*

— E agora? — Verne indagou, passando a mão sobre o peito.

Por baixo das vestes novas estava a cicatriz da ferida que sofreu. Como tinha sido feita através de magia, o curandeiro cautino que o assistiu disse que não seria possível minimizar a cicatriz. Ele não se importava com isso. Não era a primeira e, com certeza, não seria a última marca de guerra em seu corpo. Mas lhe incomodava o fato de que ouviria um sermão de Emya, que tinha por hábito lhe inspecionar o corpo em busca de novos estigmas sempre que retornava de uma viagem perigosa, e aquela não teria como esconder.

Pensar sobre o cuidado que a esposa lhe dedicava trouxe um ligeiro sorriso à sua face. Reação que tratou de esconder de Virnan ao fingir uma tosse. Não era o momento para entregar-se a essas reflexões, mas vinha pensando muito em Emya nas últimas semanas e as palavras inflamadas de Fenris, naquele corredor, volta e meia lhe retornavam implacáveis, principalmente quando lançava olhares furtivos para a tatuagem na mão da guardiã.

“ — Se a ama mesmo, reconheça que a sua vez passou e torça pela felicidade dela em vez de remoer uma raiva sem sentido e continuar mantendo o fantasma dessa paixão fracassada no seu casamento. Siga em frente, meu Príncipe. Faça isso por você e por sua esposa. Ainda há tempo para encontrar a verdadeira felicidade ao lado dela.”.

Sim, ele faria isso se a morte não o encontrasse naquela missão. Daria uma chance de verdade ao seu casamento. Não faria promessas vãs, assim como nunca as fez ao longo dos dezoito anos de casamento com Emya, mas tentaria lhe amar da forma certa e se daria uma oportunidade de ser realmente feliz ao lado dela. Tinha decidido isso muito antes de pôr os pés naquela ilha, mas o coração tem seus próprios desejos e foi só encontrar Analyn para esquecer suas resoluções.

Enrijeceu a postura, mas percebeu que já não se sentia tão incomodado com o fato de que Marie e a mulher ao seu lado eram um casal.

“ — Não há como fugir de nossos sentimentos. Podemos enterrá-los, fingir que não existem, mas eles encontrarão um jeito de vir à tona. Entretanto, podemos criar um espaço para novos e, talvez, estes possam suplantar os antigos e, um belo dia, eles não serão mais que sombras de um passado distante.

Fenris fez uma pausa, afastando a vista para a noite que os envolvia.

— Perdoe-me, Alteza. Mas precisava dizer isso e não me arrependo. — Curvou-se ligeiramente. — Mesmo tendo me dado permissão para lhe falar sem receios, sei que fui muito além. Mas gostaria que pensasse sobre isso. Não testemunhei seu convívio com a princesa Analyn no passado, mas é fato de que desde que a reencontrou não o vi sorrir em nenhum momento. Já com a Princesa Emya você sempre sorri, mesmo quando ela lhe impõe sua vontade nas questões do palácio, entre outras coisas. Seu semblante é mais suave ao lado dela e definitivamente alegre quando seus filhos estão por perto também.”

Fenris era um bom homem e um amigo melhor ainda. Era sem dúvida um mulherengo e, muitas vezes, fútil. Gostava de dizer que nada entendia do amor; afirmava que jamais encontrou alguém que lhe tocou o coração, mas isso não era verdade. Ele já tinha amado de uma forma muito intensa e perdido esse amor e um filho durante um parto mal feito. Então, para esconder essa dor, se entregou a futilidade de uma vida sem compromissos afetivos.

Por isso, quando ele se despia dessa máscara pueril para lhe chamar a atenção sobre seus atos, era o momento de refletir intensamente sobre eles e mudar suas perspectivas.

Apertou o tecido negro que vestia, afastando de vez a imagem de Fenris e Emya, então apegou-se a irritação pelo fato de que tinha feito muito pouco para ajudar no combate daquela manhã. O pensamento devia estar estampado em sua face, pois Virnan falou:

— Sinto muito. Quando lhe pedi para vigiar o salão, um ataque era apenas uma possibilidade remota. A verdade era que não me sentia confortável com aqueles três guardando a entrada.

