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Joran bloqueou a investida de um dos oponentes que se aproximavam. O choque das espadas emanou uma pequena onda em volta dos dois, obrigando os demais invasores que os cercavam a se afastarem um pouco. Alguns metros adiante, Fenris e Verne lutavam contra o mesmo homem. As coisas ficaram mais fáceis quando perceberam que era possível prever o momento em que eles usariam magia para atacá-los e que isso desprendia muita energia os deixando mais lentos por alguns instantes.
Definitivamente, aqueles homens não eram guerreiros como Joran e os amigos. Lutavam bem, mas desperdiçavam muito poder quando recorriam a magia. Mesmo assim, Verne não conseguia deixar de pensar que era um momento assustador. Pela primeira vez, em anos, temeu por sua vida em meio à um combate.
O homem com quem lutava recuou um passo e ele viu uma brecha para um ataque mortal. Jogou-se no chão, recordando um movimento que viu Virnan executar em Bantos, deslizou pelo piso com uma das pernas arqueadas, enquanto a outra se prendia as pernas do inimigo. O homem caiu e Fenris não perdeu tempo; enfiou a espada no peito dele.
Então, por um breve instante, assistiram abismados quando o homem se levantou sem nenhum ferimento aparente.
— Diabos! — Fenris trincou os dentes, olhando para o corpo atrás dele.
— É o círculo em volta da cidade — Verne bufou, recordando que a guardiã tinha lhe dito que somente espíritos e Castirs eram capazes de matar outros espíritos.
O homem se voltou para o próprio corpo estirado no chão. Apanhou a espada e sorriu, dando um passo em direção aos dois midianos. Fenris apertou a espada com mais força, olhando em volta com a crescente ideia de derrota e morte a lhe tomar a mente. Eram muito poucos para dar conta de todos aqueles invasores. Mesmo os três espíritos do antigo Círculo do Trovão sendo poderosos e habilidosos no combate, a desvantagem era clara.
Lorde Verne esquivou-se do ataque do espírito inimigo e Fenris desferiu um golpe no flanco direito dele. A lâmina da espada entrou no corpo até a metade, mas quando o cavaleiro a retirou, a ferida se fechou.
— Acho que estamos com um grande problema. Se os matamos eles voltam à vida de outra forma e aí não podemos matá-los — comentou, arfante.
Então, o grito de um pássaro conhecido se elevou. Vislumbraram as asas vermelhas de Lyla enquanto dava uma pirueta no ar e assumia a forma humana antes de tocar o chão, bem atrás do espírito inimigo. Este, por sua vez, entreabriu os lábios, cuspindo sangue. Do seu peito, uma pena vermelha e afiada como uma lâmina se projetou. Assim como ocorreu com a sugadora, dias antes, o corpo dele se decompôs em pedras e depois se tornou pó, que foi absorvido pelo chão.
— Ai! Isso deve ter doído! — Fenris sorriu, maldoso. — Obrigado, Majestade.
Ela fez uma leve reverência. As mãos parcialmente transformadas em asas. Golpeou o ar e as penas das pontas dos dedos se desprenderam e alojaram-se no peito de um dos homens que lutava com Joran. Assim que o espírito dele se elevou do corpo, Joran o destruiu com uma cortina de fogo mágico.
— Desculpem o atraso. Demorou um pouco para encontrá-los.
— Encontrar quem? — Verne perguntou, mas não foi necessário que ela respondesse.
De uma das pontas do corredor, uma dezena de homens e mulheres surgiu, chocando-se contra os invasores como se fossem uma onda.
— Eles são aurivas como Virnan — Fenris observou, dando um passo para o lado a fim de deixar Távio se aproximar deles.
— Eles são bem mais que isso. — Ela sorriu com os olhos, então fez novas penas crescerem dos dedos e se soltarem. Eram do tamanho de um punhal e tão afiadas quanto. Entregou-as aos três midianos. — Irão desaparecer em alguns minutos, então sejam rápidos.
Perto dali, Voltruf sorriu de um jeito malvado quando torceu a lâmina da espada no peito de um invasor. Os espírito dele sequer teve tempo de perceber a nova vida, já que ela usou de magia para destruí-lo.
