*

Os primeiros raios de sol da manhã, se infiltravam no quarto e estendiam-se pelo chão até tocar a cama em que Marie e Virnan repousavam. Junto com eles, uma adorável brisa trazia o aroma das flores nos jardins do palácio.

A mestra tinha acordado havia algum tempo e aninhou-se ao corpo da esposa, entregue a letargia do sono recente. Estava feliz como nunca imaginou ser. Apesar da confusão em que se encontravam, das possibilidades dolorosas de um fim trágico para elas e o mundo que habitavam, não podia e nem queria abster-se daquela alegria.

O ritual tinha sido assustador e surpreendentemente belo. De alguma forma, elas se tornaram “uma” naquele momento e jamais encontraria palavras para retratar as sensações que lhe tomaram. Talvez a melhor definição fosse a que Fantin usou quando descreveu sua própria experiência. Era como se, durante toda a vida, estivesse incompleta e, naquele momento, isso tivesse chegado ao fim.

Cerrou os olhos e o cheiro de relva penetrou suas narinas quando enterrou a face nos cabelos de Virnan. Nunca se cansava de sentir o aroma, que jamais a abandonava. Beijou-lhe a nuca e sorriu para si mesma.

— Posso me acostumar com isso e você estará “condenada” a me acordar sempre desta forma, Mestra. — Virnan sussurrou com voz rouca. Pressionou as costas contra o corpo dela e, com outro sussurro, um círculo tomou forma em seu braço e Marie teve a segurança para falar sem temer machucá-la.

— Achei que estivesse dormindo. — Enlaçou sua cintura, grudando-se um pouco mais a ela.

— Era o meu desejo, mas há algum tempo que estou desperta. É um pouco difícil repousar com Lyla tagarelando na minha cabeça.

Estalou os lábios, brincando com a ponta do lençol.

— A última vez em que ela ficou tão zangada, acabei levando um tapa na frente de uma centena de soldados. — Bufou com a lembrança, mas acabou sorrindo em seguida.

— Imagino o que deve ter feito para que ela perdesse aquela calma irritante. Vocês são tão parecidas, que chega a ser assustador. — O riso de Virnan aumentou. — Sei que você deve ter nos mostrado esse episódio durante o ritual, mas não consigo recordar.

Virnan acariciou a mão em sua cintura.

— É natural. Pelo menos, é o que nos ensinaram no Templo Castir. Imagine o quão desgastante seria se conservássemos as lembranças alheias. Chegaríamos em um ponto em que nossas próprias lembranças iriam se misturar e acabaríamos por caminhar em direção a loucura. De certo modo, é um pouco parecido com o que me aconteceu quando ressuscitei àquelas pessoas, no passado.

— Entendo. Mesmo assim, ainda me recordo de algumas coisas que vi nas suas e nas lembranças das outras.

— Essas são suas próprias lembranças da experiência que compartilhamos. São coisas que se fixaram em sua mente, coisas que acredita serem importantes sobre nós.

Marie afundou o rosto no pescoço dela e distribuiu beijos miúdos pelo local. A mão deslizou pelo braço dela e parou sobre o círculo brilhante nele. A tristeza ganhou força em sua voz:

— Adoraria poder conversar com você, desta maneira, sempre.

Virnan voltou-se para ela e sentou os lábios nos seus, demonstrando todo o seu carinho.

— Eu amo a sua voz. Amo tudo em você. Claro que também adoraria isso, mas a verdade é que não me importo de não ouvi-la, desde que esteja ao meu lado e sempre demonstre seus sentimentos através do seu olhar.

— Isso tudo parece um pesadelo que se tornou um adorável sonho.

— Infelizmente, amor, ainda estamos no meio desse pesadelo.

Fez uma ligeira careta e Marie percebeu que conversava com Lyla, já que suas feições adquiriram ares de zanga, enquanto os olhos buscavam o teto. Virnan afastou-se, deslizando uma mão pela têmpora. Todos os seus músculos doíam, como se tivesse lutado por dias. A cabeça latejava forte, já que não tinha dormido o tempo necessário, pois passou grande parte da noite revirando-se na cama e quando conseguiu dormir, foi desperta por pesadelos.

