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— Por que estamos indo lá, no meio da noite e a pé? Esta cidade é enorme! — Fantin queixou-se. — E por que esses dois estão nos acompanhando? — Apontou para suas costas, indicando Bórian e Voltruf.
Uma pequena nuvem de ar quente escapou dos lábios de Virnan, que ergueu o olhar para a amiga, deixando que o capuz da capa escorregasse sobre os ombros. O vento frio lhe acariciou o pele, aumentando a incômoda sensação de dormência nela. Seus olhos pareceram sem vida por alguns instantes, mas logo retornaram ao de costume.
— Achei que seu tempo ocioso no palácio estava lhe fazendo mal. Começo a notar um pouco de sobrepeso em suas formas, então pensei que apreciaria um pouco de exercício.
Fantin bufou.
— Engraçadinha!
Virnan gargalhou, divertida com ira na face dela.
— Você perde a calma muito rápido, Fantin. Por isso, sempre foi muito fácil te provocar!
— Não comece! — Rosnou.
— Viu só?! — Arqueou os lábios, então suspirou. — Mesmo que o que disse fosse verdade, sua beleza só teria aumentado. — Foi sincera e divertiu-se mais, agora com o desconcerto que tomou a amiga. — Você fica uma graça quando está envergonhada, sabia?
— Sei que um dos seus irritantes passatempos é encontrar formas de me provocar, mas será que podemos deixar isso para outro momento e retornar ao assunto?!
Ela balançou os ombros, prendendo uma nova risada. Respirou fundo para recuperar a seriedade e, finalmente, respondeu:
— Estamos indo agora porque seria difícil sair do palácio discretamente durante o dia. Necessitamos ser cuidadosas. A verdade é que ainda não confio nas pessoas que nos rodeiam. Principalmente, depois que tive uma “conversinha”, esta tarde, com os sobreviventes do ataque ao Salão Lunar.
A outra assentou as mãos na cintura, estalando a língua em desagrado. Seus passos soaram mais pesados que o normal.
— Então, simplesmente resolveu deixar nossas companheiras por lá e a mercê dessa gente?!
Virnan diminuiu as passadas.
— Elas estão seguras. Depois do que houve, seria muito estúpido que tentassem realizar um novo ataque enquanto ainda estamos em alerta pela proximidade do último. Provavelmente, irão esperar que relaxemos a vigilância do palácio e dos comparsas na prisão.
A mestra cruzou os braços, aspirando o ar gelado com uma careta. Então, relaxou. Ela tinha razão, perdia a calma com facilidade e isso tinha lhe rendido muitos problemas ao longo da vida. Mas aquele era o seu “jeito” e sabia que jamais conseguiria mudar.
— Atualmente, você é a rainha…
— Deuses! Não me chame assim! — A cortou. — Parece a droga de um pesadelo!
Fantin revirou os olhos.
— Você é uma idiota! — Xingou em meio a um sorriso. — Às vezes, tenho pena de Marie por ter de te aguentar.
— Digo o mesmo sobre Tamar! — Retrucou, dando um passinho para o lado e esbarrando nela de propósito.
Um sorriso camarada delineou os lábios de Fantin, enquanto erguia o olhar para o céu. O convite para aquela “caminhada” foi inesperado e o aceitou com prazer, já que estava começando a fica entediada no palácio. Até que estava sendo agradável, apesar da companhia silenciosa e incômoda daqueles espíritos.
— Que seja! — Continuou a mestra. — Atualmente, você se encontra na liderança deste reino. Não teria sido mais fácil convocá-lo para uma reunião?
— Por acaso estava prestando atenção ao que lhe disse há pouco?! Há “ouvidos” demais no palácio e necessito ter uma conversa particular com Laio.
