eu vou ficar bem. — Garantiu Fantin, dando de ombros. — Só preciso de um pouco mais de tempo. Vai ser difícil, mas não estou completamente cega, consigo enxergar um pouco. Não fosse assim, não saberia que você está fazendo uma expressão de cachorro abandonado. Ah! Só pare com isso, está bem? Melina acredita que podemos reverter esse estado em breve. É só uma questão de tempo.

De fato, ela pouco enxergava, mas nada que prejudicasse a sua locomoção. Todavia, adquiriu o hábito de usar uma das magias de percepção através do movimento do ar, que Virnan lhe ensinara. Estava sendo mais difícil do que imaginou e mais doloroso também. As consequências físicas por trazer o espírito de Virnan de volta ao corpo no Salão de Cazz iam muito além da cegueira. Tinha febre constante e era acometida pela dor que a amiga sentiu nos momentos mais inesperados. Contudo, com o avanço dos dias, a dor foi diminuindo e, agora, limitava-se a pequenos espasmos musculares.

Agora, compreendia muito bem o motivo de a Ordem Castir, em seu auge, proibir a ressuscitação. Era muito fácil se perder na dor, sentimentos e lembranças daquele que voltou a vida. Ela, Fantin, tivera momentos conturbados ao ser assaltada pelos pensamentos de Virnan. Contudo, a amiga tinha razão, sua mente era forte e enquanto ela estivesse consciente de si mesma e o que enfrentava, não havia o que temer.

Em um movimento brusco, ela estreitou Virnan entre os braços.

— Pelos deuses, mulher, fiz a porcaria do que você me pediu, enfiei aquela adaga no seu peito e agora você me vem com essa droga de arrependimento?! O que é a luz dos meus olhos em comparação a existência de três mundos? Todas estávamos dispostas a fazer sacrifícios.

Virnan a abraçou também, deixando-se afundar no calor dos braços amigos.

— Só tenha um pouco mais de paciência comigo, Virnan. Você bem sabe o quanto isso é difícil.

— Sim, eu sei. Só não se esconda mais. — Aumentou a pressão em volta dela antes de falar: —  Agora, me solta antes que eu comece a acreditar que este abraço tem segundas intenções.

Fantin a empurrou.

— Você não presta!

A gargalhada de Virnan foi alta e extravagante, chamando a atenção dos sentinelas à entrada do salão. Ainda rindo, ela afagou a mão da amiga.

— Eu te amo, Fantin. Saiba que você é a melhor amiga que já tive.

— Que Lyla não ouça isso, aquelas penas afiadas me dão arrepios! — Brincou, beijando o topo da cabeça dela, antes de iniciarem o retorno para o salão.

Aqueles poucos instantes de conversa foram suficientes para aliviarem o mal-estar de Fantin em relação a distância que se auto-impôs da amiga.

— Você não me respondeu. Por que não está à frente do julgamento? — Perguntou, de repente.

— Não é bem assim que as coisas acontecem em Flyn. Pelo menos, não será enquanto eu estiver no comando. Aqueles três feriram o reino inteiro quando se aliaram a Érion, então acho justo que seja o povo quem deve julgá-los.

— Assim como fazemos na Ordem. — Fantin compreendeu.

— Exato. Melina lidera a Ordem e toma grande parte das decisões importantes, mas costuma ouvir toda a irmandade quando acredita que essa deliberação terá um grande impacto sobre nós. No passado, o Conselho Ancião estaria à frente dessa audiência, mas desde que todos os seus membros estão mortos… — deu de ombros.

— Acha que isso dará certo? Os floras seguem leis rígidas e milenares, talvez toda essa liberdade repentina tenha consequências negativas.

Era uma preocupação genuína, que Virnan também tinha. Contudo, assim como fizera em relação aos limites impostos pelas castas, a guardiã optara por soltar as amarras do seu povo, mais uma vez.

— Eu quero acreditar que sim. Meu papel nesse julgamento é apenas o de executora.

— Vai matá-los?! Se é assim, então para que um julgamento?

— Eu não disse isso, Fantin. O que quis dizer é que tenho o dever de garantir que o que foi decidido será cumprido. Eles decidirão, mas enquanto a coroa me pertencer, a sentença deverá ser pronunciada por mim.

Diminuiu os passos, notando que Lorde Verne se acercava delas, recém-saído do salão.

— Acredite em mim, Fantin, a morte pode ser uma pena assustadora, mas existem sentenças bem mais cruéis que ela…

A amiga reparou na transformação momentânea do rosto dela. Não precisava que explicasse para saber que estava pensando no dia em que lhe tiraram Zarif e bloquearam sua magia. De fato, havia opções piores que a morte.

— Bem, — Virnan retomou com um sorrisinho — quando o julgamento acabar, me reunirei com o Demir Karus e outros herdeiros das famílias deminaras de cada reino, então quando o sol se pôr, terei devolvido o trono e a coroa.

Aos poucos, Flyn retornava à normalidade, se é que era possível diante do fato de que ficou encerrada em uma fenda temporal por três milênios. Virnan bem sabia o quanto isso estava sendo difícil para eles. Os florinae sempre foram um povo muito fechado, não tinham aliados, não gostavam de comercializar com estrangeiros e, ainda por cima, não hesitavam em ir a guerra e massacrar seus inimigos sem piedade.

Para piorar, mesmo sendo descendentes de enaens e humanos, os floras sempre se viram como superiores aos humanos por terem herdado a poderosa magia Enaen.

Agora, esse povo orgulhoso tentava assimilar a nova realidade, esforçando-se para se mostrar hospitaleiro diante dos guerreiros humanos que vieram em seu socorro. Ainda que estar no poder não a agradasse, Virnan se comprazia com o fato de que isso só estava sendo possível por causa do seu breve reinado.

A existência dela, por si só, era um tabu. Mesmo assim, quis o destino que ela vivesse o suficiente para continuar quebrando as leis e crenças do seu povo até que, finalmente, alcançou o trono e pôde colocar em prática o que um dia fora apenas conversas acalarodas e idealistas entre uma princesa deminara e sua protetora auriva. Flyn não tinha mais limites, seu povo havia se tornado um. E foi muito bom ver isso e saber que funcionou por algum tempo.

Mas havia chegado o momento de cumprir a promessa que fizera. A ameaça de Érion já não existia, Flyn estava a salvo, Dômodo ainda era a terça parte de um Todo e, em breve, ela voltaria a ser apenas uma auriva que teve a sorte de se tornar uma castir e reinar por algum tempo.

— Creio que está desperdiçando uma grande oportunidade. — Disse Lorde Verne, parando ao lado delas.

Um mês tinha se passado desde a batalha. A maioria dos feridos havia se restabelecido, assim como Flyn, embora a destruição ainda fizesse parte da paisagem do reino. Ele mesmo começava a habituar-se a nova realidade do seu corpo. Todavia, já não se apoiava em muletas. Agora, usava um cajado para equilibrar-se, enquanto se adaptava a perna artificial que Laio criou.