Ela preparou-se para o próximo adversário, mas foi envolta em um círculo de magia, onde fios de luz cortaram sua carne ao apertarem-se em volta do corpo como tentáculos mortais. Um grito lhe escapou da garganta, junto com sangue. Aquela conjuração havia sido feita por um espírito como ela e era provável que tivesse encontrado seu fim, se Verne não tivesse se jogado sobre o espírito do mago que a feria.
Foi o suficiente para encerrar a conjuração e libertá-la. O lorde rolou pelo chão com o espírito inimigo e lhe cortou a garganta com uma das penas que Lyla lhe deu e o assistiu virar uma pilha de pó com prazer. Então, retornou para Voltruf e a levou para trás de um pilar.
— Parece que os espíritos também são frágeis — sorriu, divertido com o olhar assassino dela.
O som de uma explosão alertou para o fato de que as portas do salão tinham sido destruídas, mas os invasores não chegaram a cruzar o limiar, já que dois dos aurivas se posicionaram diante dele. Um deles era um homem alto e corpulento com cabelos grisalhos e uma enorme cicatriz cruzando o olho direito que estava fechado por motivos óbvios. O outro era uma garota que, pela aparência, não deveria ter mais que quinze anos.
Os invasores, agora, eram a minoria, já que grande parte deles estava morta ou incapacitada de lutar graças aos aurivas. Verne fez questão de ir naquela direção, mas Voltruf lhe segurou o braço.
— Está tudo bem, Lorde. Já acabou.
Ele não estava muito certo disso, mas então recordou do que Virnan fez em Bantos, e aqueles aurivas usavam os mesmos movimentos que ela, por isso a luta pendeu para o lado deles.
— Mesmo assim, eles ainda podem entrar e eu prometi à guardiã que iria defender essas portas.
A mulher riu, deixando que mais sangue lhe escapasse pelos lábios.
— Não se preocupe com isso, Lorde. Você cumpriu sua promessa e nós também cumprimos nossa missão. Não há problema se eles entrarem no salão, pois ele está vazio agora.
— Como assim?!
Ela pareceu decepcionada, mas explicou devagar:
— Tenho certeza de que toda a cidade sentiu… — Arfou e ele a apoiou, envolvendo sua cintura. Parecia que ela iria desmaiar a qualquer momento. — Um pouco depois da meia noite, o círculo se completou.
O badir pareceu confuso. Como ela sabia daquilo? Então, recordou que na hora a qual se referia, percebeu uma agitação entre os três espíritos. Houve uma intensa troca de olhares entre eles, que veio acompanhada por expressões de diferentes significados: raiva, satisfação, derrota.
— Admito que estou com inveja, Lorde. Mas há muito tempo que aceitei que não era o meu destino pôr meus pés no Salão da União.
Ele afastou a vista do rosto cansado e machucado dela. Estava confuso, mas tinha resolvido que não se forçaria a tentar entender o que se passava com aquele povo e a magia deles. Esperava que, eventualmente, o conhecimento lhe chegasse com a calmaria da convivência e, se isso não ocorresse, também não iria se preocupar.
Assistiram aos dois aurivas, nas portas, desviarem de ataques mágicos como se estivessem em uma dança. Eram movimentos suaves e calculados, que os levaram para junto de seus atacantes. As mãos deles deslizavam pelos corpos, como se estivessem a fazer uma ligeira brincadeira de toques casuais, contudo os homens se dobravam e desabavam no chão como se não passassem de sacos cheios de areia.
Tudo estava acabado em poucos minutos.
— Certamente, eles são fortes. Mas ouso dizer que seus movimentos não são tão elegantes quanto os da guardiã. — Sorriu. Afinal, era a primeira vez que elogiava Virnan. Mas suas habilidades eram um fato e não podia negá-las só porque não se gostavam. — Vê-la lutar é como assistir uma deusa da morte a conceder o “fim” aos mortais.
Riu do que falou, achando-se ligeiramente estúpido. Mas seu olhar voltou a cruzar com o de Voltruf e percebeu que ela pensava o mesmo. Incomodado, a recostou na parede e afastou-se.
— Afinal, quem são esses aurivas?
A ex-castir inspirou fundo, deslizando a mão pelo abdômen com uma expressão sofrida. Achava engraçado que pudesse estar tão machucada e com tanta dor já estando morta.
