A Ordem: O círculo das armas

54. Branco e Vermelho

*

A noite se aproximava quando adentraram na Cidade dos Eleitos. Os últimos raios de sol banhavam as construções, pintando tons alaranjados nas pedras milenares.

O lugar era diferente do que Marie imaginou, quando ainda era uma eleita. As descrições de Melina, embora detalhadas, não alcançavam a sua verdadeira beleza e imponência. Em verdade, era muito semelhante a Flyn, contudo parecia menos amistosa, graças a ação do tempo e a ausência do grande número de árvores que costumavam integrar-se e muitas vezes forneciam sustentação para as construções da capital florinae.

Não houve resistência à entrada deles na cidadela. Com efeito, o fato de não haver ninguém guardando as muralhas, trouxe muito incômodo a todos. Por isso, tomaram algum tempo de observação e investigação antes de arriscarem-se a entrar no covil do inimigo.

— Mantenham-se atentos. — Verne alertou.

Ele dividiu os homens, colocando-os em grupos com um ou mais ordenados. Melina alimentou as chamas de tochas com sua magia e as distribuiu entre eles. Seguindo seu exemplo, Voltruf congelou as pontas das flechas e as lâminas das espadas e punhais longos.

Após os arranjos, o espírito tomou um momento para admirar o lugar em que passou a maior parte da vida. Seu semblante parecia tão sóbrio e rígido quanto o de uma estátua. Virnan costumava falar para Marie que “um olhar pode dizer mais que palavras” e, assim, não escapou à mestra a emoção do espírito.

— Apesar do tempo, parece que não mudou muito. — Disse Bórian, com o leve indício de um sorriso debaixo dos fios negros da barba.

Assim que saíram da Floresta, ele e Voltruf voltaram a ser invisíveis para todos, exceto Melina e Marie.

— Não diga besteiras — reclamou a amiga. — Este lugar não se parece mais com a nossa casa.

Ela se empertigou ao sentir uma mão solidária pousar em seu ombro. Encarou Marie, percebendo nela uma profunda compreensão das suas emoções.

Talvez tenha sido o calor da mão dela ou ainda o sorriso suave nos lábios rosados. Fato era que, de uma maneira estranha, isso a fez se sentir ligeiramente envergonhada, enquanto se entregava a vontade de falar o que se passava na mente.

— Era muito jovem quando a minha magia despertou. Vir para cá foi assustador, mas também me fez sentir livre pela primeira vez na vida. Ser reconhecida como uma castir, proteger nosso povo e mundo… Isso me enchia de orgulho. Não importava o que acontecesse, os lugares e tragédias que visse, quando cruzava os portões deste lugar, tudo de ruim deixava de existir. Agora, é só isso que ele representa: Coisas ruins.

Falava baixo, como se estivesse realmente contando um segredo, e a mão da mestra aumentou a pressão antes de se afastar. Marie gesticulou algo rapidamente e adiantou o passo para alcançar Verne e Emya.

Coube a Melina, que assistiu o diálogo em silêncio, traduzir:

— Ela disse que você tem olhos bonitos demais para deixar que a tristeza os domine e que ainda tem muitos motivos para se orgulhar. Um lar não é feito apenas de tijolos. Nosso lar também está em todas as pessoas que amamos, nas histórias que compartilhamos com elas e no nosso legado. — A grã-mestra sorriu, benevolente, e seguiu a sobrinha.

Bórian deu um tapinha nas costas da amiga.

— Está ficando sensível depois da morte! — Ele troçou.

— Diz o sujeito que se sente “vivo” no meio de um banho de sangue.

Ele riu e a incentivou a continuar.

— Não pode me culpar. Os últimos milênios encerrados em Flyn foram entediantes. Precisávamos nos divertir um pouco.

— Sua ideia de diversão está bastante distorcida. — Ela sorriu de volta e mudou de assunto: — Como estão seus ferimentos?

— Ainda me sinto como se tivesse sido chacoalhado dentro de um barril de pedras, mas estou me recuperando bem, desde que paramos de lutar. Felizmente, as correntes mágicas são muito fortes aqui. E os seus? — Baixou o olhar para a panturrilha dela, que ainda mancava um pouco durante a caminhada.

O ferimento continuava visível e aberto, embora iniciasse a cicatrização. O mesmo ocorria com os cortes nas costas. Ela tinha se recusado a receber cuidados curativos de Melina ou Marie, afirmando que curar um espírito era algo complexo e desgastante e elas precisariam de toda a força de que dispunham para o que viria a seguir.

