*
— Você devia ter aproveitado a oportunidade e destruído aquela maldita de uma vez por todas! — Érion esbravejou.
O dragão Zarif soltou uma lufada de fumaça pelas narinas. O ódio do mestre irradiava para ele, atingindo-o como uma onda tempestuosa. Rosnou em resposta:
— Mesmo ferida daquele jeito, eu não teria a menor chance contra ela. Você limita minha magia quando estamos longe um do outro. Então, não diga coisas estúpidas, quando nem mesmo aquela sua Sombra de “estimação” conseguiu derrotá-la, apesar do desgaste mágico em que se encontrava.
Érion socou o braço do trono que ocupava ao mesmo tempo em que um trovão se fez ouvir, ao longe. Uma forte corrente de ar invadiu o ambiente e balançou as tapeçarias nas paredes. O cheiro de chuva se infiltrou nas narinas dele, recordando-o da vida passada, quando ainda era apenas um príncipe em Sulitar.
Sua raiva aumentou, enquanto atirava aquelas memórias para o esquecimento. Zarif emitiu um gemido baixo, incomodado com a tormenta de sentimentos negativos que lhe chegava.
— Sempre que a encontra, você retorna ainda mais rebelde. — Érion observou, se colocando de pé. — Tem razão, cometi um erro ao limitar seu poder e, assim, perdemos uma boa oportunidade de matá-la.
Deu alguns passos até parar diante do dragão.
— Mas me pergunto se você teria mesmo feito isso.
Semicerrou os olhos, esperando os sentimentos do dragão lhe chegarem. Recebeu uma grande quantidade de raiva, mas não saberia dizer se Zarif dedicava a ele ou a antiga senhora. Raramente tinha alguma certeza em relação ao spectu. Ao longo dos séculos, ele aprendeu a controlar suas emoções, mas às vezes se descuidava, como naquele momento.
Prosseguiu, cansado de tentar adivinhar a verdade:
— Se ela está mesmo desgastada e ferida, é certo que não pôde retornar a Flyn e deve ter ido se abrigar em Valesol. Neste caso, temos uma chance de acabar logo com isso.
Andou até a janela próxima, admirando a chuva fina que começava a cair sobre a cidadela. Zarif o seguiu, assumindo a forma humana.
— Você terá o coração e eu consumirei a alma dela. — Érion continuou, entortando os lábios em um sorriso cruel. — A alma de um Castir duplicará, talvez até triplique, o meu poder. E já não precisarei que uma guerra ocorra para captar almas poderosas para alimentar o meu amuleto e quebrar as barreiras que protegem Flyn. Além disso, se ela estiver morta, não haverá ninguém capaz de fazer aquele maldito círculo de armas.
A última observação ondulou no laço que o unia ao spectu e este sentiu o medo escondido entre o seu ódio. Zarif sorriu, desafiador e irônico.
— Você esquece que agora ela tem um Círculo e sabe o que você é.
Sangue escorreu de seus lábios, quando Érion girou o corpo para fitá-lo, enquanto seu punho ia de encontro ao rosto dele. O Cavaleiro envolveu o pescoço do spectu, reprimindo a magia dele para que não pudesse revidar.
— O destino pode ter dado a ela um grupo de castanes para formar um Círculo, mas isso de nada servirá se ela morrer.
Jogou o spectu contra a parede e retornou para o assento no centro do salão.
— Já enviei uma mensagem ao grupo que acompanhava Ilan, aquele estúpido e imprestável! — Soprou o ar, ainda mais irritado. — Você deve apenas observar e trazê-la para mim viva. Não importa que seja em pedaços, mas que esteja viva! Agora vá!
Zarif ficou de pé, reprimindo um rosnado. Atirou-se pela janela, assumindo a forma animal ainda no ar. Ia impulsionado pela força arrasadora do laço que os unia e que o forçava a bater as asas cada vez mais rápido e forte.
**
— Você… — Lorde Axen encarou Virnan e depois Lyla. — O que você fez?