Fantin fez um gesto que dizia “deixa pra lá” e voltou a prestar atenção ao caminho que percorriam. Alguns dias tinham se passado, desde que Virnan assumiu o trono. Curiosamente, a maior parte do povo aceitou isso com naturalidade. Aparentemente, seus atos passados tiveram um grande peso na opinião popular. E Tamar confidenciou à companheira, quando esta comentou a respeito, suas percepções da verdadeira natureza da guardiã, durante o ritual em que ela a trouxe de volta a vida. Se todas aquelas pessoas passaram por algo semelhante com ela, era natural que tivessem mudado de atitude ou, pelo menos, estivessem tentando mudar.
Mesmo assim, ainda havia uma grande resistência por parte dos deminaras. Contudo, como os quatro Demirs tinham aceitado a Castir, e sem o apoio das outras castas, não tinham o que fazer. Ainda mais, depois de se inteirarem da verdadeira situação em que se encontravam.
A luz da lua incidia sobre as ruas, afável. Naquele ponto da cidade, a iluminação noturna não era tão intensa. Os postes e as tochas ficavam cada vez mais escassos a medida que se afastavam do centro, assim como as construções perdiam o requinte e grandiosidade, embora continuassem sendo charmosas. Fantin não precisava de explicações para entender aquilo. Assim como tudo que dizia respeito à existência daquele reino, seu povo e cultura, Flyn também possuía o formato de um círculo. E ainda que não existissem barreiras reais, como muros, era possível distinguir com facilidade o domínio de cada casta.
Naquele instante, percorriam um bairro auriva. Ao contrário do que ocorria nos anteriores a ele, havia muitas pessoas na rua, embora o horário já estivesse avançado. Aquilo a fez recordar um pouco de Primian, seu reino de origem.
— Quanto a esses dois… — Virnan continuou, chamando sua atenção para a conversa, outra vez. — Pense neles como um bom escudo, caso precisemos. Já estão mortos mesmo!
— Isso foi cruel! — Bórian reclamou, fingindo-se zangado.
Ele tinha percebido que estava brincando e a verdade é que não se importava mais. Como ela afirmou, já estavam mortos; e no seu entender, isso significava que não tinha mais que se apegar a forma como viveu. Nem mesmo necessitava continuar atuando como um Castir, assim como Voltruf e Joran se empenhavam tanto. A cruel verdade era que, naquele momento, agia por interesse próprio, já que ansiava cruzar os Portões e aproveitar a paz de Inamia e dos mundos além dele.
O vento agitou a capa negra que cobria as vestes vermelhas dela, que limitou-se a sorrir sobre o ombro, mas quando voltou-se para frente, o riso se desfez e uma expressão estranha lhe tomou a face. Fantin reparou naquele semblante muito antes de saírem do palácio. Apesar do riso, que era algo comum a Virnan, vez ou outra aquele incômodo se assentava em sua fisionomia e os lábios grossos e rosados crispavam-se, externando seus sentimentos.
Caminhavam por uma rua quase deserta, naquele instante. Por isso, a Castir não se importou em recolocar o capuz sobre a cabeça. Fantin a imitou, livrando-se do capuz também. Voltou-se para os dois espíritos.
— Podem nos dar um minuto? — Pediu.
Imediatamente, eles pararam de andar. Recostaram-se a uma parede, ocultos pela pouca luz naquele ponto. Ela guiou Virnan até a esquina mais próxima, onde havia um poste com uma tocha. As chamas bailaram no reflexo dos olhos da guardiã. Algo a incomodava e forçava-se a manter as aparências. E apesar da naturalidade com que agia, não conseguia enganar Fantin.
— Você está agindo diferente, desde que voltou da prisão. — Foi direta.
— Tenho tido dias desgastantes, desde que assumi aquela “cadeira”. Só estou cansada. — Alegou, fugindo do olhar dela, que analisava-a com cuidado e depois se afastou para se concentrar na entrada de uma taverna, mais adiante. Uma dupla de bêbados cantava, desafinadamente, recostada a ela. O vai e vem de pessoas entrando e saindo era intenso, assim como o som da música e vozes.
— Acho que já passamos da fase das mentiras e desculpas esfarrapadas, não acha? — Retornou a atenção para ela.