— Vou ficar bem — garantiu ela, que se curava lentamente, visto que usou mais magia do que Bórian.

Entraram no templo principal em silêncio e juntaram-se aos outros.

— Este lugar é impressionante. — Emya declarou.

— Imagino o que dirá ao ver Flyn. — Verne comentou, reiniciando a exploração.

A princesa o seguiu de perto e cruzou os corredores amplos com a sensação de estar cometendo algum tipo de sacrilégio apenas por olhar as paredes entalhadas que contavam uma história confusa, muitas vezes interrompida pela ação do tempo ou plantas trepadeiras. Se o momento fosse propício, teria quedado por ali, entregue ao deleite de aprender sobre o passado do mundo que habitavam.

Bórian ditava a direção correta para Melina e não demorou muito para adentrarem em um salão largo e circular, onde uma estátua fitava o vazio com feições severas. Plantas despencavam de aberturas no teto, tão fartas e entrelaçadas que mais pareciam tapeçarias. Ladeavam todo o salão e balançavam suavemente, graças a forte corrente de ar que adentrava por aberturas nas paredes, que eram altas e estreitas demais para serem denominadas como janelas.

Lorde Verne e Fenris se aproximaram da estátua, analisando o rosto masculino comprido. Uma barbicha pontuda e longa despencava em direção ao peito desnudo. A face exibia marcas saltadas, como se fossem cicatrizes, que no entanto eram simétricas; elas se repetiam nos braços e mãos. A estátua usava uma coroa feita de ramos que quase conseguia esconder as orelhas levemente pontiagudas.

— Isso são chifres? — Verne franziu o cenho.

A estátua havia sido confeccionada em tamanho real e tinha mais de dois metros. Não fosse a cor azulada e brilhante da pedra, pareceria estar viva.

— Sujeito estranho — comentou Fenris.

— Liago. Último governante de Sycaria, capital do reino Enaem, antes do “Todo” ser dividido. — Bórian esclareceu com um dar de ombros, enquanto mirava o início das escadarias ao fim do salão.

— Espera! Isso é como se parece um Enaem?!

— Na verdade, ele era mais alto. — Voltruf comentou. — Se compararmos essa estátua com a que está exposta no palácio de Sycaria, veremos que ela foi confeccionada com um pouco de comedimento. Os chifres eram maiores, assim como o cabelo. Quanto maior as tranças, mais alto na hierarquia Enaem. Ele era o rei, seu cabelo deveria estar abaixo da linha da cintura.

Ela estalou os lábios, afastando as lembranças do palácio citado. Quando em vida, um de seus papéis na Ordem Castir era de patrulhar Enagia e, assim como todos os Castir antes dela e contemporâneos, andar por um mundo devastado pela guerra nunca a agradou, ainda que houvesse muita beleza por lá. Continuou seu caminho, junto com Marie.

— É por aqui. — Apontou para as escadas. — Virnan disse que Érion ocupava o salão do Grão-mestre Castir. Há uma sala secreta, onde o grão-mestre costumava guardar ítens valiosos, impregnados pela magia Enaem. É provável que Érion tenha escondido o amuleto lá.

As plantas em forma de cortina balançaram novamente, chamando a atenção dela. Em um piscar de olhos, o chicote líquido se materializou em sua mão. Sombras saíram do vão atrás das plantas.

— Estava bom demais para ser verdade. — Fenris reclamou, erguendo a espada.

Ele olhou para o objeto, com certo desgosto. As Sombras estavam completamente libertas da forma humana, o que indicava que seria um combate muito mais difícil do que o que tiveram na Floresta de Pedra. O chicote de Voltruf tocou a lâmina da espada deixando uma fina camada de gelo sobre ela.

— O que está esperando? — Emya indagou, a espada dela também fora congelada, assim como a de todos os humanos presentes.

— Sinceramente, Alteza, você deveria sair do castelo mais vezes. — Ele sorriu, impressionado com a firmeza que ela demonstrava. Então, interceptou o golpe de uma Sombra.

As garras longas e afiadas ainda conseguiram arranhar a face de Fenris, antes que Emya decepasse a mão monstruosa. Em represália, a Sombra usou magia para atirá-los para longe. Atravessaram metade do salão antes de caírem no chão.

— Você está bem? — Verne acudiu a esposa.

Emya gemeu alto, ficando de pé.

— Vou ficar quando essas coisas estiverem todas mortas! — Ela rugiu, fazendo-o sorrir.