De fato, o auriva era um ferreiro e artesão habilidoso, como Virnan afirmou no dia em que o levou até a oficina do tio para que este pudesse tirar suas medidas, a fim de criar uma peça capaz de suprir suas necessidade sem causar impacto no resto do corpo.

O mecanismo era surpreendentemente leve para algo feito de metal e couro, mas ele sabia que também havia um pouco de magia na peça. Verne o estava usando há apenas três dias e, apesar dos constantes momentos de desequilíbrio, começava a se acostumar. Mais alguns dias e estaria apto a montar um cavalo e retornar para Midiane com Emya e o exército.

Os aliados começaram a levantar acampamento e partir uma semana antes. Os exércitos de Primian e Barafor foram os primeiros. No dia anterior, o exército de Bantos os deixou e dali dois dias seria a vez de Trícia e Axen.

Nenhum deles partiu sem a promessa de manter a frágil paz que conseguiram ao se unirem contra um inimigo em comum. Nesse intuito, Melina e Tamar aproveitaram bem os dias em que os príncipes e regentes de todos os reinos do continente estiveram sob o mesmo teto, e se reuniram com eles quase todos os dias. Mas, verdade fosse dita, depois do que viveram naquele reino, ninguém estava disposto a entrar em combate por um longo tempo.

Na mesma linha de pensamento, Virnan deixou de lado as frases e sorrisos mordazes, para incorporar de vez o papel de rainha, tomando o cuidado de agradecer adequadamente o auxílio na batalha e tentando estabelecer relações diplomáticas com os vizinhos. Ela empenhou-se tanto na tarefa que Tamar e Marie não resistiram a fazer piada dos seus modos exageradamente gentis.

— Como rainha, você ainda pode fazer muito por eles. — Afirmou o lorde.

Ao lado dele, Fantin balançou a cabeça suavemente. Ela concordava com o badir, mas Virnan não era mulher de promessas vazias e cumpriria o que disse, honrando o sangue que derramou ao assumir o trono. Mesmo assim, comentou:

— A coroa lhe cai bem.

Um sorriso debochado separou os lábios de Virnan, enquanto dizia para ela:

— Parece que o poder lhe subiu à cabeça e você deseja continuar como conselheira da Rainha.

A loira fez uma careta, bufando:

— Nem morta! É um serviço cansativo e muito indigesto. — Retrucou. — Sabe o quanto esse seu povo é difícil? Não tenho paciência para reuniões infindáveis, nem para acariciar o ego enorme de vocês!

— Viu?! Penso o mesmo. Por isso, estou muito satisfeita em dizer que o meu tempo no trono acabou.

***

A noite se aproximava quando saíram do salão do trono. Fantin acompanhava os passos duros de Virnan com um sorrisinho debochado. Ela relembrou a declaração da amiga, mais cedo, e não resistiu à vontade de provocá-la. Desta vez, além de Verne e Lyla, Marie, Tamar e Melina acompanhavam as duas.

— Talvez seja melhor você deixar as previsões para Lyla. — Fantin riu, divertida com o olhar assassino que Virnan lhe enviou por por cima do ombro.

Através das portas entreabertas do salão, Virnan avistou o Demir Karus em companhia de outros nobres. Embora sisudo, ele parecia bastante satisfeito com a decisão tomada, assim como seus acompanhantes. Os olhos do Demir cruzaram com os dela antes dos guardas fecharem as portas com ruído.

— Você poderia estar com um humor melhorzinho. — Fantin continuou a zombaria.

— Não comece! — Virnan rosnou, retornando a atenção para o corredor.

Sorridente, a amiga passou o braço sobre os ombros dela.

— Em outros tempos, vê-la tão contrariada me traria grande satisfação, mas agora… — Fez um gesto afetado. — Não sei nem se posso dizer que me compadeço do seu “infortúnio”.

— Deuses! — Virnan reclamou, se afastando do contato.

Fantin insistiu:

— Não faça tanto caso, “Majestade”. Aproveite seu reinado. — Concluiu com uma mesura enfeitada.

— Marie, por favor, devore a alma dessa criatura irritante. — Virnan se voltou para a esposa.

A mestra acompanhou o riso das amigas, gesticulando:

“Não aja dessa forma. Será apenas por mais um ano, depois disso estará livre para assumir suas verdadeiras funções.”

Um suspiro irritado antecedeu a careta que Virnan fez antes de dizer:

— Eu já dei três mil anos da minha vida para Flyn! Tenho muito a fazer e não é sentada naquele trono.

Lyla agarrou o braço dela, com uma risinho provocante.

— Não seja tão dramática! Você bem que gostou de reinar. — Piscou. — Vamos lá! Além disso, não há ninguém melhor para assumir essa função, no momento.

A castir abriu a boca para responder, entretanto Marie deu duas batidinhas em seu ombro para lhe chamar a atenção.

“Eles têm razão e você sabe disso. Flyn era uma lenda e este mundo terá de se adaptar com a existência dela e, principalmente, você terá de guiar o seu povo nessa adaptação. Os floras não são mais os donos do continente. Os costumes mudaram.” — Observou Marie com gestos vigorosos.

Como Lyla afirmou, Virnan havia apreciado ter aquele poder nas mãos, mais pela possibilidade de mostrar aos florinae que existia outro jeito de compartilhar a vida naquele reino, do que pelo status que lhe oferecia. Contudo, ela tinha outras responsabilidades agora que os Portões entre os mundos estavam novamente abertos.

— Não sei porquê está fazendo tanto caso, Virnan. — Melina interveio. — Você é uma ordenada. Fez um voto de preservar a paz e que melhor maneira de cumprir isso estando no comando de Flyn?

— Isso é algum tipo de complô?! — Perguntou a moça.

— Não seja exagerada. — Tamar falou. — Você não gosta da ideia, mas acabou concordando. Então, pare de reclamar.

— Fui forçada a concordar, é diferente. — Virnan recordou.

Com a calma que lhe era costumeira, Tamar se aproximou dela e juntou seu rosto entre as mãos, assim como faria com uma criança.

— Como Melina disse, você esquece, Virnan, que independente da sua origem, das suas atribuições neste reino e mundo, você também é uma guardiã da Ordem e a nossa Ordem é uma grande família. Somos o seu Círculo, somos suas irmãs, amigas e esposa, e estaremos ao seu lado nessa jornada. Não foi isso que acordamos quando trocamos um voto?

— Suas responsabilidades também são nossas. — Melina anuiu, sentando a mão no ombro de Virnan, carinhosa. — Paz de verdade pode ser apenas utopia, mas um dos motivos que nos fizeram assumir um voto com você é que a responsabilidade de um castir é muito semelhante a de um ordenado.

“Estaremos ao seu lado.” — Marie afirmou.

Tamar e Melina se afastaram e Virnan limpou a garganta tentando conter a emoção. 

