*
O fim da tarde se aproximava quando saíram da floresta escura e fria. O pouco calor que o sol daquela hora lhes oferecia era um alento e sobraram suspiros prazerosos diante dele.
— Não mudou muito. — Lyla observou, deslizando a vista pelo vale abaixo até parar sobre as ruínas escuras de Flyn, que não passavam de um ponto negro. Mesmo assim, estava surpresa por conseguir ver tão longe e com tanta perfeição.
Claramente, aquela união também lhe permitia usar alguns dos dons de Virnan que, ao seu lado, inspirou fundo sem ocultar uma careta para a ironia na voz dela. Inicialmente, a deminara os seguia pelo ar, deixando que a visualizassem vez ou outra. Quando se cansou da forma animal, pousou na sela de um dos cavalos dos soldados falecidos e assumiu a forma humana, permanecendo assim desde então.
Atraía os olhares dos companheiros de viagem, que estranhavam sua presença e não sabiam como se portar. Entretanto, ela aparentava não se importar e cavalgava, silenciosa, ao lado de Marie. Por sua vez, a mestra ainda não sabia o que pensar sobre o espírito. A conversa e “caminhada” da noite anterior, lhe permitiu conhecê-la um pouco, mas como tinha percebido rapidamente, Lyla era muito parecida com Virnan e igualmente misteriosa.
Quanto mais tempo passava ao seu lado, mais dúvidas lhe assaltavam. Queria poder lhe perguntar, de novo, se era mesmo a responsável por ter cruzado os destinos de todas as ordenadas, mas não podia falar ao lado dos companheiros sem que houvessem consequências e o spectu não entendia seus sinais. Então, resignou-se a prestar atenção ao caminho que seguiam, deixando o cansaço lhe chegar a face em alguns momentos.
A Castir soltou o ar, implorando paciência às forças da natureza, ciente de que começava a perder o controle sobre suas emoções diante da proximidade de seu antigo lar. Fez um movimento discreto, incentivando a montaria a ir adiante. Os sussurros da cidade se tornaram ainda mais audíveis, causando incômodo aos seus ouvidos sensíveis. Eram como uma canção que se repetia sem parar.
Fenris agitou-se sobre a sela, despejando o conteúdo do estômago no chão. Ao seu lado, Lorde Verne aparentava estar febril e, Távio, tão mareado quanto o cavaleiro.
— Estão doentes? — Tamar indagou, preocupada. Havia algum tempo, tinha percebido o desgaste físico dos homens, mas como nada disseram, não teceu comentários.
Virnan se voltou para eles, analisando-os. E concluiu com um dar de ombros:
— Não. Há uma forte magia em volta da cidade. Ela tenta nos repelir desde que decidimos vir para cá. Mas nós — fez um gesto para indicar que falava somente das mulheres — não sentimos seus efeitos como eles. E agora que estamos deixando as terras do Reino do Sul e adentrando nos domínios de Flyn, essa força crescerá. Não sei se perceberam, mas quando saímos da floresta, cruzamos a barreira de um círculo de proteção.
Sim, elas tinham percebido uma estranha mudança no ar, mas interpretaram isso como alívio por saírem um pouco da escuridão da floresta.
— É provável que cruzemos outros círculos, mais adiante. Certamente, eles guardam efeitos mais devastadores do que um mal-estar repentino.
Abriu a mão, direcionando-a para os três homens. Sussurrou algo ininteligível e três círculos surgiram no ar. Marie reconheceu a conjuração como sendo a mesma que ela usou em si mesma, na noite anterior. Cada círculo envolveu um midiano até desaparecer e ressurgir brilhante no braço ou pescoço deles.
— Isso vai protegê-los pelo resto do caminho.
O badir passou os dedos sobre a marca no pescoço, sentindo um leve formigamento. O mal-estar tinha lhe abandonado de imediato e endireitou-se sobre a sela, satisfeito.
— Podia ter feito isso antes — queixou-se.
Ela sorriu, irônica.
— E vocês podiam ter dado o braço à torcer antes.
— Nós ainda não demos — recordou.
Um dar de ombros agitou os cabelos dela.