Ele cofiou a barba, deslizando o olhar pela serena dela.

— Devo me sentir lisonjeado? Tenho a impressão de que acabou de dizer que confia em mim. — Ele sorriu, causando estranheza em si mesmo e nela que, desde que iniciaram aquela viagem, jamais tinha visto aquela expressão no seu rosto.

Ela se recostou em um pilar próximo, evidentemente satisfeita.

— Se não confiasse, Badir, não teríamos dado nenhum passo para fora da Ilha Vitta. Eu lhe disse, em certo momento, que você recorda a mim mesma no passado. Reconheci isso em seus olhos assim que nos encontramos. Mas é da minha natureza confiar desconfiando e, também, levar as pessoas ao limite para que me mostrem suas verdadeiras faces.

— Isso é um truque sujo — reclamou.

— Não enxergo assim, afinal tem funcionado bem há alguns milênios. Mas já que pensa dessa forma, imagino que teria odiado conhecer a minha mãe. Ela era muito pior que eu.

Ela estava diferente, Verne pensava. Todas estavam, aliás.

Quando a luta acabou, ele entrou no salão e constatou que o que Voltruf disse era verdade. Ele estava vazio. Não havia nenhum sinal das mulheres, exceto pelas roupas cuidadosamente dobradas em um dos bancos. Ao retornar para o corredor, Lyla resmungou algo sobre elas estarem caminhando entre os mundos e se afastou para conversar com o auriva de cabelos grisalhos e cicatriz.

Enquanto estava no interior do salão, mais aurivas apareceram junto com soldados que faziam parte da guarda do palácio e que tinham sido incapacitados pelos invasores. Eles levaram os mortos e inimigos sobreviventes tão rápido e silenciosamente que o lorde e os companheiros mal se deram conta da movimentação.

Virnan e as outras só apareceram no meio da manhã. Saíram do salão com expressões tão cansadas que mais pareciam estar doentes. Contudo, havia uma serenidade e cumplicidade em seus olhares que não podia ser disfarçada ou escondida. Verne as recebeu ao lado de um Joran de aspecto sombrio e preocupado, o que foi acentuado pelo sangue que vertia de um corte na testa e as roupas rasgadas. O badir tinha se recusado a abandonar seu posto até que elas retornassem e teve de ser tratado por um curandeiro ali mesmo, contudo ordenou a Fenris e Távio que fossem receber os devidos cuidados no local adequado.

A guardiã pediu que as outras fossem repousar, garantindo que faria o mesmo após se inteirar do que aconteceu, mas a tarde já se iniciava e ela ainda não tinha manifestado interesse de procurar uma cama.

— Você é a pessoa mais irritante que já conheci, Guardiã. Não sei se seria capaz de sobreviver a um encontro com uma versão mais velha e potente de você.

Compartilharam o riso naquele raro momento de calmaria entre eles. Verne reassumiu a expressão de seriedade primeiro.

— Acha que podemos mesmo vencê-lo? Acredita que tem o poder para isso agora?

O vento bagunçou os cabelos dela, desfazendo o riso em seus lábios.

— Eu não sei, Lorde. Em uma batalha, por mais que todos os movimentos tenham sido calculados, surpresas sempre acontecem. Nem mesmo Lyla sabe o que está por vir. E, para ser sincera, mesmo que ela saiba, a proibi de me dizer ou interferir. Ela já fez muito até aqui. Além disso, não é como se tivéssemos outra opção.

Ele tornou a cofiar a barba, pensativo. Por sua vez, Virnan brincou com o cabo da adaga na cintura.

— Respondendo a sua pergunta inicial… Agora nós, literalmente, iremos à guerra. Quando os Portões forem abertos, as proteções em volta de Flyn irão se desfazer e a aproximação de Érion será inevitável. Então, precisamos fazer planos para defender a cidade antes disso. Espero ter a sua cooperação.

