*

Érion sorriu para o homem de pele morena e olhos negros sem pupilas. A Sombra de Zarif, que se autonomeava Zefir, cruzou os limites da tenda em que o Cavaleiro se abrigava.

— Você parece aborrecido. — Érion comentou.

A Sombra o fitou com desdém.

— Achei que íamos massacrar este reino, mas até agora só estamos batendo em barreiras mágicas.

Érion arqueou os lábios.

— Sua impaciência é quase tão irritante quanto a de Zarif. Quase sinto falta dele.

Zefir rosnou em resposta.

— Ao menos me deixe queimar o exército humano que está vindo para cá.

— Por que deveria deixar você fazer isso? Será mais divertido vê-los sendo despedaçados quando aqui chegarem. Além disso, mal posso esperar para ver o desespero das minhas irmãs quando se derem conta que seus esforços foram em vão.

Ele fechou os olhos e inspirou fundo, como se estivesse aspirando a glória que o esperava diante dos Portões. Unificaria aquele mundo de vez e reinaria absoluto caminhando sobre os cadáveres dos seus inimigos. Sorriu largo e encarou Zefir, deixando-se imergir nas sensações que as oscilações de magia nas barreiras emitiam.

Limpou a garganta para falar, mas Zefir se adiantou:

— Algo ou alguém saiu das proteções. — Mirou o mestre, lendo em suas feições o que desejava. — Irei investigar.

**

— Você não parece bem. — Virnan observou com um sorriso irônico e recebeu o olhar assassino de uma Fantin muito pálida. — Tem medo de altura?

A mestra baixou a vista para os pés e seu desconforto aumentou ao constatar que o chão estava a centenas de metros abaixo. Naquela altura, a cidade não passava de borrões estranhos em meio a uma grande clareira. Fantin inspirou profundamente, afastando uma leve tontura.

— Não tenho nenhum problema com altura, só com a possibilidade de despencar do céu e acabar me transformando em uma mancha vermelha e disforme no chão. — Declarou, fitando a amiga, para afastar o olhar rapidamente, mirando a direção de onde vinha o perturbador som de uma explosão.

O ataque a Flyn se intensificou com o raiar do dia e a cidade inteira sofria abalos a cada nova investida contra as barreiras. Virnan esperava por isso, mas não imaginava que as arremetidas seriam tão brutais ao ponto dos inimigos conseguirem romper a segunda proteção pouco antes do nascer do sol.

Por isso, naquele momento, as duas ordenadas se encontravam a centenas de metros acima de Flyn. Pisavam no vazio, graças a magia de Virnan, que aumentou a resistência do ar para lhes permitir tal feito.

Lyla esticou-se ao lado delas, relaxando os músculos após levar as duas até aquele ponto. Ela arriscou uma olhadela para Fantin e pensou em complementar a piada de Virnan, mas decidiu que não cabia naquela conversa, então retornou para a forma animal e planou à volta delas, vigiando o entorno. Era apenas uma precaução, já que a possibilidade de serem atacadas naquela altura fosse quase nula.

Assim que Fantin terminou de falar, a resistência sob seus pés diminuiu e ela despencou por meio metro, deixando um gritinho escapar. O pânico que a tomou deu lugar a raiva, quando ouviu a risada escandalosa de Virnan.

— Para o inferno, Virnan! Quando descermos, eu vou te matar! — Ela se recompôs, berrando.

A explosão de raiva só fez com que a risada de Virnan aumentasse e, por algum tempo, Fantin foi obrigada a ouvi-la. Mas apesar do susto, ela admirou o riso solto que a fez recordar a jovem guardiã irresponsável e brincalhona da Ordem; aquela que pregava peças nos companheiros, cativando muita confusão.

Reprimiu um suspiro. A moça da qual se recordava, já não existia. Ela começou a desaparecer no momento em que iniciaram a viagem que as levou àquele reino lendário. Mesmo assim, era um refresco ouvir Virnan rir daquele jeito, novamente. Então, passou a mão no rosto e amainou as emoções, enquanto aguardava que a amiga retornasse a seriedade que a situação exigia.

