A Ordem: O círculo das armas

55. Spectu to Castir

*

Foi apenas o correr de um piscar de olhos, não mais que o tempo do bater de asas de uma mosca e o destino que parecia certo para Marie, mudou. Tanto ela quanto “Vermelho”, demonstraram surpresa e confusão ao encararem o coto a jorrar uma grande quantidade de sangue fétido, onde antes estava o braço dele. O mesmo braço que deveria ter ido de encontro à mestra e, certamente, lhe ceifado a vida.

A dor se fez notar logo e “Vermelho” deixou escapar um berro horripilante. Na parede, atrás dele, uma das lâminas de gelo de Voltruf estava fincada e suja de sangue. No chão, o membro decepado.

Marie deixou um suspiro rápido escapar e aproveitou o momento para investir no contra-ataque. As machadinhas tucsianas deixaram um rastro luminoso quando golpeou a Sombra, mas para seu desgosto, ele se recuperou rápido do susto e desviou facilmente.

“Vermelho” se afastou por alguns metros. De fato, ele e o companheiro eram bem diferentes das Sombras que Marie encontrou antes e isso a fez imaginar o quão desastroso seria se o exército de Érion fosse composto somente por criaturas como aquela. “Vermelho” transbordou maldade quando ergueu o coto e fez a mão crescer novamente, levando a mestra a se perguntar se era mesmo possível matá-lo.

Voltruf apareceu no seu campo de visão, saltitando e correndo pelo lugar para escapar das investidas de “Branco”, mas não conseguia se livrar dele por muito tempo. A impressão que Marie tinha, era de que a Sombra brincava com o espírito, assim como o gato faz com o rato antes de devorá-lo. Era provável que, se Voltruf ainda estivesse viva e não se encontrasse caminhando para a exaustão, a luta fosse diferente. Mesmo assim, a mestra ordenada sabia que ela estaria em desvantagem.

A maneira que Voltruf encontrou de lidar com a velocidade de “Branco”, foi aproveitando-se do cenário criado por Marie. Ela enfiou-se entre as inúmeras estacas conjuradas pela mestra a fim de limitar os movimentos dele. Dava passos miúdos e apressados, muitas vezes, pisando nos corpos no chão. “Branco” a seguia de perto, despedaçando as estacas com as garras longas. Em retaliação, Voltruf manipulava o chicote líquido, por vezes dividindo-o para atacá-lo em mais de um ponto. Noutras, conjurava lâminas de gelo e as lançava repetidamente na esperança de ferí-lo.

Conseguiu alguns acertos, mas Sombras brancas e vermelhas não morriam facilmente. Desde que se mantivessem em movimento, matá-los era uma tarefa quase impossível.

Durante a larga vida como castir, nunca se deparou com tais inimigos. Era um fato que ela apreciava imensamente. Muitos castirs pereceram nas mãos daqueles monstros e quase nada havia restado de seus corpos para os companheiros realizarem os ritos funerários. Havia histórias de que um Círculo Castir inteiro foi massacrado por uma Sombra Branca e Flyn amargou quase 20 anos sem a proteção deles.

Durante um breve momento de hesitação de Branco, Voltruf avistou quando “Vermelho” se aproximou de Marie e direcionou uma das lâminas congeladas para ele. Foi um lançamento preciso e o fato da Sombra não estar lhe prestando atenção ajudou bastante. Contudo, essa investida a deixou exposta para “Branco”. Ele quase lhe arrancou a cabeça, mas ela jogou-se de lado e rolou até a parede próxima. Ergueu-se, tentando articular algum plano de ação, mas então se deu conta de que “Branco” havia chegado perto o suficiente para conseguir matá-la.

O chicote enrolou nas pernas dele, mas já estava tão desgastada que ele sofreu apenas um arranhão em vez da decepação que planeava. “Branco” lhe envolveu o pescoço com uma mão tão fria quanto o gelo que ela conjurava. Ele a pressionou contra a parede, usando a mão livre para traçar caminhos de sangue no corpo dela. Voltruf quis gritar, mas nenhum som lhe escapava e percebeu que “Branco” começava a se alimentar dela, sugando o resto de suas forças através do contato.

Usar magia só facilitaria as coisas para ele. Então, ela tentou esmurrá-lo, mas foi como socar uma parede; a dor irradiou pelo seu braço muito mais intensa do que o normal. O chutou, mas outra vez, sentiu como se o golpe não fizesse nenhum efeito nele. As unhas de branco eram tão afiadas que a couraça que ela usava não lhe ofereceu resistência e partiu-se com fragilidade de uma folha de papel. As pontas resvalavam no corpo dela derramando sangue, o qual a Sombra absorvia através do contato.

