A Ordem: O círculo das armas

18. Azul como o mar

Virnan fez o cavalo parar por alguns instantes. Moveu-se sobre a sela, erguendo o olhar para as árvores. Tudo estava diferente da época em que percorreu aquelas florestas livremente e as conhecia como as palmas das suas mãos; mesmo assim, situar-se não era difícil, já que os sussurros da cidade de seus ancestrais ficavam cada vez mais audíveis à medida que se aproximavam dela.

Baixou o olhar para a trilha, quase invisível, em meio a vegetação. Os sinais eram mínimos, mas claros aos seus olhos treinados. Apesar do aparente abandono, alguém se deslocava por ali com frequência e não lhe escapou que a cada metro percorrido em direção à Flyn, uma força invisível os repelia, plantando dúvidas e medos em suas mentes. Prova disso, era a perturbação dos cavalos e os semblantes graves dos midianos. Em contrapartida, as ordenadas aparentavam tranquilidade, ainda que a curiosidade estivesse presente em seus rostos, o que aumentava o peso das suas certezas.

Fitou a copa das árvores, novamente. Aguçou a audição, mas nada captou além do som de abelhas e alguns pássaros pequenos. Lyla não estava à vista, mas o laço que as unia tornava impossível se desvencilhar completamente de sua presença. Sentia a agitação que a tomava, misturada a uma estranha melancolia. Sentimentos muito parecidos com os seus próprios.

Estavam distantes demais para que pudessem conversar diretamente e, mesmo que estivessem próximas, não havia nada que quisesse lhe dizer naquele momento. Não pela raiva que ainda estava latente, mas porque não saberia como se expressar e Lyla sempre conseguiu lhe decifrar os pensamentos. Agora que estavam unidas por aquele pacto, seria muito mais fácil para ela e não estava preparada, naquele momento, para lidar com sua sagacidade e palavras certeiras e cortantes. Em verdade, a ideia lhe desagradava porque sempre foram muito parecidas.

Passou a mão na testa, suspirando. Ainda estava abalada por seu encontro com Zarif e a forma como explodiu com a ex-amiga diante dos companheiros. Mas era fato que estava reprimindo todas aquelas emoções negativas desde que ela apareceu naquela estrada, arrastando-a para lembranças dolorosas de um passado ainda mais penoso. Ter se obrigado a aceitá-la como seu espírito guardião, toda aquela magia percorrendo seu corpo após tantos séculos ausente, de forma ainda descontrolada, e o aparecimento de Zarif, contribuíram para aquele desabafo.

Apertou as rédeas até os nós dos dedos perderem a cor. Saber que caminhava para as ruínas do seu antigo lar não melhorava seu humor, mas acentuava algumas certezas. Ergueu o rosto para as árvores, novamente. Lamentava o passado e, ainda mais, o futuro.

Um pássaro pousou em um galho próximo, fazendo-a voltar a mente para Lyla de novo.

Após a promessa que fez em meio ao descontrole, as duas se encararam por um longo e tenso momento, até que a deminara fez uma reverência longa e disse:

— Se é a sua vontade, Castir, então volte para casa e seja a mulher que conheci e com a qual dividi…

Cada vez mais furiosa, Virnan aumentou sua aura mágica. Aquela força assombrosa cresceu entre elas, obrigando-a a tomar a forma animal e partir. Lyla ainda tentou resistir, mas agora era um Spectu e a vontade do Castir imperava.

— Um dia, eles terão de saber, Virnantya. — Sussurrou na mente dela, batendo as asas com força e tomando o rumo das ruínas da cidade de seus ancestrais, mas certa de que não iria tão longe porque não queria se afastar demais e deixá-la desprotegida, ainda que a magia a trouxesse para perto, caso precisasse.

O cavalo relinchou, atraindo sua atenção para o caminho e o fez continuar a marcha. A mata à frente era muito fechada e retirou a espada, que estava atrelada a sela, para decepar os galhos e cipós que despencavam deles.

As palavras de Lyla ressoavam em sua mente, como se fossem uma maldição. Sim, um dia eles teriam de saber toda a verdade, mas ao contrário do que o spectu imaginava, não se preocupava com isso, pois a mulher que um dia foi, já não existia. Sim, retornava para seu antigo lar a fim de vestir a pele dela novamente, falaria e agiria como ela, contudo não se sentia mais daquela forma e jamais voltaria a sentir.

Alguns metros atrás, Fantin a fitava, pensativa.

Foi no mínimo assustador estar diante do “famoso” dragão que era o companheiro fiel do Cavaleiro Vermelho. Certamente, poderia descrever o sentimento de todos os presentes no lago como puro terror, excetuando Virnan. Quando a possibilidade de uma morte em chamas lhe passou pela mente e buscou estar ao lado de Alina para lhe proteger, caso possível e necessário, a guardiã caminhou em direção àquele monstro, o tocou e chamou de “velho amigo”, confirmando as suspeitas da grã-mestra de que ela era contemporânea ao Cavaleiro e plantando uma dúvida gigante em suas cabeças.