— Pode parecer um pouco insano dizer isso, mas quando estou com vocês, ter sobrevivido tanto tempo valeu à pena.

***

Tamar observava Melina havia algum tempo. A grã-mestra tinha se refugiado em uma das pequenas fontes espalhadas nos jardins do palácio, após os rituais matinais ordenados. A bibliotecária a seguiu sem perceber que ela desejava um momento de solidão e Melina tampouco manifestou sua vontade. Em vez disso, a convidou para sentar-se ao seu lado na borda da fonte.

Enquanto a mais jovem sentava, a mão da grã-mestra escorregou para a água, gerando pequenas ondas na superfície desta. Se passou um momento longo, porém agradável, graças a paz que reinava no lugar, antes que Tamar ousasse perguntar com voz suave:

— Seria muito atrevimento da minha parte, se lhe pedisse para me contar o que a incomoda?

Melina parou de brincar com a água e sorriu, complacente. Mirava as linhas suaves no fundo da fonte, que se entrelaçavam antes de alcançarem pequenas pedras circulares. Ela inspirou fundo e exalou devagar, respondendo:

— Pensava no que perdi e no que ganhei recentemente: Andrus, Maxine, poderes que jamais imaginei ter, uma vida mais longa, juventude… Principalmente, pensava no que você me falou quando me questionei a respeito, sentindo medo e pesar pela mudança.

Sentou a mão no colo, sem se importar em enxugá-la. Ergueu o olhar para a pupila, ainda com um resquício do sorriso no canto da boca. Admirava a evolução dela em tão pouco tempo, a força, a paixão, a vontade. Coisas que agora eram tão evidentes nela, quanto a certeza de que o sol brilhava, mesmo em dia de tempestade. Mas Tamar sempre fora a mulher à sua frente, a verdadeira questão era que ela nunca teve motivos para se mostrar até iniciarem a viagem que as trouxe até o coração de um reino perdido no tempo.

Para Melina, essa percepção também trouxe a certeza de que ela própria havia mudado e que essa mudança ia muito além da aparência.

— Assim como disse para Virnan, realmente desejo ajudá-la em sua nova jornada sob o comando de Flyn, todavia, tenho minhas próprias responsabilidades.

— A Ordem precisa da senhora. — Compreendeu Tamar.

— Sim, pelo menos, por mais algum tempo. — A grã-mestra balançou os ombros, relaxada.

Ela fitou seu próprio reflexo na superfície da água. Já não achava tão estranho encontrar um rosto jovem e sem as familiares rugas e sardas que a idade avançada lhe deu. 

— Acredito que o ressurgimento de Flyn neste mundo trará grandes mudanças. Não apenas para este continente, mas também para os reinos de Paludine. Então, ainda não é o momento de deixar o comando da irmandade.

Tamar concordou com um balançar de cabeça e acrescentou:

— Acredita que após tantos milênios, os reinos além-mar tentariam iniciar uma guerra com Flyn em uma espécie de vingança pelo passado?

— O que eu acredito é que as lendas têm poder. Não estaríamos aqui, agora, se Érion não tivesse se aproveitado de algumas delas. — Melina soltou um suspiro, deixando seu semblante se tornar sombrio por um instante. — Mas estou certa de que não necessitamos nos preocupar com uma guerra entre os dois continentes. A verdadeira questão é que com o ressurgimento de Flyn, eventualmente, as relações entre os dois continentes também irá mudar e quero me certificar de que as disputas do passado não tornem a ocorrer. O fato de haver uma ordenada no trono de Flyn torna meu trabalho mais fácil, mesmo que seja por apenas um ano.

— Isso depende. Ambas sabemos que Virnan não é a pessoa mais pacífica do mundo. Mas acredito que tudo ficará bem se ninguém ameaçar sacrificar Marie, outra vez. — Ela sorriu da própria piada e Melina a acompanhou.

Os pés da bibliotecária fizeram barulho ao entrarem em contato com o chão pedregoso, quando ela ficou de pé. Melina voltou a sorrir para ela, semicerrou os olhos e disse:

— É por isso que, em nome da paz que acabamos de alcançar aqui, planejo seguir os conselhos sábios que você me deu. Voltarei para a Ilha Vitta e trabalharei para expandir a Ordem e torná-la mais acessível àqueles que precisam de nós, principalmente, no continente paludiniano. De todo modo, estarei realizando um desejo. Como você disse, o destino me deu uma nova oportunidade, então devo aproveitá-la.

Os braços de Tamar a envolveram com carinho e Melina sentiu-se grata pelo contato. Era agradável esquecer as barreiras impostas pelas suas posições na Ordem. Ainda que nunca tenha existido oposição ao contato físico e expressões de carinho, ela era a grã-mestra e o título sempre impunha uma barreira de respeito. Por muito tempo, somente Marie a abraçou daquela forma. Mesmo assim, a mestra só o fazia quando estavam sozinhas.

Ela fez um afago no rosto de Tamar quando se afastaram, sorriu e disse:

— Mas antes disso, pretendo acompanhar Emya e Verne em seu retorno à Midiane. Chega de me sentir culpada pelo o que ocorreu no passado. É tempo de rever meu povo e irmão, antes que a doença e a morte o levem para o próximo mundo.

— Não sabe o quanto me apraz ouvir seus planos. Confesso que estava preocupada com o seu bem-estar diante de tantas mudanças. — Tamar revelou.

— Você sempre foi muito perceptiva e agradeço seu cuidado. — Escorregou os dedos pelo braço da pupila, até lhe envolver a mão. — Eu ficarei bem, Tamar. Já tenho idade e experiência suficientes para tomar conta de mim mesma. E apesar da aparência, não sou mais suscetível aos arroubos da juventude.

Riu baixinho, achando sua própria declaração engraçada.

— Antes disso, — Tamar apertou a mão dela, carinhosa — tenho um pedido a fazer. Na verdade, é um pedido de todas nós.

***

O Comandante Brenum estava à volta da fogueira, onde o almoço fervilhava dentro de um caldeirão velho, chamando a atenção dos soldados próximos com seu aroma convidativo. Ele afiava a lâmina da espada, ansioso pelo momento em que poderia, finalmente, retornar para Axen. Não que ele desgostasse de Flyn, a cidade e seus habitantes haviam se revelado verdadeiramente agradáveis, apesar das diferenças culturais, mas o comandante tinha uma família que desejava rever.

O mago Anton juntou-se a ele, acompanhado de Jeil e Miqueias. Lorde Verne e Emya vieram em seguida, após saírem de uma das tendas próximas, onde estiveram parte da manhã em companhia deles e dos outros manirs. Os dois exércitos partiriam na manhã seguinte e o casal desejava se despedir dos aliados sem pressa, traçando planos para que eles fizessem uma visita à Midiane dali alguns meses, a fim de firmar, de vez, a amizade entre os dois reinos.

