*

Os soldados axeanos avançaram em direção ao grupo midiano.

A primeira lâmina que desceu em direção a face da mulher foi rechaçada pelo Comandante Guil, que lhe tomou à frente. O golpe seguinte decepou a mão do soldado axeano que a atacou e, enquanto ele urrava de dor, a espada do comandante encontrou abrigo em seu peito.

Pelo flanco esquerdo, outro soldado tentou quebrar a formação em volta dela, mas o homem que ocupava aquela posição se adiantou para enfrentá-lo com um ligeiro sorriso. Ele desprezou a espada que trazia na cintura e retirou um par de bastões que estava preso em uma cinta às suas costas. Os girou nas mãos com a habilidade e familiaridade dos anos de uso. Com o bastão esquerdo afastou a espada do axeano e o golpeou no abdômen com o direito. Quando este se curvou, desferiu um golpe no rosto e encerrou o combate ao atingir-lhe a nuca.

Lorde Axen riu, divertido com a cena e, ao mesmo tempo, cheio de curiosidade. Fez um gesto para que os homens interrompessem o avanço.

— Pensei que a Ordem não tomava partido nas disputas de outros — comentou, mirando intensamente o homem com os bastões; arma que, sabia, era de uso dos guardiões ordenados. Além disso, seu olhar perspicaz, apesar da distância e da pouca luminosidade, capturou o símbolo da irmandade gravado neles.

O homem, por sua vez, arrastou os cantos da boca para o alto, dizendo:

— E continua não tomando. — O guardião Petro recolheu os bastões, devolvendo-os à cinta nas costas. — No entanto, ao sermos atacados, temos o direito de nos defender. — Retornou para junto dos companheiros.

O comandante midiano tomou uma posição de defesa, desafiando o lorde e seus homens com o olhar. A mão delicada da mulher que protegia pousou em seu ombro com um aperto suave.

— Agradeço sua gentileza, Comandante, mas sou perfeitamente capaz de me proteger. Sua missão aqui já chegou ao fim e há outro assunto importante ao qual precisam dar atenção.

Um vinco se formou entre as sobrancelhas de Ilan Dastur. As coisas não estavam se passando como planejou. O Comandante Guil o encarou por um breve momento, depois analisou os guerreiros à frente, com um desejo assassino a lhe dominar os traços. Contudo, ela tinha razão. Naquela noite, sua função era apenas servir de testemunha, então, por fim, guardou a espada e inclinou-se para a mulher, em uma curta reverência.

Ele se voltou para os companheiros. Os dois com capuz repetiram seu gesto, mas Petro parecia estar em dúvida sobre o que fazer, já que não lhe agradava a ideia de deixá-la sozinha. Mas logo recordou quem ela era e acabou por se afastar, dizendo:

— Foi uma honra, senhora.

Palavras que se repetiram na boca de Mequias, quando este retirou o capuz, revelando-se. O homem ao seu lado também mostrou a face e Ilan Dastur rilhou os dentes ao reconhecer o comandante da guarda pessoal do príncipe regente de Bévis. Repetiu o movimento com mais intensidade ao dar-se conta de que tinha sido atraído para uma armadilha e acabara de perder seus maiores aliados.

— Sinto grande prazer em lhe informar, Lorde Axen, que seus planos falharam e os seus “estúpidos não aliados” se encontram vivos, em segurança e negociando um tratado de paz com a Princesa Emya. — Disse a mulher. Sob a luz amarelada das chamas das tochas, Ilan vislumbrou o princípio de um sorriso na boca carnuda e vermelha dela, cuja maior parte da face ainda se mantinha oculta pelas sombras e dobras do capuz.

— Quem é você?! — Rosnou.

Ela fez um gesto vago, sussurrando algo para o vento, e um círculo mágico, feito de luzes, surgiu à sua frente.

— Partam agora. Não olhem para trás e não temam serem perseguidos. — Disse aos companheiros.

Lorde Axen deixou um riso nervoso e irritado escapar.

— Como se isso fosse acontecer! — Escarneceu, mandando os homens atacarem, novamente. — Vou arrancar a pele de vocês e devorar suas almas!