Afinal, qual era sua relação com ele e por que aquele monstro tinha ido salvá-la e ainda lhe avisar sobre as intenções de seu mestre? A resposta chegou pouco tempo depois e ainda não tinha conseguido digeri-la completamente.

Virnan encarou o céu por um longo tempo, se certificando de que Lyla estava mesmo se afastando. O susto do que tinha acabado de ocorrer ainda estava presente em todos e, portanto, ninguém ousava se mexer ou falar.

Por fim, ela deixou-se cair de joelhos, outra vez. Pousou a mão sobre o peito com uma careta que se desfez assim que percebeu a preocupação de Marie, então se pôs de pé, rapidamente.

— Estou bem. — Afirmou. — Só preciso de um pouco de descanso e um tempo com os meus pensamentos. Desculpe.

Marie começou a gesticular algo, mas acabou desistindo. Inclinou a cabeça e lhe deu passagem, deixando claro que o fez à contragosto. A mestra pensava, acertadamente, que se ela não queria que soubesse o que se passava, obviamente não valia a pena insistir.

Era mais que perceptível que os últimos acontecimentos, especificamente o que acabara de suceder, a tinham abalado. E a conhecia o suficiente para saber que, se insistisse, a faria se fechar como uma concha. Resolveu, então, lhe dar o tempo que pediu, embora sentisse a necessidade de tocá-la, cuidar e proteger. Lhe atormentava a ideia de que, em um futuro próximo, não poderia mais fazê-lo.

— Obrigada. — Virnan endireitou-se, tomando um alento.

Antes de continuar seu caminho, disse:

— A lua cheia é daqui dois dias. Não tenho ideia de como Flyn está após milênios, mas precisamos chegar até lá antes disso. Por favor, estejam todos prontos quando eu voltar.

Lorde Verne deu um passo à frente e parou diante dela.

— Espere um pouco, Guardiã. O que foi que acabou de acontecer?

Ela inspirou fundo, buscando um pouco de calma.

— Sinceramente, Badir, gostaria de não conversar sobre isso agora. Poderia me dar um tempo para organizar os pensamentos?

Fez menção de continuar o caminho, mas ele não se mexeu.

— Não! Eu quero entender! Quanto mais tempo passo ao seu lado, menos gosto das coisas que nos revela. Você é um poço de mentiras e…

Ela inflamou-se de novo.

— Nunca menti para vocês!

— Mas, também, nunca foi sincera! — Ele retrucou. — Você tocou aquele demônio e o acariciou. O chamou de “Velho Amigo”. Estou cansado de meias verdades! Fale de uma vez quem você é e qual sua ligação com aquele demônio alado e o Cavaleiro!

As mãos dela se fecharam.

— Existem coisas sobre a minha vida das quais não me orgulho, Lorde. Coisas que quero esquecer e que achei que nunca precisaria revelar, mas esta viagem está nos levando para as minhas origens e não posso mais fugir delas. Quer saber quem eu sou? — Arqueou um dos cantos da boca, maldosa.

Marie tentou se interpor entre eles, pedindo com gestos apressados que parasse, mas a moça não lhe deu atenção. A afastou para o lado e, finalmente, respondeu:

— Eu sou uma Castir. Eu sou a primeira Ordem. Eu sou o primeiro e único Cavaleiro Vermelho!

O príncipe deu um passo atrás, surpreso. Então, começou a rir.

— Não sei porquê ainda insisto! Você adora fazer piadas às minhas custas e só fala a verdade quando lhe é conveniente. Mas isso não a salvará de nos dar uma explicação sobre o que acaba de acontecer.

Alguns passos atrás, Fantin aumentou a pressão na mão de Alina que, por sua vez, tentou controlar a estranha sensação que crescia em seu íntimo. Curiosamente, aquela revelação não as surpreendia, nem mesmo causava medo.

— Não diga bobagens, filha! — Melina pediu, saindo do torpor ao qual o medo tinha lhe atirado. Estava ainda mais pálida do que no momento em que avistou o dragão Zarif. As mãos evidentemente trêmulas.

Virnan limitou-se a fazer um gesto displicente.

— Pergunte a Marie.

Os olhares se voltaram para a mestra, que encolheu-se ao seu lado e curvou os ombros, confirmando com um balançar de cabeça.

— Como é possível?! — Gaguejou a idosa.

— Eu lhes disse, tenho muitas histórias para contar. — Fez uma leve careta e encarou Verne, irônica. — Satisfeito, Lorde?

Era um absurdo, ele pensava. No entanto, a princesa tinha confirmado com uma seriedade angustiante. Pousou a mão no cabo da espada, que mal tinha acabado de guardar, e começou a retirá-la da bainha. Virnan agitou uma mão, presunçosa.

— Ora, não me insulte! Você estará a caminho das Terras Imortais antes de puxar essa espada completamente e nem precisarei tocá-lo para isso.

Ele se empertigou, interrompendo o gesto, quase espumando pela boca. Lhe revoltava saber que era verdade. Mesmo assim, retrucou:

— Se você é o maldito Cavaleiro, só tenho que arrancar sua cabeça e toda essa merda acabará!