Virnan estalou os dedos e as linhas mágicas que o envolviam apertaram-se.
— Não estou com muita paciência para conversa fiada, Ilan. Deixe-me falar com o seu amiguinho. — Com um gesto no vazio, criou um círculo no ar. Uma linha sinuosa o dividia, entremeada por símbolos estranhos.
O círculo flutuou até o meio da cela e desabou sobre Ilan até fixar-se no chão. Virnan desprezou os sons de surpresa que escaparam dos companheiros ordenados. Era irritante, mas estava ciente de que ouviria os mesmos sons e veria os mesmos rostos espantados assim que usasse magia diante de qualquer membro da Ordem.
Do interior da cela, Ilan Dastur os encarou com olhos onde a ausência de viço era facilmente notada. Ao lado dele estava um ser de aparência animalesca, com pele negra e lustrosa como óleo, dedos e unhas longos, olhos vermelhos e sem pupilas. As imagens dos dois tremulavam como se fossem fumaça e após o susto inicial, os presentes perceberam que o corpo físico do lorde permanecia sentado no meio da cela.
— Cometeu um grande erro, Castir. Devia ter nos matado quando teve a chance. — Rosnou a Sombra, com voz estranhamente humana.
Ela riu. Aumentou a resistência do ar às suas costas e sentou-se no vazio, cruzando as pernas. Mestre Lian arqueou uma sobrancelha, recordando da forte corrente de ar que o afastou do corpo de Lorde Axen, naquela manhã. A Grã-mestra lhe contou muitas coisas naquela tarde; coisas que lhe pareceram absurdas, mas não duvidava que fosse possível. Contudo, quando falou da magia da guardiã, a descrença se assentou em seu íntimo. Sentimento que foi destruído assim que ela conjurou o círculo.
— Você fala muita besteira, vermezinho. — Ela enfiou a mão pelos cabelos negros. — Acaso não sabe que tipo de Castir eu sou?
As expressões da Sombra permaneceram inalteradas, mas um apertar de olhos, quase imperceptível, lhe deu a resposta.
— Entendo. Apesar de seus seiscentos anos, é uma Sombra jovem. Diante do nosso passado e da crença de que toda a Ordem Castir estava morta, faz sentido que Érion não tenha falado. — Ela sorriu largo e voltou-se para Melina: — Acho melhor se retirarem. Não será uma “conversa” agradável para olhos, ouvidos e estômagos sensíveis.
A mão de Melina pousou no ombro dela, compreensiva. Apesar de ser a líder da Ordem e seguir seus ideais de paz, aprendeu muito sobre si mesma e o mundo que habitavam ao longo do caminho que as trouxe até aquele instante. Não faria questionamentos, nem tentaria impor os ideais da irmandade naquele momento. Eles não cabiam ali.
— Cuidem-se. — Disse para as duas florinae e começou a se afastar em direção a porta. Fez um gesto firme para cortar os protestos de Lian e o empurrou gentilmente até a saída, junto com Petro.
Enquanto eles subiam as escadas que levavam até o pavimento térreo, Mestre Lian declarou:
— Não acredito que a senhora está sendo conivente com isso!
Ela o fitou, complacente. Subia os degraus devagar, tomando um tempo para formular a resposta de forma branda. Toda a correria das últimas semanas a fizeram compartilhar um pouco da impaciência de Fantin ou, talvez, isso fosse resultado do voto sagrado que unia o Círculo delas. Fato era que vinha notando em si mudanças sutis de comportamento. Coisas pequenas, mas que costumava associar às companheiras.
— Eu o entendo. Sei bem o que se passa na sua mente, mas depois de ir até Flyn e conhecer parte das verdades deste mundo, sei que não posso me deixar guiar somente pelos meus ideais ou os da Ordem. — Disse a idosa.
— Absurdo! — Ele cerrou os punhos, buscando acalmar-se. — Creio que toda essa história de Reino Florinae e sacrifício afetou um pouco seu julgamento, Grã-mestra.
