*

A noite era puro silêncio em volta da Cidade dos Eleitos. Nem mesmo os guardas nas muralhas ousavam quebrá-lo, entregues a uma vigília mórbida. Andavam sobre as muralhas com passos arrastados, ainda que suaves. Vez ou outra, trocavam cumprimentos, apenas um inclinar de cabeça, e seguiam seus caminhos.

Era assim todas as noites. Nada de extraordinário acontecia naquele lugar, exceto, quando o despertar do Cavaleiro se aproximava ou o Lorde de Axen o visitava.

Ligeiramente entediado, Ilan Dastur observava os passos dos soldados, quase invisíveis daquela distância. Ele estava em uma janela na torre norte da fortaleza que se erguia no centro da cidade que não passava de uma dezena de construções cercadas por jardins sempre floridos, cortados por passeios calçados com pedras negras cheias de símbolos antigos.

Em um passado distante, aquele lugar fizera parte do centro do poder da civilização enaen e, posteriormente, florinae. Contudo, seiscentos anos antes, tinha se tornado o lar do homem que destruiu o reino flora e que, agora, aguardava a oportunidade de repetir essa façanha com o resto do mundo.

Ilan estalou a língua, pensando em Maxine. Passou os últimos cem anos ansiando pelo dia em que ela, finalmente, entenderia seus motivos e regressaria para o seu lado e, juntos, ajudariam o Cavaleiro a alcançar seu objetivo.

Mas ela nunca veio. Em vez disso, tirou do seu mestre o sacrifício que lhe era devido e ousou machucá-lo.

Pousou a mão na balaustrada. Maxine era uma tola, mas lhe comprazia imaginar que um dia se encontrariam no novo mundo que o Cavaleiro iria criar. Então, riria dela como fazia quando eram crianças. Depois, lhe ofereceria a mão e convidaria para compartilhar a glória.

Mas estar ciente de que a reencontraria em um futuro próximo não lhe tirava a dor de saber que ela partiu para as Terras Imortais. Por isso, não hesitou em enviar sugadoras para roubar a alma da mulher que a matou. Tinha planos para ela e todos compreendiam uma eternidade de sofrimento.

Semicerrou os olhos, fitando o horizonte. De repente, uma estranha sensação lhe tomou. Do alto do castelo, o rugido do dragão Zarif se elevou, tão alto e assustador que alguns dos soldados na muralha se encolheram.

Ilan se voltou para o interior do castelo. Cruzou o salão com passos rápidos e estacou diante do homem sentado no trono com o queixo apoiado na mão. Parecia estar dormindo, contudo ele abriu os olhos, deixando que a grande aura mágica que possuía preenchesse o salão. Ilan, Lorde de Axen, foi obrigado a se ajoelhar perante a pressão daquele poder.

Ergueu a face para ele, sentindo um arrepio percorrer o corpo ao ouvi-lo dizer:

— Um Castir despertou.

— Impossível! — Gaguejou o lorde.

Ouviram o rugido do dragão, novamente. Instantes depois, Ilan se deu conta de que o spectu andava pelo teto do salão, fincando as unhas nas rochas que compunham as paredes. Por fim, ele saltou para o chão e alojou-se atrás do trono do Cavaleiro.

Como sempre ocorria quando o ouvia falar com voz estranhamente humana, o lorde baixou o olhar para o chão.

Um pacto Castir foi feito… — Ele virou a cabeça e esticou o pescoço para encarar o Cavaleiro, cujos olhos violetas brilhavam de ódio.

— Como é possível? Não existe um Castir há milênios. Me certifiquei disso.

O dragão pareceu sorrir, exibindo uma infinidade de dentes pontiagudos. Os olhos amarelos se fecharam um pouco, maldosos.

Eu sinto ela! Uma Castir que não pertence a este tempo. — Uma de suas garras arranhou o chão. — Virnantya L’Castir está viva!

**

O dia se iniciava ainda envolto no silêncio. Os primeiros raios de sol tocaram as copas das árvores, trazendo uma sensação de alívio ao grupo, como se a presença do astro no céu pudesse impedir o surgimento de outros inimigos sombrios. Virnan estava sentada sobre um tronco com o olhar fixo nas tatuagens nos punhos.

Não ousava se mover muito para não atrapalhar a atadura que Marie envolvia em sua coxa. Como todas passaram por um desgaste mágico, ninguém, exceto Alina, tinha magia sobrando para realizar sessões curativas. A mestra dedicou parte da noite a curar os midianos, depois concentrou-se no ferimento na perna de Melina.

