*
Lyla observou as gotas vermelhas de seu próprio sangue macularem a relva sem entender como poderia estar sentindo tanta dor. Estava certa de que Érion usou apenas um pouco de magia para empurrá-la. Mas a agonia que percorria seu corpo indicava o contrário.
Se colocou de pé e passou a mão na boca a fim de limpar o sangue que escorria dos lábios. No mesmo instante em que a ideia de convocar Virnan lhe chegou, Érion surgiu à sua frente como se ele fosse um spectu a se materializar.
— Desculpe por isso, “Lya”. — Ele falou, chamando-a por um apelido carinhoso.
Isso a atirou em novo redemoinho de lembranças, mas logo se recuperou. O menino daquelas memórias não era o homem diante de si. Aquele garoto estava morto e enterrado pela ambição e maldade do homem que se tornou.
— Você não tem mais o direito de me chamar assim — recordou.
A resposta dele foi um sorriso torto, aliado a um dar de ombros prolongado.
— Para ser sincero, acho que essa não é a questão. O verdadeiro problema é que você não é mais a “Lya”, nem a “Lyla” que nasceu poucos momentos antes de mim. Agora, você não passa do animalzinho de estimação de uma auriva.
Ela torceu o nariz e cuspiu o sangue que se acumulava na boca. Mantinha uma das mãos oculta atrás do corpo, enquanto criava uma nova espada de penas.
— Posso lhe dizer o mesmo, afinal você costumava ser menos enfadonho em seus discursos e insultos. É como se o tempo tivesse destruído sua capacidade de criar uma boa ofensa.
Érion andou à volta dela, que moveu-se junto com ele. Balançava a cabeça devagar, como se estivesse entretido em uma conversa interna e divertida.
— Olhando para você, quase sinto falta da nossa vida em Sulitar. Quase. — Ele mostrou os dentes, escorregando a mão sobre o peitoral da couraça vermelha com detalhes protuberantes que pareciam ser uma mescla de espinhos e escamas. A capa, em contraste, era negra e esvoaçava ao sabor do vento, revelando a espada na cintura.
Os olhos de Lyla se fixaram na arma. Tratava-se da espada de seu pai, a qual Érion herdou ao assumir o trono de Sulitar, quando ela foi coroada rainha de Flyn.
A visão daquela espada a fez fincar as unhas na palma da mão ao ponto de sangrar.
— Às vezes, me pergunto quando você se perdeu. — Os pensamentos dela escaparam em voz alta, carregados de revolta. — Quando deixou de ser meu irmão e começou a caminhar para se tornar o monstro diante de mim, capaz de massacrar família, amigos e súditos?
Limpou a garganta pra se recompor, era um desperdício de tempo pensar a respeito. Milênios não lhe deram uma resposta satisfatória e, certamente, nenhuma desculpa que ele pudesse dar seria razoável.
Assumiu uma posição defensiva, enquanto ele balançava os ombros cheio de ironia.
— Três mil anos sem nos vermos e isso é tudo o que lhe vem à mente em nosso reencontro? Tsc! Poderíamos conversar sobre tantas coisas… Meu tempo aprisionado naquela caverna, meu momento de libertação, minha ascensão que se aproxima…
A troça o fez parecer estranho fisicamente. Por um instante, foi quase como se o tempo em que ele caminhava sobre aquela terra tivesse se apossado de sua fisionomia. Contudo, a impressão se desvaneceu tão rápida quanto chegou. Era provável que Lyla tivesse optado inconscientemente por vê-lo assim, todavia a ideia se fixou nela.
— Você tem razão, é tolice de minha parte lhe questionar essas coisas. — Admitiu, debochada. — Mas já que você parece magoado com o meu aparente desinteresse sobre como tem vivido os três últimos milênios, basta pegar a minha mão e poderei ver todo o seu passado.
O “Cavaleiro Vermelho” encarou a mão que ela lhe estendeu ironicamente. Outra vez, aquele incômodo surgiu no rosto dele e foi-se tão rapidamente quanto na vez anterior.
— Boa tentativa, irmãzinha. Mas não tenho intenção de deixá-la ver o que planejo e, muito menos, permitir que seja capaz de me ferir.
Foi a vez dela rir com ar quase traquina.
— Não custava tentar. — Balançou os ombros.
Ele atirou um gesto no vazio, divertido com o desenrolar da conversa. Mirou o céu noturno e o tom vermelho que começava a se espalhar pela superfície da lua. Seus desejos estavam próximos de se realizarem, todavia, mesmo se mostrando calmo e confiante, a espera o consumia. Principalmente, porque estar longe do grande amuleto o desgastava em demasia.
Isso não ocorreria, se suas irmãs não tivessem conseguido impedir a guerra que planejou para Axen, Midiane e os reinos vizinhos. Ele poderia ter consumido mais que a magia dos magos mortos para o seu amuleto. Poderia ter devorado a vida de qualquer um que entrasse em batalha, alimentando a sua própria e insaciável sombra e, assim, fortalecendo e regenerando seu corpo.
Diferentemente de Virnan, cuja magia temporal de Lyla permitiu que não envelhecesse um único dia, com ele não se passou o mesmo enquanto esteve aprisionado no círculo de armas.
Sua magia foi consumida lentamente pelo círculo, enquanto a sombra em sua alma devorava-a.
Estava tão debilitado quando Maxine e Ilan, em sua inocência e ganância, o libertaram, que foi preciso que Zarif o arrastasse para fora da caverna. Ele alimentou-se do primeiro andarilho que encontrou e continuou fazendo isso até sentir-se forte o suficiente para atrair um dos jovens que romperam o círculo. A magia de Ilan era mais proeminente, por isso ele foi capaz de ouvir seu chamado e, embora demonstrasse ser um rapaz gentil, seu coração era corrompido e cruel. Foi fácil torná-lo seu seguidor, alimentando-o com delírios de grandeza e recompensando-o com um pouco de poder e meios de ascensão ao trono de Axen.
Não era muito diferente das mentiras e promessas que fez aos demirs de Flyn no passado. Aqueles que tinham o poder em mente eram sempre fáceis de manipular.
Resolveu voltar para a questão que a falecida irmã fez:
— Por que deveria haver uma razão? A ideia de governar o mundo pode, de repente, ter me parecido atraente e resolvi tentar.
O spectu foi cético:
— Você tem defeitos terríveis, mas ambos sabemos que não é tão fútil.
O rosto dele foi iluminado pela luz que emanou da barreira após um ataque a esta. De fato ele não era fútil. Ele tinha um objetivo que acreditava ser nobre e não pouparia esforços para alcança-lo mesmo que isso significasse deixar uma sombra consumir sua alma e corpo em troca do poder dela, mesmo que fosse necessário matar milhares para aumentar esse poder, mesmo que tivesse de passar por cima de família e amigos, esmagá-los como insetos.
Odiar. Isso era tudo o que precisava para cumprir o que se propôs.
Ódio não era um sentimento complexo. Na verdade, era muito mais fácil odiar do que amar, pois amar significava abraçar as qualidades e defeitos de alguém, compreender e perdoar seus atos, esperar que as coisas ruins passassem e que as boas viessem. Mas ele sabia que elas não viriam e que o passado oferecia uma lição para o futuro. Futuro este que ele construiria, moldaria.
Futuro que não iria lhe escapar outra vez.
Ele manteve o silêncio por um momento longo e afastou a vista para a barreira. A carnificina o agradava. Então, piscou algumas vezes e depois voltou a fitá-la.
— Você sempre foi impetuosa, como o nosso pai. Justa em excesso. Ainda que visionária em alguns aspectos, muito limitada em outros. Eu não tenho que lhe dar explicações para os meus atos. Isso levaria um tempo do qual não dispomos.
— Isso é fácil de resolver. Tem certeza de que não quer me mostrar? — Ela provocou-o novamente, estendendo a mão para que a tomasse.
Olhava para ele e via o rosto de um irmão amado, mas então ele abria a boca e percebia que nada tinha sobrado daquele homem.
— Imaginei que a resposta continuaria sendo “não”. — Ela recolheu a mão.
— Desistiu tão rápido… — Érion alfinetou, desejoso de saber se ela fugiria ou se tentaria matá-lo com a lâmina que acabara de criar às costas.
A resposta foi mais rápida do que esperava.
