A Ordem: O círculo das armas

5. A Mão Assassina

 

*

 

Marie fitou a tempestade, liberando um suspiro. Deu alguns passos arrastados e recostou-se a mesma coluna em que Virnan se apoiava. Por alguns instantes, o som do sino avisando que o jantar estava sendo servido se sobressaiu.

Estalou os lábios, furiosa consigo mesma por não conseguir passar muito tempo com raiva da guardiã. Embora tivesse tentado muito, manter-se firme, foi só vê-la se afastar com aquele sorrisinho, que toda a sua raiva ruiu como um muro velho.

Ela não havia notado sua presença, mas não demonstrou surpresa quando escorregou a mão pela superfície sólida até alcançar a dela e envolver. Alguns segundos se passaram, até que a amiga correspondesse ao aperto.

Permaneceram assim por algum tempo, então Virnan se colocou diante dela e deslizou a ponta dos dedos pela face morena, onde algumas gotas de chuva buscaram abrigo. A mestra desviou o olhar.

— Então, estou perdoada?

Às vezes, tenho muita vontade de te bater, sabia?

Uma gargalhada escapou dela. Preenchendo aquele momento com a luz que sempre carregava. Era isso que mais admirava em Virnan; o sorriso, a alegria, mesmo quando ela não a sentia de verdade. Contudo, algo sempre lhe disse que, ao seu lado, todos aqueles sorrisos eram verdadeiros.

Às vezes, te odeio e, em outras…

— Me ama?! — Interrompeu.

A amiga inspirou fundo, revirando os olhos.

Há momentos em que é difícil conversar com você. Sempre aparenta não dar a devida importância às coisas.

— Eu me importo com muitas coisas. Mas me importo, muito mais, com você. — O vento espalhou seus cabelos sobre o rosto, escondendo a seriedade que o tomou por alguns instantes. — Desculpe por magoá-la com os meus sentimentos.

Marie balançou a cabeça e voltou a encará-la.

Você nunca me magoou. Mas gostaria que não voltasse a repetir essas coisas.

A guardiã notou que os respingos, na verdade, eram lágrimas e engoliu em seco.

— É tão ruim assim, ouvir sobre o que sinto? — Aparou uma de suas lágrimas com a ponta do dedo.

A mestra franziu o cenho, afastando o contato. A pergunta era muito semelhante a que Melina lhe fizera naquela tarde.

Não se trata disso.

— Então?!

Fugiu do olhar dela, outra vez.

Será que poderíamos esquecer esses sentimentos e retornar a nossa amizade? As coisas eram perfeitas do jeito que estavam.

Virnan encheu as bochechas de ar e revirou os olhos. Aproximou-se um pouco mais. Naquela noite, não estava muito disposta às provocações. Além disso, sua partida se aproximava e tudo que menos queria era fazê-lo, deixando uma Marie magoada consigo.

Aquela deveria ser uma noite de conversas sinceras com a mestra, mas a chegada de Verne, Loyer e companhia mudou seus planos. Tinha muito com o que se preocupar naquele momento e não podia se dar ao luxo de deixar essas coisas de lado para resolver sua vida amorosa.

— Está bem. Se é assim que quer, esqueçamos isso — Marie ensaiou um sorriso, que não chegou a se concretizar —, mas quero que me diga, olhando em meus olhos, que não sente nada quando te beijo.

A mestra passou a mão nos cabelos, arrancando alguns fios da trança, exasperada. Era inacreditável a capacidade que Virnan possuía de fazê-la perder a compostura, minando seu temperamento calmo.

Por que ela fazia aquilo consigo?

— Estou esperando — a amiga se aproximou um pouco mais e a mestra planeou recuar, mas as mãos dela lhe envolveram a cintura, impedindo seu avanço. — Você não pode, não é?

Ela sorriu de lado, convencida.

Por favor, pare com isso. Pediu, desajeitadamente, já que lhe tomava o espaço, chegando cada vez mais perto, até que encostou em seu corpo, completamente. Sentia o hálito dela acariciar sua face e cerrou os olhos.

Por que ela a atormentava daquela forma?