Era certo que haveria muito trabalho para os manirs axeanos quando retornassem ao lar. Afinal, precisariam decidir quem seria o novo Lorde de Axen. Mas de uma coisa estavam certos, iriam fazê-lo de maneira pacífica. Ilan Dastur fora um grande mentiroso e traidor, mas havia conseguido unir as setes famílias de Axen sob a mesma bandeira, apesar de ter feito isso usando a força. De todo modo, os líderes dessas famílias pretendiam manter essa união.

Verne e Emya se aproximaram da fogueira, atendendo ao chamado de Anton. Mal iniciaram uma conversa e foram interrompidos pelo burburinho causado pela chegada de Virnan e Lyla.

— Olha só quem resolveu sair da toca. — Brenum escorregou a mão para o cabo da espada, fitando a castir.

Durante o mês que passou, os dois não se esbarraram sequer uma vez, já que ele fez questão de rejeitar acomodações no palácio e passava seus dias no acampamento do exército axeano, uma atitude que a própria Virnan admirava. Brenum podia ser tão desagradável quanto seu irmão, Loyer, mas se portava como um verdadeiro líder e soldado. Um bom comandante, ficava sempre ao lado de seus homens.

— Noto que está “feliz” em me ver, Comandante. — Disse a castir com um sorrisinho escarninho.

O homem ficou de pé e Virnan foi até ele. Lorde Verne levou uma mão a testa, prevendo um desastre e Emya se acercou dos dois na esperança de que, outra vez, conseguisse evitar um embate entre eles.

Entretanto, em vez de socos, eles viram a rainha florinae fazer uma reverência profunda para o soldado.

— Ainda não tive a oportunidade de agradecer a sua valorosa ajuda. — Disse ela. — Obrigada, Comandante.

Brenum ergueu as sobrancelhas, mostrando-se desconcertado diante do gesto. Ele sentiu-se ainda mais desconfortável quando Virnan endireitou-se e pousou dois dedos sobre a testa, enquanto a outra mão descansou sobre o peito. Era uma honraria ser cumprimentado de tal forma por um Manir, o que fez novo burburinho se espalhar pelos soldados próximos.

— Eu sei o quanto é difícil deixar o ódio e desejo de vingança de lado para se dedicar a um bem maior. — Ela falou devagar. — Sou muito grata pelo seu discernimento e bravura ante um inimigo tão feroz, Comandante. E agora que tudo acabou, é tempo de vingar seu irmão, se ainda o desejar.

O homem percorreu o rosto jovem e risonho, relembrando o primeiro encontro que tiveram. Ele trincou os dentes, apertando a espada com mais força. Então, a Princesa Emya surgiu no seu campo de visão e ele evocou as palavras dela naquela ocasião. Brenum enrijeceu a postura saltando o olhar entre as duas mulheres e, por fim, enfiou a espada na bainha. Pigarreou antes de falar:

— Meu irmão derramou seu sangue, você derramou o dele e depois vingou a todos nós quando matou o homem que nos levou a esse caminho. Não tenho motivos para lutar com você, Guardiã, exceto se for uma ameaça para Axen. — Curvou-se rapidamente e começou a se afastar, mas interrompeu os passos quando Virnan falou:

— Neste caso… — ela estendeu a mão para Lyla e o spectu lhe entregou a espada que carregava, enrolada em um pedaço de tecido azul escuro.

Era uma peça de aparência simples, embora tivesse sido confeccionada com detalhes rebuscados. Ela retirou a espada da bainha e a lâmina refletiu a luz solar antes de retornar para o estojo. Virnan a segurou com as duas mãos e ofereceu ao Comandante.

— Peço desculpas pela demora. Já faz alguns anos desde que segurei um martelo de ferreiro e meu trabalho jamais chegará perto da qualidade do trabalho do meu tio.

Brenum olhou para a espada com o cenho ainda mais franzido, enquanto ela explicava:

— Flyn possui muitas tradições, mas esta é específica dos aurivas. Ela…

O Comandante pousou a mão na espada, interrompendo-a.

— Sei o que significa. — Disse ele, retirando a espada das mãos dela. — Eu agradeço.

Outra vez, Virnan fez uma reverência, agora, suavemente. Mesmo que de uma forma rude, Brenum a imitou, então se afastou em direção à sua tenda.

— Parece que ele é diferente de Loyer, afinal. — A castir sorriu, voltando a atenção para Emya, quando ela perguntou o que significava a espada, todavia foi Anton quem explicou:

— Não é uma espada feita para o combate, alteza. Um guerreiro pode matar dezenas de homens em batalha, mas uma espada “viera” só é confeccionada para honrar o espírito de um grande adversário. Ela representa o respeito que um guerreiro vitorioso tem por aquele que perdeu a vida através das suas mãos. A espada é um símbolo de honra para a família de um guerreiro.

O mago fitou Virnan com interesse, recordando o dia em que a viu matar o Comandante Loyer e ficar encharcada com o sangue dele. A mulher da qual se recordava, não aparentava respeitar o homem que matou de forma tão selvagem.

— Ouvi dizer que esse tal Loyer, era um grande cretino e que você o expulsou da Ilha Vitta por ter desrespeitado a tradição de hospitalidade. — Emya comentou, fitando a cunhada. — Por que você honraria alguém assim?

A resposta de Virnan veio junto com um leve arquear de lábios.

— A espada não foi feita para Loyer, foi feita para o Comandante Brenum.

Ao lado dela, Lyla explicou:

— Fazendo uma pequena correção ao que Anton disse, uma espada “viera” pode sim, ser usada para o combate. Entre os aurivas, ela também é confeccionada para um duelo. É uma espada feita para matar apenas um adversário. Como o Comandante Brenum não quis lutar, Virnan lhe deu a espada. De todo modo, ela é um símbolo de respeito.

Emya enfiou os dedos entre os cabelos longos, dizendo:

— Vocês têm muitas tradições estranhas, mas que bom que não houve mais sangue derramado. — Sorriu.

— Fique conosco mais um tempo e verá que existem muitas outras tradições. Talvez, queira aderir a algumas. — Virnan piscou para ela.

— É um convite bastante atraente, mas você conhece a resposta. — Emya devolveu o sorriso.

— Assim como você, temos um reino para governar. — Lorde Verne atalhou com ar irônico.

— É uma pena que estejam indo tão cedo, estava querendo ver quanto tempo Lorde Verne e Virnan iam manter a paz entre eles. — Lyla soltou, como quem não quer nada.

— Fala como se vivêssemos aos tapas. — Virnan se queixou, arqueando uma sobrancelha.

— Bom… Vontade de dar uns tapas em você não me faltou mesmo. — O lorde admitiu, brejeiro.

Ele riu quando Virnan franziu o cenho, limitando-se a um dar de ombros. Então, afagou o ombro dela antes de tomar o braço de Emya e se despedir. Virnan observou os dois até desaparecerem atrás de uma tenda.

