*

Emya não sabia o que pensar.

Com um suspiro resignado, deixou a vista recair pelas muralhas da fortaleza, assistindo a troca da guarda. Uma suave brisa entrava pela janela na qual se recostava, trazendo consigo o cheiro da chuva que se aproximava no horizonte. Nuvens negras se destacavam no céu, anunciando uma tarde tempestuosa.

Voltou-se para o interior do aposento, assentando os olhos sobre a mulher na cama. Ela gemeu baixinho e apertou as mantas, que recobriam o leito, com tanta força que a cor desapareceu dos nós de seus dedos. A febre a consumia, violenta, e a mancha negra e venenosa espalhava-se cada vez mais rápido. Naquele momento, insinuava-se pelo queixo dela.

Assim que se apresentou como sua cunhada, uma ligeira discussão se iniciou entre os ordenados. Obviamente, Mestre Lian levantou dúvidas sobre a veracidade do que a castir disse, ligeiramente enervado. Mas o reaparecimento do spectu Lyla abafou seus protestos. Afinal, ninguém esperava que ela fosse se materializar ao lado de Virnan. E até mesmo Petro e Guil, que a viram se abrigar no corpo da guardiã, não esconderam expressões de susto.

Depois disso, Virnan teve de abandonar a insistência em continuar aquela conversa. Seu estado piorava rapidamente e Lyla a convenceu a repousar, enquanto Marie e Melina não chegavam. E, assim, ela foi parar nos aposentos de Emya, já que os outros cômodos da ala tinham sido ocupados, temporariamente, pelos nobres aliados.

Emya abandonou a janela e se aproximou da cama. Admirou o rosto jovem e moreno por algum tempo, reprimindo a vontade de rir. Não fazia sentido que sua irmã tivesse casado; era o que pensava. Afinal, Marie usou o sacrifício como desculpa para romper o compromisso com Verne e unir-se à Ordem.

Ergueu a vista e mordiscou o lábios, pensativa.

— Marie também faz isso quando algo a incomoda.

A voz de Virnan lhe chegou. Ela a encarava com olhos semicerrados e um sorriso torto no canto da boca, por onde um fio de sangue escapava. Emya apressou-se a enxugá-lo.

— Achei que estivesse inconsciente.

— Também achei por algum tempo — Virnan gracejou, exibindo dentes vermelhos de sangue.

Quanto mais Emya falava com ela, mais achava inacreditável a ideia de que pudesse ser sua cunhada. A assistiu erguer o braço, onde um leve formigamento se iniciava.

— Desculpe, mas ainda não consigo acreditar que você e a minha irmã são um casal. — Confessou a princesa.

— Por que é tão difícil pensar em mim como sua cunhada?

Emya franziu a testa, exalando forte.

— Posso ser sincera?

— Achei que já estava sendo.

A voz dela estava fraca e a respiração começava a se tornar ruidosa, levando a princesa a especular se Marie estaria mesmo vindo em seu socorro e se chegaria a tempo. Ainda não compreendia bem o que estava se passando, mas o comandante Guil tinha lhe dado uma breve explanação do que aconteceu no encontro com Lorde Axen, enquanto a guardiã retirava o sangue do corpo em um banho rápido, auxiliado por uma serva.

A princesa deu de ombros, com um sorriso sem graça e sentou-se na beirada da cama.

— Desculpe. — Disse. — Bem, é que Marie nunca teve interesse em mulheres.

Virnan caiu na gargalhada. Fez uma careta quando as dores aumentaram, mas o riso se desprendeu tão naturalmente que quase se esqueceu de seu estado. Um tom forte de vermelho preencheu as bochechas da cunhada e ela se apressou a explicar-se:

— Perdoe-me! Sei que foi uma observação estranha, para dizer o mínimo. Quero deixar claro que Midiane tem leis muito liberais em relação aos pares e…

Virnan abanou a mão, ainda em meio ao riso.

— Eu compreendo o que quis dizer, Alteza. Em uma das muitas conversas que tive com o seu marido, nos últimos dias, ele me falou sobre as leis que regem os herdeiros do trono de Midiane.