Virnan a soltou e deslizou as mãos até seu pescoço, forçando-a a se curvar levemente, até que seus lábios ficaram próximos, então a soltou novamente, mas não se afastou. Um raio atravessou o céu, iluminando-as.

Marie poderia ter partido, fugido como fez naquela tarde, mas algo a prendia naquele lugar, forçando-a a se deixar envolver pelo calor que enxergava nos olhos dela. Mas não queria aquilo, nunca desejou transformar a amizade que as unia em algo mais. Entretanto, naquele momento, era prisioneira do olhar de Virnan e quando ela colou os lábios nos seus, não recuou.

Deixou que ela tomasse sua boca com carinho e entregou-se ao beijo e ao momento que compartilhavam, com a plena certeza de que aquele seria o último. Sorveu cada gota do amor que adoçava os lábios dela, surpresa por se entregar daquela forma.

A amiga se afastou com um sorriso suave. Deslizou a mão por sua face.

— Não foi tão ruim assim, não é mesmo?

Estalou outro beijo em seus lábios e se afastou.

— Não irá mais acontecer — prometeu. — Só nos beijaremos outra vez, quando você me procurar.

Deu-lhe as costas, puxou o capuz da túnica sobre a cabeça e desapareceu na chuva. Marie sorriu, com a certeza de que aquele momento jamais voltaria a se repetir.

 

 

 

**

 

 

Era madrugada e a tempestade ainda rugia fora do castelo, quando Loyer e dois de seus homens se esgueiraram para fora do alojamento. Ele estava irritado, pois a maioria dos homens dormia como pedras e isso não se devia ao cansaço da jornada até ali e, sim, ao sonífero que colocaram no ensopado que lhes serviram.

Reconheceu o sabor, levemente adoçado, nas primeiras colheradas. Então, ordenou que seus homens de confiança não comecem. Entretanto, o restante dos soldados estava tão faminto, que já havia devorado a refeição quando ele deu a ordem. De certo modo, isso não era ruim. Pelo contrário, facilitava as coisas. Pois os ordenados relaxariam em sua vigilância.

Estava surpreso que a Ordem usasse desse tipo de artifício para controlar seus convidados. Contudo, tinha de concordar que era uma boa estratégia.

Havia guardiões nos corredores, entretanto eles seguiam despreocupados. Caminhavam por uma rota alternativa, usando passagens secretas que, pela quantidade de poeira e teias de aranha, raramente eram utilizadas.

Entraram em um corredor, no terceiro andar do castelo. Um guardião espreitava ao final dele. Com um gesto, Loyer ordenou que um dos subordinados nocauteasse o homem, o que foi feito sem nenhum alarde, já que o sentinela estava de costas para eles e não se deu conta de sua aproximação.

Subiram as escadarias que levariam ao próximo andar e o percorreram sem receio, pois tinham certeza de que não era protegido. Aliás, o número excessivo de guardiões pelos corredores dos níveis inferiores, também era extraordinário, já que, pelas informações que obtiveram, eles só montavam guarda nos muros do castelo.

O comandante sorriu de lado, escarnecendo do que acreditava ser pura estupidez. Para ele, a paz de verdade não existia e, enquanto vivesse, sempre dormiria com um punhal como descanso para a cabeça.

Estacaram diante de uma porta. A única no corredor pelo qual andavam. O sorriso dele aumentou quando retirou uma chave, que estava pendurada em volta do pescoço, oculta pelas camadas de tecido e couraça. Enfiou-a na fechadura e girou.

Um clique se fez ouvir e ele empurrou a porta, que rangeu, dolorosamente, lhe dando passagem para o interior.

— Fiquem de guarda — ordenou aos soldados, enquanto pegava uma das tochas no corredor e a colocou sobre o descanso junto à porta, iluminando o ambiente.

Era uma câmara espaçosa e em formato circular, sem janelas ou outras portas. Na parede oposta à entrada, uma pesada tapeçaria com o símbolo da Ordem e gravuras que contavam sua história, despencava do teto.

No centro do cômodo, erguia-se um altar e sobre ele repousava um pequeno baú dourado. Dentro dele, estava um dos prêmios que o comandante fora buscar naquele lugar.