Ocorreu à mestra, naquele instante, que sua experiência com o terror da guerra, talvez fosse o motivo dela ter pedido sua companhia naquela noite. Talvez Virnan só quisesse que alguém a escutasse. Talvez ela precisasse apenas de silêncio compreensivo. Se era mesmo esse o caso, poderia lhe oferecer ambos. Mas em se tratando da guardiã, era provável que estivesse apenas fazendo suposições inúteis.
— Eu menti — Virnan confessou, baixando a vista para o chão. — Disse para eles que dormia como uma pedra e que não pensava nas coisas que fiz, mas eu penso e sonho com isso todas as noites. E esses pesadelos estão piorando a cada dia que passo aqui. — Fungou um pouco e esfregou o nariz gelado. — Mas você está certa. Hoje, o que realmente me incomoda é o que aconteceu durante a minha visita à prisão.
Realmente, não queria pensar no que tinha feito entre as paredes escuras das câmaras da prisão abaixo do palácio. Naquele lugar, por algum tempo, recuperou uma parte da crueldade que lhe pertencia no passado. Mas depois que o momento passou, sentiu-se vazia. Não era algo que desejasse expor para alguém, mas o modo como Fantin falou deixou claro que ela sabia o que aconteceu e, se não tinha certeza, desconfiava.
— Se você não quer falar sobre isso, não precisa — a amiga pousou a mão em seu ombro. — Sabe, por algum tempo acreditei, equivocadamente, que você era uma fortaleza. Que nada poderia abalá-la, exceto, Marie. Mas depois daquele ritual, percebi o quão enganada estava.
Aumentou a pressão no ombro dela e chegou mais perto; tanto que Virnan se viu obrigada a inclinar a cabeça para poder fitá-la.
— Se quiser, posso te ouvir e prometo que não irei julgá-la.
— E se eu não quiser falar?
— Então, ficarei ao seu lado e compartilharemos o silêncio.
Virnan pousou a mão sobre a dela.
— Você é uma boa mulher, Fantin, e uma grande amiga, também.
— Jamais imaginei que um dia estaríamos conversando assim e, muito menos, que nos chamaríamos de amigas! — Mostrou um sorriso largo e carinhoso. — Quero lhe pedir uma coisa.
Seus olhos se apertaram, diante da rajada de vento que tomou a rua.
— Quando achar que o peso sobre seus ombros é grande demais para suportar, o compartilhe comigo. Ajudarei a carregá-lo, não importa quão pesado seja.
Virnan lhe sorriu largo, ficou na ponta dos pés e beijou-lhe a bochecha.
— Obrigada. — Aquele dia tinha exigido muito de si e era um alento ouvir as palavras dela. Não foi apenas a visita aos prisioneiros, mas os preparativos para a proteção da cidade. Os comandantes dos exércitos eram uma dor de cabeça à parte e os considerava verdadeiros inúteis. Felizmente, não tinha se enganado quanto a Lorde Verne e sua ajuda estava sendo, no mínimo, preciosa.
Fez um gesto para os dois espíritos e recomeçaram a caminhada. Algumas esquinas depois, os quatro foram introduzidos em uma residência de aspecto humilde, nas proximidades de uma pracinha com um tímido jardim. Contudo, não passava de uma fachada. Seu interior era espaçoso, com um pátio amplo, onde a maior parte do treinamento extenuante para se tornar um Manir ocorria. Naquele espaço também havia um estábulo e uma forja. Foi lá que encontraram o dono da casa.
Laio comprimiu os lábios, encarando Virnan por um longo tempo, ainda segurando um ferro em brasas e um martelo. Algumas mechas do cabelo grisalho grudavam-se ao rosto, graças ao suor, e ocultavam parte da cicatriz sobre o olho esquerdo. Indagou:
— Devo me ajoelhar, “Majestade”?
Uma ruguinha soberba lhe deformava o canto da boca.
