*
— Não gosto disso! — Joran reclamou para Voltruf.
A companheira limitou-se a olhá-lo de esguelha e dar de ombros.
— Não cabe a nós questionarmos as decisões de Bórian. Ele prometeu a Virnan que daria uma canção para a esposa dela. — Ela retrucou, cruzando os braços.
— Isso é basicamente destruir o pouco que estamos tentando salvar! — Joran rosnou.
O rosto de Voltruf se contraiu em um sorriso presunçoso, enquanto ele se dava conta de que falou alto demais e acabou por atrair a atenção de Marie e Bórian, que estavam conversando no meio do salão de armas do palácio.
— Será mesmo? — Voltruf indagou. — Nós não temos ideia do real poder de uma amitsha.
— Do que está falando?! Nós somos Castirs! Nos foi ensinado sobre os amitshas…
Uma careta apagou o sorriso de Voltruf. Ela retrucou, corrigindo-o:
— Nós “éramos” Castirs! — Cruzou os braços, estreitando os olhos por um momento. — Ainda me recordo tudo o que nos foi ensinado, Joran, mas você há de concordar que não temos mesmo ideia do poder que alguém como Marie possui. Todos os amitshas que conhecemos eram crianças e adolescentes descontrolados. Marie é uma mulher adulta, que suprimiu seu dom com as palavras, recorrendo ao silêncio.
Eles voltaram a fitar a dupla no meio do salão.
— Virnan não pediria uma canção a Bórian, se não estivesse certa de que Marie pode se controlar. E se a vontade dela não for o suficiente, agora ela faz parte de um Círculo, e um Círculo é equilíbrio.
**
Os olhos de Marie não mentiam. Antes mesmo que ela se sentisse segura para falar, ao ver o círculo de proteção brilhar na pele morena, Virnan soube que estava furiosa.
Com efeito, a castir sabia a razão.
— Por que você pediu para ele me ensinar aquilo?! — Marie berrou, a meio caminho da mesa em que ela estava sentada.
O descontrole da voz dela fez a magia da proteção de Virnan oscilar. A florinae balançou as pernas no ar e saltou para o chão com um ligeiro desequilíbrio.
— Deuses, Virnan! Por que você faz essas coisas comigo? Por que é tão cruel? — Marie passou a mão sobre os olhos, afastando as lágrimas que se avizinhavam.
A castir inspirou fundo, recuperando-se da dor que invadiu-lhe o corpo. Aquela breve oscilação na proteção, foi deveras incômoda e assustadora e Virnan sentia-se feliz por Marie não ter uma ideia real do seu poder. Fosse assim, a mestra provavelmente não tornaria a falar, mesmo que as pessoas recobrissem os corpos com milhares de círculos de proteção.
Forçou-se a sorrir, apaziguadora.
— Você não teria aceito, se soubesse o que a canção faria. — Retrucou, sentando as mãos nos braços dela. — Agora, você entende o motivo de Érion querer tanto a sua alma… Com esse poder, ele não precisaria da Pedra do Coração para derrubar o véu entre os mundos.
Ela recordou o breve interrogatório de Ilan Dastur e sua sombra com um arrepio a percorrer as costas. Já havia deduzido boa parte do que eles lhe disseram, ainda assim, foi uma conversa bastante esclarecedora.
— Ele estava tão ansioso por isso, que se adiantou à eleição e enviou Lorde Axen em seu encalço. Seu dom, aliado à fragilidade do véu durante a lua vermelha, fariam dele invencível.
Marie fugiu do seu toque, como se tivesse sido queimada.
— Eu te odeio! — Rosnou.
Virnan aumentou o sorriso e retrucou:
— E eu te amo!
— Às vezes, não parece. — Marie redarguiu, enervada.
Como sempre acontecia em situações como aquela, sua raiva cresceu embalada pelo ritmo do sorriso de Virnan. Simplesmente, odiava quando ela sorria daquela forma, se tornando ainda mais bela ao fazê-lo tão provocante.
— Quero te mostrar um lugar. — Virnan falou, de repente, e lhe tomou a mão.