Ela encarou seu algoz, não com o sentimento de derrota esperado por ele, mas com o orgulho do qual sempre foi dona. Assim que o viu, soube que sua vida espiritual também se extinguiria. Não temia o fim definitivo, todavia esperava ser capaz de fazer mais do que causar arranhões nele e, assim, proporcionar uma chance de vitória a Marie e Virnan.

As garras de branco deslizaram pela carne dela. Queimavam como ferro em brasa, contudo ele não foi muito fundo. Divertia-se com o seu sofrimento.

O espírito afastou o olhar dele e fitou Marie, à espera do momento final. Queria partir olhando para algo bonito e a mestra era uma mulher de aparência muito agradável, mas a beleza que buscava quando pousou os olhos nela não era a física. Aquela mulher possuía dons mágicos incríveis e assustadores, mas o seu maior poder era a indulgência. Não foi difícil compreender o fascínio de Virnan por ela, tampouco lhe foi árduo compartilhar um pouco desse encanto e respeito.

Diante da história confusa do seu relacionamento com Virnan e posicionamento arisco que adotou inicialmente contra ela e companheiras, Marie nunca a fitou ou tratou com desagrado. Pelo contrário, ofereceu palavras de respeito e consolo, chegando mesmo a demonstrar uma profunda compreensão de seus sentimentos. Sentia muito não poder ajudá-la a ir até o final e também não poder dizer um último “adeus” a Virnan.

O instinto lhe dizia que a mestra ficaria bem. Não estava em seu destino perecer na “Cidade dos Eleitos”.

Aparentemente, “Branco” não gostou que sua presa não lhe desse atenção, então penetrou um pouco mais as garras. Voltruf engasgou-se com o próprio sangue e foi forçada a encará-lo novamente. Ele retirou as garras para lhe conceder o golpe final e algo inesperado aconteceu.

Uma flecha em chamas foi lançada da entrada do salão e o atingiu nas costas. “Branco” rugiu, contorcendo-se até retirar a seta, mas não largou Voltruf. As chamas que consumiam a haste de madeira queimaram a mão dele, que a deixou cair. A Sombra voltou-se para a direção de onde o ataque veio e nova flecha penetrou sua carne. Novamente, ele rugiu de fúria. Os olhos negros se apertaram fixos em Emya, que havia largado o arco ao se dar conta de que já não havia mais flechas na aljava.

A princesa ateou fogo na lâmina da espada ao encostá-la na espada de um dos soldados que a acompanhava. Eram as chamas da magia de Melina. De repente, “Branco” perdeu o interesse na presa que segurava e largou Voltruf. O espírito castir escorregou para o chão, assistindo-o se aproximar da princesa e companhia com tanta rapidez que os três mal perceberam quando foram jogados de volta para o corredor.

Emya expulsou o ar dos pulmões enquanto o zunido na cabeça se tornava mais intenso. Tinha escorregado por três degraus da escadaria que os levou até ali e amaldiçoou o momento em que aquelas “coisas” foram criadas. Arrastou-se até a espada, à medida que o mostro se aproximava do soldado mais próximo. O rapaz não conseguiu reagir ao ser suspenso no ar e ter o pescoço quebrado, como se não passasse de um graveto.

Aterrorizada, Emya engatinhou de volta ao corredor e piscou algumas vezes antes de aproveitar a distração da Sombra para enfiar a espada na perna dele. Outra vez, um rugido escapou de “Branco”. Ele baixou os olhos para o “inseto” que ousava espetá-lo, Emya não se acovardou e girou a lâmina com o intuito de agravar a ferida.

A Sombra soltou a vítima, divertindo-se com o som oco do corpo ao tocar o chão. O outro soldado que acompanhava a princesa seguiu o exemplo desta, atingindo o inimigo pelo flanco direito. Penetrou a espada curta até a metade, um pouco abaixo das costelas da Sombra.

Em retaliação, Emya recebeu um golpe na face, que poderia tê-la jogado escadas abaixo, se não tivesse sido apenas um reflexo. Ela firmou o pé no chão e tentou forçar a lâmina para cima, de modo a cortá-lo como uma faca. “Branco” atirou o soldado contra a parede e voltou-se para Emya, mas antes de conseguir machucá-la seu peito foi aberto por uma estaca de gelo grossa e afiada.

Emya afastou-se e ele tombou para a frente, revelando Voltruf. O espírito subiu em cima dele e o golpeou selvagemente por diversas vezes. Quando se afastou, caiu sentada contra a parede. Fitou Emya, como se não a enxergasse, e esta, por sua vez, pegou a espada do soldado morto e golpeou “Branco” até que a cabeça fosse separada do corpo, por fim, fincou a lâmina nas costas dele. As chamas arderam devagar, consumindo a carne e o cheiro fez o estômago da princesa se revirar até que ela não conseguisse evitar despejar pouco conteúdo dele ao pé da parede próxima.