— O que está acontecendo? — Marie indagou, reparando que se tornava mais sombria com o passar dos minutos. — O que a está irritando?

A esposa tornou a olhar para ela, como se despertasse de um estranho devaneio. Estava tão concentrada no que o spectu dizia através do laço, que acabou por abstrair-se da sua presença.

— Desculpe, não queria te preocupar. — Suavizou as expressões e estendeu a mão para lhe tocar a face, o que trouxe um sorriso aos lábios da mestra.

— Seria estranho se não me preocupasse com a minha esposa, não acha?

Adoro ouvi-la se referir a mim desta forma. — Ensaiou um sorriso, que não foi até o fim. Devagar, deslizou para fora da cama e pegou a túnica para se vestir, dizendo: — Não se preocupe. Minha querida irmãzinha planejou com cuidado cada passo que daria e as consequências deles quando se decidiu por fechar os portões e isolar a cidade nesta fenda temporal que conjurou. Então, acabo me deixando levar por um pouco de raiva quando percebo que não tenho escolha a não ser dar seguimento aos planos dela.

Reparou nas sobrancelhas arqueadas de Marie. Tantos anos convivendo com o silêncio dela a fizeram uma especialista em suas expressões faciais. Bem pouco de seus sentimentos lhe escapavam. A tranquilizou com um sorriso:

— Só estou chateada porque terei de assumir uma responsabilidade que nunca desejei. Não há nada para temer. — Garantiu. — Do meu ponto de vista é apenas uma situação desagradável e inconveniente, já que nunca me vi assim.

Marie se colocou de pé. Aproximou-se devagar e beijou-lhe o queixo, depois os lábios.

— Se é uma situação incômoda, ela pode esperar para ser resolvida. Certo? — Falava entre um beijo e outro, arrancando risos de Virnan, que se divertia com o toque suave das mãos dela, a deslizarem, atrevidas, em direção ao seu ventre. — E já que é assim, creio que seja meu dever garantir que você esteja relaxada o suficiente para prevenir algum conflito.

A jogou sobre a cama e lhe retirou a calça, imersa na alegria que o riso dela lhe trazia.

— Sabe, Marie, é em momentos assim que me pergunto para onde vai a sua timidez.

A mestra sentou sobre o ventre dela e desfez o laço da faixa que lhe prendia os seios.

— Eu não sou tímida, apenas fico acanhada quando você me provoca na frente de outras pessoas e não sou capaz de revidar da mesma forma.

Deslizou um dedo pelo queixo dela, depois pelo ombro, até parar sobre um dos seios, o qual abocanhou com evidente prazer. Virnan gemeu em meio ao riso.

— A quem está tentando enganar? Fosse esse o caso, você não ficaria adoravelmente corada… — outro gemido lhe escapou, quando Marie lhe sugou o seio com mais força.

Ela divertia-se com pequenas provocações, ora mordiscava-lhe a pele morena, ora sugava-a e deixava marcas escuras, ora beijava-lhe com carinho, inflamando o desejo de Virnan, que viu-se obrigada a implorar para que parasse de brincar consigo.

Marie sorriu, satisfeita, e escorregou as mãos para o seu ventre, livrando-se da última peça de roupa que vestia. Seus dedos encontraram abrigo ali, carregados de gentileza e carinho. Um brilho devasso imperava no olhar preso ao dela e embebido no prazer de vê-la contorcer-se de prazer em suas mãos. Virnan gemia cada vez mais alto a medida que era penetrada, com movimentos cadenciados e suaves, pelos dedos longos da mestra, até cravar os dentes no ombro dela entregue a um forte orgasmo.

Marie a abraçou forte até que sua respiração acalmasse. Distribuiu beijinhos pelo pescoço até encontrar seus lábios e mergulhar neles, como se fossem uma fonte em meio ao deserto.

— Admito. Sou mesmo um pouco tímida. E quando me provoca, tudo o que me vem à cabeça são momentos como este, em que posso revidar de uma maneira mais divertida — riu e lhe tomou os lábios com um beijo faminto.

