A Ordem: O círculo das armas

22. Sangue deminara

*

Melina encarou as gravuras no teto por algum tempo. Estava no salão de refeições do palácio, sentada em uma mesa longa, que ostentava uma farta refeição, a qual compartilhava com os companheiros de viagem, exceto, Virnan e Lyla.
A guardiã ainda estava inconsciente.
Joran lhes contou que, por ser uma Castir, ela conseguia ver e ouvir os espíritos que se aglomeravam na cidade — não era uma novidade para eles — e que por ser uma auriva, cuja sensibilidade auditiva era maior que a de outras castas, o som dessas milhares de vozes a afetava dolorosamente.
Ninguém perguntou o motivo de haver tantos espíritos ali, mas a questão podia ser lida nos semblantes sérios e no silêncio apreensivo que os tomava.
Baixou a vista para a mesa e focalizou a sobrinha. Desde que sentou ao seu lado, ela não parava de olhar para a tatuagem na mão, cujo significado não quis lhe perguntar, mas não precisava se esforçar para saber que tinha algo a ver com Virnan. Reparou que Joran também observava a tatuagem dela com uma sobrancelha arqueada e isso aumentou sua curiosidade, contudo preferiu não fazer indagações. Pelo menos, não diante dos outros.
O som agudo de um talher tocando o fundo de um prato de forma ligeiramente violenta, atraiu a atenção para Fantin. A mestra loira, assim como o resto do grupo, tinha aproveitado a hospitalidade e tomado um banho relaxante e perfumado, que retirou parte do cansaço em suas feições. A beleza da qual era dona, tornou-se mais evidente dentro das vestes florinae que usava. O mesmo ocorreu a Tamar, que sentava ao seu lado.
— E agora? — Ela indagou para ninguém em especial.
Lorde Verne mexeu-se na cadeira, com ar impaciente. Seus pensamentos estavam em Emya e no perigo que tinha lhe pedido para correr ao depositar sua fé em Virnan. Afastou o olhar do prato vazio, tomou um gole farto de vinho e fez um gesto displicente, dizendo:
— Esperamos ela acordar e descobrimos de vez o que está se passando aqui.
Ele já tinha uma boa ideia. Pelo menos, no tocante às intenções do Cavaleiro Vermelho. Quanto a todo o resto, estava no escuro, assim como os outros.
— A não ser que o nosso amigo ali, queira nos dar uma introdução — fez um gesto de cabeça para Joran, que ocupava uma cadeira próxima à cabeceira da mesa diante de um prato vazio, no qual nenhum alimento chegou a ser depositado para o consumo.
O rapaz sorriu, gracioso, abandonando a contemplação da mão de Marie.
Os Portões de Cazz estão fechados. — Disse ele.
— E nós deveríamos saber o que isso quer dizer porque… — Fenris arqueou uma sobrancelha, balançando um pedaço de carne que estava a meio caminho da boca.
O guerreiro florinae se mostrou decepcionado. Afinal, as crianças de seu povo, antes mesmo de aprenderem a falar, ouviam a história da formação daquele mundo e reino. Fez um barulhinho com a garganta, claramente irritado.
Vocês viajaram com uma Castir até aqui e nem sabem o que são os Portões?!
Mestra Tamar sorriu, demonstrando uma rara irônia no gesto.
— Não sabíamos que ela era florinae até poucos dias atrás. Seu povo não passava de uma lenda para nós. — Explicou com um timbre cadenciado. — Ainda que muito nos tenha sido revelado ao longo da viagem, pouco sabemos de fato.
Ela fitou as companheiras por um instante, disposta a arrancar algumas respostas dele. Escolheu as palavras com cuidado, já que, embora tenha sido cordial, ele não escondeu que desgostava de Virnan, assim como ela demonstrou o mesmo de forma mais aberta. Em verdade, acreditava que eram poucas as pessoas em que a guardiã não causava esse efeito. A língua afiada, a arrogância, o humor, muitas vezes, excêntrico sempre provocaram aquele tipo de atitude.