Ela tentou priorizar Virnan que, das mulheres, era a mais ferida, mas esta a dispensou. Afirmou que o retorno da magia iria ajudar na sua recuperação, ainda que fosse lentamente, e que a grã-mestra precisava mais de sua atenção.

Estava com a razão.

Inicialmente, o ferimento da líder ordenada parecia ser algo superficial, mas após um exame detalhado revelou-se o contrário.

Mesmo cansada, Fantin a auxiliava na cura, realizada no lago para garantir mais fluidez e evitar o desgaste mágico. A mestra loira, limitava-se aos pequenos ferimentos, afinal era tudo que poderia fazer no momento. Não trocaram nenhuma palavra após o retorno dela à vida, mas os olhares não escondiam a satisfação em se encontrarem, nem o carinho.

Lyla estava em um galho, ainda na forma de um pássaro. Observava Virnan. Não imaginava que poderia senti-la daquela forma. Sabia que os castir tinham uma ligação muito profunda com seus espíritos guardiães, mas não que poderia ser tão íntima. Não conseguia ler seus pensamentos, mas podia sentir as emoções que a dominavam.

Embora aparentasse calma, a guardiã estava furiosa, triste, melancólica. Mas quando olhou para a mestra, tudo isso se transformou em carinho. Virnan era muito mais intensa do que acreditava. Se tivesse lábios naquele momento, teria sorrido. Em vez disso, chilreou baixinho deixando a mente vagar pelo passado.

Por que está triste?

As voz de Virnan a alcançou, lhe causando um pequeno sobressalto. Baixou o olhar, ela ainda estava sentada a beira do lago sob os cuidados de Marie. Mas ela não abriu a boca para falar, tinha pensado apenas. Outra vez, surpreendia-se com aquele laço. Afinal, enquanto viva não tinha alcançado a magia espiritual.

Mexeu a cabeça, capturando o olhar dela ao longe.

Pensava no dia em que você entrou no salão de refeições do palácio de meu pai e matou o comandante do exército do sul.

De fato, era uma imagem que jamais lhe abandonaria. Na ocasião, o comandante fazia um relatório detalhado das ações do exército sul. A situação deles era muito desfavorável na guerra contra as outras famílias deminaras. O sul sempre teve um exército inferior em números e em magos aptos para o combate. Em contrapartida, a base do exército era formada por aurivas e isso lhes concedia vantagem quando em combate direto, já que as batalhas costumavam ocorrer em campos que privavam os magos do uso de magia e aquela casta era muito superior nos atributos físicos. Mesmo assim, tinham sido obrigados a recuar e deixaram muitas vilas povoadas por aurivas desprotegidas.

Ouvindo-o falar sobre a casta a qual a amiga pertencia, Lyla indagou a ele sobre Virnan. O homem demonstrou um ligeiro desconcerto quando falou que a protetora o tinha desobedecido e o acusado de deixar “seu” povo morrer. Sem preâmbulos, disse que estava desaparecida e provavelmente morta, fazendo um gesto de descaso para os presentes.

De fato, havia chegado ao Palácio do Sul rumores sobre a discussão entre ele e a protetora. O comandante tinha afirmado que não movimentaria o exército para ajudar na evacuação das vilas porque as vidas de Deminaras e de membros de outras castas eram muito mais valiosas do que as de “insignificantes” Aurivas. Os quais deixou claro que, para ele, não passavam de ferramentas. Foi nesse momento em que Virnan resolveu partir por conta própria, jurando ao comandante que regressaria para cobrar, com a vida dele, todas as vidas aurivas que se perderam. E assim ela fez.

Por quê? — A guardiã quis saber.

O pássaro Lyla balançou a cabeça.

Nenhuma razão em particular. Apenas me veio à mente.

Os olhos da guardiã se estreitaram.

Acho que você não entendeu como uma união Castir funciona. Você não pode mentir para mim e vice-versa. Podemos ocultar a verdade uma da outra, é nosso direito ter nossos próprios pensamentos, mas sempre saberemos quando a outra estiver mentindo.

Você ama essa mulher — Lyla observou, fugindo do assunto para não ter que confessar que durante aquele episódio a temeu tanto quanto admirou e ele teve um grande peso quando se decidiu a tirar a magia dela. — Nunca imaginei que pudesse amar alguém.

Virnan se endireitou sobre o tronco, inflando o peito.

Eu amei você, ainda que não da mesma forma. — Retrucou.

Você me entendeu. — Lyla reclamou.