Melina sorriu, benevolente. Abanou uma mão ao lado do rosto, displicente.
— Você ainda é muito jovem, Lian. A Ordem prega a paz e ajuda ao próximo. Falo dos humanos que habitam este continente e o outro além-mar. Mediamos e ajudamos a resolver conflitos, desde a nossa criação. Mas o que está acontecendo hoje, está além do nosso poder e conhecimento. Não podemos erguer uma bandeira de paz, porque essa guerra envolve o destino de três mundos. Não podemos interferir nos atos de Virnan, porque esta é a sua missão há mais de três mil anos e, se ela não fizer isso, estaremos condenados à destruição.
Ela alcançou o último degrau e se voltou para o mestre.
— Não estou sendo omissa, se é o que pensa. — Encarou o fim das escadas e Petro seguiu seu olhar, mas nada além de escuridão e as luzes trêmulas de algumas tochas era visível. — A ideia de tortura é inconcebível e vertiginosa. Ferir alguém me causa um terrível mal-estar, mas também fui uma guardiã na juventude e compreendo que algumas ações, embora repugnantes, são necessárias.
Ainda estavam longe da entrada principal da fortaleza, mas o vento frio da tempestade invadia os corredores, trazendo uma agradável sensação de frescura, libertando-os do sentimento de sufocamento que a escuridão e paredes estreitas do calabouço lhes trouxe.
A Grã-mestra inspirou fundo e continuou:
— São pensamentos e ideias contraditórias. Eu sei. Fazer o mal para alcançar o bem; é com esse ponto de vista que a maioria das guerras começa. Na maior parte das vezes, o instinto destrutivo da humanidade deturpa esse propósito e tudo caminha apenas para o desejo de sobrepujar o inimigo e mostrar-se mais forte. — Seus olhos se fixaram no rosto austero do mestre. — Virnan nasceu fadada a fazer guerra, mas ao contrário da maioria dos guerreiros, realmente acredita que, às vezes, é mesmo necessário fazer o mal para alcançar o bem. Nem por isso, deixa de se torturar por fazer essas coisas. Mas não será o caso, desta vez.
Petro agitou-se, compreendendo o que dizia bem mais do que gostaria.
— Ela não vai torturá-lo. — Disse ele.
Melina afastou a vista para o guardião.
— Não há como torturar alguém que é a personificação do sofrimento. — Respondeu.
— Então? — Lian engoliu em seco, já imaginando a resposta.
— Ela vai matá-lo. Virnan é uma Executora. — Melina esclareceu, seguindo adiante no corredor que levava ao saguão de entrada da fortaleza.
Os dois homens a acompanharam de perto.
— Se esse era o objetivo dela, desde o início, por que o poupou?! — Petro perguntou.
— Isso é ainda pior que a tortura. Estamos falando de uma vida, mesmo que ele seja um traste. — Lian continuou e quase trombou na Grã-mestra quando ela interrompeu os passos, abruptamente.
Ela se voltou para os dois, devagar. Estavam diante das escadarias que levavam aos pisos superiores.
— Não sei o motivo dela o poupar, mas se tivesse de arriscar um palpite, diria que ela queria ver como era a ligação daquela “coisa” com a alma de Lorde Axen. Contudo, se tratando de Virnan, meus palpites costumam ser equivocados. — Olhou para Lian. — Quero que compreenda algo, Mestre. Ilan Dastur já está morto. Embora seu corpo ainda se mantenha vivo, seu verdadeiro espírito já se perdeu. Com certeza, o que sobrou dele convive em harmonia com aquele monstro. Vocês notaram a aparência desagradável do espírito dele.
Como poderiam esquecer algo assim. A aparência da Sombra era asquerosa, mas Ilan exibia um aspecto pútrido, como se estivesse em decomposição.
— Embora guarde as memórias e até os sentimentos do verdadeiro Ilan, aquela coisa não é ele.