Disposta a não deixar a raiva esmorecer, Marie ainda tentou lhe oferecer alguma resistência, mas a curiosidade acabou por vencê-la e se deixou conduzir por ela. Franziu o cenho quando percebeu que se encaminhavam para fora do palácio. Virnan pediu a um servo que selasse dois cavalos e em pouco tempo cavalgavam além dos muros da cidade.
Passaram por campos repletos de trigo e pomares, onde a mestra pôde notar um interessante sistema de irrigação. De fato, aquele reino apesar de “perdido” no tempo, parecia estar séculos à frente de qualquer outro. Apesar de ainda estar zangada com ela, Marie indagou a Virnan sobre o que via. A esposa fez o cavalo diminuir o trote para lhe explicar calmamente que seu povo integrava o uso da abundante magia com algum trabalho braçal e muita inteligência. Muitos magos florinaes eram especialistas no aprimoramento das plantações, influenciando seu ciclo de crescimento, enquanto outros desenvolviam métodos mais eficazes e rápidos de colheita, evitando o desperdício e permitindo que os campos tivessem o descanso necessário até o próximo cultivo.
Em parte, aquele sistema de produção, foi um dos fatores que influenciaram as guerras continentais. O desprezo dos florinae pelos humanos e suas necessidades, fez com que se negassem a compartilhar o conhecimento que poderia saciar a fome de outros povos. Em vez disso, comercializaram o alimento em excesso.
Por desconhecerem a natureza da magia florinae e, também seus métodos de plantio e colheita, os habitantes do continente além-mar começaram a acreditar que a fartura de alimento deles, se dava pela qualidade do terreno. E a ambição de possuir terras tão férteis fez com que muitos reis e exércitos atravessassem o mar.
Virnan findou a explicação quando alcançaram um pequeno pedaço de floresta, rodeado por plantações. Adentraram nele devagar e, duas centenas de metros adiante, Marie admirou uma construção singela, mas tão bela quanto as da cidade. Vira algumas semelhantes pelo caminho, mas aquela lhe parecia estranhamente aconchegante, como se já tivesse estado ali antes.
Olhou para a esposa, vendo-a escorregar a mão pelos cabelos com um jeito travesso.
— Confesso que duvidei ser capaz de achar o caminho, após tantos séculos — Virnan soltou, rindo.
Ela pulou para o chão e ajudou Marie a apear do cavalo, sustendo-a pela cintura. A mestra esforçou-se para manter a raiva de pé, ainda que desejasse muito beijá-la naquele momento. A calmaria e isolamento daquele lugar a faziam desejar um momento de paz com ela.
— Nunca trouxe alguém aqui. — Virnan revelou, avaliando o estado da construção.
A limpeza do local denunciava que Laio o visitava e cuidava com frequência, assim como fazia quando ela executava suas funções como Castir, no passado.
— Verdade seja dita, sequer passei uma noite sob este teto, ainda que o tenha construído com as minhas mãos. — Sorriu de lado, achando engraçado as palavras seguintes: — O fiz apenas por fazer. Laio descreveu isso, certa vez, como a forma que encontrei para relaxar um pouco após minhas viagens para os outros mundos.
Deslizou a mão por uma coluna tão larga quanto um barril de vinho. Estava quase toda coberta pelas folhas miúdas de uma trepadeira. Pequenas flores brancas e amarelas entremeavam o verde escuro das folhas.
— Admito que minhas mãos não são as de uma artesão, mas Laio ajudou bastante. Era o único tempo que tínhamos para passar juntos naquela época. — Jogou alguns fios de cabelos para trás das orelhas e empurrou a porta de madeira maciça, entrando na casa e Marie a acompanhou, silenciosa.
Obviamente, o lugar estava completamente vazio. Contudo, Marie podia visualizar, facilmente, como seria se fosse habitado por uma família.
Por que me trouxe aqui? Gesticulou para Virnan, que sorriu em resposta, balançando os ombros levemente.
Marie se perguntou se ela tinha noção do quanto aquele jeito de sorrir era atraente e o efeito que causava nela. Acabou se chamando de idiota. Elas eram parte de um Círculo agora e ainda que não conseguissem recordar de tudo que dividiram naquele ritual, estava certa que a esposa prestou bastante atenção aos seus sentimentos em relação a ela e, por isso, usava e abusava de gestos que a encantavam e atraíam.