Sua ex-protetora sempre cativou a atenção de homens e mulheres, fossem aurivas, como ela, ou membros de outras castas. Desde que não se importassem com a cor de seus olhos e pele e conseguissem atrair sua atenção por mais que alguns minutos, Virnan não se privava de ter calor em sua cama. Mas, invariavelmente, esses relacionamentos não duravam mais que uma noite ou, se muito, alguns dias. Ela não se prendia a nada ou a ninguém no quesito romance.

A vida tem lá suas surpresas. — Baixou o olhar para Marie e o spectu pôde sentir o carinho que a tomava novamente. — Surpresas muito mais que boas.

O pássaro inclinou a cabeça, bateu asas e desceu até o chão, retornando a forma original e causando um leve sobressalto em Marie. Ela encarou a mulher por um instante longo, notando que não tinha mais o aspecto fantasmagórico de quando apareceu no círculo de magia; parecia tão humana quanto ela. A mão de Virnan estremeceu na sua, único indício de que a visão dela a abalava.

Lyla ofereceu uma reverência longa à guardiã e um inclinar de cabeça suave para a princesa de Midiane. Notou que atraía os olhares curiosos das outras ordenadas.

Vá para casa, Virnantya. Leve-as com você. Estarei à sua espera na entrada do Salão de Cazz. Não apenas eu.

Virnan se pôs de pé em um rompante. Eram mulheres muito distintas, cuja beleza não podia esconder a presença das mágoas que carregavam. Obviamente, Lyla era mais alta que a guardiã, mas não chegava a se equiparar a altura de Marie.

O Cavaleiro amaldiçoou nosso lar há três mil anos. Flyn caiu, Caeles se ergueu de suas cinzas e foi destruído da mesma forma e com o mesmo objetivo.

Aproximou-se dela, erguendo a mão em direção a sua face. Percebendo que ela fazia um movimento de recuo, desistiu. Sussurrou palavras na mente dela, assistindo a transformação em sua figura à medida que a compreensão delas lhe chegava.

— Vá embora — Virnan sussurrou em resposta.

Lyla não se moveu por alguns segundos, então sentiu aquela força assombrosa a repelindo. Tentou resistir, mas Virnan gritou:

— Vai embora! — E aquele desejo era tão forte que fez o spectu tomar a forma de um pássaro e alçar voo.

Estarei esperando. — Sussurrou na mente da guardiã e desapareceu nos céus.

Por mais longe que fosse, assim que ela a chamasse ou necessitasse, a magia a transportaria para o seu lado de imediato. De certo modo, tinham se tornado a mesma pessoa e teriam de aprender a conviver com as culpas e raivas que ambas carregavam em relação à outra. Só esperava que não demorasse mais três mil anos para isso acontecer.

Virnan voltou a sentar no tronco e, por algum tempo, não teve palavras. O corpo inteiro tremia, graças ao esforço de afastá-la. Ainda não estava em condições de usar a magia daquela forma, assim como na noite anterior, quando correu um grande risco ao restaurar a alma de Alina. Deixou-se cuidar por Marie, entregue a pensamentos atormentados.

Por sua vez, a princesa preferiu não se manifestar sobre aquela cena. Ainda tinha muito que aprender sobre a ex-pupila e o seu papel naquele mundo; principalmente, o seu papel no sacrifício da sua vida.

Era estranho olhar para Lyla depois de tê-la conhecido em sonhos. Não conseguiu escapar de um pérfido momento de ciúmes, apesar de estar claro que a relação de Virnan e o espírito, qualquer que tenha sido no passado, já não existia. As duas necessitavam daquela ligação mágica por objetivos egoístas e seguiriam com ela enquanto pudessem alcançar seus respectivos objetivos. Mas era mais que óbvio que a presença dela desequilibrava Virnan de uma forma que jamais viu.

Finalizou o curativo e afastou-se um pouco, lhe tomando as mãos e deslizando as pontas dos dedos sobre as linhas das tatuagens. Passou uma mão diante da própria face em um movimento ligeiro e Virnan abandonou os pensamentos e lhe sorriu, ainda que não tivesse vontade disso.

— Sim, são lindas. — Concordou, sem vontade de contar que elas não estavam apenas em sua face e punhos, mas, também, se espalhavam pelas costas, pernas e no local exato onde fincou a adaga. Ali, ocultas pela blusa, elas se espalhavam suaves e subiam em direção aos ombros. Eram linhas finas e delicadas que, facilmente, não podiam ser notadas ao longe.

Espalmou uma das mãos para cima e uma luz suave se projetou nela, girando devagar como se fosse um pequeno redemoinho de vento. A luz desapareceu, mas Marie sentiu uma suave brisa, como se alguém estivesse a lhe tocar a face.