Caminhou até o altar, observando que ele estava no centro de um círculo menor, entalhado no chão e, este, dentro de outro maior, onde cadeiras se localizavam. Ao todo, percorreu os cinco círculos que formavam os pilares da ordem: amizade, fraternidade, proteção, conhecimento e vida.

Sorria, cada vez mais largo, à medida que se aproximava do menor. Mas sua alegria se desfez quando percebeu que o baú estava vazio. Procurou esconderijos e dispositivos secretos nele, mas não havia nada. Então, se voltou para o altar e também não obteve sucesso em encontrar algum compartimento oculto.

Estapeou a pedra sólida, deixando um gemido colérico escapar.

Alguém riu, fazendo um arrepio percorrer sua espinha até a base da nuca. Girou sobre os calcanhares e deparou-se com a guardiã que o confrontou na praia.  Ela estava sentada em uma das cadeiras do círculo. Tinha uma das pernas jogadas sobre o braço da cadeira, enquanto descansava o queixo na mão esquerda, apoiada no outro braço.

— Não vai encontrar nada aqui, Comandante.

Ele entrou no círculo do conhecimento, puxou o punhal da cintura. Uma arma que havia escondido entre as dobras da túnica e, portanto, não lhe tiraram. Resvalou o olhar para a porta, avistando seus homens inconscientes no chão.

— Não se preocupe com eles. Terão um pouco de dor de cabeça amanhã, mas ficarão bem. Não posso dizer o mesmo de você. — Focalizou o punhal. — Isso é bastante indelicado para um convidado.

— Me poupe dessa besteira! Isso não passa de uma tradição idiota. — Deu alguns passos em direção a ela. — Agora, me diga onde está!

Ela jogou a outra perna, deitando-se de forma estranha sobre a cadeira.

— Ahnn… Onde está o quê?

Seu ar de deboche o enfurecia e ele quase salivava pela oportunidade de poder arrancá-lo de sua face. Afinal, desejou isso desde que lutaram na praia e foi duro ter de fingir-se mais fraco que ela para conseguir chegar até ali.

— A joia do coração! Onde está?

A mulher estalou os lábios, arqueando um dos cantos da boca.

— Hmmm… A joia do coração… Gostei do nome! — Disse irônica. — Mas não sei do que está falando. — Sorriu largo, deixando evidente que mentia.

Loyer deu mais alguns passos até ela.

— Mente muito mal, Guardiã. — Soou ameaçador.

A luz da tocha refletiu na lâmina, ondulante, quanto uma lufada de vento invadiu o lugar trazendo o cheio da terra molhada. Lá fora, a tempestade perdia a força e tornava-se uma chuva amena.

Virnan se pôs de pé.

— O que posso dizer? Não tenho as habilidades natas do povo de Axen — insultou.

— Maldita!

Ela jogou a cabeça para trás, em meio a uma risada. O som se propagou, como se desse vida àquele lugar. As feições de traços delicados, prenderam a atenção dele por alguns instantes. Era linda, mas o comandante não se deixava cegar pela beleza. E aquele tom de pele, deixava claro que vinha das terras de Axen ou Caeles, o que justificava o fato de que aqueles olhos não conseguiam esconder que já viram muitas desgraças.

— Você perde a paciência muito rápido, Comandante. Estou apenas lhe provocando. — Assentou as mãos na cintura.

— Ria, enquanto pode. Você vai me contar o que quero saber em poucos minutos — o rosto se modificou em uma máscara de crueldade, enquanto assumia uma pose de luta.

A guardiã cruzou as mãos nas costas, erguendo uma sobrancelha.

— Parece ter muita certeza disso, assim como tem de que este lugar estará em chamas ao raiar do dia.

O guerreiro apertou o punhal com mais força.

— Então, você ouviu mesmo. Achei que tivesse sido coisa da minha cabeça. Eu apenas sussurrei e estávamos lá fora, no meio da chuva, com ondas violentas quebrando na praia, trovões, raios e ventania. Ninguém normal poderia ter ouvido.