— Acho que o motivo de nunca ter ocupado este lugar, era que não poderia viver nele sozinha. Mas agora, sonho em dividí-lo com você. — Sorriu de lado, causando um leve palpitar em Marie.
Mesmo assim, a mestra não se deixou influenciar pelo charme daquele gesto.
Acha que dizer isso e me trazer aqui fará com que minha raiva cesse? Isso não muda o fato de que ter esse conhecimento… essa “canção” pode ser desastroso. Estou com medo, Virnan. Estou apavorada!
Ela gesticulava apressada, dando passos curtos pelo lugar e Virnan teve de se esforçar um pouco para conseguir interpretar os gestos. Por fim, a guardiã caminhou até ela e lhe aprisionou as mãos entre as suas. Prendeu olhar ao dela, enquanto acarinhava a palma de uma das mãos.
— Calma. — Pediu.
A soltou rapidamente, para traçar um círculo de proteção em sua própria pele.
— Me perdoe. Acho seus gestos graciosos, sempre achei, mas também amo a sua voz e agora que tenho magia suficiente para me proteger do poder dela, quero sempre ouvi-la.
Beijou-lhe as mãos, carinhosa. Então, falou devagar:
— Com efeito, trazê-la aqui não irá mudar as coisas, nem arrefecer sua raiva. Contudo, andei procurando um momento adequado para lhe mostrar este lugar, mas ele nunca chegava. Então, resolvi aproveitar a primeira oportunidade que tivesse. — Baixou o olhar e os lábios tremeram, anunciando o choro. — Eu também estou com medo, amor. Tenho um medo gritante de perder você e as outras, assim como perdi Zarif…
Era a primeira vez que Marie a ouvia falar sobre o que aconteceu em Valesol.
Após passar àquela noite em um silêncio dolorido a fitar o vazio, a guardiã saiu da tenda na qual repousava, caminhando com passos duros e decididos. Ela invadiu a tenda em que Melina, Emya e Tamar discutiam com os regentes dos reinos vizinhos e fez um discurso inflamado sobre o que esperava daquela gente. Deixou bastante clara a situação e o poder florinae, o qual eles tinham testemunhado na tarde anterior em Valesol.
Na prática, ela os chamou de covardes e jurou nunca mais ir em socorro deles, caso o cavaleiro os atacasse. Foram frases duras, mas havia nelas uma sutil ameaça de que, quando o conflito chegasse ao fim, Flyn não teria motivos para enxergar outros reinos, que não Axen e Midiane, como amigos. Por fim, ela abandonou a tenda informando a Emya, Anton e Guil, o local exato em que os encontraria dali três dias.
Obviamente, a rudeza das palavras e as declarações, causaram uma profunda impressão nos homens. Então, quando a guardiã buscou os exércitos midiano e axeano na data marcada, encontrou também os exércitos de Primian, Trícia, Bantos e Barafor. Virnan passou muito tempo ao lado de Lyla e do seu pai, quando ainda era uma protetora; ela bem sabia que diplomacia era importante, mas às vezes, as pessoas necessitavam ser atraídas para a realidade de uma forma grosseira e que alguns respondiam bem melhor a gritos e ameaças do que a sorrisos falsos e apertos de mãos.
O desejo de Marie era poder expurgar aquela dor da amada, mas sabia que isso estava muito além das suas capacidades e tudo o que poderia lhe oferecer era um ombro para chorar, então a puxou e apertou contra si por um longo tempo. Sua raiva ficou de lado, esquecida nas lágrimas que lhe molhavam a pele e nos soluços de Virnan, os quais compartilhou por algum tempo.
Com um sorriso quase tímido, Virnan se afastou passando as mãos nos olhos.
— Droga! Não te trouxe aqui para me desmanchar em lágrimas. Perdão, amor!
A resposta de Marie foi um beijo carinhoso em sua testa.
— Não aja como se fosse indestrutível, Virnan. Eu realmente amo esse seu jeito presunçoso, embora não devesse. Mas também amo quando mostra o que realmente sente. Bem, sou sua esposa, e estou certa de que faz parte do casamento compartilhar momentos de dor, tanto quanto os de alegria. — Escorregou uma mão pelo queixo dela, erguendo-o levemente, então a beijou.
Uma risada baixinha escapou de Virnan quando se afastaram.