Para contrariá-lo, ela fez um gesto suave e uma forte luz se desprendeu do círculo. Os soldados pararam. Estavam, literalmente, imóveis. Aliás, tudo à sua volta tinha parado no tempo, exceto ela e os quatro homens que formavam a comitiva midiana e assistiam aquela conjuração completamente emudecidos.

— Vão. — Ela ordenou e explicou: — Só posso segurá-los por um minuto.

Eles obedeceram após um breve momento de hesitação. A luz desapareceu segundos depois, causando confusão entre os axeanos. Ilan piscou algumas vezes e assistiu os homens retomarem o ataque, mas eles caíram logo em seguida, vítimas de lâminas afiadas e vermelhas, que o lorde reconheceu como sendo, na verdade, penas.

Os soldados caíam como insetos a tocarem o calor das chamas nas tochas. Lyla parecia estar dançando diabolicamente, desviando das estocadas com passos suaves e leves inclinares de corpo. Em verdade, ela não necessitava fazê-lo, já que aquelas armas eram inúteis contra um espírito, mas lhe agradava movimentar-se um pouco. Noutros momentos, saltitava para os lados ou corria e usava as árvores como apoio. Fato era que, eles estavam fadados à derrota e assim aconteceu.

Um minuto depois, ela parou a poucos passos do lorde. O capuz, finalmente, escorregando para seus ombros, revelando a pele alva e os olhos violeta. Estes se apertaram, deformados pelo sorriso gracioso e provocativo que lhe tomava os lábios.

— Você fala demais, Lorde Axen — provocou-o, dando ênfase ao “lorde” e carregando no sotaque, imitando-o.

Emudecido, Ilan afastou a vista para os corpos no chão. Fracos gemidos e o farfalhar das folhas que o vento balançava, invadiam seus ouvidos, junto com o ódio que crescia em seu peito. Tremeu ante o tamanho da ira que lhe tomava.

— Você… — ele sussurrou. — Você é a maldita rainha que tirou Maxine de mim!

Lyla ergueu as mãos. Os dedos tomaram a forma de penas afiadas, enquanto novo sorriso debochado lhe escapava.

— Não me culpe por seus erros, Lorde. Você afastou Maxine no dia em que sucumbiu à tentação de Érion.

O rosto dele se contorceu em puro ódio. Gritou:

— Vou destruir você, espírito maldito!

**

Os lábios de Emya se curvaram em um sorriso amistoso. Aceitou que Lorde Calil, príncipe regente de Primian, tornasse a encher seu cálice com vinho e levou-o aos lábios, tomando um pequeno gole. Não lhe agradava beber em demasia, o que não era o caso de Calil, nem dos outros nobres sentados à mesa.

Estavam no salão de refeições da fortaleza de Valesol. Embora o clima entre eles se mostrasse tranquilo e amistoso, todos se mantinham em estado de alerta e ela não se enganava quanto ao excesso de bebida que ingeriam. Estava cansada de assistir aos nobres de seu reino se fartarem de vinho e cerveja nos festivais e depois se engalfinharem em disputas e jogos como se fossem crianças e nada tivessem consumido. O esposo era grande exemplo disso, já que era bastante tolerante a bebida.

Ao menor sinal de perigo, eles estariam prontos para lutar.

Entretanto, a conversa até o momento tinha seguido amena. Nenhum deles desejava entrar em guerra, já que aquela que aconteceu após o sacrifício que não se realizou ainda estava bem viva na memória do povo, entre outra infinidade de motivos. Embora tivessem boas relações com Axen e lhe atendessem ao chamado para marcharem até a fronteira em antecipação a uma nova “traição” por parte dos midianos, todos desconfiavam das intenções de Ilan Dastur. Principalmente, após rumores de que um de seus comandantes tentou invadir a Ilha Vitta e foi expulso pelos guardiões.

Rumores que se tornaram mais críveis quando souberam de certa confusão em Bantos que, embora tenha sido mascarada pelo comandante da guarda local como uma perseguição à foras-da-lei, algumas moedas de ouro nas mãos das pessoas certas deixaram saber que se tratava de uma tentativa de captura a um grupo de ordenados e que um deles tinha sido entregue ao Comandante Loyer.