**

O calor era escaldante, apesar de estarem sob a copa das árvores. Graças ao cansaço, Emya já não se sentia tão motivada quanto no momento da partida da capital de Midiane. Afinal, não era seu hábito fazer longas viagens sobre o lombo de um cavalo, mas nenhuma palavra sobre isso lhe escaparia. Não daria àqueles homens o prazer de vê-la reclamar.

Uma dorzinha fina insinuava-se em suas têmporas e a fadiga se tornou mais intensa quando deixou a mente vagar por pensamentos que envolviam o marido e a irmã mais velha.

— Deuses, foi por muito pouco. — Falou baixinho, evocando as lembranças da noite passada.

Tinham montado acampamento um pouco depois de passarem pela última vila antes da fronteira. Era o meio da madrugada, mas ela ainda não tinha dormido. Em vez disso, mantinha os olhos fechados, enquanto pensava em Verne e Marie. Indagava-se sobre como estaria sendo a relação dos dois naquela viagem e recusava-se a imaginar se teriam se aproximado como no passado.

Um vento gelado entrou na tenda, quando a cortina que servia de porta foi afastada para dar passagem a alguém. Os passos do recém-chegado eram quase inaudíveis e, por um momento, Emya pensou que estava imaginando os sons. Abriu os olhos para deparar-se com o rosto de um soldado estranho. A pele curtida de sol, os olhos negros como carvão, um sorriso cruel nos lábios ressecados e finos.

— Quem…? — Ela fez menção de perguntar, mas uma mão grande e calosa tapou sua boca.

Fitou o rosto dele contorcer-se de prazer, quando ergueu uma faca e a desceu rumo ao seu peito.

Inclinou-se para o lado a fim de desviar de um galho. Mais à frente o sol invadia a floresta, anunciando o fim desta. Estavam chegando aos limites do seu reino. Assim que saíssem da floresta, estariam diante da Fortaleza de Valesol, onde pretendia reunir-se com os líderes dos exércitos que se reuniam ali perto.

Deslizou a mão sobre o peito, com um arrepio a lhe percorrer a espinha. Foi por meros centímetros que aquela lâmina não encontrou abrigo ali.

A expressão vitoriosa do soldado tinha mudado para uma de surpresa, semelhante a da própria Emya. Ele trincou os dentes, tentando baixar a lâmina e terminar o serviço, mas não conseguia mover-se, como se houvesse uma força invisível impedindo-o.

De repente, ele foi lançado no chão por aquela “força”. Emya se pôs de pé, pegando a espada, ainda aturdida. Pousou a ponta da lâmina na garganta dele, que continuava paralisado. Então, começou a gritar:

— Guardas! Guardas!

Um odre surgiu diante de seus olhos, estava tão distraída que não viu quando o comandante se aproximou de seu cavalo. Ele lhe estendia o recipiente.

— Parece cansada, Alteza. Beba um pouco d’água.

Ela o fez em silêncio. Saciou a sede e clareou os pensamentos, enquanto observava os homens que a cercavam. Depois do ocorrido, o comandante colocou seus homens de confiança para escoltá-la de perto.

— O que ele disse? — Emya quis saber.

O homem se empertigou sobre a cela.

— Não precisa preocupar-se com isso, Alteza. Garanto que não tornará a acontecer.

— É a minha vida, Comandante. É claro que devo me preocupar. Agora, responda a pergunta!

Ele não conseguiu esconder a surpresa por vê-la perder a pose delicada e altear a voz. De fato, não era tão frágil quanto aparentava e isso se comprovou quando ele a encontrou com a espada na garganta daquele assassino.

— Sinto muito, não queria ofendê-la. Apenas desejava privá-la de novas preocupações.

— Tal decisão cabe a mim. — Fez uma careta de desagrado e o mandou prosseguir com um gesto.

— De fato. — Limpou a garganta. — Após uma longa conversa…

— Tortura — ela o corrigiu. — Não precisa me poupar dos detalhes, já disse. Não sou inocente e frágil como o senhor crê, Comandante. Então, vá direto ao ponto.

Fez o cavalo parar e o comandante a imitou, soprando o ar de forma cansada.

— Novamente, peço perdão por minha atitude, Alteza. Retornando ao assunto, ele é de fato um membro de nosso exército. Mas admitiu ser um espião sob as ordens de Lorde Axen. Aparentemente, enviava informações para ele usando pássaros adestrados. Quando o Lorde ficou sabendo que se dirigia para a fronteira, ordenou que a assassinasse, mas o homem garantiu que não sabe os motivos.