Verne ainda caminhava com dificuldade, mas se mostrava mais confiante a cada passo com o membro artificial. Ele jamais voltaria a ser o mesmo depois daquela guerra, mas se mostrava conformado com isso, ciente de que tinha dado o seu melhor e sobrevivido.

***

— Por que você acreditou em mim, Anton?

O mago axeano acompanhava Virnan, rumo às muralhas da cidade. Ele baixou o olhar para fitá-la de soslaio, enquanto ela explicava ao que se referia.

— Naquela estrada, quando o marquei com o meu manibut, você poderia ter acreditado em qualquer outra coisa, menos que a protagonista de uma lenda milenar estava à sua frente. Em seu lugar, eu teria resistido bastante a essa ideia.

Anton interrompeu os passos, erguendo a vista para o céu. O pássaro Lyla batia as asas com vigor, sobrevoando a muralha.

— Eu tive dúvidas. Admito. — Ele voltou a fitá-la. — Mas havia motivos demais para tomar o que me disse como verdade. Seus olhos tinham a cor certa, a cor que nenhum par de olhos em Axen tem. Além disso, havia o modo como você usou os punhos e dedos. Nenhum manir de Axen golpeia dessa forma. Somos poucos e conhecemos uns aos outros, mesmo os que consideramos inimigos. E aí está outro ponto que considerei. Se você não era de Axen, onde aprendeu o manibut?

Anton calou-se por um momento, contemplando o solo sob seus pés. Chutou uma pedrinha antes de voltar a fitar Virnan.

— Por fim, havia as lendas… Independentemente da versão contada, elas sempre concordaram em um ponto: Virnantya L’Castir retornaria. Pensando bem, admito que acreditei em você rápido demais. — Apertou a ponta do nariz, pensativo. — Hum, talvez eu tenha me deixado guiar pelo que sobrou dos sonhos de criança. Sabe, fui um garotinho que ouvia, encantado, as histórias que o meu avô contava sobre essa tal guerreira… Ou, talvez, eu apenas tenha me deixado levar pela vontade de ver Axen ser resgatado das mãos de Ilan Dastur.

Ele sorriu de lado, esticando a pele morena e marcada do rosto.

— Creio que posso encontrar outros motivos, mas isso importa mesmo nesta altura dos acontecimentos?

— Na verdade, não, Anton. Mas eu tinha um pouco de curiosidade à respeito e qualquer que seja o motivo, estou feliz de não tê-lo matado naquela estrada.

Ela balançou os ombros, relaxada, e voltou a caminhar em direção às muralhas. Seu olhar se prendeu em Lyla, que agora dava piruetas em volta de uma das torres de vigia, cantarolando uma canção infantil que lhe chegava através do laço mental. Era tão bobo, que Virnan não teve gana de reclamar e pedir silêncio.

— Anton, você saberia o que foi feito do corpo do guardião, cuja alma foi usada para criar o amuleto que você utilizava em nosso primeiro encontro no mar de Bantos?

O desconforto do mago se tornou perceptível, todavia ele respondeu com segurança:

— Eu sinto muito pelo seu amigo. As ordens de Lorde Axen foram para enterrá-lo em qualquer lugar, todavia tomei a liberdade de levar o corpo do Guardião Milan para um dos templos nos arredores de Aminard. Ele foi um adversário honrado, merecia um funeral equivalente. Suas cinzas ainda estão lá.

Virnan brincou com a ponta da faixa na cintura, recordando o seu mentor no Círculo de Proteção da Ordem. Milan era um excelente guerreiro e um homem melhor ainda. Fora ele quem a encontrou à beira da morte na fronteira entre Axen e Caeles, cuidou e levou para o seio da Irmandade. A mulher que Virnan havia se tornado era fruto da bondade de Milan.

Embora soubesse que a alma dele não teve o fim certo e que jamais chegou às Terras Imortais, era uma alívio saber que, pelo menos, seu corpo teve um funeral decente. A expressão dela amainou e, assim como fizera para Brenum, Virnan cumprimentou o mago pousando dois dedos na testa e a outra mão sobre o peito.

— Obrigada, Anton.

O axeano devolveu o cumprimento com o mesmo respeito, então deu meia volta e retornou para o seu acampamento. Virnan o fitou por alguns instantes com os pensamentos no sorriso gentil do Guardião Milan. Ela murmurou uma oração para o amigo falecido e retornou ao seu caminho, recordando algo que a mãe lhe dissera quando ainda era uma criança: “uma pessoa nunca morreria verdadeiramente, enquanto houvesse alguém que pensasse nela”, e o Guardião Milan tinha uma Irmandade inteira que nunca o deixaria ser esquecido.

— Guardiã Virnan!

A voz ligeiramente esganiçada de Tyene a fez interromper a caminhada em direção ao palácio. Virnan sorriu para a moça, que era a ajudante de cozinha da Ordem e pela vestimenta marrom que ostentava, havia alcançado o Círculo da Fraternidade recentemente. Ela estava acompanhada por mais três Irmãos ordenados, entre os quais se encontrava o rechonchudo Simás. Virnan se aproximou do grupo, que estava sentado à sombra de uma árvore. Ela cumprimentou a todos com um gesto suave e fez uma piada quando um dos Irmãos comentou:

— Ainda acho difícil acreditar que você é uma rainha.

— Concordo com você, Darin. — Respondeu ela com um sorriso brincalhão. — Para a minha tristeza, me negar a assumir o trono não era uma opção. Felizmente, será apenas por mais um ano.

— Isso quer dizer que após esse período irá voltar para a Ilha Vitta? — Tyene perguntou, esperançosa.

Virnan demorou-se a fitar o rosto jovem e ansioso por uma resposta positiva. Tyene era tão inocente quanto a sua aparência e idade denunciavam. Ela juntou as mãos as costas, antes de atirar a realidade sobre a moça.

— Infelizmente, não. Embora meu coração anseie retornar para a Ilha Vitta e a paz da Ordem, eu tenho responsabilidades maiores aqui e elas vão muito além do trono.

Um momento de silêncio incômodo varreu as expressões alegres dos rostos ordenados. Mas logo se recuperaram e Tyene tornou a falar:

— É uma pena. Tinha esperanças de que pudesse se tornar minha mentora no Círculo de Proteção.

— Por todos os círculos da Ordem, acho que isso seria um verdadeiro desastre! — Irmão Simás deixou escapar em meio a uma risada falha e rouca.

Virnan deu de ombros.

— Concordo com ele. — Disse. — Não tenho muita paciência para o ensino.

Ela estendeu a mão e fez uma rápida carícia na cabeleira farta da garota.

— Não é o que o Guardião Petro disse. — A moça retrucou. — Ele me contou que você já teve uma pupila.

Um sorriso delicado se espalhou no rosto de Virnan, recordando o fato.