Cansada de somente assistir, Marie se colocou entre os dois, assumindo uma postura ameaçadora e o fazendo recuar um passo. O desconcertava enxergar aquela resolução, que a transformava em uma estranha sempre que o assunto envolvia a guardiã. Nesses momentos, abandonava o aspecto de fragilidade e passividade que lhe pertenciam desde a infância.

Ela fez um gesto para a tia e, esta, mesmo exausta, forçou a expansão da aura mágica para lhe permitir a palavra. A sobrinha lhe agradeceu com um inclinar de cabeça e atacou:

— Não seja idiota! Ela disse que é o verdadeiro e não que é aquele que deseja a minha alma. E, por todos os círculos da Ordem, se ousar insinuar que irá machucá-la, de novo, não precisará se preocupar com o que ela pode lhe fazer, porque eu mesma me certificarei de retaliar sua ação!

Toda a determinação de Verne se esvaiu. Voltou a guardar a espada e deu um passo atrás, arriando os ombros com um nó a se formar na garganta.

— Me pergunto se um dia me quis ao ponto de desejar me defender dessa forma. — Ele deixou escapar, evidentemente perturbado.

Por um momento, a firmeza de Marie também se abalou. Contudo, ela inspirou fundo, afastando o transtorno que a frase lhe trouxe, e continuou:

— Nós já tivemos essa conversa e não irei retornar a ela, ainda mais neste momento. Sinceramente, estou farta desta discussão inútil! É o meu destino, é a minha vida! Se ela é necessária para salvar não apenas o nosso povo, mas…

— Já chega, Marie! — Virnan gritou, agastada. — Já disse que não irei permitir que isso aconteça!

A mestra se voltou para ela, a face vermelha pela agitação de sentimentos.

— Não é você quem decide isso — retrucou.

Cada vez mais irritada e a fim de se preservar e evitar uma nova explosão, desta vez com Marie, Virnan lançou um olhar para o lorde e encaminhou-se para a floresta, resmungando:

— Não estou com paciência para esta conversa agora. Coisas boas não virão dela, nem para mim, nem para você, Lorde! — Interrompeu os passos, sem voltar-se: — E quanto a você, Marie, se quiser subir naquele altar, é melhor estar preparada para enfiar uma espada no meu coração, porque somente morta irei permitir isso.

Um raio de sol atingiu a face de Fantin, atraindo seu olhar para Alina, que estava concentrada em sua figura.

— Parece preocupada — disse ela.

— Tudo me preocupa nesta missão e, assim como Lorde Verne, cada vez que algo nos é revelado, gosto dela menos ainda. Todavia, admito que tem alguns pontos positivos. — Sorriu significativamente, levando um ligeiro rubor à face da outra.

Um sentimento de gratidão cresceu em seu íntimo quando voltou a atenção para Virnan. Manteria a promessa que lhe fez e não revelaria o preço que teve de pagar para trazer Alina de volta.

Quando Virnan se afastou, Fantin acabou por segui-la, envolta no medo que ainda sentia e na curiosidade. Perdeu-se após poucos metros e demorou algum tempo para encontrá-la encolhida no chão, suando e gemendo.

— Você está bem? — Indagou, a ajudando a ficar de pé e a puxando para si. Notou que tremia descontroladamente e assim foi por algum tempo.

A guardiã estremeceu nos braços dela, afundando a face em seus cabelos e a mestra afastou-se um pouco, passou a mão na testa dela e lhe enxugou o suor. O ato despertou Virnan que, até aquele momento, aparentava estar ausente de si. Ela se desvencilhou dos seus braços e cambaleou para trás. Só então, a mestra pôde visualizar as marcas em sua pele, através da blusa entreaberta.

— O que é isso?

Ela apressou-se a fechar a blusa, mas Fantin a impediu, reconhecendo o padrão que as marcas formavam. Eram iguais as que ficaram no peito de Alina quando ela morreu.

— O que é isso?! — Insistiu, percebendo que as pernas dela fraquejavam e a amparou.

— Deuses! Você está fria como um cadáver! — A trouxe para si, novamente.

— Eu ficarei bem. — Gaguejou, tentando se afastar do seu abraço.

— Não me parece nada bem! — Queixou-se. — Você precisa de um novo círculo de cura, acho que aquela coisa tentou tirar sua alma assim como fizeram com Alina. Felizmente, não teve sucesso.

Começou a levá-la em direção ao acampamento.

— Espere! É sério, ficarei bem!

— A quem está tentando enganar?

— Só não quero que Mestra Alina se sinta culpada, nem que Marie se preocupe.

Ela interrompeu os passos, curiosa. A recostou no tronco da árvore mais próxima e a assistiu gemer de dor por alguns instantes.

— Por que Alina se sentiria culpada?! E que merda está acontecendo com você? Não vejo outros ferimentos além dos da noite passada, mas está pálida e fria como um cadáver. Acabei de encontrá-la se contorcendo no chão e, ainda assim, nega-se a aceitar um círculo de cura. E que história maluca é essa de ser o Cavaleiro?!