Sabiam bem que Lorde Axen mantinha seus subordinados na “rédea curta” e Loyer era um dos mais fiéis a ele. Então, se planejava destruir a Ordem, uma instituição milenar, cuja importância para o povo de todos os reinos daquele continente e de outros além-mar, era impossível de ser medida, fazia-se necessário que tomassem cuidado com suas ações.

A marcha até a fronteira serviu como desculpa para que cada um, à sua maneira, investigasse as ações do aliado. Então, quando os mensageiros de Midiane chegaram aos seus respectivos acampamentos, enxergaram naquele convite uma oportunidade de sondarem uns aos outros e descobrirem o que realmente se passava. Mas a verdade era que nenhum deles estava preparado para ouvir a explicação da boca do espírito de uma rainha de um povo que se acreditava extinto.

Emya afastou a vista para uma das janelas e fitou a noite.

Naquela tarde, enquanto se despedia do comandante Guil, após ele lhe dar notícias sobre o encontro que aconteceria mais tarde, um grande pássaro vermelho entrou pela janela e pousou no chão. Os dois o fitaram com espanto e a surpresa se tornou maior quando ele ganhou as formas de uma mulher.

Lyla ofereceu uma reverência à Emya e fez um gesto que pedia calma ao comandante, que já se encontrava com a espada em mãos.

— Sua espada não será necessária, Comandante. — Ela sorriu charmosamente. — É uma honra conhecê-la, Princesa Emya. Se me permite dizer, é muito parecida com sua irmã.

Ainda entregue ao susto, Emya precisou de alguns segundos para compreender o que lhe disse. Se pôs de pé e devolveu o cumprimento, dizendo:

— Você é uma florinae? — Encarava os olhos violetas sem reservas e não lhe escapou a surpresa que a pergunta trouxe ao comandante.

O spectu tornou a sorrir, sentando na beirada cama às suas costas. Ela cruzou as pernas com graciosidade.

— Creio que ainda posso me definir assim. — Respondeu.

— Senhora. — O comandante chamou, preocupado e confuso com aquela visita inesperada. Foi ignorado.

— Então, você é a mulher que estava acompanhando Verne e Marie — Emya supôs, deixando algum alívio se assentar em suas feições.

Lyla apontou a cadeira que ela ocupava há poucos instantes.

— Sente-se, Alteza. Minha história é longa e não tenho tempo a perder, pois necessito encontrar outras pessoas, em breve.

A nobre obedeceu, enquanto o comandante parecia cada vez mais aflito. Fez um gesto para que ele se acalmasse e guardasse a espada. O que ele fez com evidente desagrado.

— Para começo de conversa não sou a mulher a qual seu marido se referiu na mensagem que lhe enviou, mas venho ao seu encontro por ordem dela. Meu nome é Lyla e sou o espírito da última rainha florinae. Um espírito diferente daquele que lhe visitou antes. — Arriscou uma olhada irônica para o comandante, que exibia uma palidez quase cômica. — Lhe contarei essa história em outro momento. Por agora, necessitamos falar sobre os planos de Lorde Axen para atacar Valesol e matar você e os regentes estrangeiros durante a reunião desta noite.

O som de um cálice caindo, a fez retornar a atenção para a mesa. O príncipe Danio, de Trícia, sorriu amarelo e pediu desculpas, enquanto um servo recolhia o cálice e providenciava um novo. Ao seu lado, o Mago Anton liberou um suspiro de irritação. Não lhe agradava aquelas pessoas, nem a espera.

Ele encarou o homem sentado à sua frente, usando a túnica azul escuro do círculo da sabedoria da Ordem. Mestre Lian lhe devolveu o olhar, analisando, com indisfarçado interesse, as cicatrizes em sua pele. Ao lado deste, uma guardião magricela dedicava uma severa atenção à carne em seu prato.

Os manir e os ordenados chegaram juntos a Valesol, guiados pelo espírito da rainha florinae.

— Ainda me custa acreditar que aquela guardiã encrenqueira é uma florinae e que esse reino não é apenas uma lenda — Mestre Lian comentou, unindo as mãos sobre a mesa e chamando a atenção dos demais.

