A Ordem: O círculo das armas

8. Uma Marca de Morte

*

 

— Como ela está?

Marie voltou-se para a porta e deparou-se com a cabeça loira e desgrenhada de Fantin. A companheira do círculo da sabedoria a abriu completamente, com o familiar jeito bruto. No entanto, a fechou devagar e silenciosamente, então jogou-se sobre a outra cama do quarto minúsculo e abafado. Franziu o nariz para a poeira que se elevou do colchão. Seu cansaço físico era mais que evidente, mas ela se mantinha alerta e com um sorriso pueril.

Tinham conseguido atravessar o Cinturão de Bévis com sucesso, mas o navio sofreu graves avarias. Por diversas vezes, foram jogados contra as pedras, até que o casco se rompeu em alguns pontos e foi necessário usarem magia para impedir que a água invadisse a embarcação e naufragassem.

Assim que atracaram e se certificaram de que estavam seguros, Lorde Verne guiou as ordenadas para uma estalagem e as deixou sob os cuidados de Fenris, enquanto cuidava dos rituais funerários para os companheiros que faleceram durante o embate com os axeanos. A grã-mestra fez questão de acompanhá-lo e prestar honras aos mortos.

Uma mancha de infiltração se espalhava pela madeira do teto mofado, chamando a atenção da recém-chegada. Com certeza, Lorde Verne podia pagar um local melhor ou poderiam se abrigar em uma das casas de apoio da Ordem. Embora não fossem oficiais, esses locais eram habitados por aspirantes ou ex-ordenados, que seguiam os ideais da irmandade e ofereciam alimento e cura para quem necessitasse. Estavam sempre em contato com a Ilha Vitta e, frequentemente, hospedavam os ordenados em suas viagens àquele reino.

Entretanto, foi de comum acordo que decidiram buscar um local mais discreto, nos arredores do porto.

Era certo que tinham conseguido despistar os axeanos por algum tempo, afinal, eles não ousariam enviar soldados para invadir a capital de um reino com o qual mantinham vantajosos acordos comerciais. Contudo, muitos outros inimigos estariam à espreita, ansiosos por ganharem a gorda recompensa que Lorde Axen oferecia pela eleita.

A fim de manter a discrição, a bandeira da Ordem foi retirada do mastro do Guerreiro dos Mares e as velas recolhidas. Os ordenados abandonaram as túnicas e faixas ornadas com seus símbolos e usavam roupas civis para se locomover pela cidade. O mesmo foi feito pelos homens de Midiane.

Ainda inconsciente. Marie respondeu.

Olheiras profundas circundavam os olhos vermelhos de cansaço e sono. No entanto, ela se mantinha firme nos cuidados da ex-pupila. Fantin brincou com uma mecha dos fios dourados em sua cabeça, então atirou o braço sobre os olhos. Assim que se encontraram em segurança, Virnan se entregou ao cansaço e desmaiou, lhes causando enorme preocupação. Jamais admitiria em voz alta, mas também se sentiu aflita com o estado de exaustão da guardiã. Aqueles dias no mar lhe permitiram enxergar alguns aspectos dela, que a convivência na Ilha jamais deixou, já que fazia gosto por evitá-la e às suas brincadeiras.

Mas, no navio, estavam se esbarrando constantemente e teve a oportunidade de confirmar o que Marie lhe disse, dias antes, enquanto ela retornava à Ilha com os novos ordenados. Apesar de inconsequente, Virnan se tornava muito séria quando em missão. Isso lhe causou muita estranheza no início da viagem, até mesmo um pouco de irritação, pois ela não parava de dar ordens e fazer recomendações.

Quando a recomendou para ascender ao próximo círculo, o fez com ressalvas. Nunca a tinha visto em ação, mas notava o esforço e dedicação. Isso bastava para abafar suas dúvidas, então quando a grã-mestra a interpelou sobre o assunto, não fez objeções.

— Ela é mais doida do que imaginei — riu, erguendo o braço levemente para se deparar com o olhar zangado da outra. — O quê?! Sabe que é verdade!

Repousou uma das pernas sobre o joelho da outra perna. Balançava-a de forma despreocupada, embora não se sentisse assim. Estalou os lábios, aspirando o cheiro de lama, peixe e fezes de cavalos na rua, que se introduzia através da janela aberta.