— Só se quiser conhecer o sabor da sola das minhas botas — ela respondeu. — Humpf! Você ainda é engraçado, velho.
Laio mostrou os dentes em um sorriso estranho.
— E você continua atrevida, pequena daihu. — Largou o martelo e o ferro, aproximando-se dela. — E quantas vezes preciso lhe dizer para me chamar de tio?
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Lyla observava a movimentação do exército axeano do alto de um penhasco. Estava na forma animal e enfiada entre a folhagem densa de uma árvore que, de tão inclinada em direção ao vazio, parecia estar prestes a despencar dali. O sol começava a elevar-se no horizonte, mas a movimentação no acampamento já era intensa. Alguns quilômetros dali ficava a fronteira de Midiane.
Passos chamaram sua atenção para a presença de um homem. Ele andou até a beirada do penhasco, fitando o exército também.
— Você é uma péssima espiã. — Ele falou, jovial. Ergueu o olhar para o galho em que ela repousava. — Talvez devesse lhe matar agora e nos poupar de algum sofrimento no futuro.
Ela voou até o chão, assumindo a forma humana. Nas mãos, em vez de dedos, penas afiadas.
— Ah! Você pode tentar! — O desafiou.
Um riso estranho escapou dele. Era alto e esguio, com movimentos elegantes. Os cabelos eram uma profusão de cachos vermelhos, compridos até um pouco abaixo das orelhas. Seus olhos também eram dessa cor.
— Bem se vê que é irmã dela. Nunca escondeu sua afeição, mas jamais imaginei que desejasse se tornar o seu spectu.
— Fiz apenas o necessário para que pudesse recuperar a magia que lhe tirei.
O rosto dele desfez o riso e contorceu-se em uma máscara de ódio. Com um movimento brusco, ele a agarrou pelo pescoço e pressionou contra a árvore às suas costas.
— Mas não foi só isso que tirou, não é mesmo, Majestade?! Então, me dê um bom motivo para não matá-la agora.
Lyla sorriu, enquanto as unhas dele cresciam e rasgavam a carne do seu pescoço, aumentando seu desconforto.
— Fiz o que era necessário para protegê-la e a este mundo também. Sei que você entende isso, já que acompanha Érion, desde então. Quanto ao motivo que pediu, é o mesmo que o levou até aquele lago para protegê-la daquele monstro e avisá-la. Você ainda ama sua antiga senhora, Zarif.
Os olhos dele se apertaram de cólera. Aumentou a pressão em volta do pescoço dela, mas acabou por soltá-la.
— Você é fraca e tola, majestade. Sua transmutação é uma piada. Isso significa que a magia dela não está em seu máximo e a sua é insuficiente para complementá-la. Se lutarem assim, contra o meu senhor, acabarão morrendo.
— Então, nos ajude.
— Não vai acontecer!
Ele começou a se afastar em direção a floresta.
— Meu senhor deseja destruí-la pessoalmente, só por isso permito sua partida. Agora, se me der licença, tenho muito à fazer antes que o grande círculo se apague.
Lyla permaneceu recostada à arvore, fitando o alvorecer.
— Zarif — chamou.
Ele não interrompeu os passos, mas diminuiu a velocidade deles.
— “Que nosso pacto seja eterno até que você recupere o que lhe tirei”. — Ela o fitou. — A nossa magia não está em seu máximo porque o nosso pacto não é absoluto.
Zarif se voltou completamente, sem esconder a surpresa.
— Não deveria revelar essas coisas para um inimigo.
— Mesmo?! Então, talvez eu não o enxergue assim. — Saltou do penhasco e alçou vôo em direção à Midiane.
Boa noite, amores!
Estou em falta com vocês. Infelizmente, não consegui postar o capítulo extra prometido na semana passada. Irei me esforçar para conseguir fazer isso esta semana. Também estou devendo uma ilustração, já faz um tempinho que não desenho nada para essa aventura. Desculpem! 🙁
Bem estamos nos aproximando do final, então espero que aguentem a ansiedade.
Beijos!