— Hum… Não sei se serei de alguma ajuda. Pelo o que ouvi ao seu respeito, você era uma boa estrategista e comandante.

O costumeiro sorriso irônico surgiu entre os lábios dela, enquanto fazia um gesto de descaso.

— Isso foi há muito tempo e não acredite em tudo o que ouve. Para a maioria das pessoas aqui, sou quase um “demônio”.

— Não exagere.

— Não é exagero. Acaso não reparou na forma que me olham?

Sim, ele tinha reparado e já pensado sobre isso. As pessoas baixavam o olhar para esconder o medo ou a encaravam abertamente, como se estivessem diante de uma criatura peçonhenta. Virnan notou o desconforto que o tomou por não saber como lhe responder.

— Está sentindo pena de mim, Badir? Vou acabar ficando emocionada! — Sorriu, provocadora. — Eles não têm culpa. Hoje, entendo isso. Mas, no passado, eu odiava, e fiz por merecer cada um desses olhares amedrontados ou cheios de ódio e asco. Não me furtava de encontrar maneiras para escandalizá-los. Como Lyla disse, eu sou uma auriva e isso quer dizer que pertenço a casta mais baixa da sociedade florinae.

Abriu os braços.

— Essas roupas, as tatuagens, a adaga, fazem de mim algo equivalente a um nobre badir em seu reino. Mas é aí que está a diferença. Pelo o que sei, em Midiane, qualquer pessoa pode ser eleita um badir, desde um mero agricultor até um príncipe. É uma questão de ser amado e respeitado por seu povo, certo?

Verne inclinou a cabeça e ela deslizou dois dedos pelo próprio braço, sorrindo.

— Mas aqui, o que importa é a cor da minha pele e dos meus olhos que definem o sangue “impuro e ruim” da minha casta. Alguém assim, não deveria estar onde estou. Os florinae têm muito orgulho da sua magia e desde que Flyn foi fundada os aurivas não passam de ferramentas descartáveis, já que quase não a possuem. Mas é fato que essa perspectiva é mais forte entre os nobres deminaras que ainda se mantêm apegados a antigas tradições. Poucos cautinos e taltos ainda preservam essa visão. Entretanto, as leis que nos separam são severas e milenares, então nada mudou realmente e quando ascendi ao Círculo Castir, me tornei uma “aberração”. O que fiz durante a guerra pelo trono já tinha me fornecido uma fama terrível e quando assumi meu lugar na Ordem Castir ela só aumentou.

Deslizou um dedo pela testa, arqueando uma das sobrancelhas. Uma ruguinha discreta tomou forma no canto da boca.

— Então, não se deixe afetar por algo que já não me incomoda.

Ele ficou rigidamente ereto e balançou a cabeça, afirmativamente. O que lhe incomodava, de fato, era ter sentido o peso daquele desprezo também. E perguntava-se como ela poderia ter se acostumado com aquilo, mas então recordou o que ela disse para Voltruf, um pouco antes de entrar no salão. A cada vez que tentavam rebaixá-la por causa da sua casta, mais orgulho de pertencer a ela, sentia. Era um pouco contraditório, ele pensou. A forma como ela agia, nem sempre correspondia ao que dizia.

Limpou a garganta e voltou ao assunto que travavam antes daquele estranho desabafo:

— Ainda acho que não serei de grande ajuda nesses planos. Mesmo que você afirme que fez isso há muito tempo, o que é um fato, também sou um soldado e sei que essas coisas não se esquecem. — Argumentou.

Ela abandonou o pilar em que se recostava e deu um passo à frente, chegando mais perto.

— Mas eu preferia esquecer. E até consegui enquanto estive na Ordem. — Deu de ombros. — Mas você está certo. Entretanto, eu sei como os florinae agem em uma batalha, mas não tenho ideia de como os humanos lutam. Pelo menos, não tenho ideia de como os reinos vizinhos ao seu travam suas guerras. Não houve nenhum grande conflito enquanto estive na Ilha Vitta.