Ela afastou alguns fios de cabelo do rosto com a mão direita, onde um círculo luminoso brilhava, lhe permitindo enxergar Voltruf. Quando saíram da Floresta de Pedra, tanto ela como Verne pediram a Melina a gentileza de fazê-lo para que pudessem se comunicar com os espíritos rapidamente e sanar dúvidas ou planejar investidas.

Voltruf lançou um sorriso escarninho para a marca, grata pela ideia daqueles dois. Não fosse isso, talvez a princesa não tivesse percebido que era contra ela que a Sombra lutava ou, talvez, não tivesse caprichado na mira e a alvejado com uma das setas que lançou.

O som forte de pedras se partindo chamou a atenção das duas mulheres e ambas afastaram o olhar para o interior do salão. Dentro dele, Marie continuava tentando empalar “Vermelho”, mas desta vez lutava próxima a ele, usando as machadinhas para distrair o oponente enquanto conjurava as estacas. Quando o metal da tucsiana tocava as garras afiadas da Sombra, faíscas geradas pelas magias opostas eram liberadas.

A rapidez da criatura causava desconforto à mestra, contudo ela conseguia acompanhar seus movimentos e embora não pudesse ter certeza absoluta, acreditava que o motivo era o Círculo do qual fazia parte. Não importava que Melina estivesse no andar abaixo ou que Virnan e as outras se encontrassem a léguas de distância, sentia como se todas estivessem consigo naquele momento.

Essa percepção a tornava mais forte, rápida e observadora.

Entretanto, o cansaço se fazia presente. Ela não estava habituada a lutar, ainda mais por tanto tempo. Aos poucos, as reações se tornavam mais lentas e “Vermelho” chegava cada vez mais perto, forçando-a a recuar. Desta forma, não percebeu que ele a forçava a seguir o caminho que escolhera, levando-a a tropeçar em um dos corpos espalhados pelo lugar.

Marie caiu e, antes de tocar o chão completamente, Branco a cortou com as garras. A mestra largou as machadinhas e pousou as mãos nos ferimentos profundos. Estremeceu de dor e terror.

“Vermelho” afastou-se um pouco, circundando-a com um sorriso sádico. Ele arrancou uma das estacas próximas e a desceu em um golpe rígido e violento em direção ao peito dela. Marie cerrou os olhos, antevendo a morte.

A estaca encontrou a resistência de um corpo e Marie sentiu algo morno escorrer sobre seu peito. Abriu os olhos para encontrar as íris violetas de Voltruf que, de alguma maneira, conseguiu se enfiar entre os dois. Sangue escorria farto do buraco no peito dela, de onde a estaca se projetava bem próximo ao coração. Por sobre o ombro dela, Marie avistou a Sombra, tão surpresa quanto ela pela intervenção do espírito.

Furioso, “Vermelho” puxou a estaca e a ergueu novamente, arrancando um gemido doloroso de Voltruf antes dela escorregar a mão trêmula até o pé dele.

— Aquina Rijund. — Sussurrou ela.

Gelo começou a se formar no local que ela tocava e subiu pela perna da Sombra até espalhar-se por todo o corpo, transformando-o em uma estátua de gelo. Satisfeita, Voltruf deixou-se cair sobre Marie, completamente sem forças.

A mestra respirou com dificuldade, a dor se espalhando por cada recanto do corpo. Sentou uma mão ensanguentada em Voltruf e se deu conta do quanto ela era leve. De fato, mal parecia estar ali.

Voltruf rolou para o lado e as duas se fitaram, como se não houvesse mais nada a fazer a partir daquele momento. Em verdade, sua missão ainda estava longe de acabar e o retorno de Emya para o salão foi um lembrete disso. A princesa agachou-se ao lado da irmã, juntando as mãos sobre o ventre dela, onde uma grande quantidade de sangue vertia sem conseguir esconder o quão profunda a ferida era.

Marie gesticulou algo e Voltruf não precisou de esforço para entender sua tentativa de acalmar a irmã.

— Ela está bem — garantiu.

Era uma mentira, todas sabiam.

— Você precisa… — Emya fungou, fitando o rosto sofrido do espírito e depois retornando para a irmã. — Você precisa da nossa tia ou qualquer ordenado…

A mestra tornou a gesticular e Voltruf tossiu, enquanto fingia traduzir:

— Ela disse que pode dar um jeito nisso. Só precisa… — novo ataque de tosse a fez pausar a fala — de um momento para tranquilizar-se e começar a agir.