Emya sorriu de lado, tomando mais um gole d’água. Deslizou os dedos polegar e indicador pelo nariz, murmurando algo para si mesma, então devolveu-lhe o odre e enxugou os lábios com as costas da mão.

— Consigo pensar em meia dúzia de razões, Comandante. Mas creio que a mais próxima da verdade seja que a minha morte seria uma ótima desculpa para que essa guerra se iniciasse de vez. Se ele está ciente dos meus planos de paz ou não, é irrelevante. Fato é que isso provocaria uma reação por parte do rei e do meu esposo e teríamos muitos inimigos para creditar essa morte.

Incitou o cavalo a mover-se.

— Vamos! Não temos mais tempo a perder!

O vento soprou forte à volta dela e um ligeiro sorriso lhe visitou os lábios. Não tinha ideia de como Verne ou Marie tinha feito aquilo, mas estava certa de que o mesmo espírito mensageiro, que a visitou em Midiane, a seguia de perto e protegia, invisível aos olhos humanos.

Quando os soldados saíram da tenda carregando o espião, o vento soprou forte e, por um breve instante, as cortinas que serviam de porta tomaram a forma de um homem, que lhe dirigiu um inclinar de cabeça e desapareceu, levando o vento consigo.

***

Verne se perguntava como Lyla podia se manter tão calma diante da sucessão de absurdos que estavam ouvindo. Mesmo ele, que nada tinha a ver com aquele reino, sentia-se irritado ao ponto de desejar que a sua espada não tivesse quebrado, apenas para que pudesse brandi-la furiosamente e afastar aquele bando de idiotas reais.

Definitivamente, compreendia o desprezo que Virnan dedicava àquela gente. Nem mesmo Joran conseguia esconder a raiva que o tomava no momento. Curiosamente, Voltruf, que estava ao lado do lorde, recostada em um pilar ao fundo do salão, parecia serena, como se nada fosse capaz de abalá-la. Em verdade, ela tinha um ar entediado, enquanto o olhar violeta vagava pelos presentes.

— Você está morta, prima. É um fato que não podemos ignorar. — Disse um dos homens usando túnica azul celeste. Era ainda jovem e bonito, mas para o badir, todos os florinae aparentavam ser assim. Até mesmo aquele auriva de cabelos grisalhos com uma imensa cicatriz na face, que não era capaz de esconder um rosto másculo e atraente.

O spectu sorriu, fazendo-o se perguntar se o laço que compartilhava com Virnan podia, de alguma maneira tosca, acentuar algumas características da Castir nela. Afastou as conjecturas e tornou a se concentrar em Kalum, assim se chamava o homem que se pronunciou. Pelo o que entendeu, ele era o atual Demir do Sul. Aliás, todos os presentes eram Demirs, príncipes ou membros da realeza dos quatro reinos que compunham Flyn.

— A sua ausência foi sentida entre nosso povo durante todo esse tempo. Entendemos, a apoiamos e agradecemos seus motivos para ausentar-se. Mas jamais teríamos lhe permitido a partida se soubéssemos que sua intenção era sacrificar-se.

Ele buscou apoio nos presentes e encontrou. Não escondiam o claro sentimento de revolta por terem sido enganados. Como o espírito dela não retornou para a cidade, estavam crentes que permanecia viva e em segurança.

O tempo dentro daquela conjuração passava de uma forma peculiar. Os dias eram semelhantes aos do resto do mundo, dia e noite chegavam e partiam normalmente, assim como as estações do ano, entretanto a percepção da quantidade deles era confusa para as pessoas. Portanto, para aqueles dentro da fenda, não mais que uma década teria se passado. Por isso, continuaram a crer que tinham uma rainha zelando por eles do lado de fora dos círculos.

— Como o Conselho Ancião foi desfeito muito antes dos Portões serem fechados e diante do respeito que dedicamos a Joran L’Castir e o fato dele ser seu noivo, em vida, permitimos que nos orientasse em sua ausência, mas agora que conhecemos a verdade, exigimos o direito de fazer o teste para escolher um novo regente.

