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Do alto de uma colina, a uma distância ainda pequena de Valesol, a princesa Emya interrompeu a caminhada para voltar-se na direção da fortaleza. Os pés afundavam no terreno saturado de água aumentando o esforço da fuga apressada. Ofegava, enquanto deslizava o olhar castanho até as muralhas centenárias.
A magia subia aos céus, perseguindo um grande pássaro vermelho, enquanto os sons da destruição que a luta causava, chegavam a se igualar aos da tempestade e se propagavam por algumas distâncias, assentando o terror no coração dos homens.
Depois de ver os primeiros momentos do confronto, Emya aceitou a sugestão da tia. Contudo, o pesar lhe comprimia o peito, ao mesmo tempo em que se permitia sentir alívio por terem conseguido evacuar a cidadela completamente, antes que os inimigos chegassem. Com exceção de Melina, permaneceram na fortaleza apenas um pequeno contingente de soldados, liderado pelo Comandante Guil e quatro manirs axeanos.
Emya baixou a vista para o chão, quando a mão de Mestre Lian pousou em seu ombro, oferecendo um aperto suave. Encarou-o, emudecida. Este, por sua vez, lhe dedicou um sorriso condescendente e a incentivou a continuar, mas ela permaneceu no mesmo lugar.
— É isso mesmo? — Indagou, fazendo a voz se elevar além dos sons da natureza e da destruição que deixaram para trás.
Os nobres, que a seguiam de perto, interromperam os passos. Pouco a pouco, foram imitados pelos soldados que os protegiam. Emya concluiu:
— Fugimos, enquanto entregamos nosso destino às mãos delas?! — Cerrou um dos punhos, apoiando-se na árvore sob a qual se abrigada.
— Não deveria se deter nesse tipo de conjectura, Princesa. — Aconselhou Lorde Calil, indulgente. — Tenho certeza de que seu marido diria o mesmo. Sem dúvida, ele iria querer que preservasse sua vida e…
Ela girou sobre os calcanhares, chutando um pouco de lama, abespinhada.
— O senhor não tem ideia do que o meu marido faria! Esteja certo de que não seria enfiar o rabo entre as pernas e fugir, deixando que aquelas mulheres lutassem em seu lugar!
O lorde desmanchou-se em pura surpresa ao ouví-la falar daquela forma bruta e nada condizente com o que se espera de uma nobre, principalmente, uma princesa. O mesmo ocorreu àqueles que os cercavam. Ele se aprumou, pigarreando.
— Perdoe-me, Princesa Emya. Não foi minha intenção falar de Lorde Verne como se ele fosse um covarde. Conheço seus feitos e estou certo de que será um excelente rei e guiará Midiane para uma nova era de prosperidade.
— Estou cansada disso! — Ela foi cortante. — Quando irão parar de me tratar como um mero adereço?! Lorde Verne será rei porque “eu” serei a rainha! Midiane é o meu reino e está sob a orientação da família d’Santuria há gerações. E você está correto sobre uma coisa, Lorde Calil, meu marido não é um covarde e, certamente, não deixaria Valesol desta maneira.
Sua revolta era tamanha, que ele sequer ousou pensar em retrucar novamente, embora Emya o tenha fitado pelo o que lhe pareceu uma eternidade à espera disso. Seu olhar era um claro desafio.
Ela tomou um alento, afastando os cabelos da face.
— Por tudo que ouvi hoje, estou certa de que, mesmo que não possamos matá-los, ainda podemos ferí-los — a princesa observou, retornando ao assunto que verdadeiramente lhe atormentava.
— Isso é insensatez, Altesa. — O príncipe Danio intrometeu-se na conversa, compreendendo onde ela queria chegar com o comentário.
Um homem largo e musculoso, resvalou o braço nele quando se aproximou do círculo que a conversa formou.
— Na verdade, não. — Petro se entrepôs, também.
O guardião aparentava estar irritado com algo e, de fato, estava. Assim como toda a Ordem, não lhe agradava a guerra. Sobretudo, não lhe agradava permitir que quatro ordenadas, dentre elas a grã-mestra, se enfiassem em uma batalha mortal, enquanto ele, que deveria protegê-las, fugia sorrateiramente pela floresta.
— Quando lutamos com Lorde Axen, Virnan o feriu enquanto ele estava na forma humana — recordou, endossando as percepções da princesa.
— Nós não podemos matá-los, mas poderemos atrapalhá-los um pouco. — Emya concluiu.