A menção ao esposo trouxe um aperto ao peito de Emya. Ela queria saber dele, contudo manteve-se no assunto atual e deixou a curiosidade para depois. Explanou:

— Nenhuma forma de amor é proibida em nosso reino, mas os herdeiros do trono não podem assumir relacionamentos assim. Pelo menos, não abertamente. Faz-se necessário dar continuidade à família real. Então, pode imaginar que há alguns casamentos bastante infelizes em nossa família. Marie foi noiva de Verne por todos aqueles anos… Agora, sabendo da sua relação, me pergunto se não foi por isso que ela resolveu pôr fim ao noivado, de modo que pudesse aproveitar seus últimos anos de vida com a merecida liberdade.

— Entendo, mas sua irmã não é o tipo de mulher que foge dos seus deveres. Razão pela qual tive de enganá-la para que dissesse as palavras sagradas que nos tornaram um casal. — Sorriu de lado, outra vez.

Esforçou-se para sentar e depois ficar de pé. O cômodo girou diante de seus olhos e Emya a amparou. Quando sentiu-se dona de si novamente, Virnan concluiu:

— Não me olhe assim. Pode parecer vil, mas foi por um boa causa.

A cunhada lhe soltou o braço.

— Desculpe, mas não consigo entender como enganar alguém para assumir um compromisso consigo, possa ser por uma boa causa. Por acaso levou em consideração o desejo de Marie? — A indignação lhe escapava a cada palavra proferida e o indício de admiração que começou a dedicar a Virnan, desvaneceu-se.

A guardiã aumentou o sorriso e o formigamento em seu braço cresceu junto. Usava roupas negras de corte simples e destinadas a montaria, que lhe foram cedidas por Emya. Obviamente, ficaram folgadas nela, fazendo-a parecer ainda menor. Ergueu a mão esquerda, com o palma voltada para cima, revelando uma tatuagem no punho. Tinha a forma de um círculo, onde cinco linhas se entrelaçavam como se fossem uma corda. A admirou por algum tempo. Duas das linhas brilhavam cada vez mais forte.

— Por que não pergunta a ela você mesma? — Respondeu, finalmente.

Então, esticou o braço à frente do corpo. Os dois círculos brilhantes se moveram em sua pele até escaparem dela e lançarem-se no ar, emanando uma forte luz. Tocaram o chão e imagens tremularam entre eles até se tornarem sólidas. Os círculos brilharam forte mais uma vez, então desapareceram.

Três figuras estavam paradas no meio do cômodo. Encararam o vazio por alguns instantes, até se darem conta de que tinham chegado ao seu destino. Assim como Melina, Marie se curvou, ligeiramente mareada. Os ouvidos zuniam como se estivessem preenchidos por um enxame de abelhas e o desjejum ameaçou escapar do seu estômago.

Era uma reação natural, afinal era a primeira vez que faziam uma viagem através das correntes mágicas e, definitivamente, não era algo agradável.

A mestra se recuperou primeiro. Inspirou fundo algumas vezes e ergueu a face para encarar Virnan, cega para qualquer pessoa além dela. E não lhe surpreendeu que estivesse com aparência tão doentia.

— Sua pequena arrogante! — Marie rugiu. — Como se atreveu a me dar um susto desses?! Quase morri de preocupação e se Bórian não tivesse nos explicado o que houve, ainda estaria em prantos! Você é cruel, Virnan!

A guardiã sorriu, reparando no círculo luminoso na mão dela, o que lhe permitia a palavra sem receios. A presença do espírito Bórian, ao lado de Melina, lhe dava o indicativo de que aquela conjuração era obra dele e aumentava a certeza de que deixou a esposa muito irritada, já que ela se deu o trabalho de se preparar para a “briga”.

Seu riso cresceu, ainda que soubesse que aquilo só elevaria a raiva da mestra. Mas, apesar da situação, adorava vê-la perder a serenidade das expressões e não pôde se controlar.