Lyla cruzou os braços e, apesar de não demonstrar, Joran reconheceu que se encontrava agastada com a conversa. Se aqueles homens soubessem o quanto detestava ser arrastada para aquele tipo de discussão, tomariam mais cuidado ao escolherem as palavras. Estar morta não significava que tivesse esquecido como agir duramente. De fato, Lyla tinha sido uma rainha de pulso forte.

— Não pode nos privar disso — afirmou o Demir do Norte, Guil.

Ela sorriu de novo, deslizando uma mão pelos cabelos longos. Estava disposta a não perder a compostura, ainda que desejasse colocá-los para fora do recinto aos berros. Mas nunca se comportou de tal forma quando estava viva, e não seria na morte que o faria.

— Sinceramente, não entendo a razão de estarem gastando saliva comigo. Já sei de tudo isso, mas não posso lhes permitir fazer um teste para o trono, porque isso não está em minhas mãos.

Os nobres se entreolharam, ligeiramente confusos, mas então a Demira do Oeste, Belia, se pronunciou:

— Faz mesmo sentido, já que está morta — concluiu. — Neste caso, podemos parar com essa discussão inútil e seguir adiante com os preparativos para os ritos.

Lyla abanou a cabeça, negativamente.

— Não tenha tanta pressa, prima.

Ela encerrou a frase no exato momento em que as portas do salão se abriram para dar passagem a Virnan e Marie. O mal-estar pela presença da Castir foi geral e facilmente percebido, mas ela se limitou a sorrir com deboche, enquanto resvalava o olhar pelos presentes.

Verne aproximou-se delas. Tomou uma das mãos de Marie e a ergueu até a testa, então fez o mesmo com a guardiã. Era uma tradição, em Midiane, que parentes se cumprimentassem daquela maneira. O gesto expressava um profundo respeito pelo casal e removeu um peso dos ombros da princesa, que ainda se sentia incomodada com os sentimentos que o cunhado lhe dedicava.

Ele falou baixo:

— Agora que vocês chegaram, devo me preparar para outro combate?! Pelo jeito que as coisas estão indo, isso não vai demorar para acontecer.

Claramente, não era do seu hábito envolver-se em contendas internas de outros reinos. Viu-se como testemunha daquela discussão porque se encontrava na presença de Lyla e Joran quando aquelas “visitas” chegaram. Voltruf se aproximou, também. Fez uma ligeira reverência para Virnan e enviou um cumprimento de cabeça para Marie.

— Olá, Naria! Me alegro em ver que já está completamente restabelecida. — Disse Virnan com um sorriso simpático.

Verne ergueu as sobrancelhas e olhou para a cunhada, deixando claro que estava confuso com aquela troca de gentilezas por parte das duas. A resposta de Marie foi um dar de ombros com um sorriso que não chegou a se concretizar. A esposa tinha lhe contado o ocorrido com Naria. Quanto aos seus sentimentos sobre a ex-companheira de círculo, não era um segredo, já que viu e sentiu tudo durante o ritual no Salão Lunar.

Não sentia-se desconfortável com a presença da outra, pois confiava plenamente no amor de Virnan e já tinham muito com o que se preocupar para se permitir entregar-se a sentimentos ingratos como o ciúme, ainda mais de alguém que estava morto. E, também, depois de tomar ciência de suas capacidades e responsabilidades através das lembranças compartilhadas, não podia negar que dedicava algum respeito e admiração à falecida Castir. Era irritante admitir, mas reconhecia muitas razões para Virnan ter se apaixonado por ela. Felizmente, esses sentimentos tinham ficado no passado.

A Castir ignorou os olhares de desprezo dos nobres; mais por estar cansada demais para brigar do que por não se importar, realmente.

— O que está acontecendo? — Ela fingiu não saber.

Seu humor estava péssimo, apesar dos momentos de prazer e calmaria que compartilhou com Marie, mais cedo. Contudo não queria deixá-lo vir à tona, já que o momento pedia frieza e sabedoria para “esmagar” o orgulho daquela gente. Era algo que apreciaria fazer de outra forma e em uma situação em que não tivesse de ser obrigada a assumir responsabilidades que não queria, mas tinha de admitir que sentia um certo prazer no que estava para acontecer.