— É que acabo de me recordar que eu desisti de entender você no dia em que entreguei minha vida por Flyn. — Ela disse. — Mesmo que me contasse sua história, nada do que dissesse poderia apagar o que fez. Não importam suas razões, afinal. Então, acho que é melhor pularmos para a parte em que um de nós mata o outro!
Ela o alcançou com três passos longos e trouxe a espada das costas, deixando um rastro luminoso no ar ao emanar magia para a arma. Com o poder que agora compartilhava com Virnan em absoluto, poderia fazer o ar se deslocar com a mesma facilidade que a castir e quando finalizou o golpe, havia um grande corte na terra e relva atrás dele que não se moveu e recebeu o ataque com o ar presunçoso. A lâmina de Lyla atravessou seu corpo sem tocá-lo.
— Maldição! — Lyla gritou. — Como é possível?!
Érion inclinou-se na direção dela até que seus rostos estivessem tão próximos que a imrã pôde sentir o hálito dele resvalar em sua pele. Ele estava diante dela, então por que não podia tocá-lo?
— Quando a lua vermelha tomar o céu, irmãzinha, eu unirei o “todo” e me tornarei um deus. É por isso que você não pode me tocar.
— É a frase de um louco entregue a delírios de grandeza. — Ela retrucou. — Neste caso, o problema pode ser resolvido lhe arrancando a cabeça.
Ela tinha consciência de que não possuía poder suficiente para fazer o que disse, isso sempre foi uma certeza. Afinal, três castirs morreram para prendê-lo em um círculo de armas. Então, o que um spectu não natural poderia fazer a respeito?! A resposta era nada.
Todavia, antes de convocar Virnan, ela poderia obter o máximo de informações possíveis sobre o irmão e se isso lhe permitisse ferí-lo, o faria com prazer. Como afirmou, momentos antes, havia desistido de tentar encontrar desculpas para os atos dele.
Semicerrou os olhos e uma luminosidade discreta emanou do corpo dela. O tempo parou à sua volta.
Não poderia mantê-lo assim por muito tempo, mas alguns instantes eram mais que suficientes. Lyla inspirou fundo, encarando o rosto congelado e muito parecido com o seu próprio.
Trinta séculos se passaram desde que estiveram tão perto um do outro e naquele exato instante ela tinha plena consciência de que não sentia mais nada em relação ao homem diante de si. Se um dia tiveram um laço de sangue, a morte se encarregou de apagá-lo, embora ainda sentisse a tristeza abatê-la quando as memórias lhe assaltavam.
— Érion, — murmurou — só porque você tem o nome de um deus antigo, não significa que pode se tornar um.
Apertou a espada com mais força. Se seus olhos não a tinham enganado, Érion só deixava de ser sólido momentos antes de receber uma investida. Durante toda conversa, reparou em como o vento bagunçava os cabelos dele ou como seus pés esmagavam a relva em volta.
Ergueu a arma até a ponta tocar a couraça prateada que protegia o peito dele, satisfeita por encontrar resistência. Mas, então, foi surpreendida pela voz do irmão:
— Boa tentativa. — Ele piscou com um sorriso de canto de boca.
Ela sentiu um arrepio a lhe percorrer a espinha, ciente de que o tempo à volta deles permanecia congelado.
— Conheço o seu dom, irmã. Aprendi a me proteger dele há muito tempo. Uns cinquenta anos, para ser mais exato. Desde que você e aquela criança mimada roubaram minha prenda. — Ele puxou o tecido que lhe envolvia o pescoço para o lado, revelando uma cicatriz.
O resgate de Melina foi dramático e Maxine só obteve êxito porque Érion era arrogante ao ponto de acreditar que era tão poderoso que ninguém jamais ousaria ir contra ele. É claro que, nos momentos finais daquela investida, Lyla realizou o que até então considerava impossível em seu estado espiritual, principalmente porque usou quase toda sua magia para se manter presa a adaga. Ela fez o tempo parar por não mais que um instante e isso foi suficiente para que Maxine conseguisse feri-lo e fugir com Melina.
Depois disso, ela só foi capaz de aparecer em raras ocasiões para orientar Maxine e quando Virnan recuperou a adaga e usou tecido mágico para enrolar o cabo e conter o poder dela, ainda mais raros se tornaram os momentos em que tomava consciência do mundo em volta e acompanhava os passos da irmã.
Ela fixou a marca no pescoço dele. Fora um ferimento superficial, mas que claramente deixou uma marca profunda no ego do “cavaleiro vermelho”.
— Não custava tentar. — Ela deu de ombros, imitando o sorriso dele.
Érion olhou para além dela, enquanto o tempo voltava a transcorrer normalmente e tudo no que Lyla conseguiu pensar foi no quanto aquilo era problemático. Contava com possibilidade de poder parar o tempo outra vez para que Virnan e companhia pudessem atuar com mais precisão na hora de prendê-lo.
— Você anda tentando muito hoje. — Érion respondeu. — Mas já estou me cansando de você, então me questiono se devo deixá-la “viver” o suficiente para assistir a minha ascensão ou se acabo com a sua existência agora e, consequentemente, me livro daquele incômodo castir. Mas a ideia de ver a derrota em seus rostos diante da minha vitória é tão tentadora…
Os ombros dela subiram e desceram, junto com um leve farfalhar de asas e ele se decidiu.
— Ainda que seja tentador, vocês atrapalharam meus planos por tempo e vezes demais. Então, adeus, “Lya”.
Ela recuou um passo à espera do ataque dele, contudo foi surpreendida quando as garras de Zefir penetraram a carne dos seus ombros, deixando marcas profundas e sanguinolentas. Gritou e foi atirada de cara no chão.
Zefir mantinha a forma humana, mas as garras tinham se projetado longas e mortais, assim como ela costumava fazer com as penas. Lyla não havia percebido a presença da Sombra até ele estar tão perto que não foi capaz de revidar.
Os pés dele encontraram suas costas. Ele ria enquanto pisava nela repetidamente. O demônio a chutou nas costelas e, graças a sua força sobre-humana, o impacto a empurrou por alguns metros.
Contudo, Lyla estava decidida a não se tornar uma vítima passiva. Quando Zefir voltou a surgir no seu campo de visão, dando um salto assombroso para chegar até ela, a antiga rainha de Flyn rolou para o lado e voltou a ficar de pé ao mesmo tempo que uma de suas asas se distendeu, lançando penas afiadas no demônio.
Ágil, a Sombra esquivou-se de quase todas as penas, exceto aquela que cravou-se em um dos braços. Ele deixou um rugido baixo escapar, retirou a pena e a jogou no chão, fazendo promessas assassinas.
Com um arquear de lábios presunçoso, Lyla cuspiu o sangue que se acumulava na boca e fez nova espada de penas crescer, encarando o oponente. Tentou ir até ele e perdeu o equilíbrio, contudo não chegou a cair. Em vez disso, cambaleou alguns passos para trás. Algo estava errado consigo. Sentia o corpo pesado ao mesmo tempo que um fiapo de dor insinuava-se nos braços, oriunda dos ferimentos que Zefir causou.
Veneno.
Era a resposta plausível para aquela sensação vagamente familiar, pois a captara de Virnan em Valesol, e agora que sabiam que era possível uma sombra se unificar a um spectu e consumir sua aura mágica, fazia todo o sentido que aquele demônio tentasse plantar uma “semente” nela, ainda que fizesse tais declarações:
— Vou adorar arrancar todas as suas penas!
— Hmf! Pelo visto, você não sugou apenas a aura mágica de Zarif, também surrupiou a irritante mania dele de falar demais! — Ela provocou.
— Ela não é adorável? — A voz de Érion os alcançou. — O humor é de família. Mas não se deixe enganar pelo rosto bonito, Zefir, minha irmã é tão perigosa quanto a sua mestra. Acabe logo com isso, temos um mundo para conquistar.
Ela ergueu a espada, apontando-a para Zefir e depois para Érion. Preparou-se para se defender deles, mas o som dos apitos aurivas chegou até seus ouvidos e instantes depois sentiu um leve puxão no laço invisível que a conectava com Virnan. Zefir correu em sua direção, deixando a fúria animalesca escapar através de um grito. Ele a golpeou no exato momento em que foi envolta por luz e desapareceu, contudo ainda conseguiu ouvir a última frase dela:
— Nos encontraremos em breve, se você sobreviver a isso.
