A Ordem: O círculo das armas

46 . Portões Abertos

— Eles parecem comuns — disse Lorde Verne, cruzando os braços.

Sentada aos pés de Virnan, Lyla fez um muxoxo. Parecia entediada, mas Verne aprendeu a reconhecer algumas de suas expressões e aquela demonstrava uma profunda preocupação com a batalha que estava por vir. Por outro lado, Virnan exibia um ar inexpressivo, enquanto passava os olhos em um pequeno grupo de Sombras que se reunia na clareira ao pé do penhasco em que os três se encontravam.

Eram batedores.

Havia inimigos que o olhar dela não alcançava, pois se encontravam quilômetros atrás, caminhando entre as árvores milenares. Uma légua ao norte daquele ponto, ficava a primeira barreira mágica que defendia Flyn. Provavelmente, eles conseguiriam ultrapassá-la, diante da farta magia que possuíam. O mesmo aconteceria com a segunda barreira. Contudo, não conseguiriam ir além disso, já que ela e as companheiras de Círculo reforçaram as demais proteções.

Lorde Verne esperou que alguém respondesse ao seu comentário, mas as duas florinae pareciam muito propensas ao silêncio, o que estava irritando-o demasiado, desde que saíram da cidade. As ordenadas haviam retornado para Flyn três dias antes, trazendo nos corpos o cansaço e as marcas da batalha que travaram, além de um profundo pesar pela “derrota” sofrida ao tentarem recuperar Zarif.

Verne observou Virnan por um momento, então cofiou a barba e perguntou:

— Você está bem? — Tinha protelado essa pergunta pelo máximo de tempo possível, mas já não conseguia resistir à necessidade de fazê-la. Principalmente, depois que Tamar narrou, na noite anterior, o que aconteceu em Valesol com riqueza de detalhes.

Achou que seria ignorado de novo, contudo ela respondeu:

— Naquela estalagem, em Bantos, quando você estava remoendo a raiva e dor pela perda de seus homens, eu lhe disse algo duro e cruel. — Ela cerrou os punhos, mirando-o rapidamente e tornando a se concentrar nos inimigos.

O lorde recordou as palavras ditas ao que lhe pareceram décadas atrás, com um nó a se formar na garganta. Ele sequer conseguiu definir para si mesmo quais sentimentos causaram aquela reação em seu corpo, mas compreendia bem o que se passava com a guardiã.

— Minha mãe as falou para mim, um pouco antes de morrer. — Virnan revelou, então fez uma pausa, deixando que o lorde absorvesse o peso disso.

Ela escorregou a mão pelo capuz da túnica, jogando-o para trás, então continuou a falar com voz tão baixa que, por vezes, parecia um sussurro:

— Na época, minhas responsabilidades não podiam ser comparadas as que tenho hoje. Contudo, repeti essa frase centenas e centenas de vezes ao longo da minha larga vida. — Aspirou o ar gelado daquele fim de tarde, devagar. — Eu sou uma líder, Badir. Preciso tomar decisões e atitudes para proteger não apenas o meu povo, mas um mundo inteiro. Então, não tenho tempo para sentir pena de mim mesma; não posso me entregar as dores e ao choro. Se sobrevivermos a isso — apontou para os guerreiros na clareira — o tempo das lágrimas e lamentações virá. Até lá, viverei o tempo do ódio e do desejo de vingança.

O vento soprou forte à volta deles. Lyla escorregou a mão sobre a rocha na qual sentava, deixando-se vagar pelos sentimentos da irmã. O que ela havia acabado de falar, foi pronunciado sem nenhuma emoção e era quase isso que lhe chegava através do laço que as unia: nada. Era como se a guardiã tivesse perdido o viço e morrido por dentro.

Essa impressão a tomou várias vezes ao longo dos últimos dias e sempre que tentava puxar assunto com Virnan à respeito, ela a ignorava ou cambiava o tema rapidamente. Era assim na maior parte do tempo, mas a guardiã da Ordem voltava a normalidade de sentimentos conflituosos, quando estava com Marie e as companheiras de círculo.

— É melhor irmos… — Verne declarou, após limpar a garganta para afastar um ligeiro desconcerto, após receber uma resposta mais profunda e sincera do que esperava.

Reparou no sorriso quase diabólico que surgiu nos lábios de Virnan, antes que ela desse um passo à frente e se deixasse cair por uma centena de metros até o chão. O susto o fez perder o fôlego, mas logo recordou a narrativa de Tamar sobre a luta em Valesol e relaxou com a certeza de que a queda não mataria a concunhada.