— Também senti saudades, Marie.

A mestra se aproximou, inspirando fundo.

— Já disse que odeio quando você tenta aplacar minha raiva com seu riso! — Falava baixo e cada vez mais irritada. — Não pense que conseguirá desta vez!

Contudo, sabia que não podia deixar-se levar pelo calor das emoções ou o círculo de contenção que Bórian lhe fez, acabaria por romper. Então, se obrigou a amainá-las. E apesar da revolta, a abraçou forte. E Virnan se esforçou para não demonstrar a dor que a tomava. Marie se afastou um pouco para olhá-la. A raiva mantinha suas expressões inalteradas, mas por dentro sentia uma angústia crescente por vê-la tão machucada.

— Por todos os círculos da Ordem, Virnan, sempre que nos afastamos você encontra um jeito de se machucar e quase me matar de agonia! — Falou mais branda. — Não quero nem saber quem lhe fez isso, pois se você já não tiver lhe dado um fim, eu o farei. E trate de avisar àquele “passarinho” que lhe arrancarei todas as penas por arrastá-la até aqui para salvar seu traseiro espiritual!

Virnan gargalhou e fez um carinho na mão que lhe tocava a face.

— Creio que tem passado muito tempo com Fantin. Está começando a falar como ela. — Devolveu.

A menção à mestra loira fez os olhos de Marie se apertarem levemente. Não esqueceu as impressões que teve no Salão Lunar, nem a forma desalentada com que a amiga fitou o céu por toda a noite, nem o incômodo que lhe tomou quando indagou à respeito. A natureza sincera de Fantin não lhe permitia mentir, e o embaraço por ter de lhe ocultar algo era evidente. Como suas preocupações estavam no sumiço de Virnan, deixou as indagações de lado.

O riso de Melina as separou. Ela se aproximou devagar e também abraçou a irmã de círculo.

— Folgo em vê-la bem, ou quase. — Apontou para os ferimentos visíveis e não lhe escapou a temperatura elevada quando a tocou. Fez um afago no ombro de Marie e indicou a mulher alguns passos atrás da guardiã. — Vocês podem discutir sobre essas coisas mais tarde, quando estiverem sozinhas.

Não conhecia a sobrinha caçula, assim como não conhecia Marie antes que ela se unisse à Ordem, mas os traços de Emya eram inconfundíveis. Não havia como dizer que aquelas duas não eram irmãs.

Surpresa, a mestra levou uma mão aos lábios ao reconhecê-la. E antes que conseguisse pronunciar algo, Emya estava enroscada nela em um abraço tão apertado e carinhoso que todos os anos de silêncio e distância foram esmagados.

Melina aproveitou para chegar mais perto de Virnan e perguntar em um sussurro:

— O quanto está se esforçando para manter-se de pé e não preocupá-la?

A moça a fitou, carinhosa.

— Muito — respondeu no mesmo tom.

— Então, é melhor sentar-se antes que ela perceba. — Sugeriu, e foi obedecida de pronto.

**

Fantin soltou um suspiro e descansou o queixo em uma das mãos. Com a outra, brincou com as páginas do livro à sua frente. Ergueu o olhar, fazendo um biquinho.

— Não faça essa cara. Não foi você quem disse que, se preciso fosse, se enfiaria na biblioteca para estar ao meu lado? — Tamar indagou.

A mestra loira abandonou a brincadeira com o livro, deslizando o olhar pelas estantes centenárias até pousar nela de novo.

— Sim. Mas quando fiz isso tinha esperanças de que pudéssemos fazer algo mais “divertido” entre essas prateleiras abarrotadas de poeira e traças. — Sorriu, devassa.

Tamar se empertigou ao sentir a perna dela resvalando na sua, provocativamente. Lançou um olhar constrangido para o bibliotecário mais próximo, entretanto o homem estava concentrado em um pergaminho.

— Enlouqueceu?!

— De amor por você — Fantin respondeu, aumentando o sorriso.