Se voltou para Diel, o comandante efetivo de Valesol. E foi pensando nas palavras da tia, sobre como escolher suas batalhas, que ela se decidiu sobre o que fazer.
— Nós vamos voltar. — Declarou.
O príncipe Danio tornou a se manifestar:
— É loucura, princesa! Vão morrer!
Emya inspirou fundo, buscando recuperar um pouco da calma que perdeu com Lorde Calil. Conseguiu menos do que esperava, e o azedume se espalhou pelas palavras que derramava:
— Vocês pareciam muito dispostos a guerrear, quando marcharam até nossas fronteiras à pedido de Lorde Axen. Ao meu ver, isso não é muito diferente. Sim, é loucura. No meu entendimento, toda guerra é baseada na insanidade e perversão humanas. — Retirou a espada da bainha que trazia na cintura.
Encarou a lâmina, onde gotas grossas de chuva deslizavam até saltarem para o vazio e unirem-se às que formavam uma poça no chão.
— Há quatro corajosas mulheres, lutando por nós. Duas delas são princesas de Midiane. Outra, é uma rainha, que em vez de estar protegendo o seu reino, está defendendo nossas vidas. E todas elas são ordenadas. — Enfatizou. — Se até mesmo a Ordem, encontrou uma guerra da qual não pode se abster, como nós podemos fugir desse destino?
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Marie deslizou as mãos sobre a terra molhada e novas colunas de pedra se elevaram próximo ao local onde Virnan estava. A mestra sentia o cansaço do uso constante da magia, a qual não tinha por hábito empregar em contendas e, sim, em círculos de cura.
Curvou os ombros, ofegante. Um calor suave se espalhava por seus membros; era o rastro deixado pela magia liberada. A mão de Tamar lhe alcançou. A amiga percebia o desgaste que se assentava no semblante dela.
— Use a minha. Tenho bastante ainda, já que você e Bórian fizeram a maior parte do trabalho.
A ideia de tomar a magia de outra pessoa sempre a atormentava, mas não estava em condições de negar o auxílio. Além disso, treinou anos com Tamar, e a magia dela lhe era familiar. Tomou-lhe a mão e beijou-a, carinhosa. Então, deslizou os dedos pelo braço dela, até encontrar um veio mágico.
Mordiscou o lábio, concentrada na tarefa.
— Se Fantin estivesse conosco, não precisaria fazer isso. Se o nosso círculo estivesse completo aqui, poderíamos compartilhar a magia como fizemos no Salão Lunar. — Tamar falou. — Tenho certeza, estaríamos vivenciando uma luta muito diferente.
A bibliotecária calou-se, sentindo uma leve vertigem, que a abandonou assim que Marie se afastou. A amiga lhe tomou apenas uma pequena quantidade do seu poder; o suficiente para criar algo novo e continuar equilibrada, diante da tarefa que desempenhava.
Marie tornou a se agachar. Fios dourados, surgiram em seus pulsos e as mãos deslizaram pelo solo, manipulando a forma deste. Dezenas de metros adiante, junto com as colunas e blocos de terra, estalagmites de gelo começaram a se erguer, espetando as Sombras e ceifando a vida de algumas delas, já que a magia empregada para a criação daquelas formas era espiritual.
A mestra não conseguia se sentir mal por isso e tampouco temia o juramento da Ordem. Pois, o que fazia naquele momento, estava muito longe de tudo que aprendeu na irmandade. A promessa que repetiam a cada círculo alçado, era clara: Nenhum ordenado poderia tirar uma vida com os dons e conhecimentos adquiridos na irmandade. Entretanto, as coisas contra as quais lutavam, ainda que caminhassem sob a pele humana, não estavam vivas.
***
— Inferno! Eles ainda estão muito dispersos. — Virnan rosnou para Voltruf, antes de se colocar à frente dela e conjurar um círculo para bloquear um conjunto de setas mágicas, que tinham o espírito como alvo.
O impacto foi tão intenso que elas foram jogadas contra uma das colunas de pedra. As duas se ergueram, ligeiramente atordoadas.
— Estou certa de que nunca senti tanta dor enquanto estava viva! — Voltruf gemeu, passando a mão na cabeça, ensanguentada.
A magia das sombras, era oriunda das “feridas” que a separação dos três mundos causaram no “todo”. Era fatal para homens, florinaes, espíritos, e até mesmo os poderosos enaens.