A moça mostrou os dentes, divertida. Isso o enfureceu mais. Era como se ela não levasse nada a sério; como se pouco lhe importasse estar desarmada diante de um guerreiro experiente e com um punhal nas mãos.

— Me pergunto o que seria normal para você, Comandante. A magia está impregnada nas paredes deste castelo e a maioria dos meus irmãos a possui. Mas ter um bom ouvido, nada tem a ver com ela. — Ergueu uma mão e coçou a bochecha. — Diga-me, pretende me torturar para obter o que deseja, assim como fez com o Guardião Milan?

Ficou verdadeiramente surpreso, mas não deixou que isso transparecesse em seu semblante.

— Como soube? — Indagou.

Andava à volta dela, procurando o momento certo de atacar.

— Seu comentário na praia, a forma que chegou nesta sala e entrou. E uma conversa que tive com a grã-mestra, um pouco antes da sua chegada. Ela não entrou em detalhes, mas não precisei me esforçar muito para juntar as peças. Somente um guardião poderia ter lhe contado sobre as passagens secretas e lhe dado a chave. Ninguém dos círculos anteriores ao de proteção tem acesso a essa informação.

Loyer meneou a cabeça, com um dar de ombros.

— Você é uma maldita espertinha, Guardiã. E me contará tudo que o seu amigo não nos disse nas masmorras de Axen. — Garantiu e a atacou.

Desferiu um golpe em direção ao abdômen dela. Virnan saltou para trás, inclinando o tronco para frente e afastando-se da lâmina. Loyer girou o punhal na mão, revertendo o movimento em direção a face dela que, desta vez, inclinou-se para trás.

— Desta vez, vai ser diferente, Guardiã. Deixei que me vencesse na praia, porque queria acesso ao castelo, mas agora irei me divertir com seus gritos. Irei arrancar esse sorriso do seu rosto.

Estocou e ela girou o corpo, dando um passinho para o lado. Aproveitou a posição para travar o braço dele e desferir uma cotovelada no mesmo, o que o fez soltar a lâmina.

— Sério, Comandante?! Você não está se saindo melhor agora. — Chutou o punhal para longe.

Ele avançou, deixando escapar um grito colérico. Virnan girou o corpo, elevando uma perna. Chutou a lateral do rosto dele, que caiu, rolando no chão, e se pôs de joelhos, preparando-se para uma nova investida. Se aproximou, socando-a, mas ela se esquivou.

— Maldita! Pare de fugir! — Gritou, enquanto ela ria, abrindo os braços.

Furioso, pegou uma das cadeiras e tentou atingi-la, usando-a como uma extensão de seus braços, mas a moça era ágil e desviava de seus golpes com facilidade, o que o irritava ainda mais. Principalmente, quando notou que estava brincando consigo. Atirou a cadeira nela, de repente, e a viu saltar sobre o objeto ainda no ar com desenvoltura de um felino.

Socou-a de novo. A guardiã inclinou o corpo para o lado, contorcendo-se. Segurou o punho dele e desferiu um soco em baixo da axila. Girou o corpo, fazendo dele uma alavanca e projetou o comandante no ar. Ele caiu de costas no chão, liberando um gemido agudo de dor.

Sugava o ar de volta para os pulmões quando percebeu a lâmina a poucos centímetros de distância. Arrastou-se e recuperou o punhal. Se colocou de pé.

Virnan se aproximou e ele investiu outra vez. Estocava, cortava o ar, mas não conseguia tocá-la.

Ela jogou-se para trás em um salto mortal, atingindo o queixo dele que cambaleou até a parede, que o impediu de ir ao chão novamente. O sangue escorria farto do nariz e boca, empapando a barba farta e as vestes.

Os locais atingidos pelos golpes dela doíam intensamente e segurar o punhal tornava-se cada vez mais difícil. Não conseguia compreender o motivo de se sentir daquela forma, já que estava acostumado a lutar por horas. Era considerado um dos soldados mais incansáveis do exército de Axen. Tinha matado dezenas de homens com as próprias mãos. Foi empalado, esfaqueado, ecado, torturado. Mas nunca se sentiu tão fraco quanto naquele momento.