Alguns dias antes, preocupado com a ausência de notícias da grã-mestra e companhia e já ciente do que se passou com o Guerreiro dos Mares, ele tinha ido à Bantos em companhia dos melhores guardiões. Com a ausência de Melina, coube a ele comandar a Ordem até o seu retorno. Contudo, nunca foi de seu hábito esperar que as coisas acontecessem para tomar uma atitude e decidiu ir à procura delas.

Qual não foi sua surpresa quando um espírito do ar lhe trouxe um pergaminho com instruções de Melina para se dirigir para a fronteira de Midiane, onde um possível conflito se delineava. Foi-lhe dada a missão de mediar um acordo de paz entre aqueles reinos, mas pelo que notava, sua interferência não seria necessária. Nenhum daqueles regentes queria guerra.

— E digo o mesmo sobre Mestra Marie ser a eleita e sua irmã, Princesa Emya. Jamais desconfiamos disso. Ainda mais por terem deixado a Ilha Vitta usando Mestra Alina como disfarce. — Concluiu.

— Compreendo. Se fazia necessário que ela se mantivesse incógnita para sua segurança. Como sabemos, — resvalou a vista pelos outros nobres — foi uma decisão acertada.

O guardião Jovan esqueceu o prato por um instante. Ergueu a cabeça, falando enquanto terminava de mastigar:

— É realmente surpreendente. — Ele concordou com Mestre Milan. — Mestra Marie é uma das mulheres mais adoráveis que tive o prazer de conhecer. É muito amada e respeitada na Ordem. — E começou a enumerar alguns de seus feitos.

Um sorriso escapou de Emya. Era uma mistura de orgulho e ressentimento. Orgulho pelas conquistas da irmã e ressentimento por não ter podido compartilhar aqueles momentos com ela.

— Mas agora estou até com pena do tal Cavaleiro Vermelho — o guardião concluiu com um sorriso malicioso.

Desta vez, foi Mestre Lian quem concordou, compreendendo ao que se referia.

— Verdade — disse ele.

O comentário atiçou a curiosidade da princesa.

— Por que diz isso, guardião?

O sorriso dele aumentou.

— Digo porque é de conhecimento de toda a Ordem que a Guardiã Virnan moveria céus e terras para proteger Mestra Marie. E, se bem a conheço, esse tal Cavaleiro está para descobrir que o seu pior pesadelo não é tão grande em estatura, mas sabe se portar como um demônio quando em batalha.

Anton sorriu pela primeira vez desde que sentou à mesa. Inclinou um pouco a cabeça para trás. O espírito da rainha tinha feito um relato resumido do que se passava e não chegou a esclarecer quem era Virnan, apenas falou de sua origem florinae para sanar algumas dúvidas dos ordenados.

— Acha engraçado, senhor? — O guardião inquiriu o mago, interpretando seu riso como se estivesse fazendo pouco do que dizia.

O axeano respondeu:

— De modo algum, guardião. Concordo com o que falou, mas vou um pouco além. A guardiã Virnan, como vocês a conhecem, é um verdadeiro demônio quando em batalha. — Afastou parte da túnica para que visualizassem a cicatriz recente no ombro. — Ela me fez isso e depois massacrou mais de uma dezena de soldados antes de chegar até o meu comandante e lhe cortar a garganta.

O guardião engoliu em seco e se pôs de pé, indignado.

— Peço que retire o que disse, senhor. Nenhum ordenado tiraria uma vida.

O mago riu.

— Certamente que não, mas uma das maiores guerreiras florinae que este mundo já viu, sim. — Voltou-se para Emya. — Não tive a honra de conversar com sua irmã, alteza, mas a vi nessa ocasião. Tenho muitas impressões desse encontro e posso afirmar que, se ela é querida por Virnantya Dashtru, ninguém será capaz de lhe fazer mal. Nem mesmo o Cavaleiro. Aliás, ainda que não tenha nos sido revelado, acredito que o verdadeiro motivo de estarmos aqui é para colocarmos um fim ao “reino” de terror do Cavaleiro e seu dragão.

— Absurdo — Calil declarou, deixando evidente o temor que a ideia lhe trazia.