— Sente-se, Lorde Verne. Não vai demorar muito. — Lyla falou, com ar declaradamente triste e impotente.

O badir obedeceu, enquanto assistia o desenrolar da luta que se iniciou.

— Cinco sombras contra uma Castir furiosa… Eles nem vão saber o que os atingiu.O spectu murmurou.

— Achei que essas “coisas” eram difíceis de matar.

— E são, mas ela precisa bater em algo. Você entende, não é?

Na clareira, Virnan esquivou-se de um golpe transversal, dando um saltinho para trás, então aproveitou o movimento para usar a adaga e decepar o braço do atacante.

Lorde Verne balançou a cabeça um par de vezes, respondendo sem desviar o olhar do combate. Virnan e os guerreiros, por vezes, se moviam tão rápido que ele não conseguia acompanhar os golpes direito.

— Compreendo o desejo de vingança mais do que gostaria — ele confessou, então cruzou os braços e esperou.

**

A noite começava a cair, quando eles chegaram ao acampamento dos aliados, ainda bem distantes das fronteiras do reino florinae. Viajaram através das correntes mágicas, seguindo Lyla. Assim que se materializaram no local, o badir se curvou, expulsando o conteúdo do estômago pela segunda vez àquele dia.

— Por favor, quando isso acabar, nunca mais me façam viajar assim! — Disse ele recompondo-se sob o olhar jocoso de Lyla.

— É tudo uma questão de costume, Lorde. Disse ela com um jeitinho afetado e debochado.

— Jamais vou me acostumar com isso! Parece que fui pego por uma enxurrada, atirado contra pedras, arrastado para o fundo da água, despenquei de uma cachoeira de detritos e, depois disso, arrastado por cavalos no meio de um deserto pedregoso e pisoteado até meus ossos virarem pó. — Enfiou uma mão nos cabelos e balançou a cabeça rapidamente para afastar a nova vertigem que o tomou.

Virnan passou por ele, resmungando:

— Por todos os deuses desse mundo, você tem uma imaginação e tanto! Parece uma criança!

Verne entreabriu os lábios para responder, mas se conteve ao notar um sorrisinho discreto na boca dela. Sábia decisão, ele imaginou, já que Lyla lhe fez um rápido afago no ombro e lhe deu uma piscadela, antes de correr para acompanhar os passos dela.

Foi uma caminhada breve até a tenda do comando. A passagem deles foi acompanhada por dezenas de olhares curiosos e cochichos, que azedaram o humor da guardiã, cujos ouvidos sensíveis capturavam cada palavra.

— Até que enfim! — Emya falou, com evidente alívio, quando as duas ultrapassaram a cortina que servia de porta para a tenda.

A futura rainha de Midiane cumprimentou a cunhada, seguindo a tradição de seu reino e dedicou um profundo inclinar de cabeça para Lyla. Ao ver o marido surgir atrás dela, o semblante sisudo e preocupado se desfez para dar lugar a um sorriso radiante. Verne envolveu Emya em um abraço tão apertado que o ar escapou dela por alguns instantes. Ela conteve a vontade de derramar algumas lágrimas de felicidade e alívio, então limitou-se a apreciar o calor e o cheiro dele, enquanto sussurrava uma oração no seu ouvido.

Isso foi um adorável refresco na tensão que se acumulava no badir e ele sentiu como se tivesse regressado à Midiane. Ambos desejavam prolongar o abraço, mas aquele não era o lugar e nem o momento, então se afastaram. O badir limpou a garganta, assumindo uma pose austera e cumprimentando os presentes.

— Esperávamos vocês no início da tarde. — Disse Anton, cofiando a barba.

— Tivemos um pequeno contratempo — Verne explicou, alternando o peso entre as pernas.

Ele dirigiu uma rápida olhadela para os respingos de sangue na face de Virnan, então se aproximou da mesa, onde estavam expostos os mapas da região. Gentil e discreta, Emya saiu da tenda para ordenar a um soldado que trouxesse um pouco de água e retornou para junto deles em seguida. Nesse meio tempo, Anton iniciou as apresentações. Mais dois comandantes axeanos se juntaram ao exército aliado naquela tarde, assim como outros quatro de Primian e Trícia.