De sua parte, nunca desgostou dela. Na verdade, sempre a achou uma figura interessante, já que ela se mostrava de uma forma diante de todos os ordenados, mas quando Marie lhe falava sobre ela, a despia daquele personagem. E durante a viagem até ali, teve a oportunidade de conhecê-la melhor e até criar laços, ainda mais depois dela ter lhe devolvido a vida.
Não contou para ninguém, nem mesmo Fantin, mas quando retornava para seu corpo, sentiu-se ser envolvida pela magia dela e a percebeu quente e carinhosa da forma que Marie descrevia. E foram essas impressões que lhe deram a segurança para seguir o caminho que as gavinhas de luz indicavam.
— Infelizmente, fomos interrompidas quando Virnan tentava nos explicar o que exatamente significa a palavra Castir. Poderia nos fazer a gentileza?
Evidentemente contrariado, ele se pôs de pé e inclinou-se ligeiramente.
— Um Castir é um guardião. Mas a palavra poder ser traduzida como Andarilho.
Tamar pousou a mão no queixo.
— Presumo que esses tais Portões sejam aquilo que defendem.
Está correta.
Melina o contemplou por algum tempo. Era um homem de aparência sóbria, não exatamente bonito, mas de feições agradáveis. Os olhos violetas expressavam cansaço e uma ligeira tristeza, mas portava-se como se fosse inabalável.
— Você era um Castir, não é mesmo? Assim como muitos nesta cidade, você está morto. — Afirmou a Grã-mestra, finalmente atraindo a atenção de Marie para a conversa.
Verne empertigou-se, surpreso. O rapaz lhe parecia tão vivo quanto ele, mas também pensava o mesmo sobre Lyla.
Também está correto. — Sorriu de lado.
— Onde estão suas tatuagens?! — Távio abandonou o silêncio, curioso. — Digo, se você é como “ela”, deveria tê-las, certo?
Mirou os companheiros em busca de apoio, mas todos estavam concentrados no rapaz, que soprou o ar como se seus pulmões ainda pudessem aspirá-lo.
Eu morri. Não preciso mais delas.
A frase atiçou a curiosidade de Tamar, novamente.
— O que isso quer dizer, exatamente? Pensei que elas fossem apenas um símbolo da sua união com um espírito. Aliás, se você está morto, o que ocorreu com seu spectu?
Ele mirou cada um dos rostos à mesa. Afinal, Virnan tinha retornado para casa com um grupo interessante e totalmente ignorante à respeito das verdades daquele mundo. Deu a volta na mesa, parando atrás de Melina e fitou a mestra por um instante longo antes de responder.
“Uma união Castir é eterna.” Foi isso que nos ensinaram. E é uma grande verdade. Quando morri, meu laço com Avariel se tornou tão profundo que nos fundimos. Ele faz parte de mim, agora. Assim como eu faço parte dele. — Ignorou as dúvidas na face dela e respondeu a pergunta de Távio: — Não preciso mais das tatuagens, pois não tenho um corpo físico que necessite ser protegido. Na prática, elas são uma armadura mágica. Sinceramente, como Virnantya é a última Castir viva, espero que nunca chegue o dia em que seja necessário que ela as use dessa forma.
Marie gesticulou algo e Fantin traduziu:
— Por quê?
O olhar dele se fixou na tatuagem na mão da princesa midiana, depois deslizou para a face dela acompanhado de um sorriso estranho.
Porque usá-las significa liberar toda sua magia e eu já vi a devastação que ela pode causar assim. — Inclinou-se devagar. — Espero que a refeição tenha sido do seu gosto. Os criados irão acompanhá-los de volta aos seus aposentos, assim que terminarem. Creio que um bom descanso será bem-vindo antes do anoitecer.
Pediu licença. Estava a meio caminho da porta, quando Verne o chamou. O badir deslizou a mão pela barba, enquanto indagava:
— Você não explicou o que são esses tais Portões e nem o motivo dessa palavra Castir significar Andarilho. Me parece uma denominação estranha para um guerreiro.
Joran arqueou um dos cantos da boca, enfastiado com aquela ignorância. Mesmo assim, não se furtou de responder:
Os Portões de Cazz são uma barreira mágica que ergue um véu entre três mundos. Um Castir é um guerreiro com poderes para atravessar esse véu. Ele pode caminhar entre os mundos, daí o significado da palavra.