Ele golpeou o ar, berrando:
— Maldita!
Metros atrás, Érion sorriu enquanto avistava os espíritos convocados por Virnan massacrarem seu exército. Momentos depois, quando a flecha flamejante de Melina passou pelo local, ele sobrevoava a barreira nas costas do dragão Zefir.
— Essa passou bem perto. — Zefir rosnou. — Mas você não parece preocupado com o fato de estarem nos encerrando dentro de um Círculo de Armas.
— Eu não sou o mesmo homem de três milênios atrás. Aprendi com os meus erros e me fortaleci para esta guerra. O círculo de armas é poderoso, mas não temos com o que nos preocupar. Quando a lua vermelha tingir o céu com a cor de sangue, Flyn será reduzida a pó.
— Aprecio sua confiança, apesar do seu corpo estar tão frágil… Ainda que seja útil para que as armas inimigas não o firam, sinto que você está ficando cada vez mais instável e o fato dessas mulheres terem conjurado um círculo de armas logo no início do combate impediu que você se alimentasse da magia vital dos mortos, eles sendo magos ou não-mágicos.
— Minha irmã tem razão, você é tão tagarela e irritante quanto Zarif!
O dragão bateu as asas com força e subiu mais alguns metros para escapar das chamas que alcançavam mais de dez metros de altura.
— Só estou analisando os fatos com objetividade. — Zefir retrucou. — Se o quinto círculo, o espiritual, for conjurado… — fez uma pausa olhando para a cidade dentro do domo mágico — a Espada de Cazz poderá ser trazida para este mundo e nem mesmo o poder dos seus amuletos aliado a fabulosa magia que a lua vermelha jorra nas correntes mágicas e permite a realização de rituais poderosos, será capaz de nos salvar.
— Creio que esta é a primeira vez que sinto o seu medo. — Érion focalizou a cabeça de chifres pontudos movendo-se de acordo com o esforço que fazia para continuar sobrevoando a cidade.
— Não se trata de medo — o dragão rosnou. — Estou sendo realista.
— Você sabe bem que antecipei quase todos esses acontecimentos! É verdade que não esperava que ainda houvesse uma castir viva e que, milagrosamente, ela fosse capaz de formar um Círculo com castanes. Mas passei séculos reunindo poder para esta noite e não serão as minhas irmãs a me impedirem.
— Elas conseguiram no passado… — Zefir recordou, ciente de que começava a cruzar uma linha perigosa, afinal Érion ainda não tinha superado aquela derrota, ainda que se mostrasse altivo e confiante.
O dragão entortou o pescoço longo, fingindo mirar as imensas estacas de gelo que se projetavam da floresta e, de esguelha, vislumbrou quando o mestre trincou os dentes antes de responder:
— Não precisa se preocupar com a Espada. Ela não pode ser conjurada se o Círculo não estiver completo. Tudo o que temos de fazer é matar uma delas e eu sei exatamente qual. — Desfez a cara amarrada e sorriu de lado. — O destino está nos ajudando, a eleita de Midiane, finalmente está no Templo Castir.
**
Nem Fantin nem Tamar precisaram olhar para a luz que invadia a copa da árvores para ter a certeza de que Melina havia conjurado o círculo do fogo. Era um círculo, afinal. E todas elas compartilhavam a experiência, ainda que de forma distinta do ritual que as tornou um Círculo de União.
Assim que sentiram a agitação da magia no laço, Tamar agiu. Os homens já haviam retornado para a segurança da barreira de água e ela teve liberdade para trabalhar na próxima conjuração.
Ela afundou as mãos na água e círculos luminosos e azulados surgiram na pele alva. Eles percorreram seus braços até escaparem pelas pontas dos dedos e se dividirem entre muitos outros, percorrendo os sulcos de água até a saída da floresta. Desses sulcos, fios de água se elevaram e congelaram formando um emaranhado de estacas pontiagudas que empalaram todas as sombras pelo caminho. Claro que muitos escaparam e era missão de Fantin cuidar dos remanescentes.
A mestra loura focalizou o vazio, concentrando-se no passo a seguir. Apertou a adaga entre as mãos sujas de sangue e sussurrou as palavras que Virnan lhe ensinou. Pronunciou-as devagar para evitar erros que custassem o sucesso da investida.
Por fim, agradeceu:
— Obrigada pela ajuda — e encarou as centenas de luzes que surgiram à sua volta, antes que tomassem formas humanas e percorressem a floresta milenar, eliminando as Sombras remanescentes.
Depois disso, o silêncio reinou pela floresta, interrompido apenas pelo vento que balançava a copa das árvores e a água que corria entre elas, maculado pelo sangue de coisas ruins.
***
Marie andava em volta do amuleto.
O tempo parecia escorrer entre seus dedos, tal qual areia. Havia poucos momentos que Melina partiu com Bórian e o som de uma corneta a avisou que os ordenados e o exército midiano entraram na floresta, rumo ao oeste. Ela fora específica ao ordenar que tomassem a direção leste, onde poderiam chegar ao mar e retornar aos navios ordenados e à segurança.
Contudo, bem sabia que Emya era teimosa. Pois, era certo que Verne — se ainda estivesse vivo — não estava em condições de comandar os soldados midianos.
Lamentava a possibilidade da morte do ex-noivo e cunhado e desejava ter podido fazer mais por ele, assim como queria que nada daquilo tivesse acontecido. Mas, como Virnan costumava dizer, estavam em guerra e não era possível guerrear sem derramar sangue amigo e inimigo.
Esta forma de pensar a assustava, principalmente porque começava a perceber o quão fácil era se apegar a ela. Mais simples ainda era tirar uma vida, mesmo que esta não fosse encarada como uma existência real.
O mundo era de fato confuso ou ela, Marie, perdera-se dele?
Afastou tais indagações, quando o som da corneta se repetiu ainda mais longe.
Inspirou fundo recordando que, para os ordenados, marchar em direção a guerra não era uma decisão surpreendente ou difícil. Fazer parte da Ordem significava viver em meio a conflitos, ainda que a bandeira que carregassem fosse a da paz. Agora que o combate na “Cidade dos Eleitos” chegara ao seu desfecho, eram necessários em Flyn.
Cruzar a floresta a oeste do templo era o meio mais rápido de chegarem ao reino florinae. Afinal, estavam muito próximos dele e poucas horas de caminhada os levaria até as terras de Delias, o reino do leste, onde certamente a maior parte do conflito se delineava na fronteira com a capital Flyn.
Enquanto ela esperava que todos alcançassem uma distância segura do Templo, analisou a pedra com apuro, refazendo mentalmente cada passo da magia que estava prestes a realizar.
Ouviu a corneta pela terceira vez, não mais alto que um silvo trazido pelo vento, e concluiu que era hora de começar o ritual. Então, sentou-se no chão com os olhos fechados; estava diante do amuleto com os braços estendidos, quase tocando-o.
A pedra emitia um suave brilho escarlate, como se estivesse convidando-a a se aventurar em seu interior de novo. Decididamente, mergulhar na complexidade daquele turbilhão de emoções e existências, era tudo o que menos queria.
Marie inspirou devagar, endireitando a postura. Abstraiu-se de tudo à sua volta, então começou a murmurar a canção. Vez ou outra alterava uma palavra, mudando o sentido do feitiço e o objetivo.
A magia fluía por seu corpo e usava as mãos como rota de escape. Seguia para o amuleto, mas em vez de penetrar e unir-se a ele, o envolvia formando uma fina camada luminosa. Aos poucos, um conjunto intrincado de círculos pequenos foram se moldando pelo salão. Eles se cruzavam, delineando um círculo maior no chão e teto. Tinham cores diversas e símbolos estranhos em seus interiores.
Por um momento, a vontade de Marie fraquejou ao recordar a exploração ao interior do amuleto, todavia logo se recuperou e à medida que sua consciência deslizava para aquele universo de existências, ela começou a captar uma presença estranha e, ao mesmo tempo, familiar.
Essa presença não provinha exatamente das almas despedaçadas dentro do artefato, embora fizesse parte delas.
Era perceptível, também, que diferentemente da vez anterior em que o tocou, agora o amuleto não tentava atraí-la ou iludí-la para que se tornasse parte dele. Desta vez, ele tentava repelí-la, reconhecendo seu desejo de destruí-lo.