— De fato. Mas a partir daqui preciso que estejam no completo controle sobre seus corpos e mentes. Redobrem a atenção e mantenham as espadas ao alcance das mãos. Não estamos sozinhos neste lugar.
— Até agora, não vimos nenhum sinal de gente.
Ela arqueou um dos cantos da boca.
— Você não viu, Badir. E não me olhe como se o que digo tivesse a intenção de ofendê-lo. É um fato que o sangue de minha casta, me deu sentidos mais apurados. Vi alguns rastros, tão bem encobertos que poderiam passar despercebidos a qualquer um. Contudo, meu olfato jamais falha. — Deu um toquinho na ponta do nariz. — Sinto o cheiro deles. E é aí que ter uma magia relacionada ao ar me dá alguma vantagem.
Aprumou-se, pensativa, então sentenciou:
— Iremos encontrá-los em breve.
**
Anton caminhou pelas ruas escuras da parte menos nobre da cidade, lançando olhares desconfiados para qualquer um que cruzasse seu caminho. A capa longa e pesada ocultava a espada curta e o punhal na cintura ,enquanto o capuz se encarregava de esconder a face marcada por inúmeras cicatrizes. Ainda era cedo, mas em Axen, as pessoas se recolhiam assim que a noite chegava. Os poucos que permaneciam nas ruas estavam em busca de bebida barata e prostíbulos, ou com intenções de assaltar algum bêbado desavisado.
Entrou em um beco estreito e fétido, imerso nas dúvidas que lhe assaltavam. Estacou diante de uma porta caindo aos pedaços de tão podre. Deu três batidas suaves e aguardou que a abrissem enquanto imaginava se sairia daquele lugar vivo. Cerrou os olhos por um instante e a imagem da guardiã auriva, que conheceu dias antes, se formou na mente. Era tão clara, que até podia sentir o cheiro do sangue sobre o corpo dela quando se aproximou e mostrou a tatuagem na testa.
Por um momento, Anton não teve palavras para aquela imagem. Mas a tatuagem falava por si só. Endireitou-se, recuperando o fôlego que prendeu, ao mesmo tempo em que juntava os dedos indicador e médio sobre a testa, reparando na surpresa que tomou os olhos dela um pouco antes de um novo sorriso visitar os lábios. Por sua vez, este não era maldoso como o anterior.
Ela imitou seu gesto e chegou mais perto, sussurrando:
— Você é um Manir, mas onde está sua tatuagem?
Anton apressou-se a erguer a ponta do bracelete de couro do braço direito e deixou que ela mirasse uma tatuagem semelhante a sua. Os olhos da guardiã se apertaram quando ela sorriu mais largo, dizendo:
— Chegue mais perto, Anton. Tenho um recado para os nossos irmãos.
A porta rangeu ao ser aberta. Um homem de aspecto doentio enfiou a cabeça no beco, mirando as sombras que o tomavam. Satisfeito com a análise, deu um passo atrás e lhe permitiu a entrada. Minutos depois, Anton foi introduzido em uma sala pequena e sufocante, grande o suficiente para abrigar uma mesa com oito lugares, dos quais sete já estavam ocupados.
Ele não sentou. Cruzou os braços nas costas e fitou cada um dos rostos curiosos dos homens à mesa. Um bom tempo havia se passado desde que se reuniram no mesmo lugar.
— Você se esforçou para nos trazer aqui, Anton. — Disse aquele que sentava à cabeceira da mesa. Seu nome era Miqueias. — Esperamos que tenha um bom motivo.
Anton inspirou fundo.
— Agradeço por terem aceitado meu convite. — Inclinou-se, oferecendo uma reverência respeitosa. — À partir deste momento, ponho minha vida e a de nosso reino em suas mãos.
Endireitou-se, aceitando o convite para que sentasse. A cadeira rangeu sob seu peso, aumentando a tensão que o tomava.
— Creio que deve ter chegado ao seu conhecimento o incidente, próximo à fronteira de Bévis, que culminou na morte do Comandante Loyer. — Limpou a garganta, assistindo os vários inclinares de cabeça.