Fitou o rosto grato de Marie e continuou:

— Atrás daquela porta está nosso objetivo. Já é noite e não temos tempo a perder. Vá até lá e destrua aquela coisa maldita, enquanto nos restabelecemos.

Emya tentou retrucar, mas a mão de Marie escorregou até uma das machadinhas e lhe entregou a arma. Ela fez um gesto afirmativo e a irmã engoliu o nó na garganta. Afinal, ainda não estava acabado. Ela se afastou, seguida pelo soldado que a acompanhava.

A porta rangeu quando ela a abriu e Marie esperou que desaparecesse do seu campo de visão para poder falar:

— Obrigada. Ela não precisava ver a minha morte. — Cuspiu uma grande quantidade de sangue.

Voltruf gemeu alto, sentindo as forças se esvaírem cada vez mais rápido.

— Você não tem permissão para morrer. Isso vai devastar Virnan.

Marie estremeceu, ciente de que ela estava certa. Mesmo assim, afirmou:

— Ela já perdeu tantos entes queridos, viveu tantas tragédias… Ela vai superar mais esta.

Sangue escorreu pelos lábios de Voltruf quando ela riu, irônica.

— É a mentira na qual está tentando acreditar? Ela vai desmoronar. Um laço como o de vocês não é frágil a esse ponto. Ela vai sentir no corpo, na alma…

A mestra soluçou.

— É tudo o que posso fazer agora. Nenhuma de nós resolveu entrar nessa luta sem ter consciência de que nossas vidas também estavam em jogo. A morte não é o fim, afinal. Não para nós.

A mão de Voltruf alcançou a dela.

— Não, mas significa anos, talvez alguns séculos longe dela. Sem falar na dor que irá causar ao resto do seu Círculo. — Fez uma tentativa de sorrir, mas isso começou a lhe parecer tão custoso quanto continuar falando. — Você ainda tem um trabalho a fazer, então tome o resto da minha existência para si. Cure-se e volte para ela.

Marie quis se afastar, horrorizada com a proposta.

Eu estou quase em “pedaços”, Marie. — Tossiu novamente e sangue jorrou para fora do ferimento no peito. — Me pergunto como será morrer pela segunda vez.

— Não diga bobagem. Você vai para Inamia. — Marie retrucou, apertando a mão dela.

Mais sangue escorreu do ferimento de Voltruf.

Você é gentil. — Respondeu ela. — Mas para ser sincera, não quero ir para lá. De uma maneira estranha, nunca me senti morta de verdade e sofro por não poder mais viver neste mundo,  apesar dele não ser perfeito. E o que é perfeito, afinal? Inamia é calmo demais, Enagia é triste e sombrio demais, mas Domodo tem vida. Tudo vibra aqui, tudo tem cor. Se pudesse escolher, ficaria aqui.

Os olhos dela piscaram, luminosos.

— Oh, eu sinto muito, Haniel… Achei que tínhamos a eternidade juntos.

— Você é dois…

— Sou apenas uma. Haniel sou eu e eu sou Haniel. Não há como nos separar.

— Isso é tão confuso.

— Não é tão diferente do que você sente com Virnan e as outras. Vocês se percebem, não é mesmo? O medo, a alegria, a dor… e até alguns traços da personalidade. É assim quando se tem um spectu. Você se sente tão… completa.

Ela cuspiu mais sangue.

— Você vai ficar bem, Marie. Só use a canção que Bórian lhe deu. Faça isso agora e depois entre naquela sala e destrua a abominação que Érion criou às custas de tantas vidas. — Fez um carinho breve na mão dela. — Me desculpe por te pedir isso, mas poderia dizer a ela que a amo? Eu nunca tive a oportunidade de usar essas palavras.

Marie fungou, os olhos marejados. Ao seu lado, “Vermelho” deu indicativos de que ainda estava vivo. O gelo que o envolvia começou a se partir e Voltruf apressou a mestra:

— Desgraçado persistente. Use a canção, Marie. Rápido!

Marie contorceu-se de dor, medo e tristeza. Quando Bórian lhe explicou o que ser uma amitsha realmente significava, foi como receber uma nova sentença de morte. O que, de certo modo, era irônico visto que ela era, afinal de contas, uma Devoradora de Almas.

O gelo de um dos braços de “Vermelho” se partiu completamente e ele começou a usar as garras para se libertar.

Marie — Voltruf a chamou.

A mestra viu o gelo do rosto de “Vermelho” se partir e observou o sorriso cruel dele, depois se voltou para o espírito e tomou sua decisão.