— Às vezes, penso que é impossível amar você mais do que já amo. — Ela confessou. Fungou, admirando os olhos castanhos dela. — Então, você me olha dessa forma e descubro que esse amor só cresce.
Sapecou um beijo rápido nos lábios de Marie. Inspirou fundo para recuperar um pouco de si e disse:
— Peço desculpas por não ter contado o que a “canção” pode fazer, mas isso não muda o fato de que é uma arma importante e que faço essas coisas para que um dia possa dividir essas paredes com você e chamá-las de lar.
Marie suspirou, ciente de que não poderia vencer aqueles argumentos, embora estivesse com medo das consequências do que ela planejou.
— É apenas um garantia — Virnan afirmou. — Não quer dizer que terá de usar sua voz. Tenho esperanças de que tudo chegará ao fim rapidamente.
A mestra deu de ombros, sorrindo vagamente. Algo lhe dizia que não seria tão simples e que este também era o pensamento de Virnan. A guardiã costumava pensar muito à frente do esperado e, se pediu a Bórian que lhe ensinasse algo tão penoso, era porque existia mesmo uma chance de que os planos traçados falhassem.
Não valia à pena se desgastar com isso, então decidiu mudar de assunto:
— Não sei porquê, mas quis acreditar que voltaríamos para a Ilha Vitta.
Os olhos de Virnan se apertaram, escondendo uma leve tristeza. Também sentia saudades da ilha, seus habitantes e os dias pacíficos que compartilhavam.
— Quando tudo acabar, ainda terei deveres para com Flyn e este mundo — ela disse.
— E eu também. — Marie atalhou.— Fizemos uma promessa de que a ajudaríamos nesse caminho. Mesmo assim, não posso evitar de desejar a calmaria da Ilha Vitta. Se soubesse, meses atrás, que tudo isso aconteceria, não teria deixado você partir com Petro para apanhar os novos ordenados e passar dois meses longos longe de mim. Teria lhe dito o quanto te amo e aproveitado o nosso amor na paz do nosso lar. Mas estou certa de que isso não mudaria o rumo das coisas. Eventualmente, nos encontraríamos na mesma posição.
As duas se abraçaram por um longo tempo, mergulhadas na saudade de dias que não mais voltariam.
— Eu quero ter um filho com você — Marie falou, de repente.
— Desculpe! O quê?! — Virnan se afastou um pouco, sem interromper o contato.
— Meu corpo não é mais tão jovem, mas se quer que eu chame este lugar de lar, então construa uma família comigo.
Virnan semicerrou os olhos, tentando descobrir se ela estava brincando, então riu. Marie não brincaria com isso.
— Sei que a experiência que teve com Nikal foi traumática e que esse é um pedido egoísta, mas…
A castir lhe sorriu triste, fazendo com que suas palavras perdessem força e acabou por se calar.
— Esperava que essa lembrança não tivesse se fixado em sua mente. — Ela disse, escorregando uma mão pelo ombro de Marie. — Não posso mais lamentar o passado e nem quero. O mundo de hoje é bem diferente do que era há três milênios e me alegro por isso. Agora, há tantas pessoas diferentes neste continente… Mas naquela época, é provável que não conseguíssemos esconder a origem daquela criança, se ela tivesse nascido. Seus olhos poderiam ser verdes, como os meus, ou azuis, como os de Nikal. Sua pele morena, como a minha, ou alva, como a dele. Sem falar nos cabelos… Fato era que ela poderia ser uma perfeita mistura das duas castas e estaria fadada a uma vida sofrida e exilada, mesmo que vivesse entre seu próprio povo.
— Não creio que você permitiria isso e, pelo pouco que lembro do homem que Nikal foi, ele também não. — Marie comentou.
Quando viu a relação de Virnan com Nikal, durante o ritual, não conseguiu evitar o ciúme. Mas logo percebeu que o que havia entre eles, era apenas um forte carinho e desejo de aplacar a solidão. Virnan amou Nikal e ele a amou também, mas de uma forma não necessariamente romântica, embora eles tivessem compartilhado muitos momentos assim. Marie tinha certeza de que, se o fruto da relação dos dois tivesse nascido, provavelmente elas não estariam vivendo aquele momento.