— Perdão! — Virnan ergueu a mão, conciliadora. — Mas foi impossível resistir. O jeito que você falou, mais parecia que estava implorando por isso!

— Vamos ver se você vai continuar achando engraçado quando eu arrancar sua bela pele tatuada! — Fantin ameaçou.

A amiga lhe deu um tapinha no ombro.

— Precisa relaxar um pouco, Fantin.

— Diz a mulher que massacrou um grupo de batedores há alguns dias só porque estava com tanta raiva, que mal conseguia se conter. — Revirou os olhos, ciente de que havia tocado em um assunto delicado. — Como me fazer despencar para a morte, poderia me relaxar?!

— Foi apenas uma brincadeira! — Virnan se defendeu.

— Ao que parece, o pouco bom senso que você possuía, se foi junto com seus cabelos, quando os cortou!

Virnan gargalhou, novamente.

— Deuses, não me coloque no mesmo saco que você! Depois de passar a noite se divertindo no festival, você deveria estar com um humor melhorzinho.

A mestra abriu a boca para responder, mas acabou desistindo. Quanto mais discutissem, mais tempo passariam ali em cima e ela estava mais que ansiosa para retornar ao chão. Fez um gesto irritado e disse:

— Só faz logo o que veio fazer aqui e me deixa em paz. E vê se não perde a porcaria da concentração e nos mata!

O pássaro Lyla bateu asas ali perto, chilreou, como se concordasse com suas palavras, e se afastou por uma dezena de metros. Fantin se concentrou no que ocorria nas fronteiras mágicas, mesmo distante das áreas de conflito, conseguia ter uma boa ideia de como as coisas estavam por lá. As barreiras eram invisíveis, mas sempre que sofriam um ataque, luzes multicoloridas as percorriam até o topo, revelando que possuíam a forma circular e abobadada de um domo.

— Não precisa ficar tão nervosa. — Virnan retrucou, tranquila. — Foi você quem insistiu em me acompanhar.

— Como se eu fosse deixar você sair por aí sozinha e em meio a uma guerra!

— Não é a minha primeira guerra. — Recordou Virnan.

— Mas é a sua primeira contra forças tão poderosas, que não deveriam existir neste mundo e, também, como rainha. — Estreitou os olhos para a careta que ela fez. — E não comece com aquele discurso sobre não merecer e não querer a coroa. Você é uma mulher inteligente e foi esperta o suficiente para admitir que assumir o comando deste reino, era a única maneira de lhe oferecer uma chance de sobrevivência.

— Você fala como se eu tivesse tido outra opção!

— E não tinha?

Fantin cruzou os braços com ar sabichão.

— Ambas sabemos que você poderia ter dito “não” a Lyla e continuado seus planos de vingança contra Érion, indo até a Cidade dos Eleitos para tentar matá-lo. Uma ideia suicida, claro! Os deuses sabem que você tem uma inclinação para a autodestruição! — Fungou, irritada com a verdade que dizia. — Mas, em vez disso, você aceitou um pacto com Lyla para salvar Tamar, porque é uma boa mulher. E todas as decisões que tomou, desde então, só reforçam isso.

Parou de falar para organizar os pensamentos, observando Lyla dar uma pirueta no ar. Virnan sorriu de lado e ela captou o gesto com o canto do olho. Falou:

— Me pergunto o quanto desse sorriso é fingimento e me arrisco a dizer que é todo.

Virnan encarou as íris azuis dela, as mãos paralizadas no meio do movimento que realizava para começar a conjuração que era a razão de terem se afastado da segurança das barreiras. Retrucou:

— E eu me pergunto como saímos do assunto “guerra” para o assunto “meus sentimentos”. — Fechou os olhos, inspirando fundo um par de vezes antes de reabri-los. — Admito que ainda estou com raiva e triste e me esforço muito para parecer tranquila na frente de todos, porque não quero deixá-los preocupados quando já temos muito para nos ocupar a mente. Contudo, nenhum sorriso que eu dirigir a vocês é custoso, porque vocês são parte de mim, independente de sermos um Círculo ou não.

Como não houve uma resposta de Fantin, deu o assunto por encerrado e sentiu-se aliviada por isso. Tudo o que menos queria no momento, era deixar aquela tempestade de emoções a dominar.