O midiano aprumou-se. Coçou o queixo; as unhas gerando um som irritante ao entrarem em contato com os fios grossos da barba.

— Fazendo um resumo curto, grosso e cruel, este reino é uma verdadeira bagunça! — Não se importou em tentar falar baixo, era o que pensava mesmo.

O sorriso dela apareceu.

— Estão discutindo pelo direito de sentarem no trono. — Voltruf emendou. Isso me traz péssimas recordações.

Virnan concordou, fazendo questão de afastar as lembranças do episódio ao qual se referia. Foi numa discussão assim, que a guerra que a tornou famosa entre seu povo começou. Estava surpresa por aquilo não ter acontecido antes e expressou isso para Lyla quando ela a ajudou a se trocar no dia em que chegaram à cidade.

Tinha de reconhecer que ter conhecimento sobre o futuro, tornava os planos mais fáceis de serem executados e a irmã caçula sabia se valer desse dom com maestria. Mas agora que Virnan tinha retornado e estava prestes a abrir os portões, a verdade tinha se revelado, dando brecha a uma nova disputa pelo poder.

Endireitou as costas, exalando forte. Odiava aquela gente com todas as forças do seu ser.

— Acho que está na hora de pôr ordem na casa — resmungou.

As cores de cada reino cresceram nos olhos dela à medida que se aproximava do centro do salão, onde o trono estava. Atrás dele, uma enorme árvore crescia além do teto. Em um dos lados do assento real, Joran parecia estar prestes a conjurar uma cortina de fogo e incendiar o local completamente, enquanto Lyla mantinha-se inexpressiva, com as mãos cruzadas diante do ventre. A visão a recordou da primeira vez que a viu sentada naquele trono. Estava tão linda naquele ocasião, que a imagem custou a lhe abandonar por dias.

“Até que enfim você resolveu aparecer!”, Lyla resmungou na mente dela.

“Estava ocupada!”, Virnan respondeu da mesma forma.

“Sei bem que tipo de ocupação! Tem ideia do quanto isso me afeta, também? Tive de me esforçar muito para manter a seriedade diante desses idiotas!”

Virnan fingiu uma tosse para esconder um sorriso.

“Deve ter sido interessante”, provocou, recebendo um olhar quase assassino da irmã.

O silêncio tornou-se mais pesado a cada passo dado e voltou a se concentrar no caminho, disfarçando o desagrado e reprimindo um suspiro entediado. Esperava ter uma manhã tranquila com Marie e as outras, antes de se atirar de cabeça nos problemas daquele reino e nos planos para o conflito que se aproximava.

Parou diante de Joran e voltou-se para os nobres.

— Então, que tal explicarem o que se passa aqui?

Não se importou em cumprimentá-los, como de hábito. No passado, causou muita confusão com aquela atitude e não lhe escapou que o mesmo teria ocorrido naquele momento, se o foco de todos não estivesse na disputa pela coroa. Mesmo assim, o Demir do Leste a criticou:

— Aparentemente, seus modos não mudaram, Castir.

— Desculpe desapontá-lo, Demir. O avanço da idade nem sempre traz sabedoria. — Zombou.

Ele apertou os olhos, deslizando as pontas dos dedos indicador e médio pelo nariz. A pele assumiu tons avermelhados, mas os desaforos que todos esperaram ouvir, não lhe escaparam da garganta. Em vez disso, falou:

— Não há nada para explicar. Agora que os Portões serão abertos e sabemos o que está se passando além dos limites que protegem esta cidade, é preciso que haja um rei “vivo” sentado no trono. Então, estamos aqui para decidir isso. A rainha está morta, não podemos ignorá-lo. Além disso, ela não tem herdeiros além de Érion e, por motivos óbvios, ele não pode assumir a função.

— Então, vocês vieram até aqui como formigas para devorar o mel, fingido uma preocupação que na verdade não têm. — Virnan retrucou.

— Como ousa?! — Belia rosnou, arrancando outro sorriso irônico da Castir.

No fundo do salão, Verne resmungou, cruzando os braços, ligeiramente divertido.