Depositou a mão na nuca de Virnan e trouxe seu rosto para mais perto, entretanto não a beijou. Admirou seu reflexo nos olhos dela por alguns segundos, então encostou suas testas e assim permaneceram por um longo tempo.

Era um gesto simples e carregado de significados; algo que em todos os reinos daquele continente só era feito entre amantes.

Alguns metros adiante, na água rasa do lago, Fantin encerrou a magia curativa a que se dedicava após Alina fazer o mesmo. Melina se pôs de pé, afundando até a cintura e focalizando as duas mulheres na margem.

— Já estava na hora — sussurrou, deixando um sorriso caloroso vir aos lábios.

***

— Quando começamos esta viagem, éramos dez. Agora, somos só nós três. — Fenris lamentou, mirando as chamas que devoravam os corpos dos companheiros mortos na luta contra as sugadoras.

Verne estava cabisbaixo ao seu lado, aparentando um cansaço incomum. O lorde se perguntava quantos mais teriam de morrer para saciar os desejos do Cavaleiro. Emya tinha razão, não podiam continuar fazendo as vontades dele. Contudo, não tinham como reagir e era isso que o corroía naquele momento.

— Se tivéssemos aguentado um pouco mais. — Távio falou com voz embargada.

O lorde ergueu a cabeça.

— Que diferença faria?

O soldado se endireitou, encarando-o sem a costumeira humildade.

— Se tivéssemos aguentado um pouco mais, eles poderiam estar vivos, assim como Mestra Alina.

Verne cerrou os punhos, recordando tudo o que presenciou naquele círculo e Fenris sonorizou o que ele se indagava.

— É estranho, não é? — Mirou as sobrancelhas arqueadas de Távio. — Se ela é tão poderosa ao ponto de restaurar uma vida que se perdeu, por que caminha entre os ordenados? Quem é ela de verdade?

Ele franziu a testa, pensativo, e o badir começou a se afastar com as mesmas perguntas e muitas outras a lhe rondar a mente, principalmente porque conhecia alguns aspectos da história da guardiã que os companheiros ainda não tinham tido acesso. E, também, porque na noite anterior, enquanto caminhava em direção ao grupo de ordenadas, o vento lhe trouxe um fragmento de frase: “contemporânea ao cavaleiro”.

** **

As ordenadas se aproximaram do casal sem receio de interromper o momento de carinho e deixaram transparecer todo o cansaço que as consumia.

A grã-mestra sentou sobre o mesmo tronco que Virnan. Fantin recostou-se à árvore sob a qual estavam e Mestra Alina aninhou-se em seus braços sem se importar com a curiosidade que atraía das outras. Em verdade, as duas mal tinham trocado algumas palavras desde que despertou dos mortos. Contudo, desde esse momento, estavam sempre se buscando, fosse com o olhar ou com toques casuais.

A princesa soltou a amante e encarou a idosa com um sorriso ligeiramente tímido, mas que não conseguia esconder o afeto que dedicava a moça. Virnan, por outro lado, limitou-se a balançar a cabeça para a velha, que ficou decepcionada, pois imaginava que a veria cantar vitória de alguma maneira; fosse com um sorriso convencido ou com palavras maliciosas.

Mas a guardiã não estava muito disposta a falar naquele momento. Não queria contar vantagem ou histórias de um passado distante, entretanto, depois do que aconteceu não poderia fugir delas por muito tempo. Notando seu desconforto, Marie resolveu ajudar lhe oferecendo um ponto por onde começar sem que para isso tivesse de se revelar.

Ela a chamou de “Senhora dos Ventos”.

Virnan tornou a fazer o pequeno redemoinho mágico na palma da mão, grata por sua intervenção. Curvou os ombros, devagar.

— Minha magia é espiritual, portanto posso controlar espíritos elementais. Na verdade, é uma troca. Eles me emprestam o que preciso e lhes dou um pouco do meu poder, se alimentam dele. — Encerrou a demonstração ao fechar a mão. — Ela me chamou assim porque minha maior afinidade é com espíritos do ar.

Por isso, ela tomou a forma de um pássaro?

A florinae assentiu com a cabeça.

— Foi isso que você fez no navio quando lhe emprestamos nossa magia? — Melina indagou com uma sobrancelha arqueada a lhe enrugar a testa.

— Sim. Convoquei espíritos do ar, mas usar a magia alheia é desgastante e muito doloroso. Por isso, desmaiei.

Deixou que Marie lhe acariciasse as tatuagens dos punhos. Ela estava diferente, pensava a mestra, e não eram as tatuagens, mas algo em seu interior.