Virnan estalou a língua, escorregando pelo tronco até o chão com um olhar agastado. Fantin era bem consciente de que seu jeito bruto costumava incomodar as pessoas, mas a guardiã sempre aparentou se divertir com isso, tanto que sempre encontrou formas de lhe provocar apenas para rir depois. Não era o caso naquele momento e estava satisfeita com isso, pois não poderia lhe negar a verdade, já que a flagrou naquela situação dolorosa e curiosa.

— Já disse que não estou com humor para falar sobre quem sou!

— Como se os seus humores me importassem! Responda o que lhe perguntei de uma vez e não pense que pode calar minha necessidade de conhecer a verdade como fez com Lorde Verne. Aquele lá, só sabe rosnar como se fosse um cão bravo, mas logo coloca o rabo entre as pernas quando se trata de Marie. Se você é ou não o maldito Cavaleiro, pouco me importa. Já lhe disse que apenas me interessam suas ações no presente e o que busca para o futuro. Mas quero sua sinceridade, assim como ontem.

Um longo instante se passou até a guardiã sorrir, dando de ombros.

— É verdade, eu sou o Cavaleiro original. Quanto ao resto, não precisa se preocupar, ficarei bem. — Fungou algumas vezes e passou a mão sobre o peito, deixando que visualizasse as marcas outra vez e, também, uma parte das tatuagens em sua pele. — Isto é bem menos doloroso do que outras mortes.

As sobrancelhas de Fantin se ergueram, enrugando a testa.

— Inferno! Seja mais clara, mulher, ou irei arrastá-la para o acampamento agora mesmo!

Virnan pousou a mão sobre a dela em sua perna. A mestra irritou-se mais, pois sempre ficava desconfortável quando ela a tocava daquela maneira suave. Obviamente, nunca se sentiu atraída pela guardiã e, também, não era esse o caso naquele momento. Entretanto, achava estranho ter aquela reação ao seu contato. Inspirou fundo, querendo se afastar, mas ela lhe apertou a mão, dizendo:

— Eu também sinto. — Como Fantin deixou claro que não entendeu, completou: — Sinto-me estranha quando nos tocamos.

Fantin corou, ainda mais incomodada.

— Lê pensamentos também? — Quis saber, irônica.

Acompanhou o riso dela em meio a um gemido e a pressão na sua mão aumentou por alguns instantes.

— Não! Seria um dom muito irritante, creio. Que graça a vida teria se soubesse o que os outros pensam o tempo todo? — A fez abrir a mão e acariciou a palma. — Notei que se sente incomodada quando a toco. Pelo o que me lembro, em todos esses anos na Ordem, nunca aconteceu de nos tocarmos, nem mesmo um esbarrão. A primeira vez foi no navio. — Fungou mais um pouco. — Acredito que sei o motivo, mas ele não cabe nesta conversa. Só gostaria que soubesse que me sinto da mesma forma, antes de retornar ao assunto do meu estado de saúde atual. E, se me permite dizer outra coisa…

Fantin balançou a cabeça, concordando.

— Não sei se terei outra oportunidade ou vontade de me expressar assim de novo. Então, gostaria de lhe dizer que apesar de minhas brincadeiras e nossas desavenças, — não irei pedir perdão por isso — lhe dedico um grande respeito e sou grata por tê-la conhecido. Não apenas você, mas Mestra Alina também. E estou muito satisfeita em descobrir que tem um sentimento tão profundo e bonito unindo vocês.

Desconcertada, Fantin inclinou a cabeça e limpou a garganta, grata por ter soltado sua mão. As feições dela se modificaram, demonstrando melancolia enquanto passava a mão sobre as marcas no peito.

— Todo mago sabe que qualquer magia oferece um risco para quem a manipula. Essa, especificamente, era proibida pela Ordem Castir. Estas marcas são as consequências.

— De que? — Fantin recuperou a fala.

— Este é o preço que tenho de pagar por ter unido a alma de Mestra Alina ao seu corpo.

A mestra cambaleou para trás e sentou no chão, trincando os dentes enquanto continuava:

— Minha própria alma está em desequilíbrio com meu corpo e começa a rejeitá-lo. — Soprou o ar, deixando que um sorriso brejeiro lhe visitasse os lábios. — Se restaurar almas fosse algo fácil de se fazer, Mestra, ninguém mais morreria.

Apertou o tecido da calça até os nós dos dedos ficarem brancos e Fantin tornou a se aproximar, lhe segurando os ombros.

— Não se preocupe, ficarei bem. Será apenas alguns dias revivendo a morte dela. Dois ou três, acho, já que não foi algo tão violento.

— Revivendo?! — A coisa ficava pior a cada palavra proferida e a preocupação aumentou.

Virnan lhe sorriu de novo.

— Ah! Sim. Por isso era proibido que um Castir restaurasse uma alma. Nós revivemos a morte daquele que ressuscitamos nos mínimos detalhes. A dor, os sentimentos e os últimos pensamentos. É o suficiente para uma mente e corpo fracos se renderem e isso custou a vida de alguns no passado.

Fez um gesto displicente, aumentando o sorriso.