Virnan analisou os novos rostos com pouco interesse. Sequer se demorou quando encontrou um rosto familiar, muito parecido com o do falecido Comandante Loyer. Limitou-se a cumprimentar a todos com um ligeiro inclinar de cabeça e afastou-se da mesa para lavar a face e mãos, quando o soldado que Emya acionou, retornou com a água.

O irmão gêmeo de Loyer, Comandante Brenun, deu a volta na mesa discretamente. A lâmina da espada fez um ruído baixo ao resvalar no couro da bainha, quando ele a puxou até a metade.

— Seu irmão foi um homem estúpido, Comandante Brenun. Espero que você não compartilhe essa estupidez com ele. — Virnan falou alto, chamando a atenção dos demais.

O silêncio tomou conta da tenda, enquanto ela terminava de lavar as mãos e pegava a toalha ao lado da bacia para se enxugar. Passou o tecido áspero na face e mãos, antes de atirá-lo sobre o ombro, inspirar fundo e voltar-se para encarar o axeano.

— Você o matou! — Brenun acusou, puxando a lâmina um pouco mais, ainda sem retirá-la da bainha completamente. Parecia estar em dúvida do que fazer, embora demonstrasse uma clara intenção assassina.

— Você faria o mesmo se tivesse sido torturado, jogado numa carroça imunda e arrastado até a fronteira de Axen com a promessa de ter sua alma arrancada e convertida em um abominável amuleto.

— Era o meu irmão — Brenun pronunciou, ríspido.

— Ele era meu algoz. — Virnan retrucou, enfiando a mão nos cabelos, cujas pontas estavam molhadas, e arrumando-o. — Não é que eu não entenda o seu rancor neste momento. Afinal, matei seu “amado” Lorde Axen porque ele ousou machucar a bela moça de olhos violetas que está ali no canto.

Indicou Lyla com a cabeça.

— Ela é minha irmãzinha caçula, sabe? Mas a questão aqui é: Você quer seguir os passos de Loyer e se juntar a ele nas Terras Imortais, morrendo de uma forma tão estúpida quanto a dele? Ou prefere ir atrás do verdadeiro inimigo; a pessoa que manipulou Lorde Axen, que os guiou para esse caminho sangrento e fez vocês marcharem em guerra e matar seu próprio povo por décadas, enquanto assistia a tudo com os braços cruzados e se alimentava das almas de seus irmãos e irmãs?

Ela brincou com a ponta da toalha no ombro, antes de atirá-la ao lado da bacia em que se lavou. Cruzou os braços e desafiou:

— Decida-se rápido ou decidirei por você. Outro comandante axeano morto pelas minhas mãos não irá tirar meu sono.

— Por mais “emocionante” que a ideia de assistir uma luta entre vocês pareça, creio que assassinar seus aliados não é de “bom tom”, Virnan… — Emya interveio. — Digo o mesmo sobre suas intenções, Comandante. O motivo que nos une aqui é muito maior que a rixa entre vocês.

Emya chegou perto dos dois, sentando as mãos na cintura em uma pose autoritária. Fitou Brenun; os olhos se apertando levemente.

— Embora compreenda seus sentimentos e me solidarize com sua dor, peço que a ponha de lado até o fim desse conflito. Assim como estou me esforçando para esquecer o fato de que o senhor e seu finado irmão quase mataram quatro membros da minha família no mar de Bantos.

O comandante retribuiu o olhar da princesa longamente.

— Como vê, todo mundo aqui tem um motivo para se odiar. — Emya concluiu.

Brenun fez uma careta, lutando contra o desejo de matar Virnan e o de seguir adiante e ir atrás do verdadeiro inimigo. Voltou a fitar a guerreira florinae, apenas para ter seu ódio aumentado diante do sorrisinho irônico na face dela. Por fim, tornou a guardar a espada na bainha, inspirando profundamente.

— Quando isso acabar, Guardiã, terei minha vingança. Tome cuidado para não cruzar meu caminho no campo de batalha. Acidentes acontecem. — Ele prometeu.

Virnan sorriu de lado, caminhando até a mesa:

— Você fala demais, assim como Loyer. Terei imenso prazer em promover sua reunião familiar — ela declarou, dando o assunto por encerrado.

***

— Será que precisarei furar seus lindos olhos para que deixe de me olhar assim? — Melina perguntou em tom de ameaça.