— Entendo. Guerra é guerra de todo modo, mas os tempos mudaram e algumas táticas também. — Reconheceu.

— Exatamente. Érion delineou uma guerra entre vocês para aumentar seu próprio poder, então é certo que o exército humano que iremos enfrentar será o de Axen. Pelo menos, uma parte dele. É provável que a outra metade do exército tenha sido enviada para a fronteira de Midiane. Ainda estou me inteirando dos acontecimentos por lá. Todavia, confesso que tenho esperanças de que a sua esposa consiga convencê-los a não irem adiante nisso.

O lorde baixou a vista.

— A ideia de que ela possa estar correndo algum perigo… — interrompeu-se ao sentir a mão dela a lhe pressionar o braço.

— Meu mensageiro a encontrou bem e ela já está seguindo para a fronteira de seu reino, como pedimos.

— É exatamente disso que estou falando!

Ela riu.

— Sinto muito que tivesse de ser ela a ir, mas não tínhamos muitas opções. Estávamos longe demais para conseguir chegar lá antes que o conflito se iniciasse, de fato. E também tínhamos outras responsabilidades, no momento. Entretanto, tudo isso se entrelaça como uma imensa teia de aranha. No fim, mesmo que parte dos envolvidos ainda não saiba disso, estamos todos correndo contra o tempo e com o mesmo objetivo: impedir Érion de destruir este mundo.

— Emya é uma mulher formidável. — A encarou, duro. — Ela tem muito da irmã mais velha. Sei que pode lidar com esse conflito sem problemas, mas ainda assim não posso evitar de me preocupar.

Virnan aumentou a pressão no braço dele, então deu um tapinha e afastou-se para alívio deste que começava a se incomodar com aquela proximidade.

— Tem a minha palavra de que ela ficará segura. Posso lhe fazer um juramento sagrado, se desejar. Já tomei providências para que não se machuque. Afinal, ela é minha cunhada, certo?

Fez silêncio por um momento, então começou a rir alto.

— Droga, só agora me dei conta de que isso faz de nós dois parentes!

Recuou um passo, deslizando uma mão pelos cabelos. Certamente, jamais imaginou que encararia Verne dessa forma e o mesmo ocorria com ele, que após algum tempo de silêncio endireitou-se e lhe ofereceu a mão.

— Vamos fazer isso dar certo.

Ela o encarou por um instante, dizendo:

— Pensei que desejaria arrancar meu coração ou algo do tipo, depois de descobrir sobre a minha união com Marie.

Verne tornou a sorrir e a guardiã concluiu que aquela expressão lhe caía muito bem, fazendo-o realmente parecer um nobre.

— Eu não posso viver do passado. E mesmo que Analyn ainda me quisesse, não sou mais um homem livre. Jamais a desonraria ou a minha esposa tornando-a minha amante. Admito que me sinto desconfortável com a sua união, mas prometo que não irei interferir nela e nem tornarei a expressar meus sentimentos de outra forma que não seja os de carinho e respeito pela minha “cunhada”. Mas se você a machucar de alguma forma…

O sorriso dela voltou a aparecer, conciliador.

— Não irei! Mas se por acaso cometer tal crime, estou contando com você para me punir adequadamente. — Apertou a mão dele, finalmente.

**

— Deuses! Pare de me olhar assim! Não preciso da sua pena, auriva!

Virnan sorriu, sentando-se na beirada da cama. Voltruf gemeu alto com o movimento repentino no colchão. Sua aparência poderia ser declarada como, no mínimo, deplorável. Os cortes na pele e face continuavam sangrando e encharcando as ataduras. Estava tão pálida que chegava a se destacar mais que a túnica branca que usava; esta também já manchada de sangue.