Novos protestos se iniciaram entre os ocupantes da mesa, mas foram silenciados quando Hibérion, que sentava próximo à cabeceira, entre Jeil e Belard, apontou para a janela. Imediatamente, Emya seguiu para lá. Anton e Lian se juntaram a ela. No horizonte escuro uma faixa de luz, feita através de magia, erguia-se em direção aos céus, mesclando quatro cores.

O encontro planejado por Emya seria realizado durante a noite, mais especificamente naquele horário, na floresta próxima ao rio que delimitava a fronteira do seu reino. Entretanto, após espionar o acampamento axeano com o auxílio de espíritos do ar, Lyla ficou ciente dos planos de Lorde Axen e comunicou-se com Virnan. O spectu entrou em contato com Emya e adiantaram o encontro, mudando o local para a fortaleza. Enquanto isso, espíritos do ar obstruíam os planos de assassinato do lorde, causando alguns danos físicos aos seus enviados.

Após a rápida explanação de Lyla, nem todos estavam convencidos da traição de Lorde Axen, então para prová-la o spectu assumiu o lugar de Emya e partiu para encontrar Ilan Dastur, que não fazia ideia de que seus planos tinham sido frustrados. Levou consigo o comandante Guil, representando Midiane; o guarda pessoal do regente de Bévis, representando os outros reinos; Miqueias, em nome dos Manir e o Guardião Petro, pela Ordem.

Eles seriam suas testemunhas.

O ataque a Valesol era iminente, mas era certo de que ocorreria durante a madrugada. Cientes da distância que deveriam percorrer, combinaram um sinal mágico que poderia ser avistado de Valesol sem problemas. Para garantir a segurança da informação a cada um dos grupos, cada testemunha deveria informar uma cor diferente para Petro, o mago responsável pelo sinal, já que os outros não possuíam magia e, também, por ser um membro da Ordem, o que lhe conferia maior credibilidade.

Anton se voltou para os companheiros, dizendo com evidente prazer:

— Está na hora de fazermos nossa parte, senhores. Vamos pôr um fim ao início dessa guerra.

***

Virnan sentou em um dos bancos do Salão Lunar. Seus olhos passearam pelo local, enquanto os ouvidos estavam atentos aos passos que se aproximavam. A brisa que adentrava pelo teto aberto lhe trouxe uma agradável sensação de paz e o perfume de Fantin.

— Estava me perguntando quanto tempo ainda levaria para que você viesse até aqui, irmã.

Fantin sentou ao lado dela, corando levemente. Era a segunda vez que a guardiã lhe tratava dessa forma e, embora soubesse que a verdadeira razão era o voto que fizeram no círculo de Cazz, sentia grande prazer em ouvi-la. De alguma forma, lhe parecia que tivessem mesmo um laço de sangue. A sensação se repetia em relação a Marie e Melina.

Muitas coisas aconteceram durante o ritual que realizaram quando chegaram à Flyn. Seus passos não percorreram apenas o “mundo completo” ou o salão do Cavaleiro na Cidade dos Eleitos. Elas foram a vários lugares naquela noite e, quando o dia raiou, e Virnan começou a pronunciar as palavras que definitivamente poriam fim ao ritual, Fantin a interrompeu, dizendo:

— Quais são as palavras?

A Castir ergueu uma sobrancelha para demonstrar sua confusão. Fantin planeou repetir a frase, mas foi Melina quem esclareceu, compreendendo ao que se referia:

— Quais são as palavras que temos de pronunciar para que este laço, que nos une agora, se torne duradouro?

Virnan se mostrou descrente. Encarou a mestra com ligeira revolta.

— Isso não é uma piada, Fantin.

— Pareço estar contando uma? — Retrucou.

A auriva se empertigou.

— Vocês viram minhas lembranças e vivenciaram alguns dos meus sentimentos em relação a elas. Sabem o tamanho da responsabilidade que carrego. Fazer esse juramento seria…

— Nós sabemos de tudo isso — a interrompeu. — Ainda assim, estou lhe perguntando quais são as palavras e não estou ouvindo protestos de mais ninguém além de você.

A água agitou-se quando Marie ergueu a mão para gesticular, ligeiramente esquecida de que naquele momento podia falar. Percebeu o engano rapidamente e cruzou os braços, fixando o líquido que as cercava por alguns segundos.