— Dizem que Lorde Verne e a escolta da eleita de Midiane foram os responsáveis. — Outro homem elevou a voz.
O mago entrelaçou as mãos sobre o tampo da mesa.
— De fato, Lorde Verne e seu grupo nos atacou a fim de resgatar a prisioneira ordenada que transportávamos.
Escolhendo as palavras com cuidado, ele narrou a investida contra seu grupo sem ocultar nenhum detalhe, ao contrário do que fez quando relatou o mesmo evento ao Lorde de Axen. Quando findou, o silêncio tomou conta da sala por algum tempo.
Miqueias se remexeu sobre o banco.
— Quer que acreditemos que Lorde Axen tem mentido por todos esses anos e que essa mulher… essa guardiã, é uma auriva pura?
Anton ergueu-se devagar.
— Não apenas isso. — Disse calmo, ainda que não se sentisse assim. — A mulher que encontrei possuía a marca da Irmandade Manir, mas ela tinha mais que isso. Seus olhos eram verdes e usava uma adaga com uma tucsiana no cabo.
— Fala de Domna Maxine?
Anton sorriu de lado.
— Não. Falo da própria Virnantya Dashtru.
— Impossível! — Miqueias se pôs de pé.
— Pensei o mesmo. Então, ela recitou o juramento Manir, o mesmo das escrituras, e me fez isso usando o manibut.
Ergueu a camisa. Hematomas enegrecidos cobriam o peito largo e cheio de cicatrizes, formando uma marca ligeiramente diferente da tatuagem que todos tinham. Iberion estalou os lábios quando abandonou a cadeira ao lado de Mequias e se aproximou de Anton. Deslizou a mão sobre as marcas, fazendo uma pergunta muda.
— A tenho há quatro dias — o mago respondeu.
Iberion inclinou a cabeça algumas vezes, voltando-se para a mesa.
— Sabem o que isso significa, não é?
— Sim — Belard murmurou, afundando em sua cadeira. — Se ela é mesmo quem diz ser, isso é uma convocação para a guerra.
***
Avançavam devagar, pois aquela parte da floresta era ainda mais densa. O silêncio também estava muito mais presente, sendo interrompido apenas pelo som dos cascos dos cavalos e das espadas a cortar galhos, arbustos cipós.
A emoção de retornar àquele lugar percorria as veias de Virnan, trazendo lembranças do passado. Algumas boas, outras nem tanto e pegou-se relembrando a última vez em que esteve ali como uma mulher livre.
— Você nunca me contou o que pediu ao Demir, após ganhar aquele torneio. — Lyla sussurrou na mente dela. — Tinha me dito que pediria uma cadeira no concelho ancião para o líder da sua casta…
Fez o cavalo emparelhar com o dela, notando o semblante triste que dominava o rosto moreno. A protetora tinha dito várias vezes que faria isso, como se a ideia de brincar com a política e poder do Demir a divertisse. Mas era fato que, muitas vezes, o que dizia à respeito do modo como tratavam sua casta era carregado de seriedade e um desejo gritante de mudar as coisas.
Virnan lhe respondeu da mesma forma:
— Pedi você em casamento.
Era uma resposta atrevida e, com certeza, uma brincadeira. Mas ela sentiu o leve descompasso que misturou as emoções de Lyla por um breve instante. Foi rápido demais, mas a impressão se fixou e isso a fez elevar as sobrancelhas, imaginando se tinha interpretado aquele momento direito. Resolveu se render à curiosidade e indagou:
— Se ele tivesse dito “sim”, você teria me aceitado?
A deminara fez um gesto nervoso, reforçando as impressões dela que, por sua vez, apertou as rédeas até a cor fugir de seus dedos. Lyla se demorou a fitá-la, ponderando se deveria responder. Acabou optando pela verdade.