— São o que restou da Ordem Manir em Flyn. Eles deveriam ter nos acompanhado quando partimos para lutar com Érion, mas a rainha os proibiu.
— Por quê?
— Porque eles são o que restou da família “dela”. São os últimos Dashtru.
**
[Algumas horas antes]
A dor cresceu em suas entranhas e percebeu que ela começava a se espalhar pelo círculo enegrecendo os fios de luz dourada que a conectava às amigas. A dor também as atingia e ver aquelas expressões sofridas aumentou seu tormento. Não temia mostrar-se para elas, então porque aquilo estava acontecendo?
“Fracasso. Você teme o fracasso e quanto mais o teme, mais próximo dele se aproxima.”
A resposta lhe chegou de algum lugar do passado. Sua mãe havia lhe dito aquilo quando ainda era uma criança treinando para seguir seus passos na Ordem Manir. E a frase se encaixava com perfeição naquele momento. Seu medo de fracassar naquele ritual de novo a estava confundindo.
Voltou a focalizar as amigas de novo, recordando algo que Lyla tinha lhe dito mais cedo naquele dia. Quando estava com aquelas mulheres, não importava o momento bom ou ruim em que se encontravam, pois elas sempre lhe traziam a paz. Apegou-se a isso e abraçou esse sentimento, recordando o quanto era bom senti-lo e a mulher em que se transformou ao conhecê-las.
Então, aos poucos, a dor lhe abandonou e os fios de luz começaram a se refazer, trazendo de novo as imagens do seu passado. Reviveu a descoberta da paternidade, a vida como Castir, o dia em que Érion invadiu a cidade obrigando-a a cometer diversos crimes para salvar seu povo, e a sua dor e punição ao longo de séculos.
Revelou a paz que encontrou na Ordem e o amor que cresceu por Marie remendando os cacos de um passado negro. Experimentou, novamente, a alegria que a tomou quando esta recitou o voto e a tatuagem se formou na mão de ambas, dando uma forma física ao amor que sentiam.
Foi uma vida longa demais, passos que marcaram não apenas ela, mas um mundo inteiro.
Carregava dentro de si muitos medos, muitas dores, muitos desejos. Entre eles, estava o amor que dedicava a cada uma daquelas mulheres e a vontade de protegê-las, que chegava a ser maior do que o desejo de cuidar do seu povo e o dever de defender aquele mundo.
Estava feito!
Por um breve momento, não pôde acreditar e quase rompeu o círculo, sem conseguir ocultar um sorriso por ter conseguido ir até o fim.
Olhou para as amigas e depois para as linhas mágicas que as uniam. À medida que cada uma delas executava o ritual, as linhas se entrelaçavam, trançando uma espécie de corda mágica, reforçando a união delas. Inspirou fundo, tentando aplacar um pouco das emoções que lhe invadiam. Abrir-se de verdade podia ser mais difícil do que enfrentar uma guerra, mas tinha conseguido; todas conseguiram.
Havia uma pergunta muda nos rostos delas: “E agora?”.
Virnan sorriu mais largo e traçou um gesto no ar, abrindo os braços. A corda mágica brilhou cada vez mais forte, chegando ao ponto de obrigá-las a fecharem os olhos. A risada baixa e encantada da Castir foi a deixa para que tornassem a abri-los e o espanto tomou o lugar da pergunta.
Era como se estivessem em três lugares ao mesmo tempo. Estavam no Salão Lunar, ainda dentro da fonte, mas também se encontravam de pé no meio de um campo florido até perder de vista. Por último, também estavam em uma floresta, cujas árvores eram tão altas quanto as daquela que atravessaram para chegar até Flyn; um pouco adiante, milhões de litros de água despencavam de uma cachoeira, mas o som lhes chegava baixo, como se estivessem a dezenas de metros.
Viam os três lugares e sentiam seus cheiros e climas, ouviam seus sons. Eram como camadas que se combinavam, formando outra paisagem.
— O que é isso?! — Fantin indagou, prendendo um suspiro de admiração.
Virnan abriu os braços de novo. Limpou a garganta.