— Não imaginava que pudesse transferir magia.

Descansou os braços atrás da cabeça e virou o rosto para ver a resposta.

Era apenas uma teoria sobre a qual discutimos algumas vezes, mas nunca tive coragem de a pôr em prática. Virnan acreditava que, como consigo absorver a magia alheia e desconstruí-la, o caminho inverso também poderia ser feito, tanto na absorção, quanto no próprio uso da magia, mesmo que ela não seja nata em mim. Soprou um mosquito, que rondava sua face.

A companheira não deixou de notar a inexpressividade em seus olhos. Parecia ausente do quarto, perdida em seus pensamentos. Marie sentou na beirada da cama em que a amiga ressonava. Deslizou a mão pelos cabelos negros, afastando alguns fios da face morena. Quando ela desmaiou, entrou em pânico. Por um momento de pura insanidade, encheu-se de desespero, mas Melina a tranquilizou, dizendo que se tratava apenas de exaustão.

— Marie…

Voltou a prestar atenção em Fantin.

— Quando…? — Interrompeu-se, diante do olhar penetrante que recebeu.

Marie se empertigou e voltou a deslizar a mão pela face de Virnan, certificando-se de que ainda se encontrava em sono profundo e não podia ouvi-las. Fitou a janela e depois a porta.

— Não se preocupe. Alina conjurou uma proteção para nossos quartos. Qualquer um que esteja fora deles, não poderá nos ouvir ou entrar, se tiver más intenções.

Ela ainda se demorou, mirando o céu claro do meio da manhã, através da janela. Fantin sentou na cama, liberando um suspiro alto. Aquela história a atormentava desde que a grã-mestra a contou. Enchendo as bochechas de ar, irritou-se com a ausência de resposta.  Então, se acomodou melhor na cama, deixando escapar um gemidinho rouco.

— Preciso dormir um pouco. Espero que não se importe, se eu fizer isso aqui. Alina está no outro quarto com aquele tagarela convencido do Fenris. É impossível descansar perto daquele sujeito. Acredita que ele está enamorado de Virnan? Não parava de falar dela.

Novamente, não obteve resposta e, como insistisse em continuar fitando-a, Marie se obrigou a balançar a cabeça e consentir que ficasse por ali. Por fim, ela se expressou, respondendo a pergunta anterior:

Ainda não.

Fantin permaneceu calada, contendo a vontade de gritar. Não valia a pena e não lhe dizia respeito mesmo. Então, a assistiu acariciar a face de Virnan, outra vez, deitar-se e espremer-se contra o corpo dela, na cama estreita e desconfortável, até adormecer.

 

**

 

A guardiã despertou no meio da tarde. Sentia sede e o calor no quarto minúsculo era intenso, mas quando percebeu que a mestra estava enroscada em seu corpo, não ousou se mover.

 — Se você sorrir mais, vai acabar me cegando — Fantin comentou, se espreguiçando na cama ao lado. Bocejou e esfregou os olhos com jeito manhoso e levemente cômico.

— Ora, Mestra Fantin, não seja estraga prazeres. Não é sempre que tenho o prazer de acordar com Marie enroscada em mim — sussurrou a resposta, aumentando o sorriso.

A outra sorriu, debochada, mas nada disse. Não costumava dar ouvidos as fofocas, mas os sentimentos da guardiã em relação a sua professora nunca lhe foram secretos. Sempre notou a forma que olhava para Marie, e arriscava-se a acreditar que seus sentimentos eram correspondidos pela mentora. Mas jamais conseguiu entender o porquê de nunca terem ultrapassado os limites da amizade.

— Suponho que já esteja pronta para outra. — Recebeu uma piscadela como resposta. — Como se sente?

— Exausta — lamentou ter que se separar do corpo enroscado no seu.

Afastou-se devagar e se colocou de pé, tomando o cuidado de deixar Marie em uma posição confortável. Caminhou até a janela, esticando-se como um felino.

— Onde estamos?

— Em Bantos. Não reconhece as torres negras?

Mirou a cidade, que se estendia em um emaranhado de construções desordenadas até perder à vista. Ao longe, três torres de pedra negra se erguiam. Bantos era a segunda maior cidade daquele reino e tão populosa quanto a capital Pitás.