**

— Sinceramente, esse povo me irrita! — Fantin declarou.
Seus passos ecoavam pesados, ao contrário dos suaves de Melina e Tamar. Caminhavam por um corredor aberto, que lhes oferecia uma vista bela dos jardins do palácio, onde uma agradável brisa as envolvia, carinhosa. Marie tinha se apartado delas metros antes, enveredando por outro corredor que levaria ao quarto de Virnan.
— Que mania horrível de contar as coisas pela metade! — Queixou-se.
Tamar riu, enlaçando o braço ao dela e pedindo desculpas ao criado que as conduzia.
Uma moça morena estava recostada à balaustrada, no fim do corredor. Por um instante, acreditaram ser Virnan, mas ela era bem mais alta e quando se voltou na direção delas, revelou-se uma completa estranha. Tinha um rosto bonito, adornado por olhos verdes e amarelados, carregados de uma leve malícia. Parecia ser uma auriva, mas o tom mais claro de sua pele, revelava o contrário.
Melina estacou no meio do corredor, indecisa sobre como deveria agir. A moça decidiu por ela. Caminhou em sua direção com passos cadenciados, lhe fez uma breve reverência, então tomou suas mãos e as beijou, carinhosa e respeitosa.
Estou feliz em ver que teve uma vida longa. Os anos lhe fizeram bem, Alteza. Atrevo-me a dizer, que está ainda mais bela do que na juventude. — Sorriu largamente. — Teria algum tempo para caminhar com uma velha amiga?
Ela tinha uma voz suave, carregada por um singelo sotaque oriundo das terras de Axen. Melina empertigou-se, recuperando-se do susto. Aceitou o braço que lhe oferecia e devolveu o sorriso, dizendo:
— Será um prazer, Deinah. Ou devo chamá-la de Maxine?

***

Fantin se perguntou, durante algum tempo, se Melina ficaria bem sozinha com aquele espírito. Mas logo abandonou a preocupação, ciente de que a Grã-mestra sabia muito bem se cuidar e, se aquela mulher tinha salvo a vida dela no passado, mal não iria lhe fazer agora.
— Acho que estou com ciúmes — sorriu para Tamar.
O criado as deixou diante do aposento que ocupariam, mas a mestra quis explorar um pouco mais do palácio milenar. Parava a cada instante, dedicando um atenção severa a estátuas, paredes esculpidas e tudo mais que pudesse lhe ensinar algo sobre aquele lugar. Enveredaram por outro corredor, tomando o cuidado de não irem muito adiante para não se perderem, mas logo o cansaço dos últimos dia se aproximou e retornaram.
Tamar franziu o cenho, afastando os olhos de uma magnífica tapeçaria, cujas gravuras demonstravam os dias negros da Guerra Continental e que havia examinado pouco tempo antes, já que ficava em frente ao quarto que ocupariam.
— Hmm?! Disse algo?
Fantin levou uma mão a cabeça, rindo. Seria difícil disputar a atenção dela com os livros e tudo mais que lhe inspirasse a curiosidade. Entretanto, não lhe mentiu quando afirmou que, se fosse necessário enfiar-se na biblioteca para estar ao seu lado, o faria com um imenso prazer. Afastou uma mecha dos fios castanhos que lhe caíam sobre a face e curvou-se para beijá-la.
— Disse que estou com ciúmes, Mestra. Este lugar está repleto de coisas que lhe instigam e logo ficarei de lado — afastou-se, mas Tamar cingiu sua cintura e a trouxe para mais perto.
— E acredita mesmo que algo pode me tirar de você por mais que alguns minutos? — Mordiscou-lhe o queixo.
— Se for velho e tiver uma história interessante, creio que estarei em desvantagem. — Sorriu.
Tamar aumentou a pressão em sua cintura.
— Engana-se terrivelmente. Meu coração anseia o conhecimento, mas o abandonaria facilmente por você. — Aspirou a pele perfumada pelo banho recente e ela estremeceu ante a carícia que a respiração morna lhe fazia na pele.
Satisfeita com a declaração, abriu a porta diante da qual estavam e a conduziu para o interior do aposento. A empurrou até a cama, livrando-se das vestes pelo caminho. Os corpos clamavam pelo descanso após uma noite insone, a cavalgada longa e desgastante e as muitas emoções da chegada até Flyn. Entretanto, clamavam muito mais por se pertencerem.
Fantin admirou as curvas dela, sorrindo entre encantada e maliciosa ao se aperceber que era alvo de um olhar tão lascivo quanto o que lhe dedicava. Aceitou a mão que lhe convidava, carinhosa, para se aproximar e tomar o que lhe pertencia há muito tempo.
Deitou-se sobre ela, apreciando o contato da pele sedosa. Beijou-lhe suave, cuidadosa. O coração acelerado de emoção.
— Sonho estar em seus braços de novo, há dois anos. Agora que estou entre eles, ainda me parece um sonho.
Tamar deslizou a mão por sua face, buscando os lábios macios. Beijou-os e mordiscou, deixando escapar um gemido prazeroso.
— Então, vamos torná-lo realidade.