Mesmo distantes do topo da barreira, elas sentiram o impacto de um novo ataque a oeste da cidade. Fantin passou a mão na nuca, incomodada com o arrepio que lhe percorria a espinha. Desta vez, a razão não era a altura. Ela pressentia que algo ruim estava prestes a acontecer e seus instintos raramente a enganavam.

— Por que eu acho que você já esperava por isso? — Apontou para a onda multicolorida que percorria a proteção. — Sabia que ele iria nos atacar antes, certo?

— Era uma possibilidade. — Virnan respondeu, analizando o entorno. — Nem sempre o exército mais forte sai vitorioso em uma guerra. Uma boa estratégia pode mudar os rumos de um conflito e Érion pode ser chamado de muita coisa, menos de idiota. Ele conhece nossas tradições. Sabia bem que um festival se realizaria dois dias antes do conflito e que esse momento era ideal para atacar e nos surpreender.

Aspirou o ar frio das alturas, começando a se concentrar para realizar a magia de integração. Dentro dos círculos protetivos, não conseguia usá-la corretamente; pois, assim como as barreiras mantinham a magia dos inimigos fora de Flyn, o inverso ocorria com quem estava dentro delas.

Virnan usou o auxílio dos espíritos do ar para se informar sobre o que se passava nos acampamentos inimigos o máximo possível. Contudo, após o ataque inicial, os relatos eram desencontrados e confusos. Por vezes, espíritos disseram que não conseguiram ver nada, o que era impossível, pois estavam sob ataque contínuo.

Lyla se voluntariou para uma missão de reconhecimento, mas a ideia de deixá-la se aventurar no campo inimigo, apavorou Virnan. Depois do que ocorreu com Lorde Axen, não estava disposta a deixá-la agir sozinha. Então, após discutir o assunto com os comandantes, e decidida a descobrir o que se passava além das proteções, a castir resolveu ultrapassar os limites delas.

Ajudava o fato de que Marie não estivesse por perto para tentar demovê-la da ideia. Assim que o dia raiou, Virnan e Lyla a levaram para o acampamento de Lorde Verne e também transportaram Tamar e Melina, seguindo os planos traçados.

O vento soprou forte, bagunçando cabelos e invadindo suas roupas. Obviamente, o ponto mais rápido e seguro para realizar a magia de integração, era o céu. Levar Fantin consigo não estava em seus planos, mas a mestra insistiu em lhe acompanhar, deixando claro que dizer “não”, estava fora de cogitação.

— Sabe, o que me assusta neste momento é que você parece muito tranquila quanto a isso. — Fantin comentou.

— Para alguém que está ansiosa em retornar ao chão, você conversa demais. — Virnan alfinetou. — Como disse há pouco, esta não é a minha primeira guerra. Depois de um tempo, você acaba aprendendo a reprimir algumas emoções. Não deixa de ser o que fazemos na Ordem, quando estamos agindo em meio à conflitos e epidemias.

— Acho que compreendo. Acabamos reprimindo demonstrações de tristeza e pena, para não aumentar o tormento daqueles que ajudamos.

— É isso aí! Além disso, por mais que eu tenha tentado antecipar os movimentos de Érion, estou bem ciente de que jamais conseguiria fazê-lo completamente. Afinal, só tivemos algumas semanas para planejar nossa defesa, enquanto ele teve séculos.

Um novo ataque atraiu os olhares das duas para as luzes que finalizavam abaixo de seus pés. Fantin concordou com um inclinar de cabeça, após um incômodo silêncio. Deixou o assunto de lado e permitiu que ela realizasse a magia de integração com o ar. Prestava uma atenção excessiva, já que Virnan falou e repetiu diversas vezes que poderia realizar as mesmas conjurações que ela; bastava dedicar um pouco de tempo a estudá-las. De fato, ela tentou lhe ensinar algumas coisas no tempo livre entre os preparativos para a guerra, contudo, o que aprendeu estava muito longe de alcançar um terço do vasto conhecimento da castir.

Novamente, Virnan pôs uma mão diante da face e, assim como ocorreu em Valesol, um círculo saiu do corpo dela e expandiu até desaparecer de vista. Não durou mais que alguns instantes até o círculo retornar para ela.