— Não. Nunca estive em Bévis. Pelo menos, não nesta vida. — Fez uma careta para aquela confusão de pedras e gente. Detestava as grandes cidades.

— Então, você é axeana — a outra concluiu.

A moça sorriu de lado, escorando-se na janela. Uma agradável corrente de ar lhe tocou a pele, aliviando o calor e secando as gotículas de suor na testa.

— Por que pensa isso, Mestra?

— Seu tom de pele e cor negra dos cabelos são característicos do povo axeano e alguns beveanos das vilas e cidades na fronteira entre os dois reinos. Se bem que, a cor dos olhos me confunde. — Sentou na cama, deslizando um dedo pelo colchão, inconscientemente.

Era a primeira vez que parava para pensar no assunto. Mas, também, não costumava ocupar seu tempo pensando em Virnan. Algumas coisas nela sempre lhe causaram estranheza e o humor peculiar lhe inspirou muita raiva, mas nunca se deixava prender neles por muito tempo. Logo, quando a guardiã não estava por perto, sequer lembrava da sua existência, mas depois da noite passada, ela e tudo o que lhe dizia respeito, não lhe saía dos pensamentos.

— O que tem os meus olhos? — A pergunta foi feita em um discreto tom de deboche.

A luz do sol do meio da tarde se insinuava no quarto, atingindo-a. Tocava-lhe a face, acentuando a tonalidade cristalina das íris esverdeadas e Fantin respondeu, segura:

— Já andei por todos os reinos deste continente e nunca vi olhos da cor dos seus. Olhos verdes são comuns em Primian, mas não dessa tonalidade. Os seus são amarelados, às vezes. Em outros momentos, quase transparentes.

Na cama, Marie se mexeu, ressonando alto e prendendo a atenção da guardiã por alguns instantes. Quando voltou a fitar a interlocutora, a suavidade que lhe tomou os traços desapareceu, dando espaço ao costumeiro aspecto irônico.

— Bom, isso complica um pouco o jogo da adivinhação, não é? — Sorriu de lado e como a confusão tivesse se instalado nas expressões da outra, disse: — Eu não sou de Axen.

Um vinco se formou na testa da mestra. Ela bagunçou os cabelos, já desgrenhados pelo descanso recente, enquanto a guardiã a contemplava com um interesse malicioso, percorrendo sua figura devagar até se fixar no rosto.

Quem a visse, naquele momento, poderia interpretá-la mal. Mas Fantin sabia que não lhe interessava daquela forma. Era bem consciente de sua beleza física, das curvas voluptuosas, dos olhos azuis como o céu, os lábios carnudos, o rosto de tez delicada e traços suaves. Sua presença sempre arrastava olhares de admiração e cobiça. E, embora aparentasse estar confortável diante deles, o contrário era a realidade. Por isso, raramente se despia da túnica de ordenada, que conseguia ocultar alguns daqueles dotes.

De certa forma, sentia-se nua usando as roupas comuns, que vestia naquele momento.

Virnan deslizou o olhar para o decote da sua túnica e um violento e humilhante tom rosado tingiu sua face. Ela percebeu seu desconforto e voltou a fitar-lhe o rosto. No entanto, se aproximou e pousou a mão no seu ombro, deslizando o tecido para o lado. Seu toque era suave, leve como uma brisa e trouxe um arrepio para a mestra, que raramente se deixava tocar. Ainda mais, com tanta intimidade.

— O que pensa que está fazendo?!

A moça deixou escapar um risinho baixo, quase infantil, e curvou-se, aumentando o desconforto dela pela proximidade de seus rostos.

— Você é uma mulher muito linda, Mestra.

A frase foi dita sem as segundas intenções com as quais estava acostumada. Ela apenas constatava a realidade e essa simplicidade e objetividade, trouxe mais rubor as bochechas de Fantin.

— Sempre me perguntei a razão de usar uma túnica tão recatada, se é tão bela. Agora, tenho a resposta. — Deslizou o dedo pela cicatriz em formato triangular na pele alva do seu ombro.

Fantin a afastou com um safanão e se recompôs, escondendo a marca. Virnan se endireitou e permaneceu à sua frente por mais alguns instantes, então retornou para a janela, cruzando as mãos nas costas. A mestra aguardou uma de suas piadas, mas ela exibia a mesma serenidade inquietante que Marie, quando viu aquela marca, pela primeira vez.