Como prova disso, Virnan tornou a sorrir e disse:
— Você tem razão. Eu teria quebrado meus votos como castir e abandonado este continente para que ele pudesse crescer livremente. E se isso não fosse suficiente, abandonaria este mundo também. — Ela tornou a alojar a mão na cintura de Marie. — Mas creio que os deuses tinham outros planos para mim e cá estamos, lutando por um mundo e desejando furiosamente que sejamos fortes o suficiente para salvá-lo e, assim, possamos dar prosseguimento às nossas vidas.
Fez um carinho na face de Marie.
— Se é o seu desejo, minha bela, teremos um exército de filhos! — Garantiu.
— Não seja exagerada! Acho que você não tem magia para isso tudo. — Marie lhe apertou a cintura, pressionando-a contra a sua.
— Vejo que andou se informando sobre nossa magia de fertilidade. — Sorriu de lado. — Deixe-me adivinhar… Tamar?!
A resposta foi um sorriso divertido e positivo.
— Não podia ser diferente! — Riu da falta de limites para a sede de conhecimento de Tamar. Fixou o olhar de Marie. — É raro e um pouco complicado de realizar, mas pode acontecer entre casais femininos, sem que para isso seja necessário manter uma relação com um homem. Contudo, ainda precisaremos de um parceiro do sexo masculino. Só peço, por favor, que não seja Lorde Verne. Não quero uma criança eternamente mal-humorada em casa.
Marie gargalhou, acompanhando o riso dela.
— Não entendo como isso pode funcionar, mas se há uma chance, quero aproveitá-la. Quero ter tudo do que me privei enquanto esperava o sacrifício.
— Então, que assim seja. — Virnan prometeu.
Se dependesse somente dela, Marie nunca mais se privaria de realizar um desejo.
***
No alto da longa escadaria de um dos edifícios da praça principal de Flyn, que um dia abrigou a sede local da Ordem Castir, cadeiras foram dispostas. Contrariando o senso comum, Virnan atravessou a multidão que se aglomerava diante dele, conduzindo Marie pela mão, enquanto eram seguidas pelas amigas.
Elas subiram a meia centena de degraus, lentamente, sob o peso do silêncio que se iniciou quando sua presença foi percebida. Novamente, a guardiã contrariou os costumes e dispensou o anúncio por parte do mestre porta-voz do palácio.
Pela primeira vez, desde que assumiu o trono, a castir usava as vestes da nobreza. Ela manteve o branco da Ordem Castir na túnica, mas o manto sobre os ombros era azul celeste e adornado por bordados de uma cor mais clara, que demonstravam que sua origem nobre era o reino de Sulitar. A tatuagem na testa estava parcialmente oculta por um fio de prata com uma jóia azulada no centro; uma coroa humilde, cuja finalidade era apenas a de demonstrar a função que desempenhava no comando do reino. A verdadeira coroa era mais robusta e estava muito bem guardada em um dos salões do palácio.
Chegaram no alto da escadaria e encontraram os quatro demirs acomodados em suas respectivas cadeiras. Do lado oposto a eles, havia mais quatro assentos, destinados as ordenadas. No centro, um trono.
O silêncio na praça era quase ensurdecedor. A “rainha” poderia falar sem medo de que não lhe escutassem, mesmo assim, ela conjurou círculos de ar e estes se espalharam pelo lugar. Ela os enviou, também, para as tropas nos acampamentos nas fronteiras das barreiras para ter certeza de que todos no reino estivessem a par de suas decisões.
Quando Virnan falou, sua voz pôde ser ouvida como se estivesse ao lado de cada pessoa. Era a primeira vez que se apresentava como rainha e falava ao povo. Antes disso, não se deu ao trabalho de fazê-lo nem para os soldados, com os quais agiu de acordo com a fama de comandante implacável.
Ela fez um resumo rápido do que se passou nos três milênios em que a cidade ficou incógnita e em como veio a assumir o trono. O povo já sabia disso, mas Virnan sentiu a necessidade de explicar. Ela reparou nos rostos, lendo as expressões que faziam com indisfarçado interesse.
Depois, recitou as orações típicas do ritual de Mirides. Segundo as tradições, o regente do reino deveria abençoar a união dos casais nobres presentes, o que ela fez esforçando-se para não cair na gargalhada diante da ironia do destino e, também, das expressões aturdidas dos nubentes. Com certeza, nenhum deminara ousou imaginar que algum dia seria uma auriva quem abençoaria sua união.