Sua adversária era apenas uma mulher que, provavelmente, mal tinha completado vinte anos, como seus traços aparentavam. Era pequena e franzina, mas cada vez que ela o atingia, sentia a força de uma dezena de homens.

Ergueu o punhal, mais uma vez, quando ela chegou mais perto. Virnan apertou-lhe o pulso, até que soltou a arma. Ela brincou com a lâmina, girando-a na mão por alguns instantes, então a apontou para a garganta dele.

— Acho que chegamos ao fim da brincadeira, Comandante. — Pressionou a ponta do punhal no seu pescoço e sangue escorreu pelo metal.

— Você não pode me matar. Conheço os seus juramentos, Guardiã. — Fez um esforço para sorrir, debochado.

Virnan riu, jogando a adaga no ar. Ela girou e caiu em sua mão, suavemente.

— “Juro, solenemente, proteger e cuidar da semente da vida neste mundo, não importando o custo…” — recitou uma parte do juramento da Ordem. — Ah, todo juramento é passível de interpretação. Neste caso, “não importando o custo” é o trecho que nos interessa. — Sorriu, maldosa.

Os olhos brilharam com uma promessa dolorosa e, pela primeira vez, Loyer temeu por sua vida.

— Você não se atreveria! Milan nos falou das consequências para a quebra do juramento. — Insistiu. A cada minuto que se passava, sentia-se mais debilitado.

— Mesmo? Talvez, ele tenha esquecido de contar umas coisinhas. — Piscou. — Mas não preciso disso para acabar com você — guardou o punhal na cintura.

O comandante sentiu-se mais confiante e arriscou um soco. Virnan agarrou seu pulso, novamente, ergueu a outra mão, contraiu os dedos com a palma aberta e a deslizou pelo braço dele, resvalando os nós dos dedos por toda sua extensão até a axila, então o golpeou no abdômen. Loyer se curvou, pressionando o local atingido. Sangue espirrou para fora de sua boca e ele caiu de joelhos, lutando para conseguir respirar, mas tão imerso na dor que não podia fazê-lo.

Virnan se agachou diante dele.

— O que… O que você fez? — Ele balbuciou, enquanto um sorriso cruel se desenhava nos lábios dela.

— O juramento da Ordem exige que uma vida nunca seja tirada com os conhecimentos adquiridos durante os anos passados nela. Nunca jurei não matar com os conhecimentos que adquiri antes de me tornar uma ordenada.

O axeano tossiu sangue no seu rosto. Ela deslizou os dedos na pele maculada, tornando o rastro de sangue mais evidente. Afastou-se, quando ele tentou tocá-la antes dos olhos se abrirem mais e tombar para frente.

Se pôs de pé e focalizou o comandante por algum tempo. Não demonstrou surpresa quando a tapeçaria no canto ondulou e Melina caminhou devagar até parar à sua frente com o semblante mais grave que já a visitou.

— Estava me perguntando quando iria se deixar ver — a guardiã disse, usando a túnica para limpar o sangue na face.

A mulher chegou mais perto, resvalando o olhar para o corpo no chão.

— Assim como você, também desconfiei das intenções do comandante. Me pareceu que ele desistiu fácil demais do embate na praia. Além disso, havia as preocupantes notícias que recebi de Axen, alguns dias antes do seu retorno, e que comecei a lhe contar antes do anúncio da chegada dele e Lorde Verne.

Fez uma pausa, admirando-a.

— Você deduziu corretamente, como o próprio Loyer confirmou. Chegou ao meu conhecimento que os ordenados que enviamos para Axen, foram capturados. A notícia não veio por meio de uma carta oficial, mas, sim, pela boca de um refugiado. Segundo ele, todos foram torturados e mortos, principalmente, Milan.

Era evidente que aquele foi um duro golpe para a grã-mestra. Afinal, desde sua criação, a Ordem nunca sofreu baixas daquele tipo. Seus membros sempre foram bem-vindos em todos os reinos do mundo conhecido. Principalmente, nos momentos mais inquietantes, como uma guerra. Eram os ordenados que ofereciam cuidados aos feridos e promoviam tréguas entre exércitos.