A guardiã sempre achou interessante a fragilidade dos espíritos. Mesmo eles, podiam se machucar e sangrar como os vivos e o sofrimento era equivalente também. Recordou a primeira vez que viu Zarif sangrar, enquanto vagavam por Inamia. Na ocasião, pensou estar alucinando. Mas a verdade era que ainda entendia muito pouco sobre o seu spectu e a natureza dele.

Ela olhou para o criado que tinha acabado de trocar a atadura de uma das mãos da deminara. Ele lhe sorriu, obviamente incomodado com o interesse que cativou, então apressou-se a recolher as ataduras sujas, pediu licença e retirou-se. Através da porta entreaberta, as duas mulheres vislumbraram um olhar curioso de Bórian, que tinha se postado do lado de fora como se aguardasse por um novo combate.

Virnan escorregou a mão até a de Voltruf, divertida com o desconcerto que tomou a face desta e acabou por afastar as expressões de dor. Após deixar Verne, encontrou com Bórian à sua espera no corredor que levava até os seus aposentos, para onde Marie tinha se dirigido, mais cedo.

O ex-companheiro de círculo fez um relatório detalhado da luta, chegando a ser mais acurado do que o badir. Ele também lhe falou sobre Voltruf e a guardiã pediu para vê-la, gerando um olhar desconfiado no espírito que mesmo assim não se opôs a lhe atender o desejo.

— Quem disse que estou com pena de você, Naria? — Sorriu de lado ao perceber o desconforto dela aumentar ao ouvir seu verdadeiro nome.

Voltruf, na verdade, era o apelido que ela ganhou no templo da Ordem Castir por ter feito um pacto com um espírito da água que assumia a forma de uma serpente marinha. Aliás, este era o significado da palavra na língua Enaen. Mas tanto Bórian quanto Joran a tinham reduzido para “Volt”.

— Se existe um sentimento que jamais lhe dediquei, é a pena.

Então, veio tripudiar do meu estado? — Comprimiu os lábios. — É justo. Não sou mais tão forte quanto em vida, não é mesmo? Aquele desgraçado quase me partiu ao meio. — Forçou um sorriso, enquanto a outra cruzava as pernas, aumentando a pressão na sua mão.

A Castir demorou algum tempo entregue a um silêncio contemplativo da face machucada da ex-companheira e, também, não fez questão alguma de afastar a mão que lhe tocava.

— Você poderia ter acabado com ele num piscar de olhos, se não estivesse magicamente desgastada. Você e Bórian fizeram isto para mim — mostrou o medalhão no pescoço. — Foi necessário muito poder para criá-lo, sinto isso. E se os dois não estivessem tão fracos naquele momento, não seria necessária a intervenção dos Manir. Afinal, vocês não eram Castirs à toa. Não vim até aqui para rir do seu infortúnio, mas para lhe agradecer adequadamente.

Deslizou a mão pelo braço dela, deixando um rastro de pequenos círculos luminosos.

— Me perdoe se demorar mais que o previsto. Há bastante tempo que não uso esse tipo de magia e a noite foi bem longa, também.

Os círculos foram deslizando pela pele dela, tomando a direção de outras regiões do corpo e por onde passavam as feridas se fechavam. Quase uma hora se passou e, nesse meio tempo, Bórian e Joran invadiram o quarto após ouvir os primeiros gritos de agonia da companheira. Obviamente, não esperavam aquela gentileza por parte de Virnan, mas se limitaram a assistir o ritual de cura em silêncio. Afinal, assim como podia ferir e até matar um espírito, um Castir também podia curá-lo. Contudo, a quantidade de magia usada para isso chegava a ser três vezes maior do a empregada na cura de um humano.

Quando tudo acabou, a Castir exibia um semblante ainda mais cansado do que quando entrou no quarto. Afinal, tinha acabado de usar o restinho de magia que lhe sobrou após o Círculo de Cazz e, agora sim, necessitava de um bom e longo descanso para recuperar as forças.

Você está bem, Volt? — Joran perguntou.

A mulher confirmou com um inclinar de cabeça; encarava a expressão serena de Virnan, havia algum tempo. Esta, por sua vez, disse:

— Obrigada.