— Ai! — Fenris se sentou, passando a mão na cabeça.

— Vamos — Verne chamou ele. — Essas coisas são poderosas, mas não imortais!

Os olhos de Emya passearam pelo salão, assistindo o chicote de Voltruf partir uma Sombra ao meio, antes dela ser atirada contra a parede mais próxima por outra Sombra e ter o corpo perfurado por cinco garras. A Sombra sorriu para o espírito castir com os dentes animalescos manchados de sangue, antes que duas machadinhas fossem enganchadas em seu pescoço e a cabeça separada do corpo.

Voltruf trombou para a frente e Marie a sustentou ao mesmo tempo em que girava o braço esquerdo, liberando uma grande quantidade de magia com um único golpe. Em uma meia lua, hastes afiadas se ergueram do chão atingindo duas Sombras que se aproximavam.

Uma coluna de fogo isolou as duas mulheres do resto do salão. Melina gritou:

— Vão! Achem o amuleto. — Apontou para a escadaria atrás delas.

— Nós cuidamos das coisas por aqui. — Garantiu Bórian, repetindo a conjuração de Marie contra a Sombra com a qual lutava.

Rapidamente, o salão se enchia de inimigos, oriundos de um vão por trás das plantas. E a última coisa que Marie vislumbrou antes de correr para as escadas foi Fenris sendo empalado pelas garras de uma sombra, enquanto Emya e Verne tentavam acudi-lo.

Ela queria ficar e ajudar, mas se obrigou a subir cada vez mais rápido, vez ou outra lançando olhares sobre o ombro para se certificar de que Voltruf a acompanhava.

— Não se preocupe comigo! Estou bem! — Dizia ela, gesticulando para que continuasse.

Talvez, se ainda estivesse viva, Voltruf tivesse perecido com o ferimento sofrido. Mas ser um espírito não a poupava da dor. Ela tropeçou no fim da escadaria e Marie a ajudou a se erguer.

Foi somente quando alcançaram a entrada do antigo Salão do Grão-mestre Castir, que o espírito notou o sangue que escorria nas vestes da mestra. Puxou a capa dela para o lado e observou o estrago que as garras de uma Sombra fizeram nas costas dela.

— Não é tão ruim quanto parece. — Marie falou.

— Acredito… — o espírito retrucou, deixando claro o contrário. — Os meus também não são.

Ela focalizou à frente.

— Nosso objetivo está do outro lado desta porta.

— Somos aguardadas.

— Com certeza.

— Alguma ideia?

Concordando, Voltruf aproveitou o breve descanso para avaliar suas feridas. Estava bem perto do desgaste mágico e recuperar-se demoraria um tempo que não tinham.

Talvez. — Ela passou a mão no rosto ensanguentado.

**

O fogo conjurado por Melina, já havia se extinguido, mas a fumaça circulava pelo ambiente, subindo em direção as aberturas nas paredes, arrastada por ligeiras correntes de ar.

Melina respirava pesadamente, dividida entre o cansaço e a dor dos ferimentos. Quatro cortes transversais vertiam sangue em sua coxa direita e o ombro estava em um ângulo esquisito, após ser deslocado quando uma Sombra a jogou contra a estátua do rei Enaem.

Havia sangue, corpos e destruição por todo o lugar; e os poucos sobreviventes experimentavam a assustadora calmaria após a batalha, como se ainda não tivesse chegado. Miravam os mortos, amigos e inimigos, com armas ainda em mãos, como se estivessem a espera de que levantassem para exigir suas vidas em troca das que perderam.

A princesa Emya e Lorde Verne, ladeavam Fenris. Tentavam exibir expressões fortes, ante as feridas do amigo. Era um esforço quase sobrehumano e Fenris fez uma tentativa de rir disso, mas acabou se engasgando com o próprio sangue. Melina mancou até eles deixando um rastro de sangue pelo caminho e Bórian a seguiu de perto em estado tão lastimável quanto os demais.

A grã-mestra passou os olhos nos feridos, certificando-se de que ninguém aparentava estar tão machucado quanto o cavaleiro. Afastou Emya com um gesto delicado, na medida do possível, e agachou-se ao lado de Fenris, mordendo o lábio inferior em decorrência das suas próprias dores.

— Não temos tempo para isso. — Disse o espírito.

As mãos dela tremeram quando pousaram em Fenris, imediatamente desaparecendo em meio à grande quantidade de sangue que derramava.