— Ela sabe mesmo como irritar as pessoas…

— É divertido de assistir, quando não se é o alvo dela. Por favor, não contem a ela que disse isso! — Fantin comentou, chamando a atenção para a sua presença e das outras ordenadas, que tinham adentrando no recinto silenciosamente. — Então, o que perdemos?

O badir começou a explicar, enquanto Virnan respondia a pergunta da demira:

— Não é uma mentira, é? Estou neste mundo há muito tempo e tive minha cota de suas disputas por essa “cadeira”. Meus olhos viram todo o sangue que seu orgulho derramou. Fui uma de suas ferramentas, afinal.

— Se você chama aquilo de ser uma ferramenta… — Belia estalou os lábios. — Você não passa de uma assassina. Meu exército, bons homens…

Virnan ergueu uma mão, cortando-a.

— Não retornemos ao passado, Demira. Deixemos que aquilo fique no esquecimento.

— Você consegue fazer isso, Castir? Consegue dormir a noite?

Ela deu de ombros.

— Como uma pedra. — Respondeu. — Não me entendam mal. Eu não me orgulho do que fiz, mas também não me arrependo. Fui criada para lutar desde que aprendi a andar. Além disso, era meu dever. Se alguém aqui precisa lamentar aquelas mortes, são vocês. Foram suas atitudes que nos levaram a uma guerra.

O mal-estar cresceu nos rostos pálidos e novo silêncio se assentou entre eles. Uma brisa suave entrou pelo teto, balançando a folhagem espessa da grande árvore. Ela aumentou, trazendo o aroma das flores nas pontas dos galhos. Aquele perfume, aquele som, era a única coisa que Virnan apreciava naquele salão.

— Sinto, — fez uma expressão que deixava claro que não estava sendo sincera quando usou a palavra — mas o teste que almejam não irá se realizar. Pelo menos, não agora. — Afirmou.

A revolta plantou incredulidade nos rostos hostis. Belia reclamou:

— Você não tem nada a ver com isso! Não é sua decisão, então afaste-se, auriva! Estamos em um momento de crise e…

— Exatamente por isso, Demira. Vocês não têm ideia do que está acontecendo além dos muros desta cidade. O mundo, como o conheceram, já não existe. Agora há outros reinos: Midiane, Primian, Axen… Todos governados por humanos, todos culturalmente diferentes. Nosso reino não passa de uma lenda para eles, que sequer imaginam que o Cavaleiro Vermelho que os assombra é florinae e que seu único objetivo é destruir o mundo que construíram para si e seus descendentes.

Belia trincou os dentes.

— Que seja! Mas isso não muda o fato de que se faz necessário um rei ou rainha sentado nesse trono.

Virnan pousou as mãos na cintura, remoendo a raiva do que estava prestes a dizer.

— Muito bem, se querem alguém sentado nesse maldito trono, então que a sua vontade seja feita!

Caminhou até ele e sentou-se, escandalizando-os.

— Maldita! Saia já daí! — Guil adiantou-se, escorregando a mão para a espada na cintura, entretanto Joran se interpôs em seu caminho, impedindo que alcançasse seu destino ao expandir sua aura mágica. Restou a ele e aos companheiros, gritarem seu descontentamento.

Virnan descansou o queixo na mão, cruzando as pernas.

— Nos poupem dessa gritaria inútil e desse fingimento. Todos sabem que na atual situação isso é correto. A rainha está morta. — Apontou para Lyla, que descansou a mão no encosto do trono. — Mesmo ainda estando aqui em espírito, ela não pode governar. O Conselho Ancião está desfeito, graças às mortes ocorridas no passado e, também, ao ataque executado por seus últimos membros ontem. Então, como não há rainha, nem Conselho, a Ordem Castir deve eleger um representante até que um teste seja realizado. Como sou a única Castir viva, assumirei essa “indesejada” função até que toda essa confusão com Érion e os Portões seja resolvida.

— Não diga asneiras! Mesmo sendo uma Castir, você não passa de uma auriva. Seu sangue sujo não tem direito de pisar neste salão, muito menos de sentar nesse trono.

— Tinha esquecido o quanto os nobres podiam ser agradáveis! — Ela cantarolou em provocação. Voltou-se para Lyla. — Acho que este é o momento ideal para realizar um de seus desejos.