Marie foi cada vez mais fundo na existência do objeto abominável, muito mais do que na primeira vez em que o explorou. Quando alcançou o núcleo dele, notou que tinha a forma e aparência de um homem: Érion.
“Érion” ou o que quer que aquilo fosse, abriu os olhos para fitá-la sem emoção e Marie se apercebeu do perigo que a rondava. Logo, seu corpo físico foi repelido pelo poder do amuleto e ela foi lançada alguns metros para trás. Rolou pelo chão, entre dolorida e desorientada, até parar perto da porta fitando o teto escuro onde o amuleto se espalhou como gavinhas.
Inclinou a cabeça para trás, abandonando a vista do teto e focalizou o homem que se aproximava até que ele parou ao seu lado.
O “Érion” das profundezas do amuleto lhe sorriu com escárnio e ela percebeu que não se tratava de uma ilusão ou projeção. Ele era real, assim como o som dos seus passos e riso.
— Ah! Confesso que você é melhor do que eu esperava, Princesa.
***
Assim que as chamas cresceram devastando o campo de batalha, Lyla se materializou ao lado de Virnan. A castir a convocou, temendo que fosse pega pelo fogo da grã-mestra. Logo percebeu que tinha escolhido o momento certeiro para fazê-lo, independente da ação de Melina.
— Tudo bem? — Lyla perguntou e tossiu um pouco de sangue.
— Foi mais cansativo liberá-los da Adaga do que colocá-los nela. — Explicou Virnan. — Só preciso de um momento para recuperar o fôlego. Com efeito, estou certa de que me encontro melhor que você. Quer falar sobre isso? Sinto cheiro de coisas ruins em você.
O spectu meneou a cabeça, fitando o fogo.
— É porque encontrei nosso irmão e aquele demônio…
Foi a vez de Virnan balançar a cabeça, inspirando fundo.
— Antes de entrar em detalhes, nos leve para o interior da barreira. Está ficando bem quente por aqui. — Pediu, apontando para o fogo que contornava o círculo em que se abrigavam.
Lyla não demorou para atendê-la e guiou-as através das correntes mágicas. Em uma distância tão curta, não mais que o tempo de um piscar de olhos se passou até se encontrarem na segurança das muralhas de Flyn.
Os gritos de vitória dos soldados ali, uniam-se aos daqueles nas barreiras e que, agora, recuavam em direção a cidade. Alheia à gritaria, Melina observou o que acabara de realizar. Ainda que a guerra fosse contra os preceitos da Ordem, estava orgulhosa daquele poder, das vidas que ele podia proteger. De fato, a satisfação que a tomava não tinha como ser medida, ainda que dias antes tivesse questionado a existência daquele dom e a nova aparência que lhe deu.
Ela sempre teve uma forte ligação com o fogo, mas quando Caeles foi destruída por meio dele, entrava em pânico sempre que via algo maior que as chamas de uma tocha. Evidentemente, o tempo curou suas feridas e traumas, ainda que não todos.
A grã-mestra afastou a vista das chamas ao longe para observar a chegada de Tamar, Fantin e Joran. As duas mestras e o espírito se materializaram bem ao seu lado e pelo cansaço nas feições e ferimentos visíveis, a luta na floresta exigiu muito deles.
— Acho que temos um problema. — Lyla informou enquanto Virnan chegava mais perto dela e, sem aviso, traçou gestos no ar formando pontos luminosos. Eles se conectaram e, com um sopro da castir, penetraram o corpo do spectu.
Alguns instantes se passaram antes que os pontos ressurgissem na pele do spectu na forma de pequenos círculos compostos por dezenas de símbolos antigos.
— Isso vai doer. — Virnan avisou e Lyla juntou as mãos nos ombros dela, ciente do que estava por vir.
Os círculos começaram a percorrer o corpo dela e uniram-se em volta das feridas que Zefir causou com as garras. Dos ferimentos, fumaça negra escapou para logo ser aprisionada dentro de outros pequenos círculos que Bórian criou e, assim, desaparecer de vez.
— Isso é horrível! — Lyla resmungou, recuperando o fôlego, ainda agarrada aos ombros da irmã.
Ela tremia violentamente, unindo forças para soltá-la. Mas aquele contato era tão acolhedor, embora não fosse carinhoso, que desejava permanecer assim por mais algum tempo. Todavia forçou-se a deixá-la.
— Como pôde aguentar aquilo em Valesol? — Questionou, abrindo e fechando as mãos a fim de afastar o formigamento que as tomava.
— Eu estou viva e você está morta. Esta é a diferença. Você é basicamente aura, enquanto eu sou duas coisas ao mesmo tempo. Na prática, meu sangue auriva também faz de mim mais resistente a dor. — Deu de ombros, como se estivesse falando do clima. — Agora, que tal continuar seu relato sobre o encontro com o “seu encantador” irmão?
Aguardou o resto da explicação, enquanto os berros de um dos comandantes colocava ordem nos homens ali perto. Ainda era cedo para comemorarem, ele dizia.
— Tentei tocá-lo — Lyla fez o que pediu, vez ou outra deslizando as mãos sobre os braços ou abraçando-se para conter os tremores —, mas não consegui. É como se fosse um espírito, mas também não. É difícil explicar a impressão que tive, meus golpes simplesmente o atravessavam.
— Algum tipo de projeção mágica? — Bórian tentou adivinhar. — Ele consegue fazer algo assim? Pelo o que me lembro, somente os mestres do Templo Castir conseguiam fazê-lo, todavia não durava mais que alguns momentos e por pequenas distâncias. Se for o caso, isso pode sugerir que ele não está dentro do círculo.
Virnan o encarou, pensativa.
— Não… Ele está aqui. Uma projeção consumiria uma grande quantidade de magia, dependendo da distância até onde ele estivesse escondido. Seria cansativo, mesmo ele tendo um grande amuleto no Templo Castir. O círculo de armas que iniciamos é especificamente voltado para conter magia sombria como as das Sombras e nós sabemos bem que Érion tem uma Sombra.
— Ele esperou séculos por este dia, não mandaria apenas subordinados ou uma projeção mágica. — Lyla concluiu seu raciocínio. — Ele estava mesmo lá. Vi o vento balançando seus cabelos e roupas, seus pés esmagavam a folhagem e, garanto, o golpe que ele me deu foi bem doloroso.
— Mesmo que fosse o caso de ser mesmo uma projeção, ele não conseguiria invadir o círculo que criamos. — Comentou Fantin, buscando a concordância de Tamar, mas esta parecia distraída com o firmamento. — Estudamos o que iríamos fazer com cuidado. Tamar investiu uma grande quantidade de magia para que somente os soldados humanos pudessem atravessar a barreira do círculo sem sofrerem consequências. Tem de haver outra explicação.
Esfregando os olhos, Virnan recordou:
— Aconteceu o mesmo quando estávamos lutando com Zefir e ele interferiu. Não consegui tocá-lo, contudo senti a presença dele. Ele estava lá.
— Mas como ele faz isso? — Joran se manifestou, passando a mão em um corte profundo no rosto.
Recostada na muralha, Tamar ouviu a conversa com atenção enquanto fitava a lua. Aos poucos, o tom vermelho tomava a superfície do astro, mas ainda era muito suave.
— Onde está Marie? — Ela perguntou, desprezando o assunto do momento.
Curiosa com a forma imperiosa com a qual falou, Melina explicou a situação rapidamente.
— Creio que aí está sua resposta. — Disse a bibliotecária para Joran, explicando em seguida: — Pelo o que Melina descreveu, o amuleto da Cidade dos Eleitos é tão grande que toma uma sala inteira. Érion não poderia carregá-lo consigo, mas teria de encontrar uma forma de usar seu poder. Não é difícil concluir que ele sacrificou um pedaço da sua própria alma mágica para isso. É claro, é apenas uma suposição. Ele tem séculos de conhecimento acumulado, pode conhecer magias além da nossa imaginação e capacidades.
Os passos dos soldados que retornavam para a cidade se tornaram audíveis para todos e nova comoção começou a se espalhar entre aqueles na muralha.
— Seu raciocínio é assustador, mas há sentido no que diz. — Joran concordou, sem prestar atenção à chegada dos guerreiros.