***
Emya tomou um gole de vinho, desgostosa do clima pesado que envolvia a todos os ocupantes da mesa. Como na noite anterior, desfrutou a refeição ao lado dos nobres dos reinos vizinhos e, também, dos ordenados e os manir.
Os restos da comida foram retirados pelos criados e apenas o vinho ocupava a mesa. Quando a Grã-mestra da Ordem tomou assento entre eles, houve uma pequena comoção. Sua presença era indicativo que de realmente estavam em paz. Deliberadamente, Melina não apresentou Marie, mas a semelhança dela com a princesa era notável e arrastou olhares curiosos durante toda a refeição. Quando esta findou, a Grã-mestra pediu que Mestre Lian lesse em voz alta o tratado de paz que todos iriam assinar.
Era um documento breve, cuja intenção era apenas consolidar a vontade deles de não irem adiante em um conflito sem sentindo. Para aquele momento, era mais que suficiente. Contudo, em um futuro próximo, haveria a necessidade de estender seus termos e caberia a Lorde Verne esta função, pois para aqueles homens, ele era o verdadeiro regente de Midiane, agora que o Rei Laurentio definhava devido a doença e idade avançada.
Esta situação incomodava Emya profundamente, no entanto ela optou por manter-se em silêncio. De nada adiantava lembrá-los que era ela quem detinha o sangue da linhagem real. Isso só acabaria por inflamar os ânimos e arrastá-los para novo conflito, mesmo que apenas de palavras.
Lorde Calil aprovou o documento, seguindo os outros nobres. Tomou a pena da mão de Mestre Lian com a intenção de ser o primeiro a assiná-lo, no entanto, interrompeu-se.
— As coisas que vi e ouvi nos últimos dias são realmente fantásticas. Jamais imaginei que Lorde Axen poderia ser aliado do Cavaleiro Vermelho e tivesse matado nossas eleitas. Mas antes de assinar este documento, preciso agradecer o seu sacrifício, Princesa Analyn. — Os olhos perspicazes pousaram em Marie, enquanto sorria. — Não nos vemos há muito tempo, mas jamais esqueceria seu rosto.
Agitou a pena, desprezando as gotas de tinta que caíram na mesa.
— Creio que estamos vivenciando um raro momento. Estamos diante de três princesas de Midiane.
Melina fez um gesto vago.
— Com certeza, não se referem a mim desta forma há muito tempo, Lorde. Agradeceria que não tornasse a fazê-lo. Sou apenas uma ordenada, nada mais.
Ele meneou a cabeça, compreensivo.
— Perdão. Mas agora que estou prestes a assinar este documento e olho para vocês três, me pergunto se os rumores de que Midiane, outra vez, não tem intenção de realizar o sacrifício, é verdade. Vejam bem, independentemente dos planos de Lorde Axen, isso é algo que precisa ser feito e, se não estou enganado, a esta altura a princesa Analyn deveria estar na Cidade dos Eleitos e não aqui. Então, por favor respondam, vocês vão realizar o sacrifício?
Houve um longo e incômodo momento de silêncio em que a tristeza assentou-se na face de Emya. Durante a conversa que teve com a irmã, evitou tocar nesse assunto. Pois, só desejava matar a saudade, nada mais.
— Isso é algo do qual não podemos fugir. — Declarou a princesa, evitando olhar a irmã mais velha.
— Na verdade é isso mesmo — Melina falou. — Não haverá sacrifício.
Emya ergueu a vista para a tia, pálida. Ao mesmo tempo em que temia aquela declaração, preenchia-se de esperança.
— Absurdo! — Lorde Calil se pôs de pé.
— Infelizmente, devo concordar, Grã-mestra. — Disse Mestre Lian, fugindo do olhar penetrante de Marie. — Todos sabemos as consequências para Caeles quando o seu sacrifício não ocorreu. Sinto muito que seja assim, mas este é o dever de Mestra Marie.