Por fim, ela anunciou:
— As leis do nosso povo são claras. O rei ou rainha tem poder absoluto sobre as leis e decisões do reino, mesmo se for uma rainha provisória. — Apontou para si. — Sendo assim, eu vou fazer uso desse poder. Cabe ao próximo rei ou rainha manter a continuidade do que estou prestes a fazer ou não. Mas ouso dizer mais. Na verdade, cabe a vocês perceberem que os limites que conduzem nossas vidas, enquanto membros deste reino, há muito estão desgastados e fazem mais mal do que bem.
Inspecionou uma dezena de rostos confusos, antes de ouvir a manifestação do Demir Karus:
— Mas de que inferno você está falando?! Não pode estar pensando em fazer isso! — Ele ergueu-se da cadeira, atraindo olhares de desaprovação dos outros regentes e outros ainda mais confusos da multidão.
A “rainha” se voltou para fitá-lo, inexpressiva. Estendeu o braço, dizendo:
— Venha até aqui, Demir.
O homem foi até ela com passadas pesadas e Virnan lhe tomou a mão. Com um movimento ligeiro fez um corte na palma, usando a ponta da inseparável adaga. Ele encolheu-se, olhando o sangue pingar no chão. A castir fez outro corte, desta vez, na própria mão. O sangue escorreu por ela e juntou-se ao dele, formando uma pequena poça no chão.
— Vê?! — Ela perguntou ao Demir. — Meu sangue auriva é tão vermelho quanto o seu deminara.
Karus trincou os dentes.
— Isso não muda o fato de que nosso povo está dividido em castas desde a fundação de Flyn. — Ele retrucou.
— É exatamente disso que estou falando, Demir. Enquanto estivermos divididos desta forma, seremos um povo fraco. Eu passei trinta anos em meio a uma guerra por esta coroa, vendo meus irmãos e irmãs morrendo de uma forma brutal porque vocês, demirs, queriam isto. — Retirou a coroa e a atirou no chão, escandalizando a todos. — Éramos tropas divididas, mesmo estando do mesmo lado. Deminaras não protegiam aurivas, nem taltos, nem cautinos. O mesmo acontecia com os outros. Talvez aquela guerra tivesse terminado muito antes, se nos víssemos como um só povo.
Ela voltou-se para o público.
— É por isso que durante o meu curtíssimo reinado, que chegará ao fim após a resolução do conflito que se aproxima, não haverá mais limites de castas.
Karus fez menção de se manifestar outra vez, mas o murmúrio que se elevou na multidão o fez parar.
— Estão vendo essas mulheres? — Virnan apontou para as ordenadas. — Sei que sabem que são humanas. Vêem esta mulher? — Tomou a mão de Marie. — Ela é minha esposa.
Ergueu a outra mão, mostrando a tatuagem que comprovava o que dizia.
— Muito antes de saberem minha origem florinae, estas mulheres me acolheram como se fosse uma delas. Não se importaram com a cor dos meus olhos, nem o tom da minha pele. Sequer conheciam o termo auriva. Elas e os seus, me viram apenas como uma pessoa que necessitava de ajuda. Me levaram para o seio da sua família e me deram um propósito quando eu ainda acreditava que este reino já não existia. Antes mesmo de nos tornarmos um Círculo, eu não me importaria em dar minha vida por elas. Ao seu lado, me recriei na harmonia da Ordem. Uma irmandade que surgiu há três mil anos, fundada pelo cautino Nikal.
Esperou que eles absorvessem suas palavras. Nikal, embora não fosse um deminara, era tido como um príncipe por todas as castas. Conquistou o título e respeito com sabedoria, a qual compartilhou com Lyla ao se tornar um de seus conselheiros. A escolha da então rainha, ao decidir-se por ele em vez de um dos príncipes deminaras, causou algum alvoroço no reino, mas nada que pudesse abalar o poder dela, diante do respeito que dedicavam a Nikal.