— Diante dessa nova informação, saber como ele faz não responde a pergunta mais importante: Como se derrota um inimigo ao qual não se pode tocar? — Melina foi direto ao ponto.
— Usando uma espada capaz de dividir mundos. — Joran fez um muxoxo antes de responder.
— A Espada Castir — Lyla deixou mais claro.
— Esperava não ter que usá-la. — Admitiu Virnan, desta vez escorregando a mão pelo rosto sujo de suor, poeira e sangue.
— Por quê? É a arma castir mais poderosa. — Bórian argumentou.
— Você já foi um castir, não fica bem se fazer de tolo nesta altura dos acontecimentos. — Tamar interferiu, captando o desconforto de Virnan e das companheiras, também. — A espada é a única arma que nenhum castir chegou a usar, desde que a irmandade foi criada, pois nunca houve um círculo completo depois do Círculo de Cazz original.
— A verdade é que estamos todas apreensivas em usá-la. — Melina disse. — Não temos idéia se podemos controlar o poder dela. O círculo original era composto inteiramente por castirs.
Infelizmente, era uma verdade inconveniente, o espírito teve de admitir isso. Ainda assim, ter a espada era um grande trunfo e seu uso não poderia ser descartado.
O chão tremeu e a barreira foi envolta por uma forte luminosidade. Era tão intensa que os cegou por um momento.
— Mas o que foi isso? — Fantin murmurou quando a luz desapareceu.
— Érion… — Joran respondeu. — Ele está atacando a barreira de cima. Agora que seus demônios foram derrotados, ele finalmente assumiu a tarefa.
— Após tantas investidas daqueles monstros, ela já está fraca. O fato da meia-noite estar se aproximando junto com o surgimento da Lua Vermelha também não está a nosso favor. Não vai demorar para ele conseguir quebrar a proteção. — Tamar sentenciou e mal terminou de falar, a barreira foi atacada novamente. — Precisamos nos apressar.
Agitada, Virnan começou a rosnar ordens para os guerreiros na muralha. Tambores começaram a soar, instruindo os soldados posicionados dentro da cidade. Em poucos instantes, metade dos guerreiros que possuíam magia abandonaram os postos junto às muralhas e dirigiram-se para reforçar as linhas de defesa dos Portões.
Momentos depois, Virnan estava próximo a uma das torres de vigilância. Instruía um dos comandantes deminaras, quando a proteção caiu. Ela ergueu o olhar para o céu, instantes antes do ataque de Érion começar. Como se fosse atraído para ela, Zefir sobrevoou a muralha, deixando um rastro de fogo, morte e destruição pelo caminho.
A visão privilegiada permitiu que Virnan visse que Érion não o acompanhava. Era certo ele já estava a caminho dos Portões, enquanto Zefir se encarregava de causar o máximo de danos à cidade mantendo seus defensores ocupados.
— Fantin! — Ela gritou para a amiga.
A mestra loira a buscou com o olhar, compreendendo o que pedia com um gesto brusco. Fantin lhe devolveu um inclinar de cabeça ligeiro e correu para além da muralha. Cruzava os portões quando estes foram sobrevoados por Zefir. O dragão refletiu um dos ataques mágicos dos guerreiros florinae e este atingiu a parte superior da muralha. Pedras que compunham a construção se soltaram e desabaram sobre ela e alguns soldados.
Fantin escapou da morte certa graça ação rápida de Laio. O guerreiro jogou-se sobre ela, levando junto mais dois soldados e apenas alguns pedregulhos os atingiram. A mestra cuspiu poeira junto com um palavrão, então se pôs de pé verificando se haviam feridos. Como não haviam mais que arranhões aparentes nos homens, ela fez menção de correr, mas Laio a interceptou.
— É a minha vez! — Disse ela.
Compreendendo, o comandante auriva a soltou sem nada dizer e ela retornou ao seu caminho. Só parou quando teve certeza de que não havia mais ninguém entre a cidade e o círculo de fogo. Retirou as lanças curtas do suporte e as uniu, girou-as sobre a cabeça e um círculo luminoso surgiu da luz que as armas emanavam, ele entrou no corpo dela e escapou-lhe entre os lábios na forma de um sopro. Flutuou diante dela por um instante e subiu aos céus.
Enquanto isso, na cidade, Tamar ajudava a apagar os incêndios que Zefir causou, mas eles se multiplicavam mais rápido do que ela era capaz de agir, embora tivesse o auxílio de muitos magos.
O dragão era tão veloz que parecia estar em todos os lugares. A cidade começava a, literalmente, se tornar pó. Homens e mulheres dividiam-se entre tentar conter os incêndios e a combater o dragão demoníaco.
Ainda sobre a muralha, Melina aguçou os sentidos e embora desgastada pelo dia na Floresta de Pedra, combates, curas e grande magia que acabara de conjurar, ela atirava flechas com rapidez e precisão. Mesmo assim, Zefir conseguia desviar delas com a mesma destreza com a qual escapou das penas de Lyla.
Nada parecia conseguir impedir o avanço dele sobre a cidade e a visão de tanta destruição revolveu memórias antigas e dolorosas de Melina. Em um piscar de olhos ela não estava mais olhando para Flyn e sim Caeles em chamas. Apesar de muito diferentes, as duas cidades eram grandes e construídas com imponência.
A grã-mestra inspirou fundo para acalmar-se, mas quanto mais olhava, mais era arrastada para as dores do passado e as companheiras perceberam o desequilíbrio dela, que começava a atuar sobre o círculo do fogo ao longe. O som de gritos de agonia e morte explodiram em seus ouvidos, oriundos daquele terrível dia, cinquenta anos atrás.
Ela quis fugir, esconder-se do mundo outra vez, e quase fez isso mesmo. Mas então, a tatuagem do Círculo começou a arder em seu punho, transmitindo uma mescla de medo e desespero. Melina abriu os olhos e captou os gritos de Tamar e Virnan que clamavam por seu nome. Foi então que ela percebeu que Zefir vinha em sua direção.
Ele estava tão perto que já conseguia sentir o calor do hálito dele. Por um momento, os olhares dos dois se cruzaram e todo o desespero que a dominou instantes antes, transformou-se em coragem e desafio. Melina pegou uma flecha na aljava e tensionou a corda do arco. Quarenta metros adiante, Zefir rugiu, uma bola de fogo se formando na garganta.
Melina soltou a flecha flamejante e ela se chocou com a bola de fogo que Zefir cuspiu. Houve uma explosão entre os dois e quando o dragão ultrapassou as chamas, Melina corria em direção a uma das torres de vigia.
Zefir urrou de raiva e um grande pássaro vermelho cruzou seu campo de visão, mergulhando e passando por baixo dele, onde as pontas afiadas das asas deixaram um corte profundo na barriga do dragão que perdeu o controle de suas ações e chocou-se com a construção.
O pássaro piou, arremetendo em direção aos céus ao mesmo tempo em que tomava a forma humana. Lyla distendeu as asas longas. Olhou para Zefir, que recuperava-se da trombada e agitou as asas com força. Penas atravessaram o espaço que os separavam como se fossem flechas, mas o spectu sombrio, recuperou-se a tempo de livrar-se delas.
O dragão arremeteu em direção a ela e Lyla o aguardou com ansiedade. O momento do choque entre eles se aproximava rapidamente. O spectu balançou as asas, liberando dezenas de penas a pedido de Virnan que assistia o embate junto da torre de vigia oposta a que Melina correu. O vento da castir envolveu as penas aumentando sua resistência e velocidade quando foram atiradas em direção a Zefir.
Desta vez, algumas penas o atingiram, embora ele tivesse se esforçado para desviar delas ou queimá-las. Mesmo assim, o dragão não diminuiu a velocidade e continuou indo em direção a Lyla.
A voz de Virnan vibrava na cabeça de Lyla, orientando-a a usar sua magia aerare, enquanto ela própria preparava-se para o momento de atacar Zefir diretamente.
Era mais fácil dizer do que fazer, Lyla pensava. Ser um spectu era basicamente sobreviver de instintos. A magia desse tipo de espírito era bem diferente da magia de uma pessoa viva ou espírito comum. Eles não precisavam de palavras mágicas, todas as suas ações eram oriundas da imaginação. Mas o verdadeiro problema era que, embora Lyla demonstrasse confiança, ela sentia-se incômoda e ainda não tinha se adaptado ao poder que recebia de Virnan. Lhe custava demasiado pensar como uma aerare.