Se não havia consenso entre as partes, eles permaneciam no campo de batalha até o fim da guerra. O único lado que lhes interessava, era o dos enfermos e daqueles que sofriam com a miséria e fome decorrentes desses desentendimentos bélicos.

Se tornar um ordenado era uma grande honra e trazia uma grande responsabilidade junto.

Melina continuou:

— Resolvi passar a noite nesta sala, já que você e o restante dos guardiões estariam de olho nos dois grupos na ala dos dormitórios. Desejava descobrir se minhas suspeitas sobre as intenções do comandante eram verdadeiras.

Suspirou, com evidente cansaço. Juntou as mãos diante do ventre.

— Não me surpreendi ao vê-lo entrar por aquela porta, nem quando você surgiu, afinal, seus instintos sempre foram aguçados. Mas, confesso, tudo que vi e ouvi depois me deixou, no mínimo, estarrecida.

Limpou a garganta e seus lábios se apertaram, enquanto isso.

— Você sabia que eu estava aqui todo o tempo?

A moça assentou as mãos na cintura, revelando um sorriso metido.

— Os florais que usa para banhar-se são inconfundíveis, mestra. Senti seu perfume antes mesmo de entrar.

— Mesmo assim, fez o que fez. — Apertou as mãos com tanta força que os nós dos dedos perderam a cor. — Quebrou seu juramento…

— Quebrei?! — Sorriu, irônica. — Acho que não ouviu a conversa direito, mestra.

— Ouvi perfeitamente. Mesmo que tenha contornado o juramento que fez, isso não a isenta do fato de que tirou uma vida sob este teto. — Alteou a voz.

Virnan fez um gesto de descaso, deixando o semblante aparentar tédio.

— Ele não está morto. Não maculei este lugar sagrado. — Estalou os lábios, como se fazer aquilo fosse seu real desejo.

Chutou o corpo, fazendo-o virar e a Melina pôde ouvir a respiração baixa e ruidosa do comandante. Virnan agachou-se e o atirou sobre o ombro, como se não tivesse quase o dobro do seu peso e vários centímetros a mais.

Como haviam conversado naquela tarde, a magia dela era fraca. Mesmo assim, a guardiã conseguia canalizá-la, promovendo o fortalecimento da musculatura. As pessoas tendiam a subestimá-la pela baixa estatura e corpo franzino. Um grave erro, como o comandante Loyer veio a descobrir.

Começou a andar em direção a porta, mas voltou-se quando a idosa comentou:

— Sempre ouvi falar sobre manibut e até já li sobre ela, mas jamais imaginei que meus olhos a veriam. — Fez um breve silêncio, como se estivesse a escolher as próximas palavras. — Foi isso que fez com ele, não foi? Usou a mão assassina.

Como naquela tarde, viu o rosto dela se transformar. As feições irônicas deram lugar a um rosto sério e cruel, quando ela respondeu:

Mão assassina é um apelido grosseiro para uma arte tão rica de luta. — Contraiu o canto da boca, arrastando-o para o alto. — Estou impressionada por reconhecê-la com tão poucos movimentos. Principalmente, porque nunca a viu.

Por alguns instantes, Melina tinha torcido para que ela negasse. Contudo, seus olhos nãos estavam enganados. Quando observou o progresso da luta, pensou ter visto a moça dar três golpes rápidos no comandante. Mas isso lhe pareceu impossível porque tinha certeza de que ela o atingiu apenas uma vez. Teve a mesma impressão no golpe seguinte e usou a magia para aguçar um pouco a visão.

Cada vez que o axiano era atingido por um de seus golpes, Virnan o atingia mais duas vezes em pontos diferentes. Ela o fazia tão rápido, que parecia ser apenas um movimento.

— O comandante Loyer nunca teve uma chance real contra você, não é mesmo? — E começava a se questionar se alguém dentro daquele castelo, teria. — Quem é você, de verdade, Virnan?

A moça sorriu largo.

— Por que insiste em fazer perguntas, às quais, já tem as respostas? — Reiniciou a caminhada para fora do recinto.