— É uma brincadeira. Eu sei. Estou surpresa por tê-la feito, diante da forma que tem me tratado desde que nos unimos. Contudo, percebo que a disse apenas porque minha presença a incomoda. Mas supondo que isso tivesse mesmo acontecido e meu pai estivesse louco ao ponto de aceitar tal desatino e ido contra as leis do reino que proibiam a união de membros de castas diferentes; naquela altura de nossas vidas, quando ainda éramos inocentes para muitas coisas à cerca delas, eu teria lhe dito “sim”. Pois, não imaginava encontrar outra pessoa capaz de me conhecer e fazer sentir tão bem quanto você. Aliás, jamais encontrei. Felizmente, a paixão nunca nos tocou e o carinho que compartilhamos sempre foi fraterno.
Virnan concordou com um inclinar de cabeça, lançando um olhar para a copa escura das árvores. Suspirou, atenta ao trotar dos cavalos dos amigos, que seguiam vários metros atrás. Resolveu responder a pergunta com sinceridade.
— Pedi que me fizesse duas promessas. Um das quais envolvia você. O fiz jurar que jamais a obrigaria a se casar com alguém que não fosse do seu gosto.
O spectu não conseguiu esconder a surpresa, e a emoção que a tomou reverberou em Virnan. A ex-amiga sempre deixou claro que abominava a ideia de que o pai pudesse lhe arranjar um casamento. Sendo uma auriva, cuja casta apreciava a liberdade de sentimentos e escolhas, tal destino lhe insultava, ainda mais por ser sua amiga e protetora.
— Lhe sou grata por isso. Desde aquele torneio, meu pai não voltou a falar em escolher um consorte para mim. E a outra?
Virnan se empertigou.
— Você e Érion estavam presentes quando ele a cumpriu, muitos anos depois.
O espírito cerrou os olhos, deslizando as pontas dos dedos sobre eles. Jamais esqueceria o dia em questão. Inclinou a cabeça algumas vezes e voltou a olhá-la.
— Você me odeia?
Fez o cavalo parar. O resto do grupo se aproximava devagar, encarando-as com curiosidade. Virnan optou por dar um som à sua resposta, abandonando de vez a discussão mental.
— Odeio Érion, as coisas que fiz, a vida que escolhi e a que eu não escolhi. Ódio é um sentimento forte demais. Já tenho muito o que odiar para me obrigar a sentir isso por você. O que eu sinto é raiva, muita raiva. E ela me cega quando você está por perto, porque como acabou de me dizer, sempre tivemos uma ligação muito forte. Eu reconheço meus crimes e entendo a punição que me deu. Você não fez nada mais que a sua obrigação.
Os cavalos foram parando próximos à elas, mas longe o suficiente para lhes permitir uma conversa reservada.
— Mas não posso evitar de me sentir traída, porque você não quis acreditar em mim quando lhe disse que Érion estava por trás daquela tragédia ou porque você não ousou levantar a voz para me defender, nem mesmo um pouquinho, diante do concelho ancião e da Ordem Castir. Não! Eu não te odeio, Lyla. Só não consigo esquecer que você ficou calada quando precisei ouvir sua voz. Não queria que me livrasse daquela encrenca, apenas que expressasse o seu apoio, ainda que falsamente, antes de tirar Zarif de mim e me deixar trancada naquela câmara imersa na loucura que a quebra do nosso pacto trouxe!
Trincou os dentes, reparando que já não falava baixo e tranquilamente. Na verdade, estava gritando. Encontrou o olhar preocupado de Marie, inspirou fundo e abanou a mão, respondendo a pergunta silenciosa dela. Estava bem, era o que dizia. Então, aprumou-se e retornou ao caminho, fingindo que a tristeza que tomou o Spectu, não se misturava à sua e lhe feria na mesma medida.
Marie apressou-se a emparelhar o cavalo com o dela, passando por uma Lyla de semblante fechado e olhos baixos. Cavalgou ao seu lado por um longo tempo, deixando que soubesse que poderia lhe falar e derramar as dores sobre seus ombros também, caso desejasse. Afinal, na noite anterior tinham se “prometido”.
Ela lhe sorriu. E não foi um sorriso forçado e, sim, amoroso. Lhe confidenciou:
— Eu enlouqueci, Marie.
A mestra franziu o cenho, perguntando o significado daquilo. Virnan balançou os ombros, como se isso nada significasse, mas pelo modo como gritou com Lyla, ainda estava ferida.