— Petro exagerou, Tyene. Apenas ajudei uma jovem amiga em apuros e isso foi há muito tempo. Creio que ela já nem se lembre de mim. — Virnan encerrou o assunto rapidamente, pois ele também a fazia recordar do Guardião Milan. Planejou se despedir deles, mas Irmão Simás perguntou:

— Poderia me desculpar, Guardiã? Você riu de mim quando contei a lenda do Príncipe Dragão naquela noite porque sabia a verdade, mas eu fiquei irritado porque acreditei que você estava desprezando minhas crenças.

Virnan inspirou fundo, fixando o rosto gorducho e benevolente.

— Creio que quem deve pedir desculpas sou eu, Simás. Eu não tive a intenção de ofendê-lo, apenas me irritava o fato de que eu permiti que Érion chegasse tão longe. Junte isso ao fato de que acreditava ser a última florinae viva e terá uma ideia do quanto me sentia culpada.

Ela se despediu com um aceno e retornou ao seu caminho, mas Tyene tornou a chamá-la e correu até ela.

— Isso é para você. — A moça ofereceu um pedaço de tecido bordado quando se aproximou.

A guardiã pousou a mão sobre as da jovem e pegou a testeira.

— Sei que não precisa mais, — Tyene apontou para a tatuagem na testa dela — contudo, antes que você saísse da Ilha Vitta, notei que a que você usava já estava desgastada, então fiz essa. Poderia, não sei, usá-la para prender seus cabelos quando eles crescerem.

A guardiã deslizou a ponta dos dedos pelos bordados delicados, quadrados dourados que indicavam a primeira classe do Círculo Protetor. Sorriu, saudosa. Com efeito, era um presente maravilhoso.

— Obrigada, Tyene. É linda.

***

Voltruf observava o entardecer sentada em um banco, embaixo de uma árvore. Dali, ela podia visualizar a fonte diante das escadarias principais do palácio e, também, os guardas de prontidão ao fim dela. Poderia também, se desejasse, subir no galho mais alto e avistar a cidade além dos muros.

Mas ela não desejava nada mais, além de ficar sentada ali, vendo a noite chegar enquanto seu laço de união com Marie chegava ao fim.

O vento fez a copa da árvore balançar forte, derrubando algumas folhas. Enquanto assistia a queda de uma delas, Marie sentou ao seu lado. O laço do pacto estava tão fraco que só percebeu a presença dela quando já se encontrava a poucos metros.

A mestra deslizou a mão sobre o assento até alcançar a de Voltruf. Entrelaçou os dedos nos dela, notando que a sensação de se tocarem infinitas vezes, naquele instante, era tão suave que mais parecia uma carícia do vento.

— Pretendia partir sem se despedir? — Marie perguntou.

Um ligeiro sorriso deformou os lábios rubros do espírito.

— Disse algo engraçado? — Marie quis saber.

Em resposta, Voltruf apertou a mão dela.

— Não, estava apenas pensando no quanto você aprecia isso, conversar usando sua voz. Sinceramente, antes desse pacto, nunca tinha levado em consideração o quanto poderia ser difícil pra você ter de se manter em silêncio e nunca expressar sua opinião do jeito que deseja.

Marie vagou o olhar até o portão que Voltruf observava momentos antes. Estalou a língua antes de dar de ombros, fazendo um biquinho quase infantil.

— De fato, eu aprecio muito isso, Voltruf. É difícil ficar calada quando tudo o que você quer fazer é gritar, mas também há muito a aprender com o silêncio. Eu fiquei mais forte, mais serena. Aprendi a pensar um pouco mais nos outros, também. Acredite em mim, já fui uma mulher bastante egoísta e fútil.

— É o que você diz, mas ambas sabemos que está exagerando.

O espírito distraiu-se por um momento, diante do aumento da atração das Terras Imortais. Piscou um pouco, então focalizou Marie, que aumentou a pressão na sua mão dando-lhe a certeza de que ela também percebia a aproximação do fim do pacto.

— Não me entenda mal. Eu só não sou muito boa com despedidas. — Voltruf admitiu.

— Então, não vá embora. — Marie retrucou.

Era quase nada naquele momento, mas a mestra ainda foi capaz de perceber a agitação que tomou os sentimentos de Voltruf. Marie se pôs de pé e a encarou de frente. Tinha muito a dizer, mas decidiu que não precisava. Ainda que fosse pouco, sabia que Voltruf percebia suas emoções, assim como notava as dela.

— Admito que acho o “para sempre” muito tempo. Além disso, creio que não seja possível, já que você tem Haniel. — Disse a ordenada com um sorriso no canto da boca, embora o brilho em seu olhar demonstrasse a seriedade das palavras. — Mas enquanto eu caminhar por este mundo, você também poderá, se desejar.

Ela recitou as mesmas palavras ritualísticas que deram início ao pacto entre elas, então ofereceu a mão para Voltruf, desejando que o espírito decidisse aceitá-la mais uma vez.

***

Emya enlaçou o braço de Verne, aspirando o cheiro floral que as roupas dele exalavam. O badir se vestia com as roupas de corte singelo, mas de tecido suave que os nobres florinae costumavam usar. Ele havia cortado os cabelos e raspado a barba longa, deixando apenas um cavanhaque ralo que o fazia parecer quase vinte anos mais jovem.

Não que ele tivesse o hábito de se descuidar da aparência, a questão era que a indumentária florinae o fazia parecer outro homem, ainda mais por ele ter se esmerado para se mostrar bem na cerimônia que estavam assistindo.

— Confesso que imaginava ter uma noite tranquila de despedidas, talvez derramar algumas lágrimas, mas não pensei que iria presenciar algo assim. — Emya comentou, fitando a irmã mais velha sorrir para Virnan, enquanto prendia uma mecha dos cabelos soltos atrás da orelha.

De fato, o comunicado do evento principal daquela noite foi-lhes dado no meio da tarde. Até então, sabiam apenas que a Ordem iria fazer um ritual de despedida na praça principal da cidade. A população de Flyn compareceu em peso, assim como uma boa quantidade de soldados axeanos e midianos. A grande surpresa veio quando a grã-mestra Melina findou o ritual e anunciou que havia outra cerimônia para realizar.

A noite já ia avançada, mas apesar da ausência de tochas nos postes em volta da praça, havia tanta luz que mais parecia ser dia. A luminosidade era oriunda de estreitos pilares de magia, conjurados por alguns ordenados. Um silêncio curioso reinou entre os presentes, enquanto os ordenados também se mostraram surpresos com o anúncio, todavia agilizaram os preparativos e imediatamente se dividiram em círculos espaçados, que se tornavam ainda mais perceptíveis, graças as cores de suas vestimentas: Cinza, Marrom, Verde e Azul.

No centro de todos esses círculos, estava Melina, vestindo o negro do Círculo da Vida.

Os mestres Lian e Pitacus, previamente avisados sobre o que se passaria, desenharam um círculo no chão à volta de Melina, então despejaram sobre a linha pétalas de flores e ramos verdes.