— Sabemos que isso nunca ocorreu. Foi isso que você não nos falou quando Tamar lhe perguntou à respeito. Certo?

Virnan confirmou com um balançar de cabeça e complementou:

— Não tenho conhecimento de nenhum Círculo misto. Castirs fazem votos com Castirs e Castanes com Castanes. Sinceramente, não acreditava que poderia realizar este ritual com vocês, mas Lyla se mostrou muito confiante à respeito, então resolvi ir adiante.

Marie prosseguiu:

— Se conseguimos fazer o ritual, é certo que conseguiremos fazer esse voto. — Virnan ameaçou protestar, mas a calou com um abanar de mãos. — Compreendemos, plenamente, que isso não será perfeito. Afinal, não somos Castirs e, ouso afirmar, que também não somos Castanes, já que essa é uma denominação para um florinae com poder espiritual e nós somos humanas. Contudo, o destino nos pôs aqui, juntas. Talvez sua irmã tenha dado um empurrãozinho para que isso acontecesse, mas nosso encontro já estava predeterminado, assim como ela previu.

— Mesmo que tenha sido uma visão vaga e confusa — Tamar completou o raciocínio.

Um gemido escapou de Virnan. Ela cerrou os punhos e, mesmo que não falasse, todas podiam sentir as suas dúvidas.

— Será que dá para você falar de uma vez?! — Fantin agastou-se e arrancou risos das outras por ter sido delicada demais ao falar, contrariando seu costumeiro jeito bruto. Ainda mais em uma frase em que ele deveria estar presente.

Melina cessou o riso. Mergulhou as mãos e brincou com a água, fazendo movimentos delicados.

— Sabe que todos esses argumentos são válidos. — Arqueou os lábios em um sorriso gentil e enrugado. — Mesmo que tenhamos medo, e isso é inegável, estamos destinadas a fazer esse voto com você. Ainda que não fosse assim, é nosso dever assumir essa tarefa. Como você mesma afirmou, essa luta sempre foi por um mundo. O mundo que habitamos. O mundo que pertence a nossos amigos e familiares, também.

— Desculpe fazê-la esperar, mas tinha algo sério a tratar com Tamar — sorriu.

Virnan tomou a sua mão e acariciou a nova tatuagem, com um sorriso largo. A alegria que sentia, ao vê-la, era quase semelhante a que lhe invadiu na noite em que casou com Marie. Ainda que Fantin se mostrasse comedida, a felicidade lhe escapava pelas íris azuis. Seu brilho era encantador.

Resvalou a mão para o pulso dela. Ali, por baixo do bracelete de couro e prata, estava a tatuagem que representava o juramento que todas fizeram naquela noite. Diante dos argumentos das amigas e do seu próprio desejo de não se negar aquela nova etapa, revelou as palavras mágicas que as tornariam um Círculo de verdade.

— Parabéns! — Falou.

A resposta de Fantin foi um sorriso tímido, alheio à sua personalidade. Agradeceu às felicitações com um sussurro, também mirando a tatuagem. Enquanto retornavam da casa de Laio, tinha lhe pedido para que ensinasse as palavras do voto de união, o que ela fez em meio a uma piada devassa que, por fim, se tornou outro abraço caloroso.

Endireitou-se, afastando a mão da dela e a descansou sobre o colo.

— Parece satisfeita, então imagino que conseguiu — retornou para assuntos mais sombrios. — Fez boa viagem? — Não conseguiu evitar adicionar gotas de ironia à pergunta.

A outra esticou as pernas, enquanto brincava com a adaga, que havia retirado da bainha.

— Não sei o que você achou quando esteve por lá, mas o Salão de Cazz sempre me inspira as piores sensações. Sei que não deveria ser assim, mas… — deu de ombros.

— É um lugar de fim e recomeço. Compreendo o que quer dizer. As lembranças da nossa visita, naquela noite, ainda estão bem vivas. Mas discordo. Acredito que o lugar lhe desagrade porque você já conhece o que vem depois.

Reparou no sorriso que contraiu os lábios dela, sem vida ou calor, como vinha ocorrendo com frequência desde que chegaram àquele reino.