** **

— Como é possível?
Maxine sorriu de lado, interrompendo a caminhada pelos jardins em baixo de uma árvore. Sentou a mão no tronco, enquanto a Grã-mestra admirava, ainda incrédula, os traços suaves e gentis que, vez ou outra, moldavam-se em um sorriso malandro ou sagaz.
Sonhou com aquele rosto por muitos anos e, algumas vezes, surpreendia-se ao ver Andrus, o falecido esposo, a tocar no nome dela, sonorizando a mesma pergunta que lhe passava pela mente: “O que terá acontecido com ela?”.
— Como é possível que esteja aqui? — Insistiu. — Virnan disse que você morreu há doze anos. Entendo que há muitos espíritos aqui, mas todos os que notei são floras.
A axeana recostou-se na árvore, prendendo uma mecha dos fios negros atrás da orelha. Demorou-se em uma contemplação silenciosa, causando ligeiro incômodo da líder ordenada.
Estou encantada por reencontrá-la, assim como fiquei quando me deparei com Andrus.
A menção ao marido tomou o fôlego de Melina por um instante e a velha amiga respondeu a pergunta que não chegou a proferir:
Sim, ele está aqui, mas sua alma mágica possui uma magia insuficiente para permitir que saia do Salão de Cazz.
Melina enxugou uma lágrima atrevida que lhe escapou, apesar dos esforços que fez para não chorar. A possibilidade de ver Andrus, outra vez, a preencheu de uma alegria que mal cabia em si. Suspirou, buscando a serenidade. Perguntaria a Virnan se esse encontro seria possível.
— Não entendo o que está acontecendo.
Aceitou a mão que o espírito lhe ofereceu, deixando que a conduzisse para um banco ali perto. Era surpreendentemente quente e macia. Colocou isso em palavras e arrancou um riso dela. Se permitiu admirá-lo embevecida, assim como fez centenas de vezes no passado. O sorriso de Maxine, por pouco que tenha sido o tempo que compartilharam juntas, a fazia sentir-se aquecida e percebeu que esse mesmo calor lhe tomou as bochechas.
Não conheci muitos espíritos em vida, portanto não posso lhe afirmar se ocorre o mesmo com todos.
Uma sombra se apossou do seu semblante quando explicou:
Nosso encontro só está sendo possível porque os Portões de Cazz estão fechados há três mil anos. Assim como milhares de outros espíritos, não posso fazer a passagem para as Terras Imortais. Sabia disso quando sacrifiquei minha vida para libertar a Senhora dos Ventos.
A ordenada se empertigou sobre o banco, recordando a conversa de Virnan com o Mago Anton. Ela afirmou que morrer tinha sido uma escolha de Maxine.
— Por que tudo isso? — Abriu os braços. — Por que me salvar? Por que salvar Virnan?
O riso dela apareceu de novo, branco, largo e carregado de intimidade. Ela escorregou um dedo por sua face, lhe causando um arrepio suave, então o enrolou em uma mecha dos fios prateados que tinha se desprendido do coque.
São muitas perguntas, minha querida princesa. Tem certeza de que deseja passar nosso curto tempo aqui, ouvindo as respostas? — Sorriu, divertida com o rubor que tomava a face idosa.
Aos seus olhos, Melina nunca esteve tão bela quanto naquele momento, pois considerava envelhecer uma adorável dádiva que Ilan lhe roubou ao se deixar tentar pelo Cavaleiro e aliar-se a ele. Recolheu a mão e a deslizou pelos fios negros de sua própria cabeça, recebendo uma resposta positiva.
— Ah, a mesma curiosidade me trouxe aqui. Pelo menos, me instigou a dar os primeiros passos. O motivo de tudo isso faz parte de uma longa história da qual não tenho todos os detalhes e, sinceramente, não desejo ter. Já cumpri o meu papel, é o que me interessa.
Ergueu a face para o céu e cerrou os olhos.
Tudo que sei é que houve uma guerra muito antes de tudo isso aqui existir. Enaens, humanos e espíritos quase se destruíram completamente. Quando tudo acabou, os poucos sobreviventes fizeram um trato para que algo semelhante jamais voltasse a acontecer e usaram a magia de uma pedra sagrada, chamada Tucsia, para separar os três mundos erguendo um “véu” entre eles. Este véu tem uma forma física, que é chamada de Portão de Cazz.