— De fato. — Soou tranquila, a voz quase beirando a frieza. — Mas também não estou em condições de prosseguir.

Fez uma pausa, mirando Bórian de um jeito que deixava claro para não desperdiçar argumentos. Então, voltou a pressionar a laceração no peito do cavaleiro.

A breve convivência ensinou a Bórian que os ordenados tendiam a pensar nos outros antes de si mesmos. Testemunhou isso em Valesol e o mesmo se passou quando a luta na Floresta de Pedra acabou. Por um instante, ele imaginou que Melina iria curar a todas as pessoas possíveis antes de prosseguir e pensou mesmo em argumentar contra essa possibilidade, todavia logo se deu conta de que ela sabia bem o que estava em risco e não agiria tão levianamente.

Reparou bem na grã-mestra. O sangue que derramava através dos cortes na perna unia-se ao do cavaleiro Fenris que havia começado a tremer, falando coisas desconexas.

— Prossigam sem mim — Melina ordenou.

A voz dela soou ligeiramente pastosa e Bórian chegou mais perto, observando o sangue que empapava os cabelos claros. Ela agitou a cabeça e o movimento revelou um corte no alto da cabeça. Certamente, a pancada surtiu um efeito mais negativo nela do que os outros ferimentos.

As mãos dela começaram a emitir um brilho suave.

— Vão logo. — Ela insistiu, olhando severamente para Emya e depois Verne.

O badir apertou a mão do amigo, nitidamente emocionado. Engoliu o nó na garganta e Fenris conseguiu focá-lo por um instante, balbuciando:

— Marie precisa de você, meu príncipe. Vá ajudá-la… Irei… Estarei logo atrás de você… — Forçou um sorriso vermelho, atormentando o amigo.

— Se me deixar na mão, vou obrigá-lo a limpar os estábulos do castelo por um mês. — Verne tentou brincar e afastou-se, ligeiro.

Emya fez um carinho no ombro do cavaleiro e seguiu o marido, lançando um olhar penalizado para ele.

— Virnan arrumou umas amizades bem interessantes e tão teimosas quanto ela. — Queixou-se Bórian, ainda atento aos gestos de Melina. — Antes de cuidar dessa gente, deve se cuidar primeiro.

Ele falava com ares de zanga, mas demonstrava sincera preocupação. Agachou-se ao lado dela, tomou-lhe o braço com o ombro deslocado e, sem aviso, o pôs no lugar. Melina gritou tão alto, que o som ecoou pelo lugar de forma aterradora.

Embora não fosse admitir em voz alta, Bórian também necessitava de uma pausa para recuperar as forças. Seus ferimentos também eram graves e a luta o desgastou mais que o esperado. Na situação atual, também não seria de grande ajuda para Voltruf e Marie. O mais sábio seria aguardar um pouco, para que a forte presença das correntes mágicas no templo aliviassem o desgaste e iniciasse o processo de cura. Além disso, Melina também inspirava cuidados e ela era uma peça fundamental para ganharem a guerra.

Passos foram ouvidos no corredor por onde vieram e os soldados sobreviventes prepararam-se para enfrentar um novo inimigo. Felizmente, foi um rosto amigo que viram irromper no salão. Mestre Pitacus estava acompanhado de mais soldados e ordenados que imediatamente se dividiram para prestar cuidados aos feridos.

— O que estão esperando? — Melina rosnou para Verne e Emya. — Vão agora!

Emya resolveu não perder mais tempo e adiantou-se para a escada, enquanto Verne rosnava para os homens, que ainda estavam aptos a lutar, os seguirem. Ela pegou uma das tochas dispostas em uma das paredes e liderou o grupo, subindo os primeiros degraus com pressa.

Ouviram uma explosão no andar superior. Foi algo tão intenso que as paredes estremeceram. Pó caiu sobre suas cabeças e em seguida pedaços do teto. Eles se apressaram para alcançar o topo das escadas, mas parte do teto veio a baixo. Emya tropeçou no último degrau, tossindo tão forte quanto o soldado ao seu lado. Ela olhou para trás, mas uma cortina de poeira impossibilitava a visão, assim como a escuridão.

— Verne! — Ela chamou.

O coração se apertou quando não obteve resposta.

— Verne! — Repetiu.

Na escuridão, ela o ouviu responder fracamente:

— Aqui…

Ela encarou o soldado, esperando ouvir algo mais do badir, mas foi a voz de outro soldado que lhe chegou:

— Alteza, o badir está ferido!