Melina deslizou a ponta dos dedos sobre os olhos. Uma ideia lhe ocorreu, trazendo um sabor amargo ao seu paladar. Seria mesmo possível?

Resolveu arriscar uma última pergunta.

— Virnan, se você retirar a testeira, verei uma tatuagem?

A guardiã interrompeu os passos e voltou-se para ela. A fitou demoradamente. Devagar, seus lábios se contraíram, expandindo em um sorriso largo e brincalhão.

— Talvez!

Aguardou outra pergunta, mas a grã-mestra não voltou a se pronunciar, então saiu, dizendo:

— Se me permite, tenho que colocar o “lixo” para fora desta ilha.

Melina passou um longo tempo fitando a porta, pela qual ela passou. Em apenas um dia, descobriu muito mais de Virnan do que nos doze anos que ela passou sob aquele teto e estava muito longe de sentir-se satisfeita com isso. Pelo contrário, uma forte apreensão lhe tomava.

 

 

***

 

 

Loyer foi cegado pela luz, quando abriu os olhos. Escorregou as mãos para a face. Areia caiu sobre seu rosto e o som do oceano lhe chegou. Sentou-se, de imediato. Todo o corpo doía, principalmente, o local onde a guardiã o atingiu.

— Que bom que despertou, senhor.

Ele buscou o autor da frase. Um idoso, em trajes esfarrapados, estava sentado sobre uma pedra. Ele apoiou-se em um cajado e se pôs de pé. Aproximou-se, claudicante.

— Onde estou? — O soldado indagou, cuspindo alguns grãos de areia.

Notou que o velho lhe entregava um odre e se apossou dele, ávido por um gole de água para molhar a garganta. A temperatura e a distância que a sombra do homem alcançava ao tocar o solo, lhe indicaram que passava do meio da tarde.

Fitou o mar e deparou-se com a visão de uma ilha. Sobre rochas, erguia-se um castelo, o mesmo onde estivera durante a noite.

— Como vim parar aqui?

O velho sorriu, revelando espaços entre os poucos dentes.

— Uma guardiã o deixou aqui, assim que o dia raiou. Logo após, outros barcos vieram; todos cheios de homens desacordados, como o senhor. Eles estão um pouco mais para lá.

Apontou com o queixo para um conjunto de pedras, que separava a praia do início de uma floresta. Balançou a cabeça, com ar pensativo.

— Quando um guardião lhe pede para fazer algo, você faz sem questionar. Não é mesmo? Mas estou curioso! — Riu. — Ah, estamos todos curiosos! — Fez um gesto que abrangia a vila da qual viera, centenas de metros atrás. — Eles ficaram com medo de vir, sabe?

Loyer notou os contornos de algumas pessoas, próximo ao cais. Claramente, observavam seu diálogo com o idoso. Se colocou de pé, trincando os dentes pela dor que se espalhou por todos os membros. Como podia se sentir daquela forma? O que aquela mulher fez consigo? Mal viu seu golpe, mas sentiu uma dor lancinante, como se todos os seus órgãos fossem atingidos por milhares de facas.

O pescador franziu o cenho, coçando o queixo.

— A jovem guardiã me pediu para avisá-lo que, devido os seus maus modos como convidado, o senhor e seus homens não são mais bem-vindos na ilha.

— Maldita guardiã — rosnou, deslizando as mãos pelo corpo. — Onde estão minhas armas?

— Ah, sim! A guardiã também pediu para dizer que, como é um convidado desonrado, achava justo que o senhor e seus homens pagassem a ofensa com uma oferenda aos deuses dos mares.

— O que isso quer dizer?!

O homem deu de ombros, já se afastando em direção a vila.

— Quer dizer que ela atirou todas as suas armas no mar.

 

 

— § —



Notas:



O que achou deste história?