Assim como Virnan, o humor da grã-mestra andava ácido e frases como aquela lhe escapavam sem o menor receio de causar discórdia. Tamar achava isso um pouco divertido,afinal passou vinte anos em contato direto com ela e jamais a viu se alterar. Por vezes, acreditava que era impossível.

— Aparentemente, a juventude a deixou bastante “enérgica”, Grã-mestra. — Tamar respondeu, cruzando as pernas debaixo da mesa com ar provocativo.

Então, amenizou:

— Não se ofenda com o meu interesse. Estou apenas tentando me acostumar com sua nova aparência.

Ela observou a grã-mestra deslizar um dedo distraído pela madeira lustrosa da mesa, enquanto exalava uma grande quantidade de ar e afastava o olhar para as paredes frias da sala em que estavam. Uma espécie de trepadeira com folhas miúdas a escalava até o teto. Curiosamente, ela só estava presente em alguns pontos da sala, como se tivesse sido colocada ali de propósito. Era a ideia mais provável, Melina pensou em outras ocasiões que visitou aquela sala. Naquele momento, porém, as plantas não lhe interessavam.

O vento gelado da noite se infiltrou pela janela entreaberta, trazendo algum frescor ao ambiente.

— Só aproveite, Melina. — Tamar tornou a falar, após um longo momento de silêncio contemplativo. Desprezou o título dela, para fazer uso da intimidade que o Círculo lhes trouxe. — Só posso tentar imaginar o que está sentindo e tenho certeza de que sequer chego perto da realidade. Mas se meu conselho tiver algum valor, siga-o. Encare isso como uma nova chance…

— De quê?! — Melina bateu os punhos cerrados na mesa.

A reação inflamada não surpreendeu a pupila, que descansou os cotovelos na mesa e uniu as mãos, tranquila.

— Do que você quiser. — Respondeu. — Centenas de pessoas atravessam o mar todos os anos, vindas do outro continente, para pedir nosso auxílio na Ilha Vitta, e você sempre disse que gostaria de ajudá-los mais e melhor, expandindo a Ordem para lá. Agora, você tem “tempo” para isso.

Fez uma pausa, fitando-a nos olhos, e concluiu:

— É apenas um exemplo. Você tem o “tempo” para fazer o que bem quiser! — Como não houve resposta por um longo tempo, ficou de pé e deu a volta na mesa. — Em vez de ficar remoendo essa mudança como algo ruim, por que não se concentra nas possibilidades que ela lhe oferece?!

Deu uma batidinha na mesa com os nós dos dedos, comprimiu os lábios e franziu o cenho rapidamente, antes de se afastar em direção a porta, mas interrompeu os passos, quando Melina falou:

— Você está certa em tudo o que disse, reconheço. Todavia, é difícil me acostumar com essa juventude “forçada”, quando já estava preparada para viver o resto da minha velhice, ansiando reencontrar meu marido nas Terras Imortais. Eu sinto sua falta e quero estar com ele novamente.

A pupila se voltou para encontrar os olhos dela marejados; Tamar entendia o que dizia muito mais do que poderia admitir. Retornou para perto da grã-mestra e a abraçou, carinhosa, enquanto recordava a noite do ritual no Salão Lunar.

Caminharam por muitos lugares naquela noite. Entre eles, o Salão de Cazz, onde os espíritos se aglomeravam à espera da abertura dos Portões. Virnan não entrou no salão, contudo, incentivou as companheiras à fazê-lo.

Assim que puseram os pés no interior dele, cujo comprimento, largura e altura não podiam ser medidos, graças a uma densa névoa, os espíritos de seus entes queridos foram atraídos para elas. Tamar recordou a emoção de Melina, quando reencontrou Andrus. Ela se propagou pelo laço que as unia, no momento. Era uma felicidade sem tamanho, assim como a tristeza que também a envolveu.

— Tudo a seu tempo — falou. — Talvez, os deuses, se é que eles existem mesmo, — já não sei em que acreditar — tenham outros planos para você. Andrus entenderá.

Um som positivo e grato escapou da garganta de Melina. Contudo, ambas sabiam que quando Andrus atravessasse os Portões e alcançasse Inamia, todas as emoções humanas que fizeram deles um casal, iriam desaparecer aos poucos.

***

A noite já estava avançada quando Fantin retornou para o palácio, acompanhada por Laio. Os dois passaram o dia vistoriando o posicionamento do exército, a léguas de distância da capital. Virnan os acompanhou parte da manhã, então retornou para a cidade, a fim de se preparar para viajar com Verne para o acampamento dos aliados.