A castir abriu os olhos, fazendo uma expressão confusa e Fantin aguardou que ela dissesse algo sobre o que viu. Em vez disso, Virnan repetiu a magia. Momentos depois, resmungou um palavrão na língua Enaen e tentou mais uma vez.

As repetições aumentaram o desconforto de Fantin e quando o círculo retornou ao corpo de Virnan pela terceira vez, indagou sobre o que estava acontecendo.

— Não sei como ele está fazendo, mas também não consegui descobrir nada. — Virnan revelou. — Daqui posso ver os guerreiros nas fronteiras mágicas. Obviamente, estamos distantes demais para que consiga enxergá-los com perfeição, não passam de pontos negros para mim. Mesmo assim, minha magia de integração deveria permitir que enxergasse os exércitos de Érion e tudo o mais em volta, como se fizesse parte do ar.

Estalou a língua, frustrada.

— Você mesma disse, ele não é idiota e conhece a natureza da sua magia porque também a possui. — Fantin relembrou, compartilhando da sua frustração.

— É verdade, em parte. A magia dele tem uma forte ligação com o ar, mas ele não o domina como nós duas. Não era à toa que se tornou um estudioso na Ordem Castir. O cerne da magia dele é bastante semelhante a de Marie. Érion pode desconstruir a magia alheia e ver o que é necessário para que as conjurações sejam realizadas, entretanto, ele não pode recriá-las como Marie faz.

A testa de Fantin enrugou e ela soprou o ar para fora dos pulmões. O incômodo que sentia desde que Lyla as deixou ali, havia evoluído de um mero arrepio, para uma dor de estômago.

— Creio que agora compreendo o motivo dele querer a alma dela. — Falou, e recebeu um inclinar de cabeça positivo como resposta.

— Isso e também o fato dela ser uma amitsha. Bem, se ele sabe como a nossa magia funciona, também detem o conhecimento necessário para se defender dela e agora sabemos o motivo dos espíritos do ar parecerem tão confusos.

Algo chamou a atenção de Fantin e alheia ao vazio sob seus pés, ela deu uma volta em si mesma, perscrutando o entorno. Estreitou os olhos, atenta ao horizonte.

— Tem algo errado — afirmou e viu outro meneio positivo de Virnan, que complementou:

— Também sinto isso e acho que é melhor voltarmos!

Mesmo que não conseguissem enxergar o perigo, ainda sentiam as mudanças nas correntes de ar.

— Seja lá o que for, isso fede como aquelas malditas sugadoras. — Fantin replicou.

Ouviram um som forte, semelhante a um trovão. Mais luzes coloridas percorreram a barreira até o topo, contudo, desta vez era diferente. O som crescia à medida que a barreira ruía e tanto Fantin quanto Virnan sentiram o impacto do rompimento em sem próprio corpo na forma de uma pontada no peito, já que elas e as amigas reforçaram aquela proteção e as demais próximas à cidade.

— Vamos! Já mandei Lyla retornar para a cidade. — Virnan falou com urgência.

— E nós?!

— Descer é sempre mais fácil. Só temos que trabalhar a resistência. — Explicou, tomando a mão dela.

Fantin gritou ao perceber que, desta vez, estava mesmo em queda livre.

— Eu te odeio! — Berrou.

Poderia ter sido uma queda mais amena, mas Virnan tinha pressa de sair dali. Infelizmente, não foi rápida o suficiente. Algo as atingiu com força e as separou.

Em meio a piruetas descontroladas no ar, Fantin percebeu formas escuras a bater asas no céu. Uma delas a atacou, fincando as garras em seus ombros. Era um pássaro grande como Lyla; ao menos foi isso que lhe pareceu. A criatura tentou lhe bicar os olhos, mas a mestra conjurou as argolas douradas nos pulsos e a socou com tanta ânsia de se libertar, que um buraco se abriu no corpo do atacante. A ordenada se livrou dele, percebendo a aproximação de outro grupo de pássaros.

Tudo acontecia rápido demais. Não havia tempo para pensar, então Fantin permitiu que o instinto de sobrevivência lhe comandasse os movimentos, enquanto se esquivava de garras e bicos afiados.