— A Ordem traz paz para muitos espíritos maltratados, não é mesmo? Ilumina nossas trevas. Enterra nossos monstros.

O vento soprou forte, balançando os fios negros dos cabelos dela. Ouvi-la se expressar daquela forma gerou um sorriso curto nos lábios rubros de Fantin, que colocou a mão sobre a marca no ombro. Quando a recebeu, era jovem demais para entender o significado de guerra e, menos ainda, o peso de ser uma escrava bonita. Quando as disputas que a vitimaram chegaram ao fim, os grilhões também desapareceram de seus pulsos, mas eles permaneciam em sua mente, até ser recebida no seio da Ordem e encontrar algo pelo que valia a pena continuar vivendo.

— Não se esconda, Mestra. Suas cicatrizes fazem parte de quem você é hoje. Não tenha vergonha delas.

— Eu não tenho vergonha das marcas em meu corpo. Como disse, sou o que sou por causa delas. Mas isso não significa que tenho que suportar os olhares que elas atraem. Diga-me, não é pela mesma razão que você esconde a sua marca de “assassina”?

Por algum tempo, somente o ressonar de Marie foi ouvido no quarto. Por fim, Virnan deu de ombros e a mestra completou:

— É isso que há por baixo da sua testeira, não é? A tatuagem de um assassino. Depois que você desmaiou, discutimos sobre o que aconteceu e a grã-mestra nos contou o que fez com o comandante Loyer.

— E você tirou minha testeira para confirmar — concluiu, tendo certeza de que a iniciativa partiu dela. — Que indelicado e invasivo! — Mostrou os dentes alvos, contrariando as palavras. De fato, não estava nenhum pouco incomodada.

— Ela não queria — apontou para Marie. — Disse que você tinha direito a ter seus segredos, mas o que fez naquele barco…

Fitou o colchão empoeirado, recordando a batalha no mar.

— Você nos usou para conjurar uma magia que nunca tínhamos visto. É certo que quando lhe emprestamos nosso poder, também fizemos as vezes de um amuleto. Mesmo assim, Alina disse, e concordamos com ela, que o que lhe doamos era insuficiente para que pudesse usar magia elementar, pois nenhuma de nós possui esse tipo de magia.

A guardiã coçou o queixo, divertida. Aquele olhar zombeteiro irritava Fantin, profundamente. Principalmente, porque ainda sentia o efeito que seu toque e palavras lhe trouxeram. Havia muito tempo, não ficava desconcertada daquela forma. Nem sabia que ainda era capaz de se sentir assim.

— A conclusão foi simples: Essa é a sua verdadeira magia.

Aguardou um comentário, mas ela continuava sorrindo daquele jeito caçoísta.

— Por alguma razão, não pode alcançá-la, mas quando emprestamos a nossa, você pôde usá-la.

Fez uma pausa, indo até a janela. Esticou-se devagar, desejosa de mais algumas horas de sono, pois estava certa de que aquela seria a última cama em que se deitaria por um bom tempo.

Na noite anterior, quando passou por cima dos protestos de Marie e arrancou a faixa que a guardiã sempre usava na testa, esperava que não passasse de um engano. Era difícil acreditar que pudesse ser uma assassina e que tivesse imposto a si mesma aquela condição não mágica.

— Sinceramente, não aprecio os livros, como Alina. No círculo da sabedoria temos muito a aprender. Mas, para ela, nunca é o suficiente. Não é à toa que era a responsável pela biblioteca do castelo.

Passou as mãos nos cabelos, alinhando-os. Fazia uma trança frouxa, enquanto falava.

— Nos delongamos em muitas suposições, mas a que ela chegou era semelhante à da grã-mestra.

O silêncio de Virnan a incomodava tanto quanto o sorriso. O sol tocava parte do rosto moreno, enfatizando a beleza e juventude dos traços. Demorou-se a admirá-la daquela forma. Foi então, que percebeu que havia uma nota de melancolia nela. Era tão sutil, que quase não se deixava notar.

— Os livros, pergaminhos antigos, as lendas; não importa a referência, mas a maioria afirma que nem todos os floras morreram no massacre promovido pelo Cavaleiro Vermelho. Dizem, que os poucos sobreviventes pertenciam a uma casta de poderosos guerreiros, mestres na arte de matar usando o manibut. Incapazes de restabelecer seu reino, eles se esconderam e se espalharam pelo mundo, trocando o uso dos seus dons por joias e ouro.