— Esses dias enfiada neste palácio, destruíram minha resistência às longas cavalgadas. Meu traseiro dói como se tivesse sido surrado dezenas de vezes pelos coices de uma mula! — A mestra resmungou, sentando uma mão no quadril e massageando o local.

Falou de um modo tão sofrido, que toda a seriedade de Laio se desfez e o auriva caiu em uma gargalhada alta.

— Você é uma mulher interessante, Mestra Fantin. Às vezes, parece bruta como uma rocha, noutras, delicada como uma rosa. — Ele comentou, ainda sorrindo.

— Sou uma rosa cheia de espinhos, esculpida em pedra. — Ela retrucou, fazendo um gesto afetado e arrancando outra risada do guerreiro.

O perfume das flores no jardim que cruzavam, trouxe lembranças saudosas do pomar na Ilha Vitta, e ela diminuiu as passadas para aproveitar o caminho.

— Agora entendo o motivo de Virnan ter resolvido ir até a sua casa à noite — disse para Laio, fazendo referência a forma como os soldados a olhavam, imersos em uma curiosidade descarada. — Compreendo o interesse que inspiro, mas não deixa de ser irritante me tornar o centro das atenções.

O comandante auriva lhe dirigiu um meneio de cabeça, dizendo:

— Você é humana, afinal. A última vez em que entramos em contato com humanos, foi durante as Guerras Continentais, quando eles atravessaram o oceano para conquistar nosso território. Mesmo não sendo usuários de magia, foi difícil expulsá-los. — Ele passou a mão no queixo, recordando a guerra em questão. — Ainda assim, muitos permaneceram no continente e se estabeleceram no litoral. Não nos incomodava, desde que não fossem uma ameaça.

— E então, houve a guerra contra o Cavaleiro e os florinae que ficaram fora do círculo de proteção de Flyn, migraram para esses vilarejos e misturaram-se a eles. Por isso, há humanos com magia. — Ela complementou, recordando algo que Tamar lhe disse dias antes, quando expressou sua curiosidade sobre esse fato. — Então, pergunto: Como sabem que não sou uma de vocês? Meus cabelos são loiros e tenho olhos azuis, como a casta dos Taltos.

— Isso importa?

O manir sorriu, e ela findou por dar de ombros.

— Nenhum pouco, para ser sincera. O que me incomoda é a atenção excessiva.

Pararam diante da escadaria que dava acesso ao interior do palácio e Laio uniu as mãos nas costas, relaxado. Com efeito, ele gostava daquela mulher e sua forma de agir e pensar.

— Bom, não há muito o que fazer agora, exceto esperar que vocês façam o ritual e abram os Portões. Então, estaremos “livres” e caminhando para uma morte sangrenta, novamente. — Ele riu baixinho, como se tivesse contado uma piada.

Fantin o fitou longamente, prestando atenção no movimento do ar nas redondezas, como Virnan a ensinou. Estava certa de que se encontravam sozinhos, então falou, ciente da confiança que a amiga dedicava ao tio:

— Não haverá ritual para abrir os Portões. Pensei que ela havia lhe falado sobre isso.

O auriva arqueou uma sobrancelha com uma expressão cética, como a que Virnan costumava fazer. Balançou os ombros e sorriu.

— Eu só preciso saber o necessário para fazer o meu trabalho, Mestra. E, também, não é como se tivéssemos tido tempo de conversar mais profundamente sobre algo além desse conflito. Ela nem sabe ainda que tem uma priminha de seis anos… — Interrompeu-se, pensativo. — Bem, essa é a idade que a pequena aparenta ter, já não sei! Afinal, pelo o que me foi explicado, o tempo em Flyn corre diferente, graças a magia da falecida rainha.

— A sua “pequena” já tem idade para beber há alguns séculos. — Ela contou em tom de brincadeira e começou a subir os degraus, mas interrompeu-se quando ele perguntou:

— Por que não haverá ritual?

Ela se voltou para fitá-lo em meio a um bocejo.

— Porque a passagem para Inamia e Enagia foi aberta uma noite antes de Virnan ter partido para Valesol em socorro de Lyla.

— Impossível! Se vocês a abriram, por que ainda estamos confinados nas proteções? Por que ainda há espíritos aqui?