— Não haverá sacrifício — a voz de Virnan se projetou no salão, oriunda da entrada. Ela repetiu a frase enquanto se aproximava da mesa com passos firmes e um olhar tão gelado quanto um floco de neve. — A princesa Analyn não é mais uma eleita e, mesmo que fosse, eu não permitiria esse sacrifício.
— E quem seria você? — O príncipe Danio perguntou.
O mago Anton se pôs de pé, junto com Miqueias.
— Domna. — Anton pousou dois dedos na testa, curvando-se. Miqueias fez o mesmo e, como a maioria dos manir o consideravam o líder, o resto do grupo o imitou.
Virnan retribuiu o gesto.
— E bom revê-lo, Anton. E já que agora estamos do mesmo lado, sinto grande satisfação nisso. Me alegro em saber que todos atenderam ao meu chamado, apesar da provável descrença sobre a minha identidade. Terei grande prazer em conversar com vocês mais tarde.
Voltou-se para os nobres, que ainda aguardavam sua resposta. Cruzou as mãos às costas.
— Sou aquela que enviou espíritos e aliados para salvarem seus traseiros reais, enquanto se deixavam cegar pelas mentiras de Lorde Axen e obedeciam a ele abanando os rabos como cães. Meu nome é Virnan e sou a atual rainha de Flyn, o reino florinae. Mas isso é apenas um título, não o levem tão a sério. O que vocês precisam ter sempre em mente é que eu sou a mulher que vai rasgar a garganta de qualquer um que ouse se aproximar da minha esposa com a intenção de torná-la um sacrifício para aquele verme que se intitula cavaleiro. — Sorriu, como se o que tinha acabado de falar não passasse de uma pilhéria, mas o olhar afiado não deixava que eles desprezassem a ameaça.
Sentou a mão no ombro de Marie, apreciando a confusão e o medo que causou nos rostos nobres. Lorde Calil se empertigou, lançando um olhar para a pena na mão direita. A tinta havia escorrido completamente para a mesa.
— Isso é verdade? — O lorde ergueu o olhar para Emya, que tinha proferido a pergunta.
De tudo o que foi dito, apenas uma coisa se fixou em sua mente e lhe interessava. Ela fitava a irmã mais velha emocionada, mas não se atrevia a chorar diante daqueles homens.
— O que ela disse é verdade? Você não é mais uma eleita?
Marie sorriu, balançando a cabeça positivamente. Começou a gesticular algo, mas lembrou que ela não sabia ler os sinais e interrompeu-se. Melina pigarreou e expandiu sua aura mágica.
— Pode responder, filha.
Recebeu um sorriso de gratidão da sobrinha.
— Sim, é verdade.
— Como é possível? — Emya perguntou, com voz trêmula. Queria pular no pescoço dela, abraça-la, beijá-la e chorar. Mas, novamente, não o faria diante daquelas pessoas.
A guardiã sorriu de lado, dizendo:
— Lembra daquela mentira que lhe causou indignação? Este é o resultado dela. Se tivesse dito a Marie que se casar comigo a tornaria inelegível, ela não teria aceitado. — Lhe enviou uma piscadela e Emya obrigou-se a apenas sorrir, já que aquela revelação levantava outras questões e os lançava em um poço de problemas.
Virnan se voltou para os homens.
— Está na hora de pararem de se esconder atrás do sacrifício de inocentes, senhores. Honrem seus títulos e liderem seus povos para a libertação. Ou assinem logo esse tratado de paz e corram para casa como bons covardes!
Marie se colocou de pé e sentou uma mão no ombro dela. Fez uma leve pressão e Virnan suspirou diante da severidade do seu olhar, deu de ombros e afastou-se.
— Perdoem a minha esposa, senhores. Ela é um soldado e, como tal, costuma ter a língua mais afiada que a lâmina de sua espada. — A mestra sorriu.
— Surpreendentemente, isso funciona muito bem entre os floras. — Melina completou.