— A Ordem que Nikal fundou prega a paz e a ajuda ao próximo. A Ordem não escolhe lados em uma contenda, mas não deixa de marcar sua presença nos campos de batalha. Quando as barreiras caírem, a Ordem estará conosco, oferecendo auxílio aos feridos. Então, olhem para a pessoa ao seu lado — Virnan ordenou. — Não importa se é loiro, se tem olhos violetas ou verdes, ou ainda, se é humano. Ele é seu irmão também e quando estivermos lutando pelo destino, não só do nosso povo, mas dos três mundos que os florinae juraram proteger, lembrem-se disso. Protejam-se como uma família.
Inspirou fundo, mirando a multidão. Ergueu os braços e encerrou o discurso, dizendo:
— Ponham as máscaras! Honremos Mirides!
Ela olhou desafiadoramente para os quatro demirs. Esperou novo jogo de palavras, vindo de Karus, mas não houve nada. Apenas silêncio. Um silêncio estranhamente reconfortante. Novamente, seguindo a tradição, tomou a mão de Marie, beijou-a carinhosa e colocou nela a máscara que um servo lhe entregou. Marie fez o mesmo com ela. Em seguida, o servo lhe ofereceu a bebida tradicional do festival e elas compartilharam a taça. Por fim, ofereceram uma reverência curta para a multidão.
Juntas, começaram a se encaminhar para as escadas, seguidas pelas amigas.
A medida que se afastavam, uma frase começou a ser sussurrada pela multidão. Inicialmente, pelos aurivas, depois, ganhou força entre os membros das outras castas e quando chegaram à base da escadaria, o som daquelas milhares de vozes à gritar, tornou-se quase ensurdecedor.
— Você sabe mesmo como fazer um discurso — disse Tamar. — Quase gritei seu nome também.
— Era o nome dela que estavam gritando?! — Melina indagou, surpresa.
— Lavish L’vir. — Tamar repetiu a frase. — É o nome dela na língua Enaen. Correto?
Elas se dirigiram para outra construção e caminhavam ao longo do corredor aberto, de onde podiam observar a festa do povo. Os músicos iniciaram sua apresentação e o baile começou. Virnan respondeu a pergunta com um ligeiro inclinar de cabeça.
— É uma honraria. — Tamar esclareceu. — Ter seu nome pronunciado na língua Enaen, demonstra um profundo respeito. Creio que isso significa que eles apreciaram sua decisão e a estão apoiando.
— Passei muito tempo conversando com Lyla sobre isso, quando ainda era a protetora dela. Nossos corações inflamados pelo idealismo da juventude, imaginavam que tudo era simples de se resolver. — Virnan comentou, diminuindo as passadas. — Mas quando ela se tornou rainha, percebemos que nem sempre a vontade do rei impera, ainda que nossas leis digam que é absoluta. Para manter-se no poder, Lyla precisava ser comedida em algumas decisões e atitudes, e o Conselho Ancião estava sempre a vigiando e pressionando.
Fez uma careta, murmurando um insulto, então concluiu:
— O Conselho não existe mais; e se existisse não faria diferença para mim. Eu não tenho nada a perder com esses planos. E acredito, piamente, que a mentalidade dos floras começou a mudar naquela época e que após milênios encerrados nesta cidade, eles começaram a perceber o quanto necessitam uns dos outros, ainda que muitos permaneçam agarrados a antigos costumes. Não posso culpá-los por isso. É realmente difícil abandonar velhas crenças.
Ela deu de ombros e sorriu de lado. Retirou a máscara e encarou as amigas.
— Este é um reinado curto, mas eu quero saber o que o meu povo fará sem essas barreiras. — Afastou a vista para as pessoas na praça, inspirando fundo. — Mesmo sendo a casta considerada mais baixa de Flyn, creio que nós, aurivas, somos aqueles que conhecem verdadeiramente a significado da palavra “liberdade”, ainda que muitas barreiras nos tenham sido impostas. — Inspirou fundo e apontou com o queixo para a multidão. — Quero acreditar que eles darão o melhor, que provarão para seus líderes que o tempo da mudança realmente chegou e que, de fato, podemos ser apenas um povo.
Sorriu um pouco mais, olhando para a máscara na mão. Por fim, entregou-a para Tamar, sentando um beijo rápido em sua face.
— Esse vinho faz efeito rápido — ela piscou maliciosa, fazendo um servo, que passava apressado pelo local, parar e encher alguns copos. — Tomem. Aproveitem esta noite de festividades e esqueçam o amanhã.