Falou.

Um círculo se espalhou pelo salão, abarcando os três, o que fez “Vermelho” se apressar para se libertar de vez. Marie fitou os olhos violetas de Voltruf e sorriu com dentes vermelhos de sangue, havia naquele gesto um claro pedido de desculpas.

Ela voltou a falar, fazendo o círculo brilhar com tanta intensidade que, por um momento, tudo naquele lugar se tornou luz.

***

Tamar se encolheu atrás de uma árvore, cuja copa estava em chamas. Ergueu os olhos para o alto em tempo de assistir o dragão Zefir dar uma pirueta e mergulhar em direção a eles cuspindo uma grande quantidade de fogo. A ordenada preparou-se para conjurar uma proteção para si e os homens em volta, mas interrompeu-se quando ouviu o piado alto de um pássaro que não tardou a surgir.

As asas vermelhas com penas afiadas bateram com força diante das árvores. Lyla voou em um círculo perfeito sem temer as chamas, que foram barradas pela magia de Virnan, montada em suas costas.

— Deuses! Isso aqui parece um inferno! — Resmungou Brenum.

Ele mancou até um dos soldados falecidos no ataque inicial do dragão. Tocou-lhe o peito, apenas para ter certeza de que não respirava, então tornou a olhar para o céu. Virnan e Lyla conseguiram capturar a completa atenção de Zefir e, agora, ele as perseguia pelo céu, sendo levado a subir cada vez mais alto para alcançá-las.

— Vamos virar assado antes de conseguirmos matar alguns desses desgraçados. — O comandante axeano finalizou, voltando a ficar de pé.

Os homens se dividiam entre tentar apagar o fogo e socorrer os feridos, correndo em todas as direções.

— Eu cuido do fogo. — Tamar disse, passando uma mão suja de fuligem na testa, sem tomar ciência da presença de Fantin.

A esposa não foi até ela através laço, embora a tatuagem do círculo lhe desse uma noção de sua proximidade.

— Eu resolvo isso. — Disse Fantin, chamando a atenção dela e Brenum.

Ela retirou as lanças curtas do suporte nas costas e as cruzou em um movimento ligeiro, como se estivesse tentando abarcar tudo à sua volta. O vento soprou forte entre as árvores e as chamas foram varridas do entorno. Uma dezena de pares de olhos pousaram sobre a mestra; ainda que aliviados, não ocultavam o medo e a admiração.

A própria Fantin assustava-se quando realizava proezas como essa. Os dias atribulados em Flyn não deixaram tempo para que pudessem ter um treinamento adequado com as tucsianas, contudo, quanto mais as usavam, mais fácil ficava dominar a magia espiritual que possuíam.

Como Virnan lhes contou, as tucsianas equilibravam seus poderes e, muitas vezes, indicavam o caminho certo a tomar, assim como acabara de acontecer. Fantin nunca realizou uma conjuração como aquela, mas assim que pensou em como seria bom se pudesse “varrer o fogo” as tucsianas emitiram um brilho suave e a certeza de que o que imaginou era possível se assentou em sua mente.

Ela fitou as lanças.

Um sorrisinho amargurado lhe fez um vinco no canto da boca e murmurou uma oração de gratidão; não pelo o que acabara de realizar, mas pelo fato de não ter tido acesso àquele poder vinte anos antes. Se isso tivesse ocorrido, era bem provável que houvesse devastado um mundo; o mesmo mundo que a escravizou e matou família e amigos em uma guerra cujo único propósito era alimentar os egos de seus líderes.

Alguns soldados murmuraram agradecimentos ao passarem por ela e limitou-se a responder com suaves inclinares de cabeça, enquanto ia até Tamar. Ao longe, sons de luta e gritos se misturavam entre as árvores centenárias, recordando que aquele era apenas o começo da batalha nas terras florinae. A fumaça intensa prejudicava a visão e respiração e as duas mestras tossiram forte algumas vezes antes de falar.

Fantin passou a mão no nariz, deixando uma marca escura de fuligem e Tamar permitiu que ela juntasse seu rosto entre as mãos. Fantin a inspecionou com apuro e suspirou ao descobrir que não havia motivos para se preocupar, então permitiu que ela se afastasse.

— Eles se dividiram entre a barreira e nós. Já alcançaram as primeiras fileiras do exército e pelo o que vi, lá de cima — apontou para o céu, afinal foi até ali em companhia de Virnan e Lyla — as coisas estão bem feias e mortais. O fogo de Joran está oferecendo um pouco de resistência e alívio entre os homens, mas não por muito tempo.

— Infelizmente, não consegui congelar muitas armas antes de sermos atacados. — Lamentou Tamar.