As asas vermelhas de Lyla surgiram à sua frente. O spectu passou entre os inimigos com um giro rápido e as penas afiadas nas pontas das asas dela, deceparam as cabeças de dois pássaros. Alguns metros acima, Virnan se encontrava em situação semelhante à de Fantin.

Contudo, a experiência da castir com as alturas, permitia que seus movimentos e investidas fossem calculados. Ela decepou a asa de um pássaro, girou no ar e fincou a adaga na cabeça de outro. Inclinou o corpo para trás e, com um golpe da adaga, deslocou o ar à sua volta e partiu metade dos pássaros ao meio.

A castir olhou para baixo e gritou algo para Fantin, que naquela altura havia se entregado ao desespero da queda. A amiga não conseguiu ouvir suas palavras e berrou de dor quando garras lhe rasgaram as costas, penetrando a couraça que vestia.

Com novo golpe, Virnan se livrou do resto dos pássaros, então inclinou o corpo e acelerou sua queda até Fantin. Lyla impediu que a reunião das ordenadas fosse interceptada por outros pássaros e a mestra agarrou os braços da amiga, aliviada.

— Está tudo bem! — Virnan gritou para ela.

— Diga isso quando estivermos no chão!

A segurança que Virnan transmitiu, se desfez logo em seguida, quando um ser enorme trombou com elas e, novamente, foram separadas. Ainda estavam a centenas de metros da segurança da barreira e Fantin chegou a torcer para caírem mais rápido até ela.

O novo inimigo não era um pássaro e, sim, um dragão negro e muito maior do que a forma animal de Zarif. Ele avançou em direção a Virnan, sem lhe dar tempo de reação. Trombou com ela, usando os espinhos longos da calda para ferí-la. Quando ele investiu novamente, Virnan cortou o ar e o tronco dele rasgou-se como tecido, jorrando sangue negro e fétido.

Zefir cuspiu fogo nela, que conjurou um escudo para bloquear as chamas que, ao atingirem a proteção, fizeram palavras se acenderem, revelando um círculo. Ele emitiu um rosnado, bateu as asas com vigor e tentou abocanhar as pernas de Virnan, mas foi empurrado para trás por um dos socos de Fantin, que golpeou o ar com tanta força que sentiu um pouco de dor quando a magia se desprendeu do seu corpo.

Furioso, Zefir sacudiu a calda e os espinhos na ponta se desprenderam dela indo em direção a Fantin, mas Virnan estava atenta e conjurou outro escudo para proteger a amiga. Contudo, Zefir usou o momento de distração dela para atacá-la. Ele abriu as asas, diminuindo a velocidade, e levou a calda em direção ao corpo dela. Virnan recebeu uma pancada forte na cabeça e foi atirada por uma dezena de metros ao lado, mudando a trajetória da queda.

Fantin esperou vê-la contra-atacar, mas logo percebeu que havia perdidos os sentidos e quando Zefir fez questão de ir em direção a ela, novamente, a mestra tornou a afastá-lo com um soco no vazio. E continuou a socar em direções específicas, desta vez, para tomar impulso e se aproximar de Virnan, então passou os braços em volta dela com força.

As duas giraram no vazio com o dragão mergulhando atrás delas.

Desesperada, Fantin retirou uma das lanças curtas do suporte nas costas e deu um golpe transversal, irradiando o máximo de magia possível para a lâmina na ponta. O movimento empurrou o ar para a fera, rasgando o rosto dele.

Novamente, Lyla surgiu para ajudar. Ela grudou-se nas costas do dragão, fincando as garras nele, bicando e cortando-o com as penas afiadas. Contudo, o dragão a afastou com um giro da calda longa e tornou a mergulhar atrás delas.

A boca dele estava a centímetros das duas ordenadas e uma bola de fogo se formava em sua garganta, mas Fantin não tinha planos de morrer tostada e atirou a lança nele, impulsionando-a com magia. O monstro percebeu a ação e desviou, contudo a arma atravessou uma das asas dele, que recuou com um rugido furioso e soltou as chamas que, felizmente, foram barradas por uma parede invisível.

Elas haviam entrado na proteção.