Tanto Fantin quanto Tamar, emborcaram os copos com sorrisos e olhares cúmplices. Então, se despediram e partiram; se enfiaram no meio da multidão, dançando e brincando até serem engolidas por ela.
— Não vai tomar? — Virnan indagou a Melina, que fitava o fundo do copo em silêncio.
— Acho melhor não. — Ela respondeu.
A seriedade da guardiã suavizou. Tinha uma boa ideia do motivo.
— Sou péssima em aconselhar, ainda mais neste caso. — Apontou para a própria face, enfatizando a juventude dos traços. — Só posso sugerir que desfrute disso. Músculos firmes, membros ágeis, a ausência das dores que vêm com o passar da idade… Quem sabe o que o futuro lhe reserva?
Melina lhe sorriu, grata, enquanto observava Marie sentar as mãos na cintura dela e abraçá-la por trás, rapidamente.
— Me agrada ver esse lado seu, Virnan. Não que desgostasse da forma que você agia, mas a impressão que me passava era que vivia apenas por viver e que nada, além de Marie, conseguia lhe dar vitalidade, ainda que estivesse sempre rindo e pregando peças nos outros. Hoje, entendo bem seus motivos para ser daquele jeito e me apraz, conhecer a Virnan de verdade e saber que se importa muito mais com o que se passa à sua volta do que demonstra.
A moça libertou-se do abraço da esposa e Melina constatou que suas mãos eram agradavelmente quentes e trouxeram um pouco de rubor a sua face, quando ela a envolveu com elas, fazendo-a se curvar um pouco para sentar um beijo em sua testa.
— É uma grande honra tê-la como minha irmã. — A guardiã disse, antes de se afastar e indicou algo às costas de Melina, com um sorriso carinhoso. — Imaginei que poderia se sentir solitária nesta noite.
A grã-mestra se voltou para a direção que ela indicou, deixando um suspiro de surpresa escapar. Andrus caminhava devagar pelo corredor, com o braço dado ao de Maxine. Um círculo pequeno, entremeado por símbolos antigos, brilhava na testa dele.
— Aproveite para se despedir direito. — Virnan falou. — Só posso lhe oferecer algumas horas e isso graças a gentileza de Maxine, que está reforçando o círculo, já que a aura mágica dele não é suficientemente forte para escapar a atração do Salão e dos Portões.
Melina sorriu largamente, quando a envolveu em um abraço apertado e fez o mesmo com Marie, então caminhou na direção dos dois espíritos e deixou-se afundar entre os braços deles.
Novamente, Marie envolveu a cintura da esposa e a guiou para longe. Queria fazer amor com ela a noite inteira, não pela influência da bebida afrodisíaca que tomaram, mas sim, porque Virnan era a luz que iluminava seus dias e, ainda que ela soubesse como fazê-la perder a calma e a razão, jamais seria capaz de enxergá-la de outra forma.
** **
Era madrugada quando todos em Flyn sentiram o chão estremecer. Em seguida, uma estranha onda percorreu o ar. Virnan sentou-se na cama, despertando de um pesadelo. O corpo inteiro tremia e o suor empapava os cabelos e lençóis.
O que foi isso? Marie indagou, sentando a mão no ombro dela.
Virnan a fitou como se ela não estivesse ali, então escapuliu ao seu toque, deslizou para fora da cama e abriu a porta que levava a sacada, aspirando uma grande quantidade de ar. Marie a seguiu, preocupada.
O que houve? Insistiu a mestra, obrigando-a a olhar para ela novamente.
A mão de Virnan escorregou pelos olhos, ocultando um sorriso irônico, a respiração entrecortada como se tivesse corrido por horas. A voz não era mais que um sussurro quando falou:
— Não tenho certeza absoluta, mas acho que meu irmãozinho resolveu se adiantar e nos pegar desprevenidos. A lua vermelha é só daqui dois dias, mas ele já iniciou o ataque.
Tattah,
Um cap. simplesmente maravilhoso.
Não vou dar spoiler pra quem lê os comentários
antes do cap. q vejam por si EU AMEI.
A ilustração esta perfeita… tu arrasa com elas.
Parabéns…
Haha, obrigada, Nadia!
Beijão!