As íris verdes se afastaram de sua figura e buscaram o sol no firmamento.

— Se você não usa magia, mas domina uma técnica milenar de combate contra magos, é lógico concluir que pertence ao clã dos assassinos, mesmo que alguns afirmem que tal grupo jamais existiu. Se é verdade ou não, o fato é que a tatuagem em sua testa é uma marca de morte. Nas histórias, ela é usada para aprisionar a magia, assim como dizem que o clã dos assassinos faz, pois nele só é permitido usar as habilidades físicas e o manibut.

Um riso baixo começou a se espalhar pelo ambiente e foi crescendo devagar, até que se tornou uma gargalhada. Virnan removeu a faixa da testa e fitou seu reflexo na janela. A tatuagem não passava de uma fina linha curva e horizontal com uma estrela de quatro pontas no centro. Deslizou o dedo sobre ela, permanecendo naquela contemplação por algum tempo, até encontrar o olhar de Fantin, novamente.

— Isso a incomoda, Mestra? Incomoda ter uma “assassina” ao seu lado?

Fantin inspirou fundo, pensando a respeito. Aliás, vinha pensando sobre isso, desde que viu aquela tatuagem. Encerrou sua trança, aceitando com prazer a brisa que lhe envolveu. Sorriu de lado.

— Só se você se incomodar em ter uma “prostituta de guerra” por perto. — Deu de ombros e assentou as mãos na cintura. — Você mesma disse, “guardiã”, a Ordem traz paz para muitos espíritos. Quem sou eu para julgá-la? Principalmente, quando sei que você teve a chance, mas escolheu seguir os preceitos da Ordem e preservou a vida daquele comandante bastardo.

Um sorriso brejeiro iluminou o rosto moreno e Virnan voltou a aparentar a costumeira falta de compromisso.

— Então, não toquemos mais no assunto. Que tal darmos uma volta? Estou morrendo de fome e vamos acabar acordando Marie, se continuarmos por aqui. — Dirigiu-se para a porta.

Percorreram o corredor estreito, quebrando o silêncio com o som dos passos na madeira. Pela primeira vez, em mais de uma década, a Mestra Fantin olhava para Virnan sem desconfianças, irritação ou desagrado. Nunca foram amigas e, com certeza, jamais tentariam ser, mas a forma como agiu quando descobriu sua cicatriz, minou algumas das barreiras que levantou em relação a ela.

Eram parecidas, foi a estranha ideia que lhe ocorreu.

— Virnan — a chamou.

— Sim?

— Se fosse para proteger Marie, você quebraria seu juramento e mataria, novamente?

A guardiã seguia alguns passos à frente dela. Estacou no meio do corredor e se voltou para fitá-la. Um sorriso preguiçoso bailava em seus lábios. Ele foi morrendo aos poucos.

— Não.

Fantin mordiscou o lábio, retendo um forte exalar. Preparava-se para prosseguir, quando a viu acariciar o cabo da adaga na cintura. Então, notou os olhos, cheios de vida e calorosos, adquirirem um brilho frio e cruel.

— Eu não o faria apenas por Marie. Quebraria meu juramento e mancharia minhas mãos de sangue para proteger todas vocês.

 

 

***

 

Ela se esquivou do machado, saltando para o lado, mas foi atingida pelo escudo do seu oponente. Caiu, desorientada, enquanto o sangue esguichava pelo nariz. Gritos se elevaram na arquibancada. Sabia que falavam seu nome, mas não conseguia entendê-lo.

Sugou o ar para os pulmões, certa de que não tinha mais forças para continuar. Seu oponente era muito forte. Ele lhe deu as costas, erguendo os braços em sinal de vitória e aquilo a enfureceu. Arrastou-se pelo chão da arena, desprezando o incomodo da areia que invadia os ferimentos. Ajoelhou-se, prendendo um gemido de dor. O sabor férreo do sangue lhe tomava o paladar.

Deslizou o olhar para a multidão e, em uma área reservada, cercada por uma guarda fortemente armada, encontrou três rostos atentos à sua figura. O primeiro, era um rapaz. Ele se mantinha atento, externando na face que já esperava aquele resultado, um ligeiro sorriso deformava sua boca. O segundo, era de uma moça, muito parecida com ele. Mas, ao contrário do irmão, ela demonstrava aflição pelo seu estado.