— Não é todo dia que podemos assistir a um casamento ordenado. — Verne sentou a mão sobre a de Emya no seu braço. — Então, vamos aproveitar.

Emya avaliou o rosto dele em busca de algum indício de tristeza, ciúme ou inveja. Afinal, era o casamento de Marie e a irmã mais velha fora o grande amor de Verne. Que ela tivesse se casado com Virnan através de um ritual humilde em meio à floresta e sem testemunhas era uma coisa, mas presenciar uma cerimônia era algo muito marcante.

A princesa demorou-se tanto em busca de alguma expressão de descontentamento nele, que tomou um pequeno susto quando Verne se voltou para fitá-la com um sorriso cálido, antes de lhe fazer um carinho na face e a beijar rapidamente.

Ainda surpresa, Emya deu-se conta da forma leve com a qual o esposo vinha se comportando, desde que o reencontrou no acampamento aliado. Embora a missão que o levou até ali tivesse arrancado do Badir grandes amigos e bons homens, também parecia ter lhe dado a vitalidade e paz que perdera no dia em que deixara a Princesa Analyn na Ilha Vitta. E olhando para a expressão tranquila na face austera, naquele momento em especial, Emya soube que o fantasma do amor rejeitado por sua irmã já não rondava Verne.

Ela sorriu para o marido, aconchegando-se ainda mais ao braço musculoso, enquanto assistia Marie cruzar os limites do círculo florido, seguida por Virnan, Tamar e Fantin.

***

Melina pousou as mãos sobre as mãos unidas de cada casal. Fitou cada uma das mulheres nos olhos, sem esconder a satisfação que a tomava por estar abençoando a união delas. A emoção que sentiu quando Tamar revelou o seu desejo e o das amigas de realizarem a cerimônia ordenada equivalente ao casamento, nem de longe poderia ser comparada a que a tomava naquele momento.

Depositou o olhar na sobrinha e seu sorriso cresceu. Afinal, passara vinte anos desejando que Marie pudesse escapar ao cruel destino de uma eleita, assim como ela própria fizera, e então encontrar um pouco de felicidade.

A grã-mestra recitou as últimas palavras do ritual com lágrimas a traçarem caminhos úmidos na face. Fez um gesto suave com as mãos. Magia lhe escapou e as pétalas de flores que formavam o círculo foram varridas pelo vento. Elas subiram ao céus e caíram sobre os espectadores como se fossem chuva. De cada círculo ordenado, flocos de magia se elevaram e uniram-se às pétalas promovendo um espetáculo ainda mais encantador quando músicos florinae, que assistiam ao ritual, resolveram participar dele.

As cinco mulheres permaneceram lado a lado, admirando a chuva de pétalas e magia. A caminhada até aquele momento fora longa e cheia de intempéries. Com efeito, deixou muitas marcas nelas. Algumas eram visíveis, como as cicatrizes sobre a pele. Mas as que realmente importavam não podiam ser tocadas.

De fato, dentro de cada uma delas, ainda existia muito medo, incertezas e ódio… Sentimentos cruéis e daninhos, mas insignificantes diante do amor e respeito que compartilhavam.

— Sei que é um comentário estranho e deslocado para o momento, — Fantin falou para Virnan — mas me ocorreu que o seu antigo Círculo se chamava “Trovão”. Então, qual o nome do nosso Círculo?

Tamar riu baixinho, acompanhada pelas outras. Beijou o ombro da esposa, carinhosa.

— E você ainda pergunta? — Disse ela.

A mestra ergueu as sobrancelhas e riu de si mesma, antes de responder a própria pergunta:

— Ordem, é claro. Faz todo o sentido.

Virnan se apertou um pouco mais a Marie, deixando-se envolver pelo olhar sereno e carinhoso dela, complementando:

— É apenas uma palavra que remete ao lugar de onde viemos, mas para mim, — ela deslizou o olhar pela multidão até voltar a se concentrar nas companheiras e esposa — “Ordem” sempre irá significar Família.

— FIM —


Olá, amores!

Depois de séculos, cá estou eu de volta…

Para variar, estou pedindo desculpas pelo meu atraso na postagem do capítulo final. Infelizmente, aconteceu tudo o que eu queria evitar e acabei deixando vocês na mão por alguns meses. Como todas sabem, situações inesperadas acontecem na vidinha da gente e elas acabaram me afastando do texto e tive um pequeno, e muito chato, bloqueio, apesar de ter todo o final rascunhado. Sinto muito por isso, mas como sempre disse: Se decidi postar, é porque o texto tem um final.

E falando em final, esse ficou bem grandinho, então espero que isso compense um pouco do atraso. rs… Queria desenhar algo legal para postar junto, algo com todas as nossas protagonistas juntas, mas não deu. Talvez faça isso daqui algum tempo e poste no Facebook.

Aproveitando… Estou devendo algumas respostas às perguntas que chegaram nos comentários e e-mail. Seguem elas:

  • Como você escolhe os nomes dos personagens?
    • Eu sempre gostei de nomes e seus significados. Acho que é um mal que acomete todo autor(a). rs… No caso de “A Ordem” queria nomes diferentes, mas que não fossem muito estranhos. Então, o que fiz foi criar uma variação de nomes comuns, adicionando letras, retirando ou trocando sílabas. Por exemplo: Virnan -> Virna, Simás -> Tomás. É claro que alguns sequer modifiquei, apenas soam estranhos porque são pouco comuns.
  • Os personagens são poderosos, você teve inspiração em algum anime, desenho, super herói? Quais foram?
    • Vários! Hehe… Adoro animes, mangás, seriados… Enfim, a minha inspiração inicial para “A Ordem” foi um anime que não tem nada a ver com a história “Nanatsu no Taizai”, mais conhecido no Brasil como “Os sete pecados capitais”. Também me inspiraram: A Lenda de Anng/ A Lenda de Korra, Lost Song e The Irregular. Mas também tem me inspirei em livros como “Trono de Vidro”. Esse é maravilhoso, recomendo a leitura. 😉
  • Qual a sua personagem preferida? Por quê?
    • Uou… A minha personagem preferida é a Tamar. Tenho uma quedinha por mulheres inteligentes… Hehe… Embora isso seja verdade, não é essa a razão de gostar dela. A Tamar não era um personagem expressivo no meu rascunho inicial. Acho que é por isso que gosto tanto dela. É aquele tipo de pessoa que fica no seu cantinho, observando. Não costuma atrair a atenção das pessoas, mas quando isso acontece, surpreende pela sagacidade e percepção da situação. Foi mais ou menos assim que ela começou a ganhar espaço na história.
  • Há muitas referências a vida passada das personagens, pretende escrever outros textos sobre elas?
    • Sim. Tenho planos para escrever algumas dessas histórias, assim como fiz com o capítulo extra sobre a história de Tamar e Fantin. Mas não tenho previsão de quando isso irá acontecer.
  • Haverá uma segunda temporada?
    • Não, pelo menos, a ideia não me agrada no momento. Eu não gosto de prolongar os textos, embora este tenha fugido um pouco disso. No máximo, gosto de fazer aparições de alguma ou outra personagem em textos do mesmo universo. Mas admito que tenho planos para outra história no universo de “A Ordem” com novas personagens.