Entretanto, Fantin estava longe de se sentir segura e implorou aos deuses para conseguir livrá-las da morte que parecia certa.

O teto de uma das construções próximas às muralhas da cidade, crescia diante dos olhos dela, que tentou recordar as palavras de Virnan sobre como aumentar a resistência do ar, mas quanto mais perto chegavam do chão, mais medo sentia. Os pensamentos se atropelavam em sua mente.

Então, de um jeito atrapalhado, fez o que já estava acostumada. Socou o ar e o impacto fez parte do teto do edifício ruir, mas freou a descida delas. Foram atiradas para o lado, despencando em direção as pedras multicoloridas no chão. A mestra se preparou para novo soco, mas a poucos metros do chão, as asas do pássaro Lyla as envolveram completamente e as duas caíram sobre o spectu.

Um instante longo se passou, enquanto Fantin observava o céu azulado, se certificando de que ainda era capaz de respirar. Lyla gemeu debaixo dela, retornando a forma humana.

— Deuses! Juro que mato a próxima pessoa que me convidar para um vôo. — Fantin sussurrou, passando a mão ensaguentada na cabeça e escondendo um risinho nervoso.

***

Lorde Verne enxugou o suor com as costas da mão. Naquele ponto da floresta, usar os cavalos era quase impossível, então o exército seguia a pé numa marcha lenta e cansativa.

— Acha que chegaremos à tempo?

A voz de Emya lhe chegou e ele se voltou para olhá-la, alguns metros atrás. Diminuiu as passadas para que a esposa o alcançasse. Ele detestava o fato de tê-la ao seu lado, caminhando para uma guerra.

Depois que Virnan o levou para o acampamento aliado, tentou demovê-la da ideia e fazer com que retornasse à segurança de Midiane. Contudo, Emya sabia como se impor e deixou claro que não iria se esconder, quando a possibilidade da derrota significava o fim do mundo. Como mãe e rainha, devia isso aos filhos e ao seu povo.

Restou ao lorde aceitar. Ele fez uma cara emburrada, resmungou, mas a verdade é que estava orgulhoso dela e regozijava-se com o fato de que os soldados podiam ver, finalmente, quem era a futura rainha deles. A verdade era que o próprio Verne passou vinte anos aguardando o momento em que Emya iria deixar a máscara de mãe zelosa e princesa delicada cair para assumir sua verdadeira personalidade. Ele nunca conseguiu compreender bem os motivos dela agir assim, já que foi muito rebelde na juventude; até ofereceu resistência a ideia de se casarem, mesmo deixando claro que o amava desde a época em que ele e Marie ainda eram noivos.

A certa altura da vida de casados, ocorreu ao lorde que Emya tentava imitar Marie, não necessariamente sendo uma cópia fiel dela com o intuito de preservar os bons termos de seu casamento. Mas, sim, mantendo a essência de sua personalidade tranquila, o que era esperado de uma princesa no casamento e na vida pública do reino.

Era prazeroso vê-la agir com a segurança e rispidez da juventude. Nessas horas, lhe custava afastar o olhar da sua figura.

— Nós estamos bem perto, mas não sei se as proteções de Flyn irão aguentar até que possamos assumir nosso papel nessa guerra. — Respondeu, finalmente.

Ao lado dela, Marie traçou gestos firmes no ar, mas logo recordou que eles não a compreendiam e parou. A mestra pousou o olhar no chão, desanimada. Na Ordem, a maioria das pessoas, bem ou mal, conseguia ler seus sinais.

Ela chegou ao acampamento do exército aliado um pouco depois do raiar do dia em companhia de Virnan, Lyla, Voltruf e Fenris. A castir foi rápida e sucinta ao explicar a situação atual da cidade e partiu com a mesma rapidez. Posto a par dos acontecimentos, Verne ordenou que o acampamento fosse desmontado e pôs os homens em marcha.

Marie conteve um suspiro irritado.

— É frustrante para nós também. — Emya falou, indulgente.

Ao longo daquela manhã também sentiu o peso da ausência das palavras da irmã. Queria dialogar com ela sobre o que estava prestes a acontecer, mas a ignorância sobre a linguagem de sinais era uma barreira quase gigantesca naquele momento em que não podiam se dedicar ao ensino e aprendizado dela.