— Quando um Pacto Castir é feito, é como se duas pessoas ocupassem o mesmo corpo. Nos protegemos mutuamente. Esse laço, em teoria, é eterno. Mas, como já sabe, meu pacto com Zarif foi desfeito.
Baixou a vista, fitando as mãos por um longo momento.
— Ainda não perguntei a ela como sobrevivi tanto tempo, porque eu deveria ter sido executada.
Marie se encolheu, claramente revoltada.
— Mas antes disso, minha punição seria a loucura. Eu revivi o meu crime todos os dias sem parar. Minha alma se despedaçou, assim como a minha mente. Deveria estar assim ainda, mas quando Maxine me devolveu a tucsiana, as coisas mudaram. Aos poucos voltei a ser eu mesma. — Jogou um gesto no vazio, refletindo sobre o passado. — Essa é uma das funções da adaga, manter a magia do Castir em equilíbrio com seu corpo e mente. Ainda assim, não teria ficado completamente sã.
Então?
— Acredito que quando a adaga voltou para minhas mãos, ela usou sua aura mágica para se ligar a mim, mesmo sem termos feito um pacto. Novamente, isso só me deixa dúvidas e muita revolta. — Sorriu largo.
Por que não pergunta de uma vez?
Encolheu os ombros, pensativa.
— Ela nos quer em Flyn. Isso significa que todas as respostas estão lá. E como a conheço tão bem como a mim mesma, sei que não conseguirei lhe arrancar nenhuma verdade antes disso, mesmo podendo forçá-la através do nosso pacto.
Sentiu uma suave pressão no corpo, tinham acabado de cruzar a barreira de outro círculo. Imediatamente, escorregou a mão para a adaga, pressentindo o perigo. No entanto, nada ocorreu e Lyla voltou a emparelhar o cavalo com o seu, forçando uma expressão jovial, mesmo ainda estando abalada pela conversa recente. Naquele momento, detestava o pacto que permitia Virnan conhecer seus reais sentimentos.
Fez um carinho no cavalo, dizendo:
— Não precisa temer os círculos. A cidade aguarda você há milênios e não irá impedi-la de chegar até ela. Essas proteções não são para você, são para Érion.
** **
Emya fitava o horizonte, recostada a uma das janelas dos aposentos de seu pai.
— Perder-se na contemplação da paisagem não o trará mais rápido para casa.
Ela voltou-se para o rei, que estava sentado na cama, recostado à travesseiros.
— De fato, meu pai. Mas as belezas de nosso reino ajudam a tornar a saudade menos dolorosa.
Laurentio sorriu, deformando o rosto enrugado e abatido. A idade tornou-se mais presente em suas feições, desde que Verne partiu para a Ilha Vitta.
— Mas não é isso que me preocupa. — Ela continuou. — Todos os dias nos chegam notícias das movimentações do exército de Axen e da revolta que toma os outros reinos por acreditarem que estamos tentando evitar o sacrifício novamente.
O regente enrijeceu as feições, assim como fazia diante dos ministros.
— Você não deveria se preocupar com isso.
— E com o que deveria me preocupar? É o futuro do nosso reino que está em jogo. Bévis e Primian também estão movimentando seus exércitos; se o sacrifício não ocorrer no dia marcado, estaremos em meio a outra guerra e, desta vez, acredito que seremos destruídos. — Suspirou, com ar derrotado. — E o pior de tudo, é que me pego torcendo para que minha irmã consiga chegar a Cidade dos Eleitos e morra nas mãos do Cavaleiro.
Pela primeira vez em sua vida, Emya encontrou lágrimas nos olhos do pai. Afinal, ele não era tão insensível quanto gostava de se mostrar. Tomou-lhe uma das mãos, deixando que este gesto revelasse que também compartilhava sua dor.
O vento soprou forte pela janela aberta e apesar de estarem em um dos aposentos mais altos do castelo, folhas invadiram o local. Emya apressou-se a fechar a janela, mas a força do vento a impediu, fazendo com que caísse no chão. Um pequeno redemoinho se formou no meio do quarto, erguendo as folhas. A partir delas, uma figura tomou forma diante de seus olhos.