Bem, é isso!

Obrigada pela companhia, amores. Valeu muito pelo apoio e paciência.

Espero estar com vocês em breve!

Um beijo grande e aquele abraço.



Notas:



O que achou deste história?

20 Respostas para 58. A voz da terra [Final – Parte II]

  1. Nossa!!! Maravilhoso, extraordinária estória, fiquei apaixonada, me apeguei a ela, e sinto uma tristeza por ter chegado ao fim, mas uma triteza boa kkkk.
    Parabéns

  2. Boa tarde, Tattah!
    Gostei muito dessa história parabéns!
    Além do enredo envolvente, suas ilustrações são muito bonitas!

    • Oi, Viviane!

      Tudo bem? Muito obrigada pelo comentário, foi um prazer lê-lo. Me repito muito quando falo isso, mas fico realmente feliz com a companhia e retorno de vocês nos meus textos.

      Espero que me desculpe o atraso na resposta.

      Um beijo grande e espero poder te reencontrar em outro trabalho. :*

  3. Boa tarde! Tudo bem?

    Estava entedida uma noite e encontrei-me com esta estória que faz muito meu estilo!
    Estava muito boa mesmo, impressionante,a li em um dia! Felicidades! Você sempre escreveu muito bem!
    É isso!
    Fique com Deus,se cuida
    Beijos

    • LAILA,

      Boa tarde, flor! Tudo bem comigo, graças! Espero que você também se encontre bem. Fico muito feliz em saber que curtiu e se divertiu com a leitura. rs… Agradeço por ter tirado um tempinho para ler e pelo carinho também.

      Espero poder te reencontrar logo.

      Beijos!

  4. Ola autora! O final tão aguardado…por motivos particulares tive que parar no capitulo 42, agora sabendo do tão esperado final, confesso que vai ser um prazer ler essa historia do começo e saborear de uma vez só. Eu acompanhei capitulo a capitulo até o 42, e me diverti imensamente…as surpresas de cada capitulo era de arrepiar…prometo ler e deixar meu comentario final…mas já lhe adianto…Tattha… você saciou minha vontade de ler algo fantastico….eu amei cada capitulo que li, e aposto que amarei os ultimos capitulos. beijos. por favor não nos abandone..suas historias são sempre inesqueciveis.

    • DONARIA,

      É sempre uma alegria te encontrar nas minhas histórias. Eu sei bem como é, a vida nos coloca alguns obstáculos, principalmente, quando quer nos atrapalhar a diversão rs…

      De todo modo, suas palavras me deixaram muito feliz. Espero que a releitura dos 42 capítulos, seja prazerosa e reveladora. Afinal, sempre descobrimos que deixamos passar algo quando lemos aos pedaços. rs… E quanto ao final… Desejo que seja uma leitura tão emocionante, quanto foi para mim escrevê-lo.

      Um xêro carinhoso!

  5. Comecei a ler essa história a poucos dias e confesso me prendeu de uma forma fanstatica abandonei e só parei na final parte I quase infartei quando percebi que faltava a parte II que pra minha sorte veio logo depois,..eu amei a história personagens fantástica e a sua criatividade não tenho palavras, parabéns e por favor volte logo com uma nova historia, obrigada por compartilhar essa viagem linda.

    • HELENA,

      Que bom que, pelo menos você, não teve de esperar tanto para ler o final rs. Realmente, sinto muito pelos meus atrasos, mas nem tudo está sob o nosso controle, né? rs… Bem, o importante é que você gostou da leitura e curtiu o “Círculo”.

      Quanto a uma nova história, não demorou tanto, rs… Não é fantasia, mas os capítulos de “Caçadora” já estão sendo postados. Espero poder te reencontrar nessa história também.

      Beijo grande e carinhoso pra ti.

  6. Maga das letras é essa menina!! Que orgulho de você, Tatita! Agora vou reler tudo com calma, pois quero apreciar essa história desde o iniciozinho!
    Amo muito seu estilo e sabe disso.
    Parabéns por mais uma história tão bem elaborada e tão maravilhosa!
    Beijus pra tu!

    • Mestraaaa… Kkkk…

      É sempre um prazer ler um comentário teu, de quem sou super fã. Obrigada a você por me fornecer um espaço tão gostoso para postar as loucuras que me vêm a cabeça. Releia mesmo, tenho certeza de que será uma experiência mais rica.

      Xêro pra tu!

  7. Tattah, minha querida autora, primeiramente obrigada! Fico muito feliz que apesar da demora, este capítulo tenha saído.
    E ele ficou maravilhoso! Quanto maior melhor! Rrrssss…
    Adorei esta saga, cada personagem, todo esse universo que vc, talentosa que só, criou tão bem! Parabéns pela finalização da história! São muitas exclamações, eu sei, mas realmente tô empolgada com o final…
    Valeu mesmo! Bjs

    • Tattah,
      uma história e tanto… Personagens, história mais que interessante,enfim vc foi brilhante. Obrigada por dividir conosco.
      Um abraço

    • NATY,

      Sou muito grata pela sua companhia aqui, pelas dicas e ajuda nos capítulos finais. E sou muito feliz por Deus ter me presenteado com esse talento, como você diz, porque ele me trouxe boas e queridas pessoas, como você.

      Valeu por vir até o fim da história comigo, Virnan, Marie e companhia!

      Beijo grande e até a próxima! :*

    • LIL,

      Obrigada pelo carinho. Vá perdoando a demora na postagem e, mais ainda, na resposta ao seu comentário. Sou muito feliz de poder compartilhar as histórias dessas mulheres com vocês!

      Espero te reencontrar nas próximas aventuras!

      Beijos!

  8. Uau… Tattah,
    Simplesmente, sensacional.

    Sei q te aporrinhei a beça, mostrando datas e dizendo, fazem tantos dias q postou…
    k k k
    Valeu a espera, ficou lindo, e as ilustrações estão belíssimas.
    Amei, tudoooo…
    Bjs

    • kkkkkkkkkkkkk…

      Não fosse tu, eu acabaria esquecendo do tempo. rs… Peço desculpa pela demora e distração, mas fico super feliz que a espera tenha valido a pena para você.

      Muito obrigada, de verdade, pela paciência e por me acompanhar nessa história e tantas outras.

      Beijo grande e até a próxima! 😉

    • Acabei de reler…

      Como estamos em isolamento social devido a Pandemia, resolvi reler alguns caps e no final acabei relendo todo o romance.

      Apaixonante, parabéns pelas ilustrações, são esplendorosas.

      Bjs

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