Ela focalizou os olhos vermelhos de Zefir e percebeu que Virnan estava compartilhando sua visão local onde se encontrava, dando-lhe uma boa perspectiva do que iriam fazer a seguir.
“Só mais um pouco.” Virnan murmurou na mente dela.
***
Érion cruzou os portões dos jardins do palácio no centro da cidade. Ele sentia o poder dos Portões que separavam os mundos. A magia deles o atraía e nem mesmo a centena de guerreiros florinae que o aguardava, fez com que sua satisfação e sensação de vitória alcançada diminuísse.
Ele sorriu quando os primeiros guerreiros e magos o atacaram e ainda sorria quando alçou os degraus que o levariam para o interior do palácio, deixando para trás corpos dilacerados e moribundos.
***
Zefir abriu a bocarra cheia de dentes pontiagudos e mortais, uma bola de fogo começava a se formar na garganta dele que o cuspiu na esperança de atingir Lyla.
O dragão surpreendeu-se quando o fogo encontrou uma barreira invisível. Ele tentou desviar dela, mas descia tão rápido que não houve tempo para mudar a trajetória. Sangue esguichou no ar, manchando a barreira como se fosse vidro.
Zefir escorregou por ela e caiu no vazio. Ele foi de encontro a algo sólido e também invisível que o impediu de chegar ao chão. Patinhou no sangue que derramava e conseguiu ficar de pé. Encarou o chão de pedras escuras que adornava o pátio sobre o qual estava parado a não mais que dez metros de altura.
Tentou alçar vôo e descobriu que havia outra barreira incolor sobre sua cabeça. Caiu, ergueu-se e insistiu em voar, desta vez, para os lados. Novamente, deu de cara com o vazio sólido. Ele cuspiu fogo, direcionando as chamas para todos os lados e elas encontraram resistência. Tentou outra vez e mais outra, até que avistou Virnan e Lyla.
A castir estava parada diante dele, pisando no vazio, enquanto Lyla batia as asas suavemente.
— Você usa os poderes dele, mas não passa de uma farsa. — Virnan falou.
Encarava-o como se estivesse diante de um inseto.
— Castir maldita! — Ele rosnou, caminhando um círculo quase perfeito no espaço em que estava confinado. A calda longa e espinhosa estalava nas paredes invisíveis. — Eu vou rasgar sua garganta!
Sombria, Virnan respondeu:
— Você não vai fazer nada além de encontrar a morte.
— Você esquece que eu não tenho vida, apenas existo. — Ele retrucou, correndo em direção a ela com a esperança de que a força bruta pudesse derrubar a barreira.
A castir sequer piscou quando ele trombou com a barreira.
— Para você, morrer é o fim absoluto da sua existência abominável. Somente o esquecimento o aguarda.
Zefir saltou em direção a ela, usou as garras, cuspiu fogo, mas nada fazia efeito naquela prisão.
— Você destruiu uma parte de mim… Você devorou o meu Zarif. — Ela continuou, deixando o ódio se derramar nas palavras.
— Vou devorar esse pássaro atrás de você também e depois comerei seu coração, enquanto meu mestre consome sua maldita alma castir. — Ele chocou a calda espinhosa nas paredes invisíveis e uma suave luz emanou dela.
Os lábios de Virnan se contraíram em um sorriso torto e cruel. Ela ergueu a mão espalmada para o alto. Dizia:
— Esta era uma das magias preferidas de Zarif quando caçávamos monstros como você. Acho que é justo pôr fim a sua existência assim.
Recuou um passo enquanto Zefir atirava-se contra barreira uma e outra vez. Falava devagar:
— Esta magia não possui precedentes ou um nome na língua enaen, porque eu a criei e Zarif deu-lhe um nome mais que apropriado: Caixão de Ar.
— Eu sou um spectu do ar também, Castir! Você não pode me tirar ele.
Os lábios dela se contraíram, antecipando o momento em que concluiria sua vingança. Alguns metros atrás, Lyla sentia-se bastante incomodada por compartilhar os sentimentos de ódio e desprezo dela, todavia os compreendia com perfeição.
— Quem disse que pretendo roubar o seu ar? — Virnan indagou, cada vez mais sombria e até mesmo Zefir mudou sua postura diante daquele olhar cruel e assassino. — Diga adeus a este mundo, inseto!
Ela abriu os braços, como se abarcasse o espaço em que ele estava confinado e começou a fechá-los devagar. As tatuagens em seu corpo emitiram um brilho suave, enquanto seis círculos brilhosos surgiram nas paredes do “caixão”.
Em desespero, Zefir percebeu que elas começaram a se aproximar dele. A sombra tentou de tudo para escapar, mas só lhe restou retornar para a forma humana na esperança de ganhar algum tempo de sobrevida. Entretanto, as paredes continuaram a se aproximar e ele logo viu-se espremido entre elas, completamente aterrorizado e imóvel.
Seus olhos encontraram os de Virnan e a certeza do fim o abateu.
— Espere! Por favor! Espere! Eu posso ajudar você! Posso contar o que ele pretende…
As mãos dela se aproximaram mais alguns centímetros e ele urrou de dor, enquanto os ossos eram esmagados.
— Por favor!
— Não há nada que você possa me dizer, que seja capaz de diminuir o fato de que você consumiu Zarif! Que nestes últimos momentos, você receba um pouco da dor que lhe causou.
Zefir gritou mais alto, implorando que Érion viesse em seu socorro. A magia do laço deles vibrava chamando o mestre, mas este não veio e, no fim, o spectu sombrio tornou-se uma massa disforme e sanguinolenta.
Virnan ainda manteve as mãos unidas por um momento longo, como se temesse a possibilidade do spectu sombrio ter sobrevivido à armadilha mortal. Apertava-as com tanta força que chegou a trincar os dentes. Por fim, a mão de Lyla alcançou seu ombro e ela deu-se conta de que havia alcançado a vingança que tanto almejou nos últimos dias, então inspirou fundo e separou as mãos. Ossos e sangue choveram no meio da praça que sobrevoavam, arrancando expressões de nojo e pavor dos homens em volta.
Ainda mareada com a cena grotesca que acabara de assistir, Melina deu ordens para que ninguém se aproximasse e incendiou os restos de Zefir até que não houvesse mais nada que recordasse sua existência.
***
Marie se colocou de pé, enquanto “Érion” a fitava por um momento longo e inquietante.
A mestra conseguia sentir a magia pulsante que emanava, contudo estava ciente que vinha de muito longe, contrariando o fato de estarem diante de um amuleto que, supostamente, deveria lhe oferecer uma fonte quase infinita de poder.
Ele deixou um sorriso debochado e quase cruel moldar a boca e o gesto irritou a mestra pelo simples fato de que o achou bonito e atraente.
— Você não pode me ferir com essas armas, Princesa. — Disse ele. — E devo avisá-la que a sua voz também não pode me alcançar.
— O que você é? — Marie indagou.
Mais um passo dele os aproximou e Marie ergueu uma das machadinhas e se colocou em posição de defesa. Os olhos violetas dele se estreitaram no rosto jovem.
— Você é muito perceptiva — olhou para o amuleto e uniu as mãos diante do ventre. — E tão poderosa quanto imaginei que seria. Se não me falha a memória, ninguém que tocou esse amuleto conseguiu resistir a atração dele. Tornaram-se almas ansiosas por pertencerem a algo tão grandioso.
Voltou a mirá-la e explicou:
— Seus instintos estão corretos. Eu sou um mero reflexo do verdadeiro Érion.
Esperou algum comentário em resposta, todavia Marie não quis se manifestar.
— Enfim, sou o resultado de uma magia proibida. — Abriu os braços suave e dramaticamente. — Você ficaria surpresa com os segredos que este lugar esconde. Lyla foi esperta quando formulou seu plano de isolar Flyn. Ela levou o que acreditava ser todo o conhecimento da Ordem Castir para lá.
Deu de ombros.
— Contudo, quando retornei para este lugar após séculos preso naquela caverna, fiquei muito satisfeito em descobrir que ela não passou nem perto do verdadeiro conhecimento que o Templo Castir abriga.