— Porque precisávamos de tempo para organizar a defesa do reino, finalizar um conflito entre Midiane e os reinos vizinhos, transformá-los em aliados e, também, para recuperarmos as tucsianas. — Fantin explicou num fôlego só. — Não é tão difícil de entender. Se Virnan morresse antes de abrir os Portões, tudo que Lyla fez teria sido em vão e a cidade continuaria sendo ocupada por mais e mais espíritos até o dia em que Érion teria o poder necessário para derrubar as barreiras, então seria “Adeus, Mundo!”. — Sentou as mãos na cintura. — Quanto ao motivo das proteções continuarem de pé e ainda haver espíritos aqui, é simples. Como Virnan tem acesso a magia temporal de Lyla, já que ela é seu spectu, a usou para retardar a abertura do portal.

— Tornando a garantir que teríamos tempo para nos preparar para o confronto e evitando que Érion nos atacasse de vez. — Ele adivinhou.

Fantin meneou a cabeça, confirmando. Laio riu baixinho.

— Bem, ao que parece, a idade fez dela menos afoita. — Ele despediu-se dela com um aceno e partiu, tão silencioso quanto um gato.

Fantin observou a figura de movimentos elegantes desaparecer nas sombras do jardim, então mirou as estrelas com um suspiro e se encaminhou para os seus aposentos com passos pesados e cansados. Durante o breve percurso pelos corredores quase desertos, deu-se conta de que começava a se acostumar com aquele reino e a falsa calmaria em que seus habitantes viviam.

“O quanto disso persistirá, após o fim da guerra que iremos travar?” Ela perguntou-se, fitando a tranca da porta por um longo tempo, antes de a girar e entrar no quarto.

A resposta à pergunta lhe parecia bem óbvia. Se conseguissem derrotar o Cavaleiro, Flyn passaria por significativas mudanças políticas; um novo rei subiria ao trono e ela torcia para que fosse de uma forma pacífica e não sangrenta, como foi a ascensão de Lyla. Depois de conhecer as memórias de Virnan sobre o conflito, entendia perfeitamente o motivo dela ter resolvido participar da traição que o finalizou. Isso só fazia sua admiração pela companheira de Círculo maior.

Retirou as tucsianas do suporte nas costas e as depositou sobre uma mesinha no canto do quarto. Fitou as armas, as suas lanças curtas e a metade da adaga de Virnan, por um longo tempo, desejando não ser obrigada a usar nenhuma das duas. Era um desejo inútil, sabia, e lamentava isso.

Tamar não estava à vista e supôs que a esposa se encontrava distraída no seu lugar preferido do palácio: A biblioteca. Ficou feliz em saber que estava enganada, quando entrou no quarto de banho e a encontrou mergulhada até o queixo na água morna da banheira no meio do cômodo.

Aquele era um luxo que ambas apreciavam. Embora amassem viver no castelo da Ilha Vitta, era impossível não comparar o conforto gritante dos espaçosos quartos do palácio florinae, com os singelos, minúsculos e, às vezes, claustrofóbicos, do castelo da Ordem.

A esposa estava de costas para a entrada, então permitiu-se admirá-la por algum tempo, antes de se aproximar com um sorrisinho devasso.

— Há lugar para mais uma? — Indagou, já se desfazendo das roupas.

Tamar se voltou para fitá-la, também sorrindo. Fazia algum tempo, tinha percebido sua presença.

— Eu já estava terminando, mas posso ficar mais um pouco e auxiliar no seu banho.

— Que esposa prestativa. — Fantin brincou, juntando-se a ela.

A água morna a envolveu como se estivesse a fazer um afago no corpo cansado, após longas cavalgadas. A tensão de um dia desgastante, tentando se impor para homens e mulheres que acreditavam ser superiores a ela porque era humana, começou a deixá-la.

— Nem tanto. Na verdade, tenho segundas intenções. — Tamar admitiu, jocosa. — Preciso que esfregue minhas costas!

A expressão incrédula de Fantin, a fez gargalhar alto.

— E eu achando que falava de uma situação mais prazerosa. — Queixou-se a loira, fazendo um biquinho.

— Mas ter as costas esfregadas é um grande prazer, Mestra. — Retrucou, lhe oferecendo a toalha molhada, que passava sobre o corpo.