Recomeçaram a caminhada e Marie olhou para o rosto emburrado de Voltruf, quando esta disse:

— Sei bem como se sente, Mestra. Ninguém além de você pode me ver e ouvir aqui!

A ordenada sorriu para ela e deu de ombros, brincando com o medalhão em seu pescoço. O espírito havia se apegado ao objeto para poder lhe acompanhar.

— Acha que sua tia já alcançou os seus amigos? — Voltruf indagou.

Um inclinar de cabeça positivo foi a resposta de Marie.

— Espero que a magia da sua Ordem seja mesmo poderosa. Do contrário, — fez uma pausa longa, olhando os soldados que seguiam atrás delas — esses homens não terão a menor chance.

Como se tivesse lhe ouvido as palavras, Lorde Verne comentou:

— A grã-mestra já deve estar perto do ponto de encontro com os membros da Ordem que vieram de navio. Pelo o que sei, o caminho deles não é tão penoso quanto este.

— Mas não deixa de ser perigoso. A Floresta de Pedra, apesar de já estar morta há milênios, oferece riscos piores que estas matas. Aquele lugar é amaldiçoado. — Fenris recordou, enquanto desviava de um cipó grosso e o sustentava para permitir a passagem de Marie e Emya.

Alguns metros adiante, uma forte luz se introduzia na folhagem densa das árvores, afastando a escuridão e anunciando que estavam prestes a entrar na Floresta de Pedra. Nenhum deles tinha ido tão longe de seu reino natal. De fato, antes de abandonarem Midiane para buscarem a princesa Analyn para o sacrifício, jamais cogitaram a possibilidade de pisarem naquele lugar amaldiçoado. Então, tomaram um momento para admirarem as pedras milenares que, um dia, foram árvores imensas.

— Me pergunto se as lendas sobre este lugar são verdadeiras. — Emya falou baixinho e mirou a irmã.

— Estou bastante inclinado a acreditar que não. — Verne expôs e se voltou para Marie, também. — A nossa amiguinha invisível deve saber.

Ele aguardou uma resposta, mas a cunhada não se manifestou. Em vez disso, caminhou em direção as rochas milenares. Marie sentiu um calafrio a lhe percorrer a coluna e Voltruf passou a mão sobre um tronco petrificado, com evidente respeito. Então, o espírito uniu as mãos cruzadas sobre o peito e curvou-se sussurrando uma oração. Marie não compreendia as palavras, mas repetiu o gesto e fez sua própria oração, mentalmente.

A proximidade do confronto a apavorava, mas dizer “não” a ele, estava fora de cogitação. Então, inspirou fundo e, resignada, adentrou na floresta petrificada. Mal caminhou dez passos, uma grande sensação de desespero a assomou.

— Mas que diabos! — Fenris exclamou, mirando Voltruf, cuja presença foi revelada assim que cruzou os limites entre as duas florestas. — Quando foi que fizeram um círculo?!

O espírito sorriu, compreendendo o que se passava, e explicou:

— Creio que a maioria de suas crenças estão erradas, mas você estava correto, Cavaleiro Fenris, quando disse que este lugar é amaldiçoado. — Ela olhou para a grande árvore petrificada à sua frente. — Há uma razão muito forte para o templo da Ordem Castir ter sido construído próximo a esta floresta. Foi aqui onde a Grande Guerra chegou ao fim e os mundos se separaram. Estas pedras ainda possuem muita magia espiritual e é por isso que espíritos se materializam aqui. É provável que encontremos muitos espíritos naturais pelo caminho.

Ela encarou Lorde Verne.

— Oriente seus homens para ignorá-los e passaremos em paz por estas terras. Contudo, devo advertí-los que, assim como há magia em abundância por aqui, também existe muito ódio e sangue entranhado neste solo. Isso costuma destroçar mentes fracas, planando pesadelos e medos.

— Então, é perigoso prosseguirmos por aqui. Conte uma novidade. — Verne falou, fazendo uma careta.