Brenum se aproximou delas, olhando desconfiado para a mulher de cabelos dourados. Ainda não tivera contato com Fantin e a demonstração de seu poder, o fez ficar com o pé atrás com ela tanto quanto o fazia em relação a Tamar e Virnan.

— Estamos lutando em duas frentes, agora. — Fantin continuou. — Quando fomos informados sobre a investida deles, Virnan ordenou que os floras avançassem e saíssem das proteções. Isso fez com que a maior parte dos inimigos se detivesse próximo as barreiras. Ainda assim, os que se deslocaram para cá são numerosos.

A mestra interrompeu-se, sentindo um arrepio a lhe percorrer a espinha quando ouviu o rugido do dragão no céu. Mirou o firmamento a tempo de avistar uma grande quantidade de fogo atingir Virnan e Lyla.

— Não há muito o que fazer agora, exceto resistir. — Declarou.

O som da luta se aproximava do local em que estavam, rapidamente.

— Estão vindo até nós. — Brenum fez uma careta.

— É claro que estão. — Fantin respondeu. — E muitos outros virão, afinal, estamos para iniciar um novo Círculo.

— A partir de agora, me tornarei um dos principais alvos deles. — Tamar exibiu um sorriso quase irônico.

Brenum tossiu forte, apertando o cabo da espada.

— Não sei se entendi bem…

— Um círculo começa e termina no mesmo lugar. — Fantin fitou os olhos grandes e castanhos da esposa com um nó a se formar na garganta.

Deixou o comandante sem as respostas solicitadas e disse:

— Então, amor, vamos começar a chutar os traseiros de alguns demônios!

Com um sorriso discreto, Tamar retirou o chicote que lhe envolvia a cintura e Brenum admirou a arma e a forma como a mestra a manejava, fazendo com que um círculo luminoso surgisse sobre sua cabeça, enquanto recitava palavras estranhas que faziam o círculo brilhar cada vez mais forte.

O círculo desceu e a envolveu completamente, desapareceu dentro dela. Tamar estalou o chicote e o círculo tornou a surgir e se espalhou até desaparecer de vista. De repente, um dos buracos que ela ordenou aos homens que os homens do comandante cavassem, começou a jorrar água.

Primeiro, borbulhando suavemente, como se fosse um poço a minar água. Depois a força da água cresceu e ela começou a jorrar forte e alto. Escorria pelo chão formando um pequeno riacho e movia-se em direção a sulcos discretos no chão.

Tamar estalou o chicote com um sorrisinho no canto da boca.

— Diga aos seus homens para molharem as lâminas antes de entrarem em combate…

Um dos soldados próximos enfiou a espada na água que jorrava ali perto e a lâmina congelou imediatamente.

— Se perceberem que não são capazes de sobreviver ao combate, corram para além da linha da água.

Ela apontou para o chão e depois espalmou uma das mãos no vazio. Gotículas de água se espalhavam pelo ar quando a mestra tocou um ponto específico além do limite da água que corria aos seus pés, uma barreira multicolorida brilhou.

— Eles estarão protegidos depois desses limites.

Brenum endireitou-se, apertando a espada com mais força. Agora entendia o comentário dela, horas antes, quando afirmou que ao cavar aqueles buracos, seus homens teriam uma chance de sobreviver.

— Acho que isso deve consumir muito do seu poder. Você vai aguentar? — Indagou ele.

— É cansativo, de fato. Mas eu não estou sozinha.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que esse é apenas o início de um Círculo. — Fantin respondeu com um sorriso malicioso e Tamar estalou o chicote. — A partir de agora, todas as Sombras e aquele falso Cavaleiro estão presos dentro deste círculo.

***

A luta no céu era furiosa. Desde que atraíram Zefir para as alturas, a desigualdade de poder ficou evidente e a cada nova investida do dragão, a certeza de Virnan se tornava mais forte: terem escapado dele, naquela manhã, havia sido um verdadeiro golpe de sorte.

A noite havia chegado e o rastro do combate podia ser visualizado por todos, através do fogo e luminescência emitida pelas conjurações.

— Esse desgraçado é muito rápido. — Virnan sacudiu a adaga repetidas vezes e ondas mágicas cortaram o ar até alcançarem o dragão Zefir. Contudo, apenas um dos golpes o acertou.

Lyla bateu as asas com forças invertendo o vôo até que ambas ficaram de cabeça para baixo e acelerou até formarem um círculo perfeito no ar, retornando à posição inicial, onde Zefir já se encontrava. O spectu inclinou-se para o lado e esticou a asa direita. Passaram por baixo do dragão e as penas afiadas deixaram um talho de meio metro na barriga dele. Durante a manobra, Virnan aproveitou para golpeá-lo novamente, mas a posição só lhe permitiu atingir as pernas traseiras de Zefir, que reagiu usando a calda longa e espinhosa.