Embora estivesse irritada com sua atitude, Tamar prendeu o ar, encantada com aquele sorriso. Ainda não conseguia acreditar que estavam juntas, que eram mesmo um casal. Mais que isso, que tinham se unido através de um voto sagrado e que nada, nem mesmo a morte, poderia separá-las.

Sorriu também. Mais por estar satisfeita em ver que retornava ao seu estado normal de espírito, do que pelo o que disse. Não procurou questioná-la sobre o que a incomodava, sabedora de que falaria quando desejasse se aliviar daquela carga negativa.

Fechou o livro ao qual se dedicava com ligeiro ruído e ergueu-se.

— Venha — lhe ofereceu a mão.

— Pensei que iria demorar mais. — Fantin envolveu a mão dela. Tocá-la era revigorante, para dizer o mínimo.

— Já encontrei o que buscava. A organização desta biblioteca é fantástica e o que levaria anos para encontrar na biblioteca da Ordem, me custou apenas alguns dias aqui.

A conduziu para o corredor, onde Fantin aspirou o ar puro do início da tarde com evidente prazer. Definitivamente, não agradava à mestra loira, lugares como a biblioteca. Sentia-se presa ali, ainda que houvesse muita luz entrando pelas janelas altas e largas e o salão também fosse espaçoso o suficiente para que um festim pudesse ser realizado para uma centena de convidados, sem que estes esbarrassem nas prateleiras ou mesas de estudos.

— Posso saber o que tanto buscava? — Fantin deixou-se envolver pela curiosidade.

— Ainda não. Basta que saiba que estava atendendo a um pedido de Virnan.

Notou a mudança na postura da esposa ao ouvir o nome da Castir e apressou-se a dizer:

— Ela está bem. Marie e a Grã-mestra se foram há algum tempo e se algo ruim tivesse acontecido, já saberíamos.

Fantin apertou a mão na sua, enquanto a ouvia falar em meio a um sorriso tranquilizador:

— É um pouco engraçado ver a forma como vocês se entendem hoje. Durante doze anos assisti a incontáveis discussões e olhares tortos de ambas. Declaravam seu desagrado, uma pela outra, para qualquer um. Imagino a surpresa que será quando nossos irmãos ordenados virem essa nova fase da relação de vocês.

— Talvez imaginem que o mundo realmente chegou ao fim. — Fantin riu, amainando as feições.

Não queria pensar muito no futuro, já que ele era cheio de incertezas, mas desde que Tamar estivesse ao seu lado, tudo poderia ser contornado.

***

Emya não conseguia acreditar. Após vinte anos, a irmã estava consigo. Era ainda mais linda do que se lembrava e, de alguma forma, mais firme e decidida. Se pudesse, a teria mantido em seus braços por mais algum tempo e despejado todas as lágrimas de saudade que guardou. Mas a guardiã voltou a demonstrar desconforto pelos ferimentos e tiveram de se afastar.

Sentada, na beirada da cama, ela assistiu Marie e Melina retirarem a blusa de Virnan com movimentos suaves e cuidadosos. A idosa se apresentou rapidamente, envolvendo sua mão com um aperto caloroso, assim como o sorriso que trazia nos lábios. Ela não se parecia com o pai de Emya, era o que a princesa pensava. Contudo, os olhos eram da mesma cor que os dele; os gestos, embora delicados e graciosos, também recordavam os do Rei Laurentio. Certamente, havia sido uma mulher muito bela na juventude e parte dessa beleza se conservou na velhice.

Os olhos de Marie se apertaram, demonstrando uma mistura de medo e raiva diante da visão dos cortes profundos e a mancha negra que tomava quase todo o abdômen da esposa.

— Eu sei! — Virnan falou, lhe adivinhando os pensamentos. — Me desculpe.

Os lábios de Marie crisparam-se. Às vezes achava que Virnan fazia aquilo de propósito, apenas para atormentá-la.

— Outra vez, não me venha com esse sorriso. A beleza dele não irá diminuir a raiva que estou sentindo por vê-la nesse estado. Até parece que quer me deixar viúva logo!