Abriu os olhos, fazendo uma pausa longa para que ela pudesse absorver aquelas informações.
— De fato, é uma história fantástica. Mas diante de tudo que vivenciei nos últimos dias, me parece bastante plausível. Me fale sobre os Castir.
Maxine voltou a sorrir de lado, satisfeita com a serenidade dela. Uma reação bem diferente da sua própria quando Lyla lhe contou aquilo. Na ocasião, achou graça de tudo que ouviu, depois embebedou-se, torcendo para que a ressaca apagasse toda aquela loucura de sua mente, afinal tinha estado a conversar com um espírito.
Não faço ideia de como as coisas funcionavam antes dessa divisão, mas é fato que a magia permaneceu aqui, em Domodo. Aliás, é assim que este “pedaço” de mundo se chama. Os florinae assumiram a responsabilidade de manter os Portões erguidos como um dever sagrado. Os Castir transitavam entre os mundos, mantendo o equilíbrio entre eles. Não tenho ideia de como faziam isso.
Mirou o azul intenso dos olhos dela, enchendo-se de alegria. Estava realmente feliz por reencontrá-la.
Pelo o que entendi, não se escolhia ser um Castir. Mas para que um despertasse, era necessário que possuísse o sangue de uma linhagem Enaen e o sangue humano, como ocorre a todos os florinae. Por último, despertar a magia espiritual em uma quantidade suficiente para atrair um espírito e fazer um pacto com ele. E isso é tudo o que sei sobre eles, fora o que a Rainha me contou sobre Virnantya L’Castir. Em verdade, a maioria dos espíritos dos Castir aqui, tendem a me ignorar.
Observou o vento arrastar folhas e erguê-las do chão em uma dança suave.
A salvei porque Lyla me pediu. Depois, continuei ao seu lado pela necessidade. Estávamos feridas e sendo perseguidas. Mas, aos poucos, formamos um laço e se tornou difícil partir.
Melina lhe tomou a mão e beijou-lhe o dorso, afastando a curiosidade. Era muito para digerir e, certamente, Virnan e Lyla lhe dariam muito mais em que pensar em breve.
Era estranho estar em sua presença, ainda mais que mantivesse a mesma aparência de quase cinquenta anos antes.
— Nós esperamos uma semana por você. Os dias se arrastaram lentos, enquanto a preocupação crescia, trazendo a certeza de que tinha morrido. Você nos prometeu… — Deixou escapar um soluço. A morte que acreditava que ela teve, lhe foi um grande peso e dor por anos.
Os espírito se agitou, demonstrando uma ligeira tristeza, a qual afastou com um gesto displicente.
Eu fui. Cumpri minha promessa. Observei vocês por quase três dias antes de tomar uma decisão.
As mãos idosas apertaram a sua, trêmulas. Ela continuou, ainda arrastando os cantos da boca para o alto.
Sinto muito, mas agora que estamos aqui, vejo que fiz a escolha certa. Andrus me contou da vida que compartilharam e foi como se tivesse estado lá com vocês. Senti que tudo que fiz valeu à pena.
Riu, malandra, e confessou:
Ah, eu queria ir. Queria muito mesmo. Desejava estar ao seu lado um pouco mais. — Lhe fez um carinho no queixo. — Mas, se eu fosse com vocês, certamente iria me indispor com Andrus e a colocaria em uma situação delicada, pois não abriria mão de disputar seu amor. Além disso, tinha muito a fazer para que este momento chegasse e sou muito grata por ele, finalmente, ter chegado. Por poder me despedir de você, como não fiz no passado.
Melina se empertigou, corando. E achou engraçado sentir-se tão desconcertada naquela idade, mas Deinah, — não conseguia enxergá-la como Maxine Dastur — sempre lhe causou efeitos bobos e incômodos, como gostava de chamar.
— Andrus tinha ciúmes de você e com toda a razão. — Sorriu. — Concordo que teria sido uma situação bastante delicada, afinal eu amava os dois.
Apreciou a surpresa e a alegria que tomou a face dela. Naqueles dias, tudo era muito caótico, mas algumas certezas se assentaram em seu peito ao longo do caminho que a levou para a Ordem. Nem por isso, foi menos confuso perceber-se apaixonada pelas duas pessoas que salvaram sua vida.
— Ele era paz e certezas, enquanto você era um mar de possibilidades tempestuosas. E, agora, os dois estão mortos, mas continuam em mim.