— Não deveria lhe falar sobre isso, mas pelo o que notei, já não é um segredo entre vocês. Em seus últimos instantes, ela só pensava em você e no quanto se arrependia por nunca ter lhe falado o que sentia antes e, assim, perdido a chance de estar ao seu lado por algum tempo.

Foi a vez de Fantin sorrir, emocionada com a descoberta. Entretanto, logo afastou a alegria e voltou a se concentrar nela. Indagou:

— Você vai morrer?

A guardiã pousou a mão sobre a sua, lhe trazendo aquele efeito constrangedor de novo.

— É o destino de todos, certo? O meu está demorando um pouco mais para se realizar, mas, com certeza, não sobrevivi milênios para morrer por causa disso, Fantin. Não se preocupe, não é a primeira morte que revivo. Certamente, está sendo mais doloroso do que deveria. Acredito que a razão é o meu estado de saúde já debilitado nos últimos dias e, também, o retorno repentino da minha magia. Meu corpo ainda está se adaptando.

Foi com alívio que a mestra suspirou.

— Acho bom você não morrer mesmo, não quero ter de lidar com Marie se isso acontecer. Além disso, sou capaz de ir à sua procura nas Terras Imortais só para te dar uma surra por me causar o inconveniente de ter de assistir ao seu funeral. Odeio piras!

Sentou ao seu lado, recostando-se na árvore e a trazendo para os seus braços. Com certeza, apesar de todas as diferenças e desavenças, Virnan tinha conquistado seu respeito e um pouco de afeto ao longo daquela viagem, mas depois de descobrir ao que tinha se sujeitado para salvar Alina, ganhou uma amiga que não hesitaria em fazer o possível e o impossível para lhe proteger, caso necessário.

— Vou te fazer companhia até que se sinta melhor — disse.

A guardiã a provocou:

— Você anda muito cuidadosa comigo, Mestra.

— Ah, cala a boca ou posso acabar resolvendo te dar algo realmente doloroso para sentir!

Ela sorriu, aninhando-se em seus braços e Fantin escorregou a mão por seus cabelos, repetindo o movimento até que adormecesse.

— Obrigada por trazê-la de volta pra mim. — Sussurrou.

Um gesto de Alina a retirou da lembrança. Sorriu de novo. Seguiam atrás do grupo, um pouco distante dos demais e se expressou sem reservas:

— Gostaria de um momento calmo com você — confessou, ansiosa para lhe falar sobre seus sentimentos com cuidado e sem pressa. E, também, para pedir que concluísse o que lhe dizia quando a sugadora as interrompeu.

Mestra Alina enfiou a mão entre os fios longos de seus cabelos, a fim de acalmar o bater forte do coração, que insistia em acelerar sempre que Fantin a fitava daquela forma calorosa. Desde que despertou da morte, a outra não se importava em disfarçar os sentimentos que lhe dedicava e seus olhares lhe diziam muito mais que as palavras que proferiu na noite anterior.

— Diante dos acontecimentos recentes, creio que este é um raro momento de calmaria. Imagino que a partir de agora as coisas irão se complicar ainda mais. — Respondeu, realista.

Tomou um pouco de fôlego, fazendo o cavalo diminuir a marcha e Fantin fez o mesmo.

— Então, por que esperar mais?! Eu a amo, Fantin. Não há nada que possa mudar isso. Acredite, eu tentei.

Fez o cavalo parar, chegando o mais próximo possível do dela. Encarava-a com um semblante leve e risonho, muito diferente do seu normal. Os companheiros tinham desaparecido em uma curva da estrada, mas ainda ouviam o som dos cascos dos cavalos e o assovio agudo de Fenris.

— Ouvir que se sente da mesma forma foi alimento para o meu coração e já que é assim, gostaria que me aceitasse como sua companheira, pois não me contentarei com menos.

Fantin jogou a cabeça para trás quando riu, o vento espalhando os cabelos sobre os ombros. Inclinou-se para a frente, lhe envolveu a cintura em um movimento rápido e a trouxe para sua sela sem dificuldades. Os dois cavalos relincharam em protesto, mas sequer notaram.

— Você é uma mulher de muitas faces e terei muito prazer em desvendar todas elas, mas não acha que está indo rápido demais? — Indagou em tom de galhofa.

— É pegar ou largar, Mestra. Não serei outro de seus casos e , se me quer, tem de ser para valer.

Ela riu alto, novamente.

— Posso pensar um pouco? — Continuou em tom de brincadeira.

— É um direito seu. Mas já esperei demais para viver o que sinto, então se tem a necessidade de pensar, é porque não está totalmente certa sobre seus sentimentos.

Fantin revirou os olhos.

— Às vezes, você é séria demais! Precisa aprender a brincar um pouco. — Lhe fez um carinho no queixo. — Pois bem, seremos companheiras!

Apertou-a em seus braços, aproximando a face da dela.

— Mas que fique claro que as minhas intenções vão muito além disso e, ainda hoje, pretendo comunicar a grã-mestra o meu desejo de tê-la como minha consorte.

— Agora, é você quem está indo rápido.