Os olhos de Voltruf brilharam, azulados. Ela levou a mão ao peito, então se abaixou para recuperar a espada.
— O que foi isso com seus olhos? — Virnan a empurrou para trás da coluna, tentando diminuir a névoa que conjurou, mas nada ocorreu.
Os olhos da outra brilharam novamente.
— Haniel quer sair para “brincar”. — O espírito explicou com ar jocoso, que aumentou quando Virnan apertou os olhos, claramente irritada com a ideia de rever o spectu dela.
— Já temos muito com o que nos preocupar, para que você nos arranje mais problemas, libertando essa serpente maluca.
Ouviu um risinho baixo. Em verdade, não sabia se o que imaginou e falou era plausível.
— Você não tem ideia de como é. — Voltruf lhe respondeu a dúvida, inclinando-se para o lado e investigando as redondezas. Fez um gesto para ela, indicando que também não conseguia encontrar o inimigo que acabara de atacá-las.
Ao longe, ouviam o som cortante da espada de Bórian e sentiam o chão tremer, quando ele liberava os poderes. Virnan se agachou, tentando afastar a névoa outra vez. Novamente, nada aconteceu.
— Acho que nenhum castir tem ideia da realidade até se deparar com ela após a morte — Voltruf prosseguiu. — Quando morri, estava preparada para isso. Entretanto, foi uma experiência traumática quando o laço castir fundiu minha alma a Haniel. É como se fôssemos a mesma pessoa, Virnan. Ela está aqui comigo. As minhas palavras, os meus atos, também são dela e vice-versa. É um pouco estranho no início, mas é infinitamente melhor que antes.
Ela enfiou a espada na bainha e agachou-se também. Mergulho a mão na poça em que pisavam e quando a retirou segurava um “fio” de água, moldado na forma do chicote que agora pertencia a Tamar.
O modo carinhoso com que falava do spectu, plantou um pouco de inveja no coração de Virnan. Seu atual laço com Lyla fez com que recuperasse seus poderes e grande parte de tudo que achava ter perdido para Érion e o tempo. Entretanto, um dia teria de ser desfeito. E a possibilidade de voltar a ficar “sozinha”, a assustava.
A castir sentiu a ondulação do ar um pouco antes de algo atingir a coluna que as protegia. A rocha se partiu, desabando sobre elas. Voltruf a empurrou para o lado, enquanto o chicote, que acabara de moldar, partia a rocha ao meio. Virnan conjurou o círculo de proteção, outra vez. A nova enxurrada de setas mágicas se chocou contra ele, empurrando-as para trás. Entretanto, desta vez, a castir estava preparada para a força do impacto.
O ataque se repetiu alguns pares de vezes e, a cada nova investida, a proteção do círculo enfraquecia e algumas setas o atravessaram, ferindo as duas florinae.
Um ser de aspecto repugnante saiu da neblina. Os olhos vermelhos pareciam dar o sorriso que os lábios enegrecidos não formavam. Voltruf usou o chicote, mas ele sequer arranhou a pele oleosa da criatura que, com gesto, liberou nova onda de setas. O círculo de proteção se rompeu completamente.
Virnan ofegou, trincando os dentes pela dor que a invadia e o laço castir atraiu Lyla para ela. O spectu mergulhou dos céus em uma pirueta rasante. Entrou na névoa e, quando saiu, as asas longas e de penas afiadas, resvalaram na Sombra que as emboscava, cortando-lhe a cabeça.
Sangue enegrecido espirrou aos pés de Virnan e maculou o solo.
“De nada” Lyla sussurrou para a irmã, enquanto retornava para o céu.
A castir respirou, aliviada e sem forças para retrucar o deboche que captou na frase. Estapeou a lama e aceitou a mão que Voltruf lhe oferecia. Os lábios tremiam de frio e dor, enquanto um filete de sangue escorria dentre eles. O mundo começou a girar diante de seus olhos, mas os fechou por um instante e recuperou-se.
— Precisamos fazê-los avançar. — Fungou, fitando o sangue de cor anormal, que a chuva espalhava pelo terreno.
— Tenho a impressão de que nós é que caímos em uma armadilha. Mesmo com Marie diminuindo o terreno, eles não estão mais nos seguindo. Em vez disso, estão nos cercando. Reparou que pararam de atacar continuamente? — Voltruf se pronunciou, avaliando os ferimentos que sofreu.