Um dos espinhos cravou-se no peito do spectu e ela tentou se afastar, mas Zefir já havia se voltado para as duas e uma grande quantidade de fogo as atingiu. Apesar da proteção conjurada, às pressas, as duas sofreram queimaduras.

— Recue! — Virnan ordenou para o spectu, trincando os dentes para a dor que o laço lhe transmitia. — Encontre um lugar seguro para se abrigar, eu vou tentar cuidar disso sozinha, enquanto você se recupera.

“O que você acha que pode fazer sozinha que não estamos conseguindo fazer juntas?! Não seja idiota!”

— Você não está muito bem. Suas feridas… — interrompeu-se tentando prender Zefir em um círculo de ar, mas ele escapou antes que o círculo fechasse. — Sinto a sua dor e o seu esforço para se manter voando.

“Você sabe bem que a sua teimosia é culpada por isso.”

— Não me faça obrigá-la!

Ela planeou saltar das costas de Lyla e enfrentar o dragão diretamente, mas antes que iniciasse o movimento, Zefir surgiu um pouco acima delas e, novamente, cuspiu fogo. Foi tão veloz que a única reação possível partiu de Lyla. Ela abriu as asas longas, freando o avanço e protegeu Virnan ao receber as chamas de peito aberto.

As duas despencaram do céu, rodopiando sem controle.

Desesperada, Virnan tentou diminuir o impacto da queda delas, aumentando a resistência do ar à sua volta, mas a magia de Zefir continuava forçando as duas em direção ao chão, mesmo não havendo mais rastros de fogo onde ele planava com um sorriso maquiavélico na bocarra cheia de dentes pontiagudos.

— Desgraçado! — Virnan rosnou, dividida entre tentar se segurar em Lyla e em golpear o ar para cortar a pressão da magia de Zefir.

O chão se aproximava rapidamente, anunciando uma morte dolorosa e Lyla girou no ar e a envolveu com as asas um pouco antes de tocarem o solo. Virnan sentiu a dor que o impacto causou ao spectu e tremeu de medo quando a voz dela desapareceu completamente da sua mente.

Afastou-se, ligeiramente desorientada. Observou as marcas escuras que o fogo de Zefir deixou nas penas vermelhas e carne do spectu. Sangue escuro juntava-se ao vermelho das penas, três cortes profundos rasgaram as asas dela.

— Lyla! — Virnan a chamou, sacudindo-a de leve.

O spectu gemeu baixinho, a forma animal aos poucos foi dando lugar a humana. Virnan suspirou de alívio, olhando em volta. Haviam caído bem no meio do combate entre sombras e florinae e não demorou para que meia dúzia de manirs assumissem posição defensiva circundando-as.

A castir cambaleou para o lado, fitando o céu escuro. Apesar do som da luta sangrenta que se desenrolava à sua volta, ainda conseguia distinguir o bater de asas de Zefir. Como se estivesse provocando-a, ele cuspiu fogo e urrou um par de vezes, antes de mergulhar em direção a elas.

Virnan deu dois passos cambaleantes e fez a adaga crescer até se tornar uma espada curta. Conjurou um círculo, que desenhou marcas e palavras antigas no chão antes de erguer-se acima de suas cabeças e desaparecer. Zefir continuou indo até elas velozmente.

Enquanto isso, Virnan atirou a tucsiana no vazio, conjurando um laço luminoso que a conectava a ela, formando uma espécie de chicote. Zefir chegou a menos de dez metros delas, abriu a boca para novo ataque de chamas, mas foi surpreendido por uma barreira invisível. O impacto lhe arrancou alguns dentes e sangue, deixando-o ligeiramente desorientado.

Virnan fez uma careta de raiva e atirou a tucsiana. A arma atravessou a barreira invisível e penetrou a carne do demônio alado. Um urro gutural preencheu os ouvidos de todos os combatentes em volta, chegando mesmo a parar a luta por um instante. A castir alçou degraus invisíveis até alcançar Zefir; puxou a tucsiana de para si, murmurando:

— Protector Repri.

Correntes também invisíveis se enroscaram no corpo do dragão e apertaram-se causando cortes profundos. Ainda assim, Zefir encarou Virnan com desafio.

— Não pode me matar, Castir. — Zombou ele.

A respiração dela era pesada, afinal não saiu incólume da queda.

— Então, assista. — Respondeu.