9 Respostas para 5. A Mão Assassina

  1. olá autora!o que tenho a dizer….que autora é essa que escreve e desenha maravilhosamente bem, daqui a pouco me diz que escreve poesias e toca piano nas horas vagas, talvez até lute karate (pela descrição dos golpes não duvido)…rsrsrs. Eu estou encantada com sua historia ENCANTADA. Adoro historias reais, mas também adoro fantasias que são reais na minha imaginação fantástica, e a sua faz minha imaginação ir longe, para um mundo onde honra, fidelidade e irmandade se misturam e criam personagens fantásticas como Virnan, Marie e Melina (ja tenho meu crush medieval..rsrs). As cenas da Virnan lutando são maravilhosas, consigo visualizar cada passo, cada expressão e acho que ela será uma fantástica surpresa..Eu só sei repetir fantástica rsrsrsr vai ver que é porque sua historia é uma fantástica fantasia. Espero ansiosamente para conhecer mais as habilidades da Guardiã Virnan, mas também tenho que confessar que tó louca pra saber as habilidades da Marie, que venham as surpresas!

    • Oi, Sophie!

      Desculpe a demora na resposta, estava viajando.

      Nunca fui boa poeta, e o mais próximo de um piano que cheguei foi em um teclado eletrônico. rs… Desenhar, para mim, é como escrever: Um prazer incrível. E fico para lá de feliz que esteja conquistando você através das duas artes. rs…

      Pode apostar que Virnan ainda tem muito a revelar e Marie… Hmmm… vou ficar quietinha para não rolar spoiler! rs…

      Te espero nos próximos capítulos!

      Beijão pra ti!

      PS: Ler todos esses “fantásticos” me deixou com um sorrisão! Obrigada!

  2. Grande Tattah!
    Estou A D O R A N D O!
    Perfeita! Dá para sentir os lugares dessa estória através dessa primorosa descrição. E o enredo, então?! Ansiosa por mais.
    Mas o que esperar dos escritos de uma das integrantes do nosso maravilhoso Triunviarto de escritoras mágicas?! Nada menos que essa perfeição em forma de palavras.
    Já sou fã 😉

    ps.: rascunhos, né?! ai ai!

    • Isieee…

      Quanta honra!

      Essa história de triunvirato, sei não, visse? kkkk… Só estamos nos divertindo! 😉
      Feliz da vida por você está curtindo. E, sim, são rascunhos… Dá uma olhada no próximo capítulo que vai ver a diferença! kkk…

      Beijão!

  3. Amando a estória, quero ler todos os dias, mas como isso é impossível me contento com o q me é ofertado… k k k
    Tattah, guria, tu tá arrasando nas, ilustrações, to amando, uma mais linda q a outra.
    Parabéns a estória tá maravilhosa, teu mundo fantástico tá perfeitamente apresentado.
    Adoro as cenas de ação onde consigo ver o desenrolar pelo q nos coloca nas linhas…
    Parabéns, tá sensacional.

    • Kkkkkk… Paciência, lindona!

      Tudo ao seu tempo, rs… Muito satisfeita em saber que as descrições das cenas não ficaram confusas, às vezes, tenho essa impressão. Digo o mesmo quanto a esse mundo. Por se tratar de algo diferente, tenho receio de acabar confundindo vocês.

      Obrigada pelo retorno!

      Um beijão!

  4. Boa noite, Tattah.
    Me desculpe não ter comentado anteriormente, muita correria…
    Antes de mais nada, os desenhos são seus? Lindos!!!
    Parabéns pela história, tô curtindo muito. Adorando as críticas que cabem ao mundo real também…
    Com certeza, vou esperar ansiosamente pelos próximos capítulos.

    • Boa noite, Naty!

      Sem problemas. Também ando numa correria danada. rs…
      Agradeço muito sua companhia e por ter arranjado um tempinho para comentar. Como falei no comentário que fiz ao fim do capítulo anterior, é sempre bom saber que o caminho que estou seguindo, está sendo bem entendido por vocês. Na minha cabeça parece tudo simples, mas vai que não escolhi bem as palavras para descrever o que imaginei, né? rs…

      Então, sim! Os desenhos são meus. Apenas rascunhos, justamente, pela falta de tempo. Caso contrário, vocês teriam artes finalizadas. rs…

      Mas andei me empolgando com esse último de Virnan e Marie e estou finalizando a ilustração com os mínimos detalhes. rs… Espero poder postar ele nos próximos capítulos.

      Um beijão mega carinhoso pra ti!

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