** * **

O calor do sol em sua pele era uma adorável carícia. Havia uma estranha paz a tomar conta de si, apesar da tristeza, morte e destruição que marcaram seu caminho de volta para casa.
Pretende pular? — Lyla indagou às suas costas.
A guardiã não se moveu, continuou mirando o horizonte, enrolada no lençol que balançava ao vento, assim como seus cabelos longos. Estava de pé sobre a balaustrada da sacada, como se fosse um bela estátua. Ainda ouvia o lamento dos mortos, mas em uma escala menor.
Nesta altura, você já deve saber que, se morrer, não poderá atravessar para as Terras Imortais.
Virnan deu um passo à frente e, por um instante, o medo de que pudesse realmente morrer se apossou da rainha. Contudo, ela permanecia de pé à sua frente, suspensa no ar, como se estivesse sobre uma plataforma invisível.
Não sabia que podia voar. — Soprou o ar, aliviada. — Pelo visto, me escondeu os dons mais interessantes.
Ela retornou para a segurança da balaustrada, ainda sem fitá-la.
— Posso fazer muitas coisas com o ar, assim como você consegue manipular o tempo.
No passado, raramente usava seus dons mágicos na frente das pessoas; e quando estava em companhia dela, só lhe interessava aproveitar os momentos de carinho e calmaria. Não podia voar, como Lyla supôs, mas era capaz de controlar a resistência do ar que a circundava. E agora que os efeitos da morte de Tamar tinham passado e a magia fluía mais rapidamente por seu corpo, ficava cada vez mais fácil controlá-lo.
— E por falar em magia, — apontou para o medalhão sobre o peito, — de onde veio isto?
Fez uma careta quando ela sentou-se na balaustrada, cruzando as pernas com ar despreocupado. Por mais rústico que fosse o gesto, Lyla sempre o faria parecer gracioso.
Não podia imaginar que fosse tão sensível ao som, ainda mais que seria capaz de ouvi-los tão intensamente.
Bagunçou os cabelos em um gesto que lhe era natural e sentiu o desconforto de Virnan ao vê-lo. A imagem recordava à guardiã de incontáveis tardes preguiçosas nos jardins do Palácio do Sul, ouvindo-a falar sobre política, história e outra infinidade de assuntos que apreciava estudar. Isso a fascinava. Com sua mãe e o resto da família Dashtru, aprendeu a lutar e a pensar como uma estrategista, mas ao lado dela aprendeu muito mais.
Joran o trouxe, mais cedo. Bórian o fez com a ajuda de Voltruf. Não sabíamos se daria certo, mas já que seus ouvidos não estão sangrando e você não está rolando no chão de dor, nem insultando minha falecida mãe… — Abriu os braços. — Ele irá reprimir as vozes sem interferir na sua audição normal. Deve durar alguns dias, já que eles não são mais Castir e, portanto, possuem uma magia limitada agora.
Virnan sentou, também. Permaneceu com o olhar fixo na cidade, envolta em uma saudade, cuja dimensão não tinha alcançado até sair da floresta naquela manhã. Sorriu, balançando os ombros. Queria ficar irritada com ela, mas não tinha mais forças para levantar outra barreira de raiva dentro de si.
— Você uniu nossos caminhos. — Falava das amigas.
Lyla compreendeu e confirmou.
— Elas possuem traços de magia espiritual.
Novamente, Lyla confirmou com um inclinar de cabeça.
— Só consigo imaginar uma razão para isso. — Mordiscou o lábio. — Você me deu um círculo, não foi?
Espero que sim. O futuro muda a cada vez que olhamos para ele. — Imitou o gesto dela e também mordiscou o lábio inferior, mas o fez de uma forma quase infantil.
Os olhos verdes pousaram sobre si, carregados de uma estranha mistura de admiração, felicidade e reprovação. Virnan balançou a cabeça um par de vezes.
— Você previu isso?! — Fez um gesto que abrangia tudo à sua volta, sem conseguir esconder a descrença que a ideia lhe trazia. Até onde sabia, ela só podia ver até, no máximo, sete dias no futuro.
Lyla balançou as pernas, encolhendo-se levemente. O vento agitou seus cabelos, acentuando a beleza de que era dona.
Talvez.