— De modo algum! Não deixarei que me escape outra vez, Alina.

Os lábios de Alina tremeram quando sorriu e a beijou com tanta vontade que o ar lhes faltou.

— Já que é assim, é bom começar a me chamar de Tamar. Agora que a verdade sobre Marie ser a eleita é do conhecimento de Virnan e todos os planos que fizemos para protegê-la já são obsoletos, gostaria de recuperar meu verdadeiro nome.

— Tamar — Fantin experimentou a pronúncia com um leve sotaque. — Eu gosto, mas ainda vai levar um tempo para que me acostume. — Enfiou os dedos entre os cabelos dela. — Jamais poderei agradecer Virnan adequadamente por tê-la devolvido para mim. Eu te amo!

A apertou contra si com tanta força que temeu machucá-la, mas Alina/Tamar a correspondeu da mesma forma e permaneceram assim por um momento. Então, ela retornou para o seu cavalo e se apressaram a alcançar os companheiros, certas de que o sentimento que as unia só iria aumentar.

Era tudo muito confuso para a bibliotecária, mas recordava de algumas coisas enquanto esteve fora de seu corpo, principalmente, de Fantin e do seu pranto e do desejo que tinha de ficar com ela. Lhe sorriu e piscou, charmosa, ainda com as bochechas afogueadas e incitou o cavalo a ir mais rápido. Endireitou-se na sela ao receber um olhar inquisitivo da grã-mestra quando emparelhou o cavalo com o dela. Não teceu comentários para a pergunta muda que ela fazia e voltou a prestar atenção no caminho com o coração descompassado pela certeza de que a companheira a fitava, um pouco mais atrás.

Uma felicidade quase gritante a envolvia. Serem companheiras na Ordem significava que mantinham um relacionamento sério, podendo vir a dividir os mesmos aposentos. Mas era algo que poderia ser desfeito a qualquer momento, caso o interesse passasse. Tornarem-se consortes expressava a existência de um laço profundo e duradouro, como um casamento. O desejo de Fantin em comunicar isso para a grã-mestra, apenas acentuava a seriedade de suas intenções, já que por ser a autoridade máxima da irmandade, somente Melina poderia aprovar e realizar tal cerimônia.

Obrigou-se a relaxar, reprimindo parte daquela alegria, que só podia ser comparada a ansiedade de conhecer a cidade do povo florinae, ainda que estivesse certa de que não passavam de ruínas. E estava ainda mais curiosa para confrontar a teoria de Virnan sobre os motivos que as trouxeram até aquele lugar.

Fitou as costas da guardiã à frente do grupo. Um pouco atrás, Lorde Verne fazia o mesmo com uma carranca.

— Nós não iremos a lugar algum, exceto retornar para a fronteira de Axen. Sequer deveríamos ter entrado neste reino amaldiçoado! Me recuso a ir a qualquer outro lugar com você! — Dissera ele abrindo os braços revoltado, quando Virnan regressou com Fantin e perguntou se já estavam prontos para partir. — Iremos retornar!

A resposta foi silêncio. Aliás, esse foi o estado em que permaneceram desde o que se sucedeu no lago. Ninguém ousou tecer comentários e quando Fenris e Távio retornaram para o acampamento e perguntaram o que houve, também receberam o silêncio como resposta.

Naturalmente, Alina não costumava falar muito. Um hábito que adquiriu ao perceber que a maioria das pessoas não estava interessada em saber sobre os seus estudos ou não se importava com a história daquele mundo e muitas outras coisas. Apesar de ser uma estudiosa e, também, uma escriba, não saberia descrever para os dois guerreiros o encontro que tiveram com o dragão lendário, então dedicou-se a fazer companhia a grã-mestra que, dentre todos, era a mais abalada.

Em uma rara conversa íntima, anos antes, a líder lhe revelou sobre as cicatrizes que trazia no corpo, graças a uma investida daquele dragão. A idosa mantinha uma máscara de pura calma, mas a mestra sabia que se encontrava assustada, para dizer o mínimo. Sobretudo, surpresa com a atitude de Virnan, sua última revelação, e o modo que as coisas aconteceram entre ela e a criatura.

O lorde insistiu e Virnan limpou a garganta, fitando-o com olhos cansados e uma palidez incomum.

— Se quer voltar, vá com seus homens. Nós iremos para Flyn.

Ele se empertigou.

— Você não vai levar Analyn a lugar algum!

Alguns metros adiante, Marie se aprumou com uma careta desgostosa. Alina percebeu sua irritação e compartilhou dela pelo modo como o príncipe insistia em se referir a ex-noiva como se fosse uma criança ou, pior, um objeto. A princesa preparou-se para gesticular seu desagrado, mas interrompeu-se quando viu a guardiã pousar a mão no peito dele.

— Marie. — Recordou a ele. — Marie é dona de seu próprio nariz e pode, muito bem, decidir o que fazer de si mesma!

O maxilar do lorde se contraiu.

— E ao contrário de você, não a levarei para aquele altar cerimonial!