— Talvez tenha razão.

— O desconhecido traz medo, mas também carrega a euforia das novas possibilidades. — Fez um gesto vago, afastando outros pensamentos sobre o assunto. — Por que me pediu para encontrá-la aqui?

Virnan se pôs de pé, com uma estranha expressão. Parecia ausente.

— Não pensava nisso em muito tempo. É claro que revivemos esse momento durante o ritual, mas duvido que tenha fixado essa lembrança. — Deu alguns passos adiante e voltou-se para olhá-la. — Era uma manhã de inverno, fria e chuvosa, quando deixei meu leito pela primeira vez desde que cheguei à Ilha Vitta. O som da chuva me despertou e atraiu. Havia tanto tempo que não a sentia, que foi impossível resistir àquele “convite” e abri as janelas do cômodo sem me importar se incomodaria os outros enfermos. Era muito cedo e a maioria dos ordenados ainda repousava, mas havia uma mulher a caminhar pela praia.

Fechou os olhos, como se revivesse a cena que narrava.

— Acho que ainda estava com febre, mas a impressão que tive foi de que o vento e a chuva dançavam à sua volta, como um dia fizeram para comigo. — Abriu os olhos. — Hoje sabemos o motivo.

Tornou a girar a adaga entre as mãos e Fantin se endireitou sobre o banco, vendo-a assumir uma posição de ataque, no entanto ela iniciou movimentos suaves e delicados, quase como se estivesse a dançar.

“Dançando com o vento”, Fantin pensou. Era tão belo que chegou a engolir em seco.

A adaga cortava o ar, deixando um rastro luminoso; linhas que se conectavam formando, não um, mas vários círculos mágicos, que a envolveram por completo e depois se espalharam pelo lugar. Os movimentos se tornaram mais rápidos e complexos, até que ela soltou a adaga e esta deslizou pelo ar, conectada a um dos fios de luz. Mais parecia um chicote com uma lâmina na ponta.

Quanto mais assistia, mais encantada a mestra ficava até que viu a adaga se partir e Virnan encerrou sua “dança”, recuperando as duas armas. Caminhou até Fantin e lhe entregou uma delas.

— O que significa isso?

— Significa que estou dividindo o peso sobre os meus ombros com você, assim como pediu. Quando chegar a hora, se a visão de Lyla se concretizar e Érion me matar, não deixe que ele fique mais forte. Vai ser doloroso para o nosso círculo, — engoliu em seco — vai ser cruel com Marie, mas não permita que ele consuma a minha alma.

** **

Ilan pegou o machado, que estava atado a uma cinta em suas costas. Imediatamente, o amuleto em seu pescoço começou a emitir um brilho suave.

Lyla o provocou:

— Ah, você pode me ferir com essa arma, mas não tem o poder para me matar com ela. Deveria colocar o rabo entre as pernas, como um bom cãozinho, e correr para o seu mestre.

— Maldita! — Ele desferiu um golpe no flanco direito dela, que assumiu a forma animal para escapar.

Lyla pousou em um galho baixo e voltou a forma humana. Balançou as pernas com um sorriso debochado.

— Meu trabalho aqui já terminou, Lorde. Não vim para lutar com você. Só tinha de revelar sua verdadeira natureza para os seus “aliados” e bagunçar um pouco os planos do meu irmão.

Ficou de pé sobre o galho.

— Nos veremos em breve! — Piscou, zombeteira.

Ilan urrou de ódio. Apontou o machado na direção dela, tracejando um círculo invisível no ar.

— Não tão rápido.

O spectu não lhe prestava mais atenção e iniciou sua transmutação. Contudo, foi tomada por uma dor aguda. As pernas fraquejaram, as forças se esvaíram. Algo lhe atravessava o abdômen, rasgando suas entranhas. Baixou a vista para encontrar a ponta de um tentáculo escuro se projetando da sua barriga. Despencou para o chão, incapaz de qualquer reação.

Sangue lhe escapou entre os lábios, enquanto a risada maldosa de Ilan Dastur lhe arranhava os ouvidos e a imagem de uma sugadora, agachada sobre o galho em que estivera, lhe preenchia a visão.



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