Ergueu a tucsiana, mas antes do golpe final, uma imagem ondulou à frente dela e viu-se encarando a figura trêmula de Érion. Seu breve instante de hesitação custou a vitória e, por pouco, não lhe tirou a vida. Zefir usou a calda espinhosa para atacá-la. Teria enterrado os espinhos em seu coração, se Lyla, já desperta, não tivesse atirado uma de suas penas afiadas e desviado o golpe que, ainda assim, perfurou o abdômen de Virnan.

A dor fez com que ela perdesse a concentração. O círculo, as correntes de ar e a resistência que conjurou se desfizeram, libertando Zefir. Ferido, o dragão tratou de fugir enquanto Virnan despencou para o chão.

A imagem de Érion desceu até ela, passou os olhos pelo campo em volta e sorriu com malícia.

— Um círculo… — disse ele. — Boa tentativa, irmãs, mas eu não sou o mesmo de 3 mil anos atrás. Não podem me encerrar em um novo círculo. Além disso, em algumas horas a Lua Vermelha surgirá e então nada será capaz de me deter. Aproveitem o pouco tempo de vida que ainda têm. — Tornou a fitar Virnan diretamente e riu baixinho. Falou antes de desaparecer completamente: — Achei que fossem “melhores” juntas, mas depois do que acabei de ver, não há dúvidas de que serei eu a roubar o seu ar.

Os aurivas em volta se aproximaram delas para lhes oferecer socorro, mas Virnan fez o círculo ressurgir e eles foram barrados. Os guerreiros fitaram uns aos outros, confusos, antes de retornarem para a linha de defesa e o combate contra as Sombras.

— Então, você finalmente entendeu. — Disse Lyla, as mãos cerradas pela dor que a consumia, dor que Virnan percebia através do laço. Dor muito semelhante a sua própria.

— Nunca se tratou de poder, apenas do desejo de proteger você assim como jurei fazer no dia em que adentrei no Palácio do Sul pela primeira vez. Apesar de tantos outros juramentos que fiz depois, esse sempre foi o mais importante, principalmente depois que descobri nosso laço de sangue.

— Você sempre foi tão rígida com isso…

— Eu te amo, Lyla. Quero que você possa ir além daqueles Portões, mas compreendo seu ponto de vista e concordo com ele. Não somos capazes de derrotar aquela abominação com uma união pela metade.

Então, devemos nos tornar uma só pessoa. — Ela não conseguiu ocultar o sorriso e Virnan sentiu a alegria que a tomou. — Cruzarei os Portões com você.

— Eu tenho medo.

— Não foi você mesma quem disse que ter medo é bom?

— Creio que não estava sã quando disse algo tão tolo.

Lyla se forçou a engatinhar até ela, tomou-lhe a mão.

— Então, divida seu medo comigo… — A fitou por um longo momento e mesmo que não houvesse o laço, os sentimentos de ambas estavam em harmonia. — Você também quer isso, apenas é teimosa demais para dar o braço a torcer.

— Pode ser verdade, mas isso não diminui os motivos que citei antes. — Afastou a vista para a luta que se desenrolava fora da proteção que ergueu. Por fim, fez uma careta e balançou a cabeça. — Com uma condição.

— Diga.

— Não parta meu coração novamente.

— Não pretendo fazê-lo. — Garantiu.

Olhou-a com espectativa e recebeu um gesto positivo em meio a um sorriso quase tímido e ansioso de Virnan.

Spectu to castir porum empt.

— Spectu porunum. — Virnan respondeu.

Lyla sorriu devagar, satisfeita com o laço luminoso que envolveu o braço de ambas.

— Aqui eu me uno a você, Virnantya L’Castir. Minha Senhora dos Ventos. Meu príncipe em vermelho. Aqui somos duas e uma para sempre.


Atrasada, muiiiiiito atrasada, amores!

Mas este foi um capítulo bem comprido e espero que a espera tenha valido à pena e vocês tenham gostado!

Beijos!



Notas:



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6 Respostas para 55. Spectu to Castir

    • LARA,
      depois de séculos, vem a resposta! Mas esse “aaaaah” me deixou muuuuito feliz!
      Beijão!

  1. Olha, achei que a Marie não ia usar a tal canção nunca! Rrrrsss… Já estava aperreada!
    Felizona com esse capítulo, moça! Parabéns e obrigada.

  2. SENSACIONAL…

    Estou completamente extasiada… dormir vai ser impossível esta noite, ler e reler este cap. incrível.
    Sim… demorou pacas… foi uma espera torturante…
    QUER SABER???
    TO NEM AÍ, VALEU CADA MINUTO.
    De tirar o folego.
    Parabéns Tattah

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