A princesa reprimiu um grito ao perceber que se parecia com Verne. O homem folha lhe ofereceu uma reverência curta e aproximou-se devagar. Ainda no chão, Emya afastou-se dele, enquanto o pai se esforçava para ficar de pé a fim de protegê-la. O visitante fez um gesto breve, demonstrando que era inofensivo, então esticou o braço e abriu a mão, permitindo que visualizassem o que trazia.
Como nenhum dos dois ousou se mexer, o espírito do ar depositou o pergaminho no chão e afastou-se. Fez uma nova reverência e desmanchou a forma humana, tornando-se um redemoinho de vento que usou a mesma janela, pela qual entrou, para sair.
Ainda assustada, Emya pegou o pergaminho e o desenrolou, apressada.
— O que é isso? — Perguntou o pai.
Ela sorriu, lendo as primeiras linhas.
— Uma mensagem de Verne.
** * **
Verne passava a mão no queixo, imaginando se a mensagem que Virnan lhe fez escrever para Emya tinha alcançado seu destino. A guardiã garantiu que o espírito que convocou, podia viajar rapidamente usando as correntes mágicas. Ainda se encontrava surpreso com a visão de inúmeras folhas tomando sua aparência.
Lançou um olhar para Marie, deixando um suspiro escapar ao recordar o olhar carinhoso da esposa. Estava com saudades de casa, dela e dos filhos. Tinha saudades até das longas e desgastantes reuniões do concelho, que o sogro o obrigava a assistir. Tudo o que desejava naquele momento, era poder tomar um cálice de vinho, ouvindo Emya cantarolar junto a janela de seus aposentos, enquanto as estrelas.
Afastou tais sentimentos, concentrando a atenção no caminho. Tinham optado por não pernoitar na floresta. Então prosseguiam fazendo parada rápidas para descansar os animais e esticarem as pernas. Ninguém fez questão de ir contra a decisão, já que a escuridão e silêncio do lugar lhes trazia maus presságios.
Ele espreguiçou-se, desajeitado, sobre a sela e deixou-se arrastar para as dúvidas sobre algo que a guardiã tinha dito. E, cansado de querer entender e irritado com a ausência de outros sons, resolveu falar:
— Estou curioso. Você disse que estávamos saindo do Reino do Sul para entrar nos domínios de Flyn. Pensei que Caeles, Flyn ou seja lá como este lugar se chame, fosse “o” reino.
Esperou a resposta dela, que manteve a concentração no caminho. Então, restou ao spectu, esclarecer. Lyla escorregou a mão pelos cabelos negros como a noite que os cercava e Fenris se endireitou na sela, contendo um suspiro. Virnan era uma mulher linda e não foi difícil se encantar com a beleza dela, mas aquele espírito ou fantasma, — não tinha entendido bem essa história — era tão bela que chegava a assustá-lo.
— O Reino Florinae era composto por quatro reinos, além das terras onde se localizava o Templo de Cazz, que era a moradia oficial dos Castir. Sulitar, o Reino do Sul; Norobor, o Reino do Norte; Delias, o Reino do Leste e Miator, o Reino do Oeste. No centro deles, estava Flyn, capital com o mesmo nome do reino que eles compunham. Os regentes desses reinos eram conhecidos como Demir.
Verne brincou com a ponta da barba por algum tempo, imaginando como algo assim podia funcionar.
— Reis se submetendo às vontades de outro rei, imagino que a discórdia estava sempre presente. — Expôs os pensamentos.
Desta vez, foi Virnan a responder:
— Pelo contrário, Badir. Quando todos estavam em seus devidos lugares, assumindo suas devidas funções, a paz e a harmonia imperava entre eles.
— Ainda assim, custo a acreditar que um reino pudesse existir dessa forma. — Insistiu.
— Diga-me, Badir. Você sabe porquê o símbolo da Ordem é um conjunto de círculos?
Ela o mirou sobre o ombro, aguardando o que, sabia, seria uma resposta negativa. Então, pediu a Melina a gentileza de explicar. A grã-mestra limpou a garganta, curiosa com a finalidade daquela conversa.