No fundo, era o que todas queriam. Até mesmo Marie, mesmo que insistisse que já tinha aceitado aquele destino. E o alívio na face das companheiras foi facilmente notado. Contudo, uma dúvida se erguia entre eles. Se ela não estava disposta a sacrificar Marie, o que aconteceria quando o Cavaleiro não tivesse a alma que lhe era devida?

— Eu não vivi tanto tempo para deixar aquele desgraçado me tirar as pessoas que amo novamente. — Fechou a mão no sobretudo dele. — Antes de você chegar àquela ilha, pretendia partir com esta mesma missão. Nunca tive intenção de permitir a morte de Mestra Alina quando acreditava que era a eleita. Agora que sei que é Marie, minha vontade de pôr um fim nisso triplicou.

O puxou para si, fazendo-o se curvar levemente.

— Passei muitos séculos sozinha, Badir. Eu vi trevas e me tornei trevas, eu fui ódio e dor. Estava despedaçada quando Maxine me libertou. Só desejava a morte, a minha própria e a deste mundo, mas o meu caminho cruzou com o da Ordem.

O fez virar o rosto para fitar as ordenadas, que assistiam a discussão em silêncio. Jogado sobre um cobertor, Fenris mantinha o cenho franzido e Távio não estava à vista, pois tinha se afastado com a desculpa de lavar-se no lago, mas todos sabiam que era para chorar a morte dos amigos sozinho.

— Essas mulheres são uma pequena parte da irmandade, mas são a parte que mais amo e que protegerei a qualquer custo. Então, fuja como um bom covarde, mas vá sozinho porque iremos para a cidade de meus ancestrais.

— Por que quer nos levar até lá? — Melina indagou, abandonando o silêncio. A idade avançada cada vez mais evidente.

A guardiã soprou um fio de cabelo que o vento lhe atirava a face e soltou o badir.

— Um dia lhe disse que acreditava que o acaso nos uniu na Ordem. Recorda?

Melina anuiu, buscando a conversa em questão nas memórias. Parecia que tinham se passado anos em vez de algumas semanas desde que a tiveram.

— Agora, creio que nosso encontro não foi obra do destino. Você e Fantin também viram a sugadora antes do círculo ser conjurado e o mesmo aconteceu com todas mais cedo. Certo?

Novamente, a grã-mestra confirmou com um inclinar de cabeça e Fantin fez o mesmo.

— O que eram aquelas coisas? — Fenris atalhou.

Virnan girou sobre os calcanhares para lhe prestar atenção e explanar:

— Espíritos torturados. Eles perderam sua alma mágica através de uma morte excruciante e ela não precisa ser necessariamente física.

Voltou-se para Verne.

— Certa vez, Badir, você disse que conheceu todas as eleitas.

— O que isso tem a ver com o que lhe foi perguntado? — Rosnou ele.

— Tudo. Acaso não reconheceu o medalhão com o brasão de Primian no pescoço daquela que atacou Mestra Alina?

Sim, ele tinha visto algo metálico, mas diante de tudo que se passava não dedicou uma atenção mais profunda ao objeto.

— Você quer dizer que aquela coisa era a eleita de Primian?

— Não.

Ele suspirou, evidentemente aliviado.

— Estou afirmando que aquela sugadora, já foi a eleita de Primian. Pelo menos, aquela já foi a alma mágica dela.

O príncipe apertou o tecido grosso da capa que usava. Todos tinham notado a aparência humana que tomou a segunda sugadora, um pouco antes do seu corpo virar pó, exibindo um rosto que ele conhecia como o da eleita de Axen.

— Sinceramente, Guardiã, cada momento ao seu lado destrói minha visão deste mundo.

Virnan trocou o peso entre as pernas, aparentando estar mareada. De fato, estava. E, como revelou a Fantin, alguns dias se passariam até que voltasse a se sentir completamente sã.

— Infelizmente, Badir, tenho de concordar. As pessoas deste “tempo” não têm ideia do que meus olhos já viram e do conhecimento que carrego, ainda que deseje esquecer grande parte dele.

Melina se aproximou.

— Por que isso aconteceu com elas?

— Eu tenho suspeitas, Melina — Usou o nome dela de uma forma respeitosa. — Mas não são certezas absolutas. Acredito que o Cavaleiro descartou as outras eleitas porque deve ter descoberto que a alma de Marie é o que ele buscou por tanto tempo.

— Mas isso não explica o motivo do Lorde de Axen perseguir Marie, já que o seu mestre a terá em breve. — Fantin observou.

A guardiã fez um gesto displicente.

— Não tenho a mínima ideia do motivo — declarou.


O lorde alisou os cabelos, mantendo o olhar atento à vegetação e Mestra Alina/Tamar o admirou por algum tempo. As feições do homem tinham se suavizado, ainda que mantivesse o mesmo olhar hostil e severo. Quando a discussão se encerrou, Virnan pediu para lhe falar em particular e, desde esse momento, ele não voltou a se manifestar contra ela.