Aguardou que fizesse outra pergunta, mas como isso não aconteceu, saltou para o interior da sacada, a convidando a entrar no quarto. Havia roupas limpas sobre a cama e a guardiã engoliu em seco ao reconhecer as vestes Castir. Por um instante, ela deixou os ombros arrearem, então inspirou fundo e endireitou-se.
— São vermelhas — observou.
As vestes tradicionais eram brancas e pretas, mas sempre gostou de contrariar as regras da ordem, usando cores diferentes, preferencialmente, o vermelho. Adorava ver o mal-estar que a cor causava nos companheiros, já que o apelido de Príncipe Vermelho a tinha acompanhado até o Templo de Cazz e, vez ou outra, eles o usavam de forma pejorativa.
Vermelho sempre lhe caiu muito bem. — Sorriu, traquina. Apontou para uma porta e informou: — Um banho foi preparado para você.
Virnan encarou a direção indicada por algum tempo, um banho seria muito bem-vindo e a ajudaria a relaxar e focar no passo seguinte, já que a noite se aproximava, trazendo a lua cheia.
— O que a faz pensar que conseguirei formar um Círculo de Cazz com elas? — Atirou o lençol sobre a cama, fitando o reflexo magro e abatido no espelhou do outro lado do cômodo.
Com um saltinho, Lyla se acomodou na cadeira ao lado da cama. Percorreu, com o olhar, cada linha que formava as tatuagens no corpo dela.
O fato de que você as ama. — Sorriu, cruzando as pernas. — O Círculo do Trovão nunca aceitou que uma auriva pudesse ter se tornado uma Castir, ainda mais uma poderosa o suficiente para fazer um pacto. Enquanto você, jamais admitiu ser desprezada por eles. Nunca houve uma conexão entre vocês. Jamais conseguiriam concluir o círculo assim. Mas elas, você mesma falou para Lorde Verne, elas são a parte que mais ama na Ordem e esse sentimento é recíproco.
Descansou o queixo na mão.
Sempre que está com elas, apesar dos problemas e perigos, sinto o carinho que lhes dedica e a paz e segurança que lhe inspiram.
Pensando desta forma, era mesmo possível que conseguissem completar um círculo de magia.
Para abrir os Portões, você precisará de ajuda. Como afirmou ao fazermos nosso pacto, ele não é tão forte quanto o que fez com Zarif. Minha magia é insuficiente para ajudá-la nessa tarefa.
Outra vez, Virnan concordava. Encarou-se no espelho por algum tempo, se perguntando se as companheiras permitiriam que as conduzisse em um ritual que exigia uma grande intimidade. Algo que ela jamais permitiu ao seu antigo círculo.
Lyla apontou para a porta, novamente.
Vá. Estarei aqui quando retornar e a ajudarei a se vestir.
Ela riu da proposta, dirigindo-se para o local indicado.
— Uma rainha ajudando uma reles protetora a se vestir! Este mundo deve estar mesmo prestes a se acabar.
Arrependeu-se do que disse um instante depois. Aquele era o tipo de frase que Lyla adorava retrucar com uma inconveniente verdade. Apressou-se a chegar à porta, mas a resposta a alcançou antes disso:
A morte me tirou a coroa. Portanto, não me considero mais uma rainha. Mas, se é que ainda posso me definir assim, quando sair do banho serei apenas uma mulher ajudando sua irmã mais velha a se vestir.
Virnan pousou a mão na madeira, sentindo todos os músculos enrijecerem. Inspirou fundo, mantendo o silêncio. Abriu a porta, enquanto ela se aproximava, devagar, e a abraçava por trás. O contato lhes trouxe uma estranha e intensa mistura de emoções. Por um momento, sentiram-se como uma só pessoa.
Lyla sussurrou em seu ouvido:
Apesar dos erros do nosso pai, nunca o amei tanto quanto no dia em que ele nos contou a verdade. — Pousou a mão sobre o coração dela. — Você pode não gostar de ter sangue Deminara correndo nas veias, mas eu amo isso, amo você. E, agora que estamos ligadas por esse pacto, sei que gosta de ouvir quando a chamo de irmã.
Beijou-lhe a bochecha, demoradamente. Então, a soltou e empurrou para o quarto de banho em meio a uma risada debochada.

 

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