O terceiro rosto pertencia a um homem mais velho. A barba longa lhe escondia os lábios, mas dava ênfase aos olhos inexpressivos, como se fossem pedras. Era para ele que desejava se testar.

Obrigou-se a ficar de pé e as pessoas foram ao delírio. Seus motivos para lutar eram puramente egoístas, mas para a maioria daquelas pessoas, sua presença naquela arena era simbólica, um sinal de que mudanças se aproximavam.

Seu adversário procurou o olhar do homem de barba, na área reservada. Recebeu dele um ligeiro inclinar de cabeça. Ele riu, enquanto erguia o machado, pronto para ceifar a vida dela.

 

Marie sentou-se na cama, de repente. Olhou para as mãos que tremiam, ainda sob o efeito do medo que sentiu. Balançou a cabeça algumas vezes e se pôs de pé, alinhando as roupas e os cabelos, enquanto se dava conta de que se encontrava sozinha.

Aproximou-se da janela. A noite se achegava, tingindo o horizonte com um tom intenso de laranja. Pousou as mãos na borda janela, apertando-a com força. Aquilo não tinha sido um sonho. Era uma lembrança e, com certeza, não era sua.

 

— § —



Notas:



O que achou deste história?

8 Respostas para 8. Uma Marca de Morte

  1. Oie, olha eu aqui de novo.
    Estava sem tempo por isso fui postergando a leitura deste romance q esta maravilhoso.
    To amando as situações e aprendendo um pouco a cada cap. sobre nossas personagens.
    Parabéns Tattah, tu tá arrasando e eu amando.
    Bjs…

    • Oiê, lindona!

      Ha! Eu estava mesmo sentindo tua falta, mas não sabia se era pelo meu sumiço das redes sociais ou se era contigo mesmo. rs… Mas que bom que encontrou um tempinho para vir aqui ler um pouquinho! rs…

      Feliz que esteja gostando!

      Beijão pra tu! 😉

  2. Sabe quando vc reconhece que uma historia e boa??
    E quando vc se pega relendo os capítulos anteriores,para ver se deixou passar algo e fica mega ansiosa esperando a autora postar mais um capitulo rsrs
    Mais uma vez parabéns ,escrita perfeita, texto envolvente,apaixonada pela historia.OBs aqui pensando quando o prologo vai se encaixar na historia ,suspeitando que a historia do príncipe / dragão começa ali…

    • Eita comentário gostoso de ler, Pollyana! Me deixou com um sorrisão! rs…
      Muito obrigada pela companhia e que maravilha essa ansiedade! rs… Parece maldade da autora, mas não é! rs…

      Hmmm… Quanto a “OBS”, está bem perto disso acontecer e, [ALERTA DE SPOILER], sim, a história do príncipe e seu dragão começou ali. [Mais ou menos]. rs…

      Beijão!

  3. Então, o que falar?! rrsrs
    Só uma coisa a dizer: A Virnan ainda tem muito a mostrar, porque estou mega curiosa da vida dela, mas… Outra curiosidade que não me deixa, é sobre a vida da Marie. Ela é candura pura, mas… O que a levou até a Ordem? rs
    A Fatin, já sabemos. Quem manda você a estimular a curiosidade da gente? rsrsr
    Um beijão Táttah

    • Kkkkk…

      Eita, Mestra, sempre atenta aos detalhes. rs… Sim, Marie é muito tranquila e tem suas dores a revelar. Tá bem perto disso acontecer. Mas é tudo que conseguirá arrancar de mim! rs…

      E tu ainda tem coragem de falar de curiosidade pra uma geminiana? rs… Tem que deixar vocês curiosas mesmo, assim é mais gostoso de ler! rs…

      Beijão!

  4. Caramba, que capítulo! Olha as guardiãs se mostrando fora da Ordem aí! Cada qual com seu passado mais ou menos sombrio, com dores e remorsos imensos.
    Nossa, apaixonada pela história, demais da conta!
    Ansiosa pelo próximo capítulo.

    • Oiê, Naty!

      Parece meio repetitivo, mas estou super feliz que esteja gostando.
      Se prepara, porque ainda tem muitas outras revelações por vir.

      Beijão!

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