Passavam por uma clareira, o que permitiu a aproximação dos cavalos e tornou a viagem menos solitária para todos. Virnan se voltou para encarar os rostos cansados dos amigos até parar em Marie. Estava exausta, mas se obrigava a aparentar firmeza em seus gestos e fala. A mestra lhe retribuiu o olhar, as dúvidas que a tomavam estavam estampadas em sua face, mesmo assim, lhe dedicou um ligeiro sorriso.

— Mas por que a de Marie é diferente? O que a faz especial para o sacrifício? — Alina indagou.

Os lábios da guardiã se arquearam.

— Porque ela é como eu. Não percebi antes, porque minha magia foi aprisionada, então não pude reconhecer a verdadeira natureza da magia dela. Marie não teria conjurado aquele círculo, se não fosse verdade. — Fitou a amante, carinhosa, dizendo: — A explicação é a mesma para o fato de que você foi capaz de usar a adaga, no lago, quando lhe pedi. Não fosse assim, na melhor das hipóteses, você teria ficado muito cansada. Na pior, teria desmaiado.

Marie engoliu em seco, surpresa. O que aquilo significava, realmente?

— Voltando ao que dizia antes da pergunta de Fenris, sugadores são espíritos e, como tal, não podem ser vistos pelas pessoas comuns e, muito menos, por magos.

— Então, como pudemos vê-las antes da conjuração de Marie? E como conseguimos enxergar Lyla e aquele dragão, se são espíritos?

A guardiã sorriu mais largo. De fato, Mestra Alina era uma pessoa muito perspicaz e, na maioria das vezes, sabia encontrar as perguntas certas para lhe fazer.

— O caso de Zarif e Lyla é diferente. Vocês os enxergam porque estão ligados a um mago vivo através de um Pacto Castir. Para ser mais exata, Lyla e eu, agora compartilhamos a mesma aura mágica, ou seja, a minha. Por isso, ela é visível para vocês.

— Isso quer dizer que ela voltou à vida?

Virnan enfiou a mão nos cabelos, jogando-os para trás. Sentou-se à beira da fogueira.

— Não, Mestra. Lyla continua morta.

— Temo estar muito confusa agora. Entendo que o fato de terem feito esse pacto permitiu o retorno da sua magia e que agora vocês a compartilham, mas como ela pode aparentar estar viva e não estar?

A guardiã riu, balançando os ombros.

— Admiro sua sede de conhecimento, Mestra. Para ser sincera, sempre achei enfadonho os estudos no Templo de Cazz. Certamente, você se sentiria em casa se tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo no passado. Mas não vamos nos aprofundar no assunto; isso iria requerer uma longa introdução sobre a origem deste mundo e os povos Enaen e Florinae. Não temos muito tempo para isso e sempre me considerei uma péssima contadora de histórias, ainda que esteja fazendo muito disso, ultimamente.

Fez um gesto vago.

— Confesso que nunca quis isso — mostrou as tatuagens. — Nem no passado, nem agora. Embora, neste momento, seja muito útil ter recuperado meus dons.

— Você tem um poder além do que já vimos e, mesmo assim, o renega. — Observou a mestra, descrente.

— E de que me adiantou ter todo esse poder, se não consegui defender o que era importante para mim quando foi necessário?! No que isso me ajudou, se estou aqui, agora, quando deveria estar morta há milênios? Poderia ter vivido dois ou três séculos, graças a longevidade da minha casta, mas já se passaram três mil anos e ainda estou aqui! — Elevou a voz, levando um pouco de rubor à face de Alina e suspirou ao notá-lo. — Sinto muito, Mestra. Não queria gritar com você.

Curvou os ombros.

— Não me entenda mal, mas sempre achei que me tornar uma Castir era uma maldição e não uma dádiva. E olhando onde estou agora, é mais ou menos isso mesmo.

Abanou uma das mãos, como se afastasse um mosquito.

— Perdoem-me por essa forma rude de me expressar! Apesar de me sentir assim, sou grata por tê-las conhecido. Até mesmo você, Lorde — mirou o homem. — Você representa bem a pessoa que já fui e que não pretendo voltar a ser. Antes que se inflame, deixe-me esclarecer que não foi um insulto. Apenas acredito que a paz que encontrei na Ordem me fez alguém melhor, alguém de quem posso sentir orgulho. Novamente, não é um insulto. É a constatação de que alcancei algo que, em outra vida, apenas almejei.

Descansou a mão no queixo, pensativa, e claramente entristecida. Ergueu a vista para Alina e mordiscou o lábio. Ainda que Lyla não tivesse lhe dito nada a respeito, estava certa de que suas suposições estavam corretas. Não havia outra explicação para a insistência dela em lhe pedir que seguisse para Flyn e as levasse.

— A sua alma, Mestra Alina, é azul como o mar e aposto que as de vocês três — apontou para as outras ordenadas — também são, assim como a minha.

Fez uma pausa, encarando cada uma delas e tomando um alento para continuar.

— Creio que vocês, assim como eu, possuem magia espiritual. E quero levá-las a Flyn, porque acredito que o espírito daquela irritante deminara, ao qual me uni para recuperar a minha magia e salvar Mestra Alina, seja responsável por cruzar nossos caminhos.


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