Emya desceu os degraus, desviando dos escombros. Parte da estrutura que sustentava o teto havia desmoronado, mas ele permanecia sobre suas cabeças, vez ou outra, estremecendo com o impacto da luta no andar superior. A princesa logo percebeu que a passagem para o salão, onde Melina e os ordenados estavam, fora completamente fechada e tornou a tossir por causa da poeira.

Encontrou Verne gemendo no chão. Dois soldados bastante feridos tentavam ajudá-lo, removendo pedras. Mas aquela sob a qual as pernas dele estavam, era enorme.

— Temos que tirá-lo daí! — Emya falou com desespero.

Ouviram vozes abafadas do outro lado da passagem. Havia outros sobreviventes e estes foram socorridos pelos ordenados do salão. Emya comunicou a situação aos gritos, assistindo os soldados rolarem outra pedra para o lado.

— Vai levar algum tempo, mas iremos remover os escombros. — A voz de Mestre Pitacus atravessou a pequena abertura entre as rochas.

A mão ensangüentada de Verne agitou-se no ar, chamando a atenção de Emya.

— Vá até Marie. — Ele disse.

Emya queria muito dizer que não iria a lugar algum, mas a responsabilidade que carregavam era maior que os laços. Ela engoliu em seco, escondendo o rosto entre as mãos brevemente.

— Voltaremos logo — ela afirmou, endireitando os ombros. Afinal, não podia recuar na hora em que mais era necessária, principalmente porque insistiu muito para ter o direito de estar ali.

Antes que se erguesse, Verne a trouxe para junto de si. Foi um abraço torto e dolorido, mas carregado de emoções intensas.

— Até daqui a pouco — ele a soltou.

E enquanto percorria o caminho até o fim das escadas, ela não ousou olhá-lo outra vez para não correr o risco de chorar. Tinha a vaga e triste sensação de que aquele fora um “adeus” e lamentou não dizer o “eu te amo” que ficou preso na garganta.

***

As portas do salão foram escancaradas e Voltruf e Marie focalizaram todas as criaturas que o ocupavam em um piscar de olhos, antes que o espírito fizesse o chicote líquido ressurgir em suas mãos. Ele ondulou sobre as cabeças delas e então se dividiu em centenas de pedaços de gelo, os quais foram empurrados na direção das sombras como se fossem centenas de flechas.

O ataque foi fatal para alguns, mas outros perceberam a intenção do espírito e desviaram do gelo agachando-se, correndo para os lados da sala ou conjurando proteções. Foi nesse momento que Marie agiu, usando movimentos ligeiros e fluidos. Ela fez dezenas de estacas de pedra erguerem-se do chão e uma quantidade equivalente foi projetada das paredes, empalando os sobreviventes.

A midiana agitou as mãos para desfazer a conjuração, após se certificar de que tinham subjugado todos os inimigos. Uma leve corrente de ar agitou as tapeçarias que decoravam o ambiente e Voltruf passou uma mão trêmula no rosto, antes de adentrar no salão. Suas pernas fraquejaram após o primeiro passo, mas obrigou-se a manter-se de pé e lançou um olhar carregado de orgulho ferido para Marie, todavia esta a acompanhou na mesma velocidade e fingiu não notar o cambaleio.

— Não esperava que desse certo. — Disse, fazendo uma expressão de nojo para os corpos no chão.

— Sim… — Marie concordou, tentando não repetir a careta dela. Foi inevitável. Seu estômago se revirava, mareado pelo cheiro desagradável que impregnava o lugar e era oriundo dos corpos.

Desta vez, ela não teve vontade de fitar as tapeçarias e armas expostos nas paredes, como fez no dia em que Érion atraiu o círculo delas. Tudo o que lhe passava na cabeça, àquela altura, era o desejo de concluir a missão e retornar para Flyn o mais rápido possível. Desejo que aumentou quando a tatuagem do Círculo começou a queimar incomodamente.

— Eca! — Voltruf deixou escapar antes de prosseguir pelo salão.

Pararam diante do trono, reparando nas marcas de garras no chão a volta dele. Zarif surgiu na memória de ambas, trazendo algum desconforto. Então, se encaminharam para a tapeçaria atrás do assento.

— A sala fica aqui atrás. — Voltruf indicou, mirando o tecido puído pelo tempo, enquanto lembranças de milênios atrás lhe assaltavam com impetuosidade.