A outra sorriu largo, assumindo uma postura mais ereta e um ar esnobe.

Quem disse que a morte não pode oferecer diversão a um pobre espírito?! Brincou. Muito bem. Alguma vez se perguntaram como uma auriva conseguiu ascender ao Círculo Castir, onde somente deminaras chegaram?!

Guil cuspiu no chão, ao compreender do que aquilo se tratava.

— Abominação! — Rosnou.

Lyla mostrou-se hostil.

— Gostaria que não tornasse a insultar a minha irmã dessa forma. Não está agindo com sabedoria, Demir. Virnan é minha herdeira por direito de sangue.

— Isso é insano! — Belia enfatizou. A descrença deformava a face bonita, dando-lhe um aspecto abobado.

— Ao meu ver, este reino é que é insano. Suas leis retrógradas, suas separações de castas, o modo como enxergam a magia… Se por um lado são fantásticos, por outro são odiosos. Isso me parece a verdadeira loucura. — Fantin se fez ouvir, agastada com aquela conversa.

Várias cabeças se voltaram para ela, que manteve um olhar altivo e quase tão nobre quanto o de Lyla.

— Quem você pensa que é, humana? Sequer deveria estar aqui. — Disse um dos homens.

— Ela é minha irmã de círculo, Demir Karus. — Virnan informou. — Mestra Fantin não costuma ser tão gentil quanto eu ao ser insultada, então talvez devesse considerar ser mais cortês com ela e o resto de minhas companheiras, já que está em nossas mãos a abertura dos Portões e libertação deste reino.

Ela continuou a sorrir, dócil.

— Mas retornemos ao assunto. O falecido Demir do Sul, Tarik, era meu pai, é um fato que eu nem vocês podem negar.

— Não posso acreditar. — Guil bufou, seguido por Karus e Belia.

— Garanto a vocês que disse a mesma coisa quando ele revelou o parentesco. — Sorriu debochada. — Acaso não pareço com meu pai? Pessoalmente, acho o verde dos meus olhos muito mais bonito que o violeta da minha irmã.

— Isso só pode ser uma piada! — Belia insistiu.

Kalum soprou o ar, ao lado dela. Pareceu desconcertado, quando falou:

— Sinto dizer que não é. Fui um dos ministros do meu primo Tarik, durante o seu reinado. E também um de seus amigos íntimos. Ele me falou sobre seu romance com Denna Dashtru, antes de casar-se. Mas devo confessar que a possibilidade da sua filha auriva vir a ocupar o trono, jamais me passou pela cabeça.

Virnan reconheceu:

— Acreditem, não estou aqui pelo desejo de governar, mas por obrigação. Estarei no comando do reino até esse problema com Érion ser resolvido. Depois disso, vocês podem brigar pelo trono como animais selvagens. Não me importa.

Retirou a adaga da cintura, conjurou um círculo no chão e fez um corte na mão. O sangue escorreu até o centro do círculo.

— Faço a vocês um juramento sagrado. Devolverei o trono assim que Érion for detido e servirei ao novo rei e ao nosso povo, assim como servi a Rainha Lyla.

O círculo brilhou forte e o sangue foi absorvido por ele. Houve uma intensa troca de olhares entre os deminaras. Aquele era um juramento que trazia terríveis consequências, caso quebrado, e que não podiam rejeitar.

— Já que demonstra sinceras intenções, aceitamos seu juramento, “Majestade”. — Belia falou, demonstrando um terrível desconcerto a cada palavra dita, então fez uma reverência e o mesmo aconteceu aos outros.

Com um pouco de magia, Virnan curou o ferimento. Sorriu largo, dizendo:

— Ótimo! Mas me tratem apenas por “Castir” ou pelo meu nome, já que não planejo ficar nessa função por muito tempo. — Abanou uma mão diante dos olhos. — Então, já que estamos combinados, agora eu mando e vocês obedecem. Sendo assim, aqui está a minha primeira ordem real: façam o favor de saírem daqui!


Boa noite, amores!

Desculpem não ter postado na semana passada. Viajei novamente e não consegui atualizar a estória na data correta. Postarei um capítulo extra no meio da semana para compensar.

Beijos!



Notas:



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