— No meu entender, Lorde Verne, qualquer lugar é perigoso, desde que se ofereça as condições necessárias para que coisas ruins aconteçam e homens estúpidos não respeitem seus limites. — Sorriu, debochada. — Contudo, admito que é uma boa estratégia atravessá-la para alcançar… Como é que vocês chamam o Templo Castir nos dias de hoje, mesmo?

Emya respondeu:

— Cidade dos Eleitos. — Ela encarou a irmã por um momento, mas Marie não a fitou de volta, então complementou: — Mal posso esperar para ver aquele maldito lugar em chamas.

Fenris sorriu de lado, dizendo:

— Concordo! Mas antes, temos outra coisa para destruir. Só espero que Mestra Tamar e Virnan estejam certas e não tenhamos nos desviado do verdadeiro confronto em vão. — Mirou as pedras, enquanto pegava o odre e sorvia um longo gole de água.

O resto dos homens foi saindo da floresta devagar e se aglomerando à espera de ordens ou que a caminhada reiniciasse. Eles também aproveitaram para saciar a sede, enquanto passavam os olhos naquele local lendário.

— Duvido muito que Virnan tenha sido enganada por aquela aberração que vocês chamavam de Lorde Axen.

— Ele pode ter mentido. — Fenris refutou. — Todavia, é tarde para pensar sobre isso. Só nos resta ir adiante com os planos.

Voltruf sorriu, debochada.

— Acredite em mim, Cavaleiro Fenris, nenhuma sombra ou espírito pode enganar um Castir Executor. Não quando ele possui uma forte ligação com o ar, que lhe permite identificar os aromas que certas emoções liberam nos corpos. Ainda mais uma castir auriva, cuja audição, visão e olfato são extremamente acurados. — Arqueou a sobrancelha, modificando o sorriso um pouco. — Quanto a Mestra Tamar, a conheço pouco, mas desse pouco posso falar, com certeza, de que é uma mulher muito sábia por deduzir a verdade, antes que Virnan encontrasse aquela sombra. Pessoas como ela são raras até mesmo entre o nosso povo.

— Pessoas como ela? — Verne indagou, aceitando o odre que Fenris lhe entregou. — Pelo o que me lembro, a biblioteca do palácio está cheia de estudiosos como ela.

Ele tomou um gole farto de água e enxugou o suor da testa com as costas da mão. Não iria demonstrar, mas estendia a conversa porque se encontrava reticente em adentrar naquele lugar. Ele podia sentir o ódio, sobre o qual Voltruf havia falado. Parecia algo que estava no ar, tornando-o pesado, sufocante.

Momentaneamente esquecida da situação em que se encontrava, Marie ergueu as mãos e começou a gesticular a resposta, então deu-se conta do erro e parou, frustrada.

— Ela quer dizer que Mestra Tamar não é apenas uma estudiosa. Ela lê quatro vezes mais rápido que as outras pessoas e nunca esquece de algo que viu, ouviu ou leu. — Fenris respondeu. — Seu raciocínio é muito rápido. Você mesmo constatou isso nas reuniões que fizemos para montar nossa estratégia, Lorde.

— Proditia. É assim que chamamos pessoas sábias como ela. — Voltruf explicou.

Verne endireitou a postura, pensativo.

— Hum… Compreendo. — Olhou para Fenris, debochado. — Não deixe que Mestra Fantin perceba sua admiração pela mulher dela. Não quero ter que catar seus pedaços por aí.

Fenris se defendeu:

— Não é isso! Mestra Tamar e eu somos bons amigos. — Limpou a garganta. — Mas por via das dúvidas, deixemos minha admiração por ela longe do conhecimento de Mestra Fantin!

Lorde Verne gargalhou alto, seguido pela risada silenciosa de Marie. E vê-los assim, pareceu aliviar a tensão dos soldados. A situação exigia seriedade, mas aquela rápida conversa serviu para ajudar o lorde a afastar o desconforto que a atmosfera do lugar trazia. Ele inspirou fundo, cessando o riso, e disse:

— Muito bem, vamos destruir um amuleto!



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 49. Zefir

    • Do Tico e do Teco. Meus neurônios. Quando eles brigam, guerras fantásticas acontecem nas histórias.

      Hehehe…

      Xêro!

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