Virnan ensaiou uma resposta jovial, mas se conteve, fazendo uma careta de dor. Reparou no cenho franzido de Emya, cujos olhos saltavam da irmã para ela, obviamente tentado assimilar como verdade o que tinha acabado de ouvir.

Você está horrível. Quase não sinto sua magia e também está fedendo a coisas ruins! — Bórian falou, recostado à porta. Os dedos longos brincavam com os fios da barba negra e rala.

A presença dele havia sido revelada por Melina, minutos antes, quando criou um círculo para que Emya pudesse vê-lo. A princesa demonstrou muita confusão ao vê-las conversando com o vazio e acharam por bem expor o espírito, antes que ela começasse a acreditar que estavam loucas.

Ouví-lo falar causou um leve sobressalto na princesa. Por mais que tivesse uma mente aberta às diversas possibilidades e maravilhas que aquele mundo oferecia, ainda era difícil para ela sentir-se confortável com todas aquelas revelações e acontecimentos.

— Sério?! Nem tinha percebido! — A Castir retrucou, inclinando-se um pouco para permitir que Marie observasse melhor os cortes. — Que tal parar de falar o óbvio e nos ajudar?!

Ele abandonou a porta, dizendo em um tom carregado de provocação:

— Será um prazer, Príncipe de Sangue.

Os lábios dela entortaram, revelando o desagrado, e ele sorriu por ter alcançado o efeito desejado.

— Faz muito tempo que não me chamam assim — Virnan recordou, mirando os dedos ágeis e delicados de Marie, percorrendo a pele em volta dos ferimentos.

Bórian chegou mais perto.

— Estava guardando esse para um momento especial. — Provocou, mas retornou à postura séria em seguida.

— Da próxima vez use “sanguinária”, me faz relembrar os nossos “bons” tempos, Caçador.

O espírito fez uma leve careta ao ouvir o título que fazia referência à sua principal função na Ordem Castir. Acabou dando de ombros, sob o olhar nada amigável dela. Afinal, os dois carregavam muitos pecados nas costas.

— Seria melhor que fosse na água corrente, mas pelo o que me recordo, o rio está a alguns quilômetros daqui e parece que você não vai aguentar chegar até lá. — Melina constatou, por fim. — É verdade que são ferimentos sérios e feios, mas se Mestre Lian está por aqui, poderia ter…

A idosa deslizou a ponta dos dedos pela mancha negra e foi invadida por ondas de dor e desespero. Recuou assustada, compreendendo que Lian nada poderia fazer.

— O que é isso?!

Virnan gemeu mais alto e a mancha cresceu mais alguns centímetros. Bórian respondeu:

— Coisas ruins. Ela teve um encontro com uma Sombra.

Ele ergueu o olhar para a ex-companheira. Fora por isso que insistiu em acompanhar as duas ordenadas até ali.

— Estou curioso para saber como algo assim conseguiu chegar a Domodo com os Portões fechados e muito mais interessado em descobrir como conseguiu atingir nossa “adorável” rainha. — Seu rosto era puro sarcasmo. — Se bem me lembro, você despedaçava essas abominações com apenas um piscar de olhos.

A guardiã ajeitou-se sobre a cadeira ao lado da mesinha, onde a sua adaga e o machado de Lorde Axen repousavam com um brilho inquietante e mortal. A luta com Ilan, volta e meia, lhe retornava à mente. Naquele momento, o corpo do lorde estava em um dos calabouços no subsolo da fortaleza, vigiado atentamente por Lyla e um disposto, e muito curioso, Petro.

— Deuses! Eu gostava mais de você quando estava vivo. A morte lhe deixou muito tagarela! — Reclamou para o espírito.

Passou a mão sobre sua própria arma, então pediu com voz branda:

— Não me chame assim. Nós dois sabemos que não nasci para o trono. Flyn inteira sabe. Anseio o momento em que poderei jogar aquela coroa sobre o colo do próximo idiota a sentar naquela “cadeira”. Só espero que não seja um completo imbecil e não acabe provocando outra maldita guerra entre os quatro reinos.