O rosto dele iluminou-se com o fato de que somente seus olhos alcançaram tal conhecimento e, por um breve instante, ele pareceu à Marie, uma criança sedenta de saber. Tal expressão logo se desfez e ele tornou a dar outro passo em direção a mestra, dizendo:
— Mas estou desviando do meu propósito aqui. Desculpe. Quando meu eu verdadeiro me criou, fui inserido na essência do amuleto para protegê-lo… Obviamente, ele… — empertigou-se e corrigiu-se — “eu” não imaginava que algum dia fosse necessário assumir minha forma física para cumprir esse papel.
O “reflexo” ergueu a sobrancelha ao vê-la mudar de posição e relaxar, baixando as machadinhas.
— Devo agradecer por ter vindo até aqui. — Ele continuou. — Finalmente, poderemos realizar o seu sacrifício. Com a sua alma eu me tornarei um deus.
Riu novamente, balançando os ombros.
— E não vai demorar muito para que eu alcance meus objetivos em relação a este mundo, também. Neste exato momento, estou derrubando a última barreira de Flyn. É verdade que as minhas irmãs conseguiram destruir o meu exército, mas aquelas bestas já cumpriram seu papel.
A notícia do sucesso da esposa e amigas forneceu um alento para Marie e também lhe ofereceu uma resposta afirmativa para o que imaginava ser a verdadeira natureza da existência daquela cópia de Érion. O “reflexo” não era apenas um guardião do amuleto, era a ligação de Érion com ele.
A mestra decidiu, então, que naquele caso não havia outra estratégia melhor que o ataque. Avançou contra “Érion” apenas para constatar que o que dissera era verdade. A lâmina passou através do corpo dele, como se não fosse mais que uma ilusão. Marie tentou de novo e continuou tentando até perceber que era um esforço inútil. Ainda assim, não desistiu, e criou um círculo dentro daquele que já estava ativo e à espera de que concluísse o ritual. Tinha esperança de que isso o fizesse se tornar sólido, assim como ocorria com espíritos. Também não adiantou.
Com uma risada debochada, o “reflexo” a atirou contra a parede, aproveitando um leve momento de distração da mestra. Ele não saiu do lugar, bastou apenas erguer uma mão em e espalmá-la na direção de Marie. A força da magia dele a mantinha presa à parede como se não passasse de um mero adereço.
— Tucsianas ampliam os poderes de seus donos, mas há um limite para isso, minha doce amitsha. Você é apenas uma castane, afinal. Certamente, é quase um milagre que tenha conseguido se ligar a uma arma castir. Eu sou basicamente a essência de uma aura mágica, mas não sou nenhum tipo de espírito, portanto seus poderes espirituais e as tucsianas são inúteis contra mim. O mesmo se passa com sua magia humana. Por outro lado, eu posso fazer o que quiser com você. É quase como se eu fosse de outra espécie… — Riu com a ideia.
Marie sentiu que seus ossos logo partiriam se a pressão daquela prisão mágica aumentasse e trincou os dentes ao gemer de dor.
— Tem algo mais a dizer antes de morrer? — O “reflexo” perguntou com ar de troça.
Ela, que até o momento fitava o chão, concentrada na dor que ele lhe causava, ergueu a cabeça e o encarou. Ao contrário do que o “reflexo” esperava, a mestra fez um esforço para sorrir em resposta.
Uma voz sussurrava na cabeça dela, fazendo seu riso aumentar.
— Você parece estar se divertindo com o destino que se apresenta. — Ele constatou.
— E você me parece um pouco confuso. — Ela retrucou em voz baixa. — Esperava que eu chorasse, me debatesse e implorasse misericórdia?
Ele inclinou a cabeça para o lado, quase como se fosse um gesto afirmativo.
— Isso me satisfaria. — Admitiu.
— Sinto desapontá-lo, mas a única existência que irá ser apagada aqui é a sua.
— É mesmo? E como fará isso se nem sequer consegue se mexer? — Ele chegou mais perto, divertido com a provocação.
Seus olhos violetas estavam fixos nos castanhos de Marie, que se estreitaram aos poucos. O “reflexo” inclinou-se para olhá-la melhor.
— Você fala demais, como uma boa amitsha.
— Você não tem ideia do quanto… Sim, eu tenho algo para dizer a você. É apenas uma palavra: Obrigada!
— Certamente, é a primeira vez que me agradecem por tirar uma vida.
— Na verdade, estou agradecendo por você ter vindo até aqui. Sabe, senti sua presença desde os primeiros instantes em que explorei o amuleto. Mas você estava tão disperso… Bem, enquanto acompanhei minha irmã para fora desta sala, tive um tempo para pensar sobre isso. Érion precisava usar o poder desse amuleto e para isso seria necessária uma forte ligação com ele. Que melhor maneira de fazer isso do que criar um reflexo de si mesmo, usando um pedaço da sua própria aura mágica e encerrando dentro do amuleto?
— Você é incrível, Princesa. Em pouco tempo, resistiu a atração do amuleto, descobriu sobre mim e como desfazê-lo… É uma pena que tenha sido um esforço em vão.
— Não do meu ponto de vista.
Ele não teve tempo de reagir quando uma luz intensa emanou do peito dela. Algo grande atravessou a luz empurrando-o para trás. Surpreso, o “reflexo” focalizou um tigre cuja pelagem era de diferentes tons de azul e preto. Ele tinha uma cauda longa e dividida em três pontas rígidas, como era comum encontrar em serpentes marinhas.
A fera saltou sobre “Érion”, impedindo-o de fugir. Avançou em direção a sua jugular e, embora Marie desejasse virar o rosto ou fechar os olhos, ela os manteve bem abertos enquanto o tigre rasgava o corpo dele até que ficou imóvel.
Ela, Marie, não poderia tocá-lo como afirmou. Ele mesmo lhe ofereceu a resposta para o problema, se era basicamente uma aura mágica, então um espírito poderia ferí-lo. Contudo, ela ficou surpresa ao ver que ele também sangrava, ainda que seu sangue tivesse uma cor prateada.
O tigre rugiu, então retornou para Marie e esfregou a cabeça em sua mão.
— U-um spectu?! — O reflexo gemeu. — Mas você é apenas uma castane…
— Ela é muito mais que isso. — O tigre respondeu, rondando a mestra enquanto os ferimentos que fez no reflexo desapareciam.
Enquanto o amuleto estivesse inteiro, ele teria uma fonte quase inesgotável de poder.
— Conheço essa voz… — Disse ele, ficando de pé. — Um tigre de olhos violetas… Malditos castirs! Nem na morte param de me atrapalhar.
O tigre rugiu para ele, fazendo Marie tremer de medo e admiração, já que ainda não tinha ideia da forma animal que Voltruf assumiria.
Quando o espírito sugeriu que consumisse sua alma e recuperasse suas forças, a mestra ficou enojada com essa possibilidade. Era uma ordenada, afinal. Tinha juramentos a cumprir e, mesmo seu corpo físico estando morto, Voltruf ainda vivia na forma espiritual. Matá-la seria como se condenar também. Contudo, havia uma solução que poderia ajudar ambas.
Quando Marie falou, em vez de consumir a aura mágica de Voltruf, recitou as palavras do pacto Castir. A mestra jamais esqueceria a expressão de pura surpresa e gratidão que recebeu da mulher naquele momento. Mesmo assim, se mostrou reticente em responder ao chamado do ritual de união.
— Eu sou uma ordenada, Voltruf. — Dissera-lhe Marie. — Sei que Tamar lhe explicou o que isso significa. Se você não aceitar o pacto, ambas morreremos porque eu não posso tirar uma vida.
Sim, Tamar havia contado sobre a Ordem e muito mais. Voltruf sabia, também, que Marie não era mulher de jogar palavras ao vento e que ela se entregaria a morte como afirmou, ainda que pudesse se salvar sem consequências ao seu juramento ordenado. Aquelas humanas eram, de fato, mulheres interessantes. Por algum tempo, achou que a Ordem que Tamar lhe descreveu era algum tipo de utopia, mas durante a passagem pela Floresta de Pedra, quando se reuniram com o grupo ordenado liderado por Melina, observou aquela gente com apuro. Havia algo neles, em seu comportamento e semblantes, que irradiava alguma coisa que raramente sentiu ao longo da sua larga existência. Existia paz naquelas pessoas, ainda que estivessem em meio à uma guerra.