A deminara engoliu em seco, sentando-se na cama.

Só fiz a minha obrigação. Mesmo morta ainda é meu dever proteger esta cidade.

— Não por isso. — Virnan curvou-se levemente para lhe sussurrar ao ouvido: — Obrigada por não me deixar sozinha naquele lugar e me perdoe por nunca ter dito isso antes.

Naria Voltruf baixou o olhar para as próprias mãos, também sussurrando:

— Você sabia…

A respiração de Virnan era uma suave carícia em seu pescoço, fazendo-a recordar de que já não podia respirar e que não havia qualquer calor em seu corpo.

— Era confuso. — Virnan se afastou, confessando. — Realidade e visões se misturavam, minha mente estava nublada, mas eu sabia que você estava lá. Contudo, você nunca disse nada e eu tinha medo de falar e descobrir que você também era uma ilusão.

O espírito tremeu, ligeiramente; os olhos escorregaram do lençol manchado de sangue para o rosto dela.

— Eu nunca te disse…

Virnan se afastou mais um pouco. Sorriu, branda.

— Mas conosco funcionava assim, não é? Todavia, se você tivesse dito, eu teria dito também.

Os olhos violeta dela se abriram um pouco mais com a percepção do que aquelas palavras significavam. Sorriu, assumindo algumas verdades para si.

— Certamente, teria sido muito emocionante. Não acha? — Virnan continuou.

Voltruf sorriu largo e a acompanhou no riso, ignorando as expressões de completa confusão de Joran e Bórian.

Creio que teria sido um completo desastre, mas eu lamento não ter falado e vivido isso. — Admitiu.

Virnan concordou, então ficou de pé.

— Quem sabe em outra vida?

Esticou a mão e lhe fez um carinho na face. Curvou-se e sentou os lábios nos dela, então aprumou-se, cumprimentou os dois homens e saiu do quarto.

— Mas que inferno aconteceu aqui?!

A resposta de Voltruf foi uma risada cristalina, que preencheu o quarto e invadiu o corredor enquanto Virnan se afastava, também rindo.

Elas passaram anos brigando uma com a outra, ocultando seus próprios sentimentos. Lyla estava enganada ao acreditar que Nikal tinha sido a pessoa que chegou mais perto de conquistar seu amor antes de Marie. A verdade é que essa pessoa, no passado, tinha sido Naria Voltruf.

Virnan não se recordava da primeira vez em que a olhou como mulher, nem quando percebeu que ela a encarava da mesma maneira. O fato era que seguiram suas vidas na Ordem Castir como se nada diferente de raiva e desprezo, pela outra, existisse em seus corações.

Ela preferiu se convencer de que esteve sempre sozinha naquela câmara, revivendo a morte daqueles que matou e ressuscitou, entre outros pesadelos que a loucura da quebra do pacto com Zarif lhe trouxe.

Mas isso era uma mentira.

Provavelmente, jamais teriam tido aquela conversa, não fosse o fato de que reviveu toda a sua existência durante o ritual e foi capaz de rever aqueles momentos na “prisão”. Onde, durante as noites de lua cheia, quando a magia transbordava mais forte de magos e espíritos, ela recebia a visita de um deles; a visita de Naria.

A porta do quarto rangeu quando a abriu. Estacou diante da cama e perdeu-se na contemplação de Marie, completamente entregue ao sono. Mesmo que tivesse sido tudo diferente entre ela e milhares de Narias, nada do que sentisse poderia ser comparado ao amor que tinha por Marie.

Sorriu para si mesma, entregue aquela felicidade. Então, se desfez das vestes, subiu na cama e enroscou-se no corpo amado.


Boa noite, amores!

Como prometido, cá está o capítulo extra para compensar o atraso da semana passada. Infelizmente, ainda estou devendo respostas aos comentários. Perdão! De amanhã não passa!

Beijos e muito obrigada pela companhia e carinho!



Notas:



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