— O círculo simboliza igualdade, equilíbrio, fluidez. Ele não tem um lado que possa pesar mais que o outro.
O badir ponderou a respeito, mas não entendeu o que aquilo significava diante da pergunta que tinha lhe feito e externou isso. Virnan voltou a mirá-lo sobre o ombro.
— É a resposta para a sua dúvida. Este reino era um imenso círculo, composto por quatro reinos que simbolizavam os quatro elementos da natureza em total equilíbrio com o espírito dela que, no caso, era representado pela capital.
A ideia lhe pareceu confusa, embora simples.
— Mas se havia equilíbrio, também deveria existir paz. E diante das coisas que você já nos revelou, houve guerra aqui. — Ele retrucou.
Ela fez um gesto, displicente.
— Nem tudo é perfeito, Badir. Você bem sabe que as pessoas podem ser corrompidas pela ganância.
Lyla tornou a chamar a atenção para si.
— O último rei de Flyn não tinha herdeiros, então quando ele morreu todas as famílias deminaras no comando dos outros reinos almejaram o trono principal.
A Castir soprou o ar, desviando de um cipó.
— Houve guerra, Badir. Uma disputa longa e desgastante que perdurou por quase trinta anos e quase destruiu o reino inteiro.
O vento soprou forte, oferecendo o suave som do farfalhar das folhas. Verne voltou a brincar com a ponta da barba, incomodado com a atmosfera do lugar. Toda aquela escuridão plantava dúvidas e medos em sua mente.
— E qual reino ganhou? — Quis saber Fenris.
— O Sul. — Lyla respondeu.
Marie encarou o spectu por algum tempo. A pele pálida ganhou um aspecto amarelado, graças a chama da tocha que segurava. Seu olhar cruzou com o de Fantin, estampava a mesma curiosidade e a mestra loira não se privou de tentar satisfazê-la.
— Aquele monstro — reparou na forma como a guardiã se colocou mais ereta sobre a sela, no entanto, falava com Lyla — a chamou de “Senhora das Terras do Sul”. E, em outra conversa, Virnan nos disse que você era uma princesa neste reino. É justo entender que você foi a Rainha do Sul?
O spectu lhe sorriu, analisando-a com cuidado. Quando a viu pela primeira vez, ela era uma jovem mulher saindo da adolescência. Seus olhos não tinham alegria. Era justo, já que havia sido usada e abusada inúmeras vezes ao longo de uma guerra que não era sua. A Fantin daquela época não tinha perspectiva, nem sonhos, mas começava a despertar uma magia que a atraiu. Então, junto com Maxine, influenciou seu caminho.
— Há algo em você, Mestra, que recorda a minha antiga protetora. — Fitou Virnan e perguntou a esta: — Posso?
A guardiã deu de ombros, respondendo:
— Faça o que quiser.
Seus olhos se apertaram um pouco quando ela completou:
— O passado é imutável, até mesmo para você, Deminara. Conte a eles o que quiser.
Lyla coçou a bochecha, distraída. Enquanto esteve presa à tucsia da adaga, acompanhou os passos dela totalmente invisível aos seus olhos. Ao longo dos doze anos que passou na Ilha Vitta, notou as mudanças em sua atitude, mas sempre lhe pareceu que o fazia calculadamente. Agora que percebia seus sentimentos, compreendia que Virnan viveu sem amarras. Apesar de seus tormentos, encontrou na Ordem um lugar para ser ela mesma e despir-se da mulher de semblante carregado, hora feroz, hora triste, cujo olhar tinha perdido o brilho para os seus arrependimentos e para a guerra.
Um sorriso largo lhe chegou aos lábios, causando estranheza em Virnan que, apesar de não vê-lo, sentia a satisfação que lhe tomava. Afinal, apesar dos erros cometidos e do mal que lhe fez, ela se reconstruiu mais forte e ainda mais bela. A ex-amiga tinha reencontrado sua alegria naquelas pessoas e, por isso, a deminara amou cada uma delas, assim como amava Virnan, mesmo que ela jamais voltasse a lhe dedicar o afeto que as uniu no passado.