Pensando sobre isso, fazia todo o sentido que fossem crias dos ideais do caltino Nikal. Ele era o tipo de pessoa que conseguia transmitir serenidade em qualquer situação. Certamente, sua falta foi sentida em Flyn, principalmente porque ele poderia ter retornado à cidade após a morte, mas conhecendo-o, Voltruf imaginou que Nikal preferiu se manter junto aos demais espíritos nos Portões, os quais ela só visitou no momento da morte e, desde então, usou sua magia para manter-se na cidade ao lado de Bórian e Joran.
Naquele momento, ela sorriu com a ironia do destino e quase sem forças, respondeu para Marie:
— Então, que seja eterno até que nossos objetivos sejam alcançados. — Concluiu o pacto.
Somente após o pacto selado é que Marie usou a canção para destruir a Sombra Vermelha. Abrigou Voltruf em seu corpo para permitir a recuperação de ambas. Em verdade, a união delas acelerou o processo de cura e a junção de suas respectivas magias fazia Marie vibrar com tanto poder.
— Você morreu e uniu-se ao seu spectu, então como isso é possível? — O reflexo indagou.
— Há algo de certo neste mundo? — Retrucou o tigre Voltruf. — Eu sou Haniel e Haniel sou eu. Somos a mesma pessoa e, aparentemente, a magia do nosso mundo não vê isso como impedimento para que outro pacto se firme.
Não era certeza que aquela união poderia acontecer de fato, mas diante da morte certa, tinham de tentar.
— Isso incomoda você, não é? — O tigre mostrou os dentes afiados para ele. — Encontrar algo que não entende, que não pode explicar…
As unhas dela arranharam o chão um par de vezes, enquanto dava a volta em Marie. A cauda longa com três pontas, assim como as das serpentes marinhas, subia e descia suavemente, como se bailasse no ar.
Uma careta deformou o rosto dele, antes de suavizar e ele voltar a aparentar ser frio o cético. Érion mostrou um sorriso que vagou entre cruel e irritado.
— Admito que as leis que regem a existência do nosso mundo são mais profundas do que imaginei. Nos últimos milênios, percebi isso várias vezes… Quando era apenas um castane servindo no Templo Castir e consegui caminhar entre mundos, contrariando o que os mestres diziam; quando abriguei uma Sombra em minha alma e a dominei sem permitir que me consumisse totalmente; quando incuti uma Sombra em um spectu… Estou surpreso com vocês, é verdade, mas isso só prova que o que almejo é possível!
Um momento longo e silencioso se fez presente entre eles, até que o reflexo decidiu que não podia mais brincar com elas. O tempo era precioso e verdadeiro Érion necessitava que a princesa de Midiane morresse e, assim, a espada castir não poderia ser conjurada para Domodo.
Ele tentou atacar Marie, usando magia, todavia Voltruf o impediu lançando-se entre eles. Ela recebeu o impacto, mas ao contrário da mestra que havia sido atirada contra a parece mais cedo, ela foi empurrada por apenas um metro.
Elas não precisavam matá-lo, apenas deixá-lo longe do amuleto e assim permitir que Marie pudesse finalizar o ritual que iniciou.
O reflexo tentou outra vez, porém Voltruf sabia bem o que fazia, afinal era uma guerreira experiente e ainda que estivesse em uma forma alheia ao seu costume, não se sentia estranha ou desconfortável sob aquela pele. Como ela tinha afirmado, ela era Haniel e vice-versa.
Sua intervenção permitiu que Marie retornasse para a pedra, enquanto ela, Voltruf, fazia água brotar das pedras que compunham o chão. “Érion” tentou saltar a poça que se acumulada à sua volta, formando um círculo líquido, mas tudo o que conseguiu foi que a água se erguesse formando estacas de gelo. A cada direção que ele tomava, a água passava do estado líquido para o sólido. E como aquela era a magia de um spectu, tornar-se transpassável não o salvaria de um grave ferimento.
Ele ficou distraído com o circulo líquido por tempo para Voltruf o derrubar. Ela fincou os dentes no ombro dele, as patas arranhando as costas e “Érion” urrou de dor e medo ante o que estava prestes a acontecer.
— Se você fizer isso também irá morrer! — Afirmou o reflexo, fitando o rosto sombrio de Marie. — Não restará sequer seu espírito.
— Não era isso que você queria? Então, por que está tão preocupado agora? — A mestra retrucou.
Marie deslizou a mão pela superfície fria do amuleto, focalizando o reflexo.
— Ah, claro, era apenas o fim da minha existência, não da sua.
Ele tentou mover-se, mas a forma animal de Voltruf o mordeu com mais força e uma risadinha animalesca e cruel escapou dela.
— Morrer… — Marie surrurrou, deixando os pensamentos vagarem e tomarem forma no sorriso de Virnan, ela falava mais para si do que para os outros dois. — Que assim seja, eu não temo o fim. Eu fiz uma promessa e entreguei meu coração a ela muito antes disso… Independente de qualquer dor que a minha morte possa lhe causar, Virnan entenderá, porque também está disposta a se sacrificar para acabar com essa guerra. Além disso, se é mesmo possível renascer neste e em outros mundos, então tenho fé de que meu espírito irá sobreviver e um dia irei reencontrá-la.
A mestra fitou os olhos violetas do tigre Voltruf, inclinou a cabeça, ouvindo-a sussurrar um incentivo e um agradecimento em sua mente, então tornou a tocar o amuleto e recitou as últimas palavras do ritual.
Muitos metros adentro da floresta, lágrimas deslizaram pelo rosto de Emya quando avistou a luz e ouviu a explosão que iluminou a noite entre as árvores petrificadas e transformou em ruínas o templo castir.
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Eu sei! Ainda não é aquele FIM, mas eu já não tenho mais óleo de peroba para passar na minha cara de pau de tanto que me desculpo com vocês, então vou apenas dizer OBRIGADA por ainda continuarem aqui. Meu atual sonho de consumo é conseguir concluir o FINAL PARTE 2 até o fim de semana que se aproxima. Torçam por isso! Mas eu não prometo nada! rs…
Um agradecimento especial para a Naty Souza, pela gentileza de revisar o capítulo e sempre me oferecer sugestões valorosas. Valeu, Naty!
Beijos!
Mulheerrrr não precisa de óleo de peroba, mas termina que não aguento mais ver estas mulheres sofrerem tanto!
ótima historia , uma pena que já tá chegando o fim… vou sentir saudades.
Tattah,Por favor, não demora saudades dessa história.
Abraços
ANA CHRISTINA,
Oiii, mil desculpas pela demora na resposta. Autora enrolada e um pouco zoada, também. Muito obrigada pela companhia, Ana. Espero que tenha curtido o final e que possa te reencontrar em outras histórias.
Beijos!
Pelo amor de deus, eu preciso do próximo capítulo. Não saber se a Marie sobreviveu está me matando. Por favor, não demora. Essa história entrou pra minha lista de prediletas.
ZAPAAGUIAR,
Perdão por não ter atendido ao teu pedido. Acabei demorando mais que o previsto para finalizar o texto, mas espero que você tenha gostado do final e que A Ordem ainda continue sendo uma das suas histórias prediletas.
Um beijão pra tu!
Aeeeee!!!! Delícia de capítulo, uma pena que já tá chegando o fim… Como digo, vou sentir saudades dessa história.
Tattah, conte comigo sempre! Eu é que agradeço por me deixar dar pitacos!
Abraços
Pra tu só agradecimento! Beijos!
Assim… nem adianta me chamar de mala pela insistência nas ultimas semanas… k k k
Uau Virnam se mostra cada x mais fantástica, adorei o deleite dela ao matar Zéfir. Genial criação se mostrou ser o ‘caixão de ar’ foi o final merecido dele.
Zizuis tadinha de Marie ela tá bem machucadinha né… Amei a ilustração.
Yes Voltruf se uniu a Marie… perfeita solução.
Certeza eu não tenho, mas a fé é enorme q Marie sobreviva e o ‘reflexo’ desapareça e assim Érion se sinta ainda mais enfraquecido pq quero mesmo é q Virnam acabe com ele com a ajuda da Lyla.
Fantástico… espero q consigas o intento de nos apresentar o prox. cap. semana q vem.
Te chamar de mala? kkkk… Jamais!
Só carinho pra ti.
Beijão!