Virnan cuspiu o sangue que se acumulava na boca.
— Sim, assim como também notei que a névoa aumentou e eu não fiz isso. Estão usando os subterfúgios que criamos contra nós.
Bórian surgiu detrás de uma coluna de gelo e juntou-se a elas.
— É um milagre que ainda não tenham nos matado. — Ele falou.
Sua aparência não era melhor que a delas. Na verdade, ele parecia pior. Tinha um corte profundo no peito, assim como outros no braço e rosto. Ele curvou-se, pousando uma das mãos no joelho, enquanto levava a outra até um sangramento nas costelas.
— Aposto que se sente bem vivo agora — Voltruf ironizou, recebendo um olhar azedo do amigo.
Virnan passou a mão sobre um corte na bochecha.
— Vamos ter que repensar nossa estratégia. — Anunciou.
Fitou a adaga, com algo ácido se revolvendo no estômago. Uma mão ensanguentada pousou sobre a tucsiana.
— Ainda podemos reverter isso! — Voltruf afirmou.
— Não vejo como — a guardiã sussurrou, erguendo a face para olhá-la. — Não pretendo perecer aqui e também não me renderei para Érion. Podemos encontrar outra forma, depois que usar isto. Fantin ainda possui a outra metade da adaga, então nem tudo estará perdido.
Um clarão cruzou o céu, atraindo seus olhares e Lyla sussurrou-lhe algo através do laço.
— O que foi isso? — Bórian indagou, certo de que aquela magia não pertencia às Sombras.
A guardiã fitou o céu por um longo instante. A chuva diminuiu um pouco, mas a tormenta estava longe de chegar ao fim.
— Aparentemente, a minha cunhada é tão cabeça dura quanto a irmã. — Exalou forte, respondendo. — O que acabamos de ver é a magia de um guardião. Creio que um sinal de “trégua” foi a forma que Petro encontrou de nos alertar sobre a presença do exército midiano na floresta.
Endireitando-se, Bórian observou com desprezo:
— Não serão de muita ajuda. Humanos idiotas!
As mãos de Virnan se uniram, entrelaçando os dedos na posição correta. Nos doze anos que passou na Ordem, nunca conseguiu usar aquele sinal. Nos poucos conflitos que presenciou e que a Ordem interveio, era sempre o guardião Milan a usá-lo. Concentrou-se e separou as mãos, liberando uma pequena quantidade de magia, que subiu em direção ao céu, irradiando a cor verde do Círculo Protetor.
Uma centena de metros atrás, a cor azul do Círculo da Sabedoria se elevou de onde Marie e Tamar estavam. O mesmo ocorreu um instante depois, vindo de Melina na fortaleza. Uma ideia começava a ganhar formas na cabeça da guardiã e, talvez, o retorno da cunhada não fosse um erro.
— O que acho idiota, é essa maneira de vocês, deminaras, pensarem. — A guardiã retrucou e sussurrou para Lyla: “Vá até eles”.
Deu um tapinha no ombro de Voltruf.
— Parece que vamos mesmo mudar de estratégia.
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Domingo é o novo sábado! rs…
Falhei com vocês de novo. Felizmente, foram apenas 24h, desta vez. rs
Bem, vão desculpando o capítulo curtinho. Na verdade, ele era bem maior, mas como não consegui terminar a revisão, ou melhor, a “reescrivição”, rs… Sempre mudo algo, e não é pouca coisa, na releitura do capítulo, então devo estar postando o desfecho deste na terça-feira. Se isso não ocorrer, irei anexá-lo ao capítulo seguinte.
Beijão!
Tattah
Preguicella Cansadis falou tudo o q eu penso sobre este romance.
Cada cap. melhor q o outro fico me mordendo até ler o próximo cap.
Não me canso de chamar de obra prima digna de livro o qual serei a
1ª a comprar…
Parabéns…
Ownnn, tu é uma fofa! rs… Eu agradeço de coração o carinho e a companhia, Linda. Quem sabe teu desejo não vira realidade e ele vira mesmo um livro?
Eu ia amar!
Tattaaahhh! Tá arrasando na história! E está uma verdadeira agonia esperar pelo próximo capítulo, pq a gente fica numa ansiedade em saber o que vai acontecer com nossas meninas queridas! Confesso que sofro! hahaha
Bjãooooo
Oi, moça!
Oww, minha linda, que bom que estou te causando tantas emoções! Haha…
Beijo grandão!