— Diplomacia nunca foi o forte dela mesmo. — Lyla observou. O spectu tinha entrado no salão logo após Virnan, mas manteve-se em silêncio, alguns passos atrás da cadeira que Emya ocupava.
— Sentem-se. — Marie pediu, assumindo a responsabilidade de explicar o que se passava com riqueza de detalhes. Afinal, Lyla contou apenas o básico para convencê-los das más intenções de Lorde Axen.
Satisfeita por não ter de tratar com aquela gente, Virnan se afastou em direção a uma das janelas. Repassava na mente a conversa com Ilan e a Sombra. Compreendia, agora, como foi possível para Érion alcançar tamanho poder e fazer um pacto com Zarif, coisa que era impossível para um castane.
O espírito Bórian se aproximou dela. Como era invisível para os demais, limitou-se a apenas assistir as conversas de que Melina participava, desde que Virnan devolveu o bracelete para ela, ainda no calabouço.
— Você o matou?
— Sabe que sim. Você viu como eles estavam conectados. Não havia como separar a alma de Ilan da Sombra.
Ele fitou a chuva, seguindo o olhar dela. Não precisava perguntar para saber que ela tentou separá-los. Tinham suas diferenças no passado e agora, mas Bórian jamais questionou o trabalho dela.
— O que descobriu?
— Que fui negligente. — Soprou o ar, deixando clara sua irritação. — Lembra-se do episódio em que um grupo de castanes tentou fazer um círculo sem autorização?
— Aquele em que eles tentaram caminhar entre os mundos? Sim. Recordo daquela confusão. Crianças tolas, aquelas. Morreram inutilmente e nunca descobrimos quem colocou em suas cabeças que eram capazes de atravessar o véu. — Retornou o olhar para ela. — Está dizendo que Érion fez isso?
O vento forte atirou gotas de chuva no rosto dela.
— É pior que isso. Ele era um deles. Só encontramos quatro corpos naquele dia, mas havia cinco lugares demarcados no círculo. Não consegui obter muitas respostas da Sombra, mas posso imaginar o resto. — Deu de ombros.
— Você era a melhor executora por conseguir ouvir e sentir o cheiro das Sombras com facilidade. Como não notou que ele tinha uma?
— Após o ocorrido, Érion retornou para Sulitar. Ele tinha obrigações como o novo Demir, já que Lyla assumiu o trono de Flyn. Quando eu retornava para casa, não nos encontrávamos. Por razões óbvias, nunca fizemos questão de manter contato e aprofundarmos o laço fraternal. Quando o Reino do Sul caiu, ele não estava entre os mortos e quando Flyn foi atacada, havia tantas sombras que não fui capaz de perceber que ele também tinha uma.
— Então, ele escapou dessa forma. Neste caso, a culpa é de todos nós. Era dever de toda a Ordem Castir destruir as Sombras.
— A coisa é pior do que parece, Bórian. Ainda há uma parte do exército axeano se encaminhando para Flyn, mas eles não são humanos como o exército acampado aqui perto. São todos Sombras.
Ficaram algum tempo ouvindo a chuva e a narrativa de Marie. Vez ou outra, os homens à mesa lançavam olhares curiosos para a guardiã, mas esta não lhes dava atenção. O sorriso de Bórian a fez erguer as sobrancelhas.
— Me pergunto que desgraças irão acontecer se eu fizer isso, mas começo a perceber que você está mesmo disposta a fazer tudo ao seu alcance para pôr um fim a essa guerra. E já que a situação começa a ganhar novos rumos, creio que ter esse conhecimento possa ser um bom reforço. — Cofiou a barba, mirando a ex-companheira nos olhos. — Posso estar dando início ao fim do mundo neste momento, mas farei o que me pediu. Darei uma Canção à sua amitsha.