— Se isso acontecesse, você poria fim a guerra de novo, não? — Ele passeou o olhar pelo rosto dela, admirando o incômodo crescente que o tomava. — Imagino quantos você mataria dessa vez…

— Já chega! — Marie o cortou. — O passado é passado, não há como ser modificado. E esta conversa não cabe aqui.

Seu olhar severo enviava uma clara mensagem para o espírito e ele a compreendeu bem. Ficaria calado. Principalmente, porque a magia do círculo que mantinha ativo no braço dela vibrou perigosamente, avisando-o que se a deixasse perder a calma, ele acabaria por romper.

Bórian teve vontade de rir, achando aquela situação engraçada e irônica. Afinal, jamais imaginou que um dia ajudaria uma amitsha a conter seus poderes. Meneou a cabeça para Marie e se concentrou no que Virnan lhe dizia.

— Se eu perder os sentidos, oriente-as.

O falecido castir fez um gesto positivo e ela se voltou para as ordenadas.

— Convoquei vocês duas porque seus dons são os mais adequados para isso. — Explicou. — Marie, você consegue ver os veios mágicos, mesmo quando não está usando magia curativa. Preciso que aja como se fosse retirar um pouco da minha magia, assim como fizemos em Bantos. Contudo, o que você irá procurar é diferente. Será ruim e desagradável e tentará sugá-la para a escuridão.

Fez uma pausa quando a mancha cresceu um pouco mais.

— Quando você encontrar, oriente Melina até lá. — Voltou-se para a Grã-mestra. — Você deve contê-la, assim como faz com os dons de Marie. Uma vez que tenha feito isso, Marie deve arrastá-lo para fora de mim.

Pegou a adaga e entregou para a esposa.

— Lembra da palavra para fazê-la brilhar, que lhe ensinei naquele lago? — Esperou que a mestra confirmasse. — Assim que retirá-lo de mim, use a adaga. Enfie o mais fundo que puder e conjure a luz. Será rápido, já que é apenas o veneno dele e ainda não tomou forma.

— O que isso está fazendo com você? — Melina quis saber.

— Se alimentando do meu desespero — Virnan respondeu com um sorriso atormentado.

— Dor, medo, ódio… Uma Sombra irá se alimentar de qualquer sentimento negativo que seu hospedeiro tiver. Irá criar “raízes” e depois consumirá a alma dele. — Bórian explicou.

Emya brincou com a ponta da trança. Os dedos se entrelaçavam, nervosos, nos fios castanhos, como os da irmã. Perguntou:

— E essa coisa estava dentro de Lorde Axen?

Recebeu uma resposta positiva da cunhada, enquanto mais uma pouco de sangue lhe escorria entre os lábios. Marie agitou-se ao ver o líquido rubro e Virnan tratou de enxugá-lo com as costas da mão.

— O veneno dele não teria lhe afetado tanto, se não estivesse desgastada. Você mesma poderia retirá-lo, nem precisaria convocá-las aqui. — Bórian observou, encarando Virnan com gravidade.

Ela estalou os lábios, jogando um gesto no vazio.

— Correto. É um procedimento simples para um castir, embora demande atenção e muito cuidado. Eu tentei fazê-lo, mas isto é diferente das Sombras que conhecemos. — Passou uma das mãos pelos cortes profundos da barriga. — Essa Sombra é antiga. Ela não consumiu a alma de Ilan Dastur, pelo menos, não completamente. Em vez disso, ligou-se a ela.

A febre dela aumentava a cada instante e a transpiração começava a se tornar mais intensa.

— Nunca soube que isso era possível. Mas se o que diz é verdade, soa como uma ligação castir após a morte. — Exalou forte, como se ainda conseguisse encher e expulsar o ar dos pulmões. — Isso é um grande problema.

— Você acha?! — Virnan foi irônica, então dobrou-se. Tremia violentamente. — Vamos logo, Marie. Meu tempo está acabando.



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