— Nem precisava dizer. — A voz de Marie a trouxe de volta do passado. — Sinto a presença de magia antiga, banhada em muito sofrimento. É tão sólida, que é como se eu estivesse rodeada por centenas de magos. Me sinto oprimida… Há tanta dor aqui. É sufocante.

Ela ergueu uma mão trêmula para puxar o tecido, mas antes que o tocasse ele ondulou. Garras longas e afiadas rasgaram a tapeçaria e encontraram abrigo no corpo dela. Um grito ficou preso na garganta de Marie e sangue jorrou para fora do ferimento quando a Sombra que o causou retirou as garras.

A Sombra tentou nova investida, mas Voltruf puxou a mestra para si, antes que ela tombasse para a frente e fosse mortalmente empalada. Recuaram alguns passos, e o espírito usou a magia para atirar o gelo que estava espalhado pelo lugar na tapeçaria.

Ela assistiu a tapeçaria despencar para o chão, revelando uma porta de madeira maciça e nenhum inimigo. Deixou Marie escorregar para o chão até cair sentada cuspindo sangue e gemendo. A cabeça da mestra estava voltada para as mãos que tentavam conter o sangramento e Voltruf quase conseguiu imaginar a dor que a tomava.

Quando Voltruf tornou a prestar atenção ao que se passava pelo salão, viu-se diante de uma Sombra diferente. O corpo era alongado, delgado; alcançava facilmente os dois metros de altura, mas o que mais impressionava naquela figura aterradora era o fato da sua pele ser branca como leite. Atrás dele havia outro igualmente alto e magro, mas de pele vermelha como se estivesse banhado em sangue.

O espírito engoliu em seco, amaldiçoando a sua sorte. Sombras negras eram mais comuns de se encontrar, mas as brancas e vermelhas eram a personificação dos piores pesadelos que alguém poderia ter e, ainda assim, muito piores. Principalmente, se conseguissem prender a vítima por tempo suficiente para se alimentarem de seus medos.

O sangue de Marie pingava das garras de “Branco”. Deslizava por elas até misturar-se com o sangue negro das Sombras derrotadas. Ele sorriu com o que poderia ser descrito como um toque suave de maldade e, certamente não passava da pura ânsia de devorá-las até não restar nem mesmo os ossos.

— Você consegue lutar, Marie?

A resposta da mestra foi uma tosse regada à sangue. Contudo, ela ficou de pé e retirou as machadinhas do suporte na cintura e apertou-as firme para que os cabos não deslizassem nas mãos ensanguentadas.

— Ótimo, porque eu já estou chegando ao meu limite. — Voltruf retirou a espada da bainha e a empunhou com a mão livre; a outra moldava o chicote líquido, cujas pontas se tornaram rígidas e afiadas. — Não se deixe aprisionar ou eles vão te devorar.

Assim que terminou de falar, “Branco” correu até elas; era muito mais veloz que qualquer sombra com a qual a falecida castir lutou antes e depois da morte. As garras dele desceram em direção a ela, desenhando um arco perfeito no vazio, e se ainda pudesse respirar, Voltruf teria expulsado todo o ar dos pulmões quando ele a atingiu.

“Vermelho” também não perdeu tempo, partiu para cima de Marie, no entanto, não foi tão bem sucedido como o companheiro. A mestra fez uma estaca se projetar do chão e para não ser empalado, ele desviou-se do caminho até ela, contudo Marie não parou por aí. Mais estacas foram conjuradas. Despontavam do chão, das paredes e até mesmo despencavam do teto, espatifando-se no chão como cristais de gelo.

A agilidade da Sombra lhe permitiu escapar de todas elas e, assim como Voltruf, Marie se encontrou a pouco centímetros do oponente. A ordenada exalou forte, vendo-o sorrir e revelar dentes brancos e pontiagudos, enquanto erguia a mão para realizar o ataque mortal. As garras longas brilharam assustadoras sob a luz das tochas, Marie recuou um passo e “Vermelho” desferiu seu golpe.



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para 54. Branco e Vermelho

  1. Ó isso não vale…
    Como q tu para aqui??
    Isso é uma baita sacanagem…

    Eu sei q alguns terão q morrer…
    Mas não os personagens principais
    aos quais nos acostumamos, vai com calma
    nessa tua sede por eliminar algum personagem.
    Tá mto bom…
    Bjs…

    • Haha, isso se chama “deixar um gostinho de quero mais” rs… Ou seja, maldade da autora, pura e simples! Hahaha…

      Brincadeirinha!

      Beijos!

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