Os lábios dela se rasgaram em um sorriso que misturava satisfação e ironia. Ao vê-lo, Bórian começou a se questionar se estava mesmo fazendo a escolha correta. Como um caçador de amitshas, ele recebeu conhecimento que os outros castirs não tinham acesso. O mesmo se passava com os outros, cada um deles tinha uma função específica e adquiriram conhecimentos voltados para o desempenho desse trabalho.
Marie podia ser apenas uma humana, mas o seu dom a tornava mais poderosa que os quatro membros do Círculo do Trovão reunidos. Falar já era devastador, mas se ela cantasse ninguém seria capaz de deter o seu poder.
— Espero não me arrepender disso.
— Não vai — Virnan garantiu.
Ela mordiscou o lábio, o vento que entrava pela janela era forte e a chuva ajudava a confundir seu olfato. Mesmo assim, ela sentiu o cheiro deles. Um odor forte, como o que Lorde Axen e sua Sombra exalavam.
— Espero que isso seja um engano. — Falou alto e acabou chamando a atenção dos ocupantes da mesa. Bórian limitou-se a lhe dirigir um olhar confuso, enquanto ela colocava uma mão diante da face e cerrava os olhos.
Um círculo surgiu envolta do corpo dela. Ele produzia uma grande quantidade de ar e fios luminosos, que giravam em torno dela, agitando suas roupas e cabelos. Virnan ficou assim por um momento. Então o círculo cresceu, tomou conta do lugar e desapareceu. No entanto, a guardiã permaneceu na mesma posição.
— Bórian o que houve? — Marie perguntou.
O círculo que Virnan criou também permitia que ele fosse visto pelos humanos comuns e houve um ligeiro murmúrio de surpresa a percorrer a mesa. O espírito deu um passo atrás.
— O que ela está fazendo? — Lian quis saber.
— Se chama “integração”. Seus sentidos estão conectados ao elemento primordial da sua magia. No caso, o ar. Simplificando, ela tem acesso a tudo o que se passa à nossa volta. Não sei em que escala, mas no caso dela, diria que chega a alguns quilômetros.
O círculo reapareceu e encolheu até retornar para o corpo de Virnan. A castir apoiou as mãos nos joelhos, sugando o ar para os pulmões. Não fazia aquilo há milênios e foi mais cansativo e difícil do que recordava. Ela se endireitou devagar. Fitou Emya e o comandante Guil, sentado ao lado dela.
— Há alguma forma de sair de Valesol sem usar os portões? — Perguntou.
O comandante agitou-se. Aquela era uma informação preciosa. E mesmo que estivessem entre “amigos” e “aliados” não deveria ser dada.
— Responda! — Virnan rosnou.
— Sim! — Emya decidiu-se no lugar dele.
Virnan suspirou, aliviada.
— Ótimo. Então preparem-se para evacuar a fortaleza.
O comandante Guil abandonou o assento.
— Enlouqueceu?! Há milhares de pessoas na cidadela e está desabando um oceano lá fora. Por que raios faríamos algo assim?
Virnan emitiu um som que lembrava um rosnado baixo.
— Não temos muito tempo para explicações. Mas há aproximadamente duas centenas de inimigos vindo para cá.
O comandante sorriu, descrente.
— Deuses, mulher! Estamos cercados por milhares de soldados.
Ela chegou mais perto da mesa.
— Então, deixe-me corrigir. Há duas centenas de seres, como aquele que enfrentamos na noite passada, vindo para cá. Agora, diga-me, Comandante, acha que seus homens podem enfrentá-los?
O comandante empalideceu. Petro, que havia algum tempo tinha abandonado a mesa e perambulava pelo salão atento à conversa, falou:
— Por todas as forças divinas! Aquela coisa que nos atacou ontem era um tormento. Um exército daquilo seria um pesadelo!
— Eles têm a força de dez homens, são ágeis e podem usar magia. E, para piorar, não podem ser mortos por armas comuns. — Lyla informou.
Guil apertou o cabo da espada na cintura. Aparentemente, estavam mesmo longe de escapar do derramamento de sangue.
— Irei fazer os preparativos. — Declarou.
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