A guardiã voltou-se para fitá-la e por um estranho e longo momento, a viu como a jovem nobre que conquistou sua amizade e respeito. E isso lhe doeu muito mais do que poderia admitir para si mesma. Essa dor retornou para Lyla, apagando a brancura e beleza do seu riso.
A deminara inspirou fundo, forçando os ombros a manterem-se erguidos. Estar morta começava a lhe parecer tão desgastante quanto estar viva.
— É justo entender, Mestra Fantin, que por algum tempo eu fui a Demira do Sul. E, em meus últimos anos de vida, fui a Rainha de Flyn.
O silêncio havia alcançado o grupo novamente, trazendo outra dezena de indagações. Melina saiu dele primeiro.
— Estar ao seu lado, Virnan, exige muita paciência e uma mente aberta para encarar as surpresas que nos traz à todo instante. O que virá a seguir? Quanto ainda resta para saber?
A guardiã fez o cavalo parar, analisando os aromas que o vento trazia. Olhou para a Grã-mestra.
— Gostaria de poder dizer que resta pouco, mas caminhei quase cem anos sobre esta terra antes de ser aprisionada pela Demira do Sul, a quem servi como protetora por vinte anos. — Mirou Lyla por um instante e retornou o olhar para a idosa. — Passei mais trinta como membro dos exércitos de seu pai. Eu vi e fiz guerra antes de me tornar uma Castir. E quando isso aconteceu, vi e fiz guerra de novo. De um jeito diferente, mas não deixava de ser guerra. Tenho muito sangue em minhas mãos, Grã-mestra. Fiz e vi coisas além da sua imaginação. Deixei marcas profundas neste mundo e, ao que parece, elas vão aumentar.
Fungou algumas vezes, resvalando o olhar com o de Verne, que mesmo não tendo seus dons, sentia a aproximação do perigo.
— Qual foi o seu crime? — Tamar perguntou.
Ela mostrou os dentes.
— Amar demais o meu povo para permitir que Érion o matasse. — Respondeu, assistindo o arquear de várias sobrancelhas. — Então, eu mesma fiz isso. Matei uma cidade inteira.
Não esperou para ver a reação deles e atravessou um conjunto de galhos baixos, que formavam uma parede de folhas. Marie sentiu um aperto tomar conta do peito ao ponto de fazer o ar sumir de seus pulmões por um instante. Fantin estalou os lábios, soltando:
— Inferno! Ela não se cansa de tentar nos fazer odiá-la?!
Cruzaram a folhagem, também. Assim como ocorreu por todo o caminho, uma suave pressão os envolveu, informando que passavam por uma barreira mágica. Depararam-se com um campo verde e florido que era tocado pelos primeiros raios de sol. Ao longe, a cidade de Flyn, erguia-se bela e imponente. Homens percorriam as muralhas que a protegiam, apontando para o local onde estavam. Os portões se abriram e um grupo de soldados passou por eles, cavalgando apressado em sua direção.
— Não são ruínas… — Tamar deixou escapar completamente surpresa, assim como os demais.
Uma risada começou a se espalhar pelo ar. Os ombros de Virnan tremiam à medida que a risada aumentava. Mas a voz elevou-se embargada e os olhos vertiam lágrimas quando ela se voltou para encarar Lyla, que arqueou um dos lábios, brejeira.
— Maldita! Você fez isso! — Balançou a cabeça, enxugando uma lágrima. — Não estamos mais em Caeles. Aqui é a Flyn dos nossos dias de juventude!
Uma surpresa a traz da outra..
Virgem santa! Quanta coisa nova se amarrando!
Olha a magia temporal da Lyla aparecendo aí!
Tattahzinha, acabando com nossa vida de curiosidade…
Curtindo muito!
Valeu.
Kkkkk…
Acabando nada! Tô é aumentando a emoção! Haha!
Beijos!
Tattah,
Sensacional…
Nada me resta pensar q a cada circulo q passavam eram eras q voltavam. Amando cada dia mais. Tá simplesmente espetacular.
Parabéns…
Obrigada, Lindona!
😉