— Esse é o nosso mundo completo. Ou seria, se os Portões não existissem. A floresta e a cachoeira pertencem a Enagia e o campo florido faz parte das Terras Imortais. Este é o meu dom, a minha magia, e pertence a vocês agora. Assim como a magia de vocês me pertence. É isso que um círculo de Cazz faz; de certo modo, é muito parecido com a minha união com Lyla. Vocês podem senti-la, não podem?
Sim, elas podiam sentir o spectu, como se também estivessem unidas a ela. Aliás, elas se sentiam também.
— É como se cada uma de vocês estivesse de mãos dadas comigo. — Melina sorriu. — Não, é mais que isso. Sinto a surpresa de Fantin, a curiosidade de Tamar, a tranquilidade de Marie e a sua felicidade, Virnan. É como se fôssemos uma só pessoa e, ao mesmo tempo, várias.
— É incrível! — Tamar declarou, e gargalhou assimilando a alegria de Virnan, que pulsava nelas sem medida.
A guardiã também riu, mas de forma moderada. Era o seu primeiro círculo também. Sabia o que fazer, mas nunca tinha experimentado a sensação. E a felicidade que a tomava tinha como motivo o fato de que acabara de comprovar o que disse para Voltruf e os outros. Aquelas mulheres eram mesmo sua família.
E agora? Marie gesticulou.
Virnan respondeu:
— Você pode falar aqui, Marie. Pelo menos, enquanto estivermos dentro deste círculo, sua magia não poderá nos machucar, pois fazemos parte dela também.
— E agora? — Marie sonorizou a pergunta. Como sempre acontecia quando podia se expressar daquela forma, alívio a tomou e as outras sentiram isso através daquele laço.
— Isso é poderoso o suficiente para que possamos abrir os portões? — Melina acrescentou.
— Muito mais do que imagina — Virnan respondeu, erguendo a face para o alto.
A lua brilhava, magnífica, no céu negro; exatamente sobre elas. Era ideal que a primeira vez de um círculo como aquele fosse realizado enquanto a lua cheia ascendia até alcançar seu ápice no céu. À medida que ela subia, a força do círculo também aumentava.
As ordenadas encararam o astro, compreendendo que o que lhes pareceu ser realizado em poucos minutos, na verdade, tinha levado horas para acontecer.
— É como se uma parte de mim estivesse faltando durante toda a minha vida e, agora, estou completa — Fantin confessou, encarando Virnan.
Não conseguiu evitar que uma lágrima se desprendesse de seu olho e rolasse pela face até alcançar o queixo e despencar para misturar-se a água.
— Isso é para sempre?
A florinae a encarou de volta.
— Se vocês quiserem — respondeu.
— Como assim?
Ela abandonou seu círculo e as palavras no fundo da fonte brilharam mais forte à medida que se aproximava do centro dela.
— Somos um círculo completo, compartilhamos nossos sentimentos, nossos segredos, lembranças… Isso permitiu que entrássemos em harmonia e nos deu o poder de compartilhar a magia. Mas quando encerrarmos o ritual, voltaremos a ser como antes.
— Mas não era assim que funcionava para os Castir. — Tamar deduziu. — Certo?
— Sim. Conosco ele se tornava um laço duradouro, reforçado através de um juramento.
— E você não quer que façamos esse juramento?
Ela curvou os ombros ligeiramente. Suas incertezas atingiram as outras, contudo sorriu.
— Não se trata disso. Nada me daria mais prazer do que poder chamá-las de irmãs, mas este é um desejo egoísta e não posso pedir que o realizem, porque fazer isso implica que dividiríamos o peso das responsabilidades que carrego em relação a este mundo. E, como puderam ver, ele é bem grande.
Deu de ombros e fez um gesto vago.
— Isso é mais que o suficiente para abrir-mos os portões e, também, para usarmos as armas tucsianas para prender Érion novamente. — Retornou para o seu círculo, recitando as mesmas palavras que usou para iniciar o ritual.
Boa noite, Amores!
Peço desculpas pela demora na postagem, mas a semana foi um pouco atribulada. Me desculpem pelo capítulo curto também. Pretendo postar um capítulo extra no meio da semana para compensar o atraso.
Responderei aos comentários amanhã.
Beijos e uma ótima noite!