Com uma falsa expressão de descontentamento, Fantin a pegou, sentindo o cheiro forte das essências florais no tecido. Não lhe escapou o convite velado no olhar castanho da esposa, que adquiriu ares devassos quando lhe deu as costas para que inicia-se a tarefa que lhe foi dada. A loira atendeu o pedido, deslizando o pano devagar pelo dorso nú alguns pares de vezes, até atirá-lo na água e substituí-los pelos lábios.

A correria e os últimos acontecimentos as manteve separadas. Mal se viam no decorrer do dia e, quando a noite chegava, estavam tão exaustas que sequer tinham forças para pronunciar algo mais que um singelo “boa noite”.

Quando entrou no quarto, momentos antes, Fantin imaginou que aquela noite não seria diferente. Estava tão desgastada, que o simples ato de tomar um banho lhe parecia custoso. Mas foi só ver a carinhosa beleza do corpo amado, mergulhado na banheira, que todo o cansaço a abandonou.

— Ei!

Tamar reclamou, fingindo indignação. Afastava as mãos ousadas com falsa veemência, arrancando um risinho brincalhão de Fantin.

— Que foi? — A mestra perguntou, mordiscando a orelha dela.

Deslizou uma das mãos pela cintura curvilínea, apertando-se contra ela. Desceu os lábios pelo pescoço perfumado, depois os ombros, misturando beijos e pequenos chupões. Escorregou uma das mãos para os seios, enquanto a outra encontrava abrigo entre as coxas grossas dela.

— Não estou “esfregando” direito? — Perguntou, provocadora.

A resposta de Tamar foi um gemidinho baixo, enquanto pressionava as costas contra o corpo dela.

— Acho que você precisa se empenhar mais. — Disse a bibliotecária, virando o rosto para beijá-la, ardente.

Fantin riu baixinho, aceitando o desafio. Às vezes, lhe parecia um absurdo que tivesse levado tanto tempo para notar os sentimentos de Tamar. Era igualmente insensato só ter percebido sua própria paixão após o Festival de Mirdes e, pior, esperado alguns anos para tomar a iniciativa de se declarar. Iniciou movimentos suaves no sexo dela, sussurrando coisas que só aumentavam a excitação da esposa. Os suspiros e gemidos de Tamar eram música para os seus ouvidos.

Apesar de toda a loucura e do sofrimento que estavam vivendo, ambas eram gratas por isso.

A respiração de Tamar acelerou, à medida que o gozo se aproximava e não tardou para que buscasse apoio nas bordas da banheira, apreciando as intensas sensações que a dominavam. Por um minuto longo, Fantin a manteve entre os braços, sentindo as contrações no ventre dela com os olhos cerrados, embebida no aroma das essências na água e no som da respiração ofegante da mulher amada.

— Às vezes, acho que meu coração é pequeno demais para todo o amor que lhe tenho — sussurrou, emocionada.

Tamar a afastou e se voltou devagar, juntou o rosto dela entre as mãos e puxou-a para um beijo longo, como havia dias não trocavam.

— Obrigada. — Disse, e Fantin desceu as mãos pela cintura dela, pensando em fazer uma piadinha sobre seu desempenho na tarefa de lhe “esfregar as costas”, mas logo percebeu que não era daquilo ou do sexo que falava.

Na realidade, Tamar havia passado as últimas horas pensando na conversa que teve com Melina, tomada por uma tristeza que não era sua, mas que compreendia com perfeição. Ela inspirou fundo e sorriu com olhar marejado.

— Obrigada por me amar e por querer que esse amor sobreviva as barreiras da morte. Obrigada!

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Boa noite, amores!

Quero agradecer o carinho e a companhia. Pra variar, estou muito atrasada com as respostas a alguns comentários. Vou responder todos, só peço um pouco mais de paciência a vocês.

Bem, devido a alguns problemas de saúde na família, poderão ocorrer mais atrasos nas postagens. Novamente, peço sua paciência e compreensão. Relembro que nunca deixo um texto sem final. Como disse em várias ocasiões, é uma questão de respeito com vocês e comigo mesma.

Um grande beijo e até o próximo capítulo.



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para 46 . Portões Abertos

  1. Tatah,
    Mais um cap. maravilhoso.
    No fundo… bem no fundo entendemos os perrengues da vida, fica tranquila qto a isso.
    Acreditamos em ti, sem duvida alguma, vai no teu ritmo e nós te incomodamos no nosso.

    Bjs

    p.s. desejo tudo de bom e pronto restabelecimento a quem esta com problema de saúde.

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