Como “ela” apareceu no círculo?

Virnan deslizou a mão pelo rosto dela. Já esperava pela pergunta. Aliás, aguardava que qualquer uma das companheiras a fizesse, mas algo lhe dizia que a primeira seria Marie, pois tinha notado seu ciúmes quando lhe falou sobre Lyla e, também, minutos antes quando ela apareceu.

— Gostaria de ter todas as respostas, mas me faltam alguns séculos de conhecimento.

Passou a mão pelos cabelos longos, fitando os fios por algum tempo.

— Eu não sei exatamente como, nem quando ela morreu. Acreditava que sabia, mas agora estou certa de que a verdade é outra. A vi ao lado de Maxine no dia em que me devolveu a adaga. Achei que fosse uma projeção dela, algo da minha mente confusa.

Soltou os cabelos, fungando um pouco. Estava cansada, muito mais do que deixava transparecer. Apesar do retorno da magia trazer de volta habilidades regenerativas, o processo de recuperação era lento e doloroso. Contudo, não era esse o motivo de se sentir daquela forma.

Conteve a vontade de pousar a mão sobre o peito e mordiscou o lábio para não deixar que a dor lhe escapasse em forma de som. Não queria que elas soubessem que um ritual para restaurar uma alma mágica cobrava um preço doloroso em muitos sentidos.

Inspirou fundo algumas vezes, então continuou:

— Naquele dia, ela não falou comigo. — Sorriu. — Na verdade, acho que eu não queria ouvir. Mal consegui entender Maxine. — Deu de ombros. — Mesmo assim, cobri a tucsia no cabo da adaga com um pedaço de tecido usado para contenção mágica e não a vi por doze anos. Mas quando estava em poder de Loyer, ele desenrolou o cabo. Eu a vi de novo. Por algum tempo, achei que fosse resultado da febre que me tomava no momento, então ela começou a falar comigo e disse que tinha rejeitado a passagem para as Terras Imortais e se prendido a adaga, sabendo que um dia ela retornaria para mim. Disse que tinha ficado para se tornar o meu Spectu.

Ainda não entendo bem isso. Marie confessou.

Na verdade, Virnan não tinha se aprofundado no assunto enquanto conversavam na noite anterior.

— Todas gostaríamos de entender. — Melina afirmou, demonstrando estar tão confusa quanto ela.

A guardiã balançou a cabeça, pedindo que as outras sentassem. Capturou a preocupação no olhar de Marie. Claramente, temia que ela contasse que era o verdadeiro Cavaleiro Vermelho e isso implicasse em uma grande confusão que pudesse resultar em uma luta e laços rompidos.

A tranquilizou com um sorriso e começou a lhes contar o que ela era, em parte. Basicamente, resumiu um pedaço da conversa com Marie, mas não falou nada sobre o cavaleiro. Não por temer o resultado da verdade, mas porque se sentia desgastada demais para entrar em um assunto tão complicado.

— Então, aquela moça era uma nobre em seu reino — Melina concluiu.

Virnan confirmou.

— Eu servia a família dela. Mas a minha magia despertou e isso me fez galgar muitos degraus no reino. Para ser mais exata, fui atirada para o topo da sociedade florinae, quase me equiparando aos nobres Deminaras.

— Como?

— Fazendo o impossível. — Sorriu.

Notaram que era um gesto sem o calor costumeiro. Deixava claro, assim, que não se orgulhava dos degraus que alçou.

— Me tornei uma Castir.

Como esperado, aquela denominação nada lhes dizia. Mestra Alina comentou, após um longo silêncio:

— Ontem, disse para a grã-mestra e Lorde Verne que duas palavras me chamaram a atenção na sua conversa com o mago axeano. A primeira palavra foi Auriva. E as explanações que nos deu sobre isso me permitiram deduzir a verdade sobre sua origem, baseado em meus estudos. A segunda palavra foi Castir, mas jamais encontrei referência a ela. O que significa, exatamente?

Virnan se pôs de pé, cruzando os braços.

— Como disse antes, Mestra, não tenho todas as respostas. Não imagino o que possa ter se perdido da história do meu povo, mas não era comum que existissem pergaminhos ou livros falando sobre a Ordem Castir nos escritos que a biblioteca de Flyn guardava. O local mais provável para ler e aprender sobre os Castir era o Templo de Cazz, onde a ordem se abrigava e treinava.

Buscou uma forma simples de definir a palavra, deixando claro seu real significado. Mordiscou os lábios, preparando-se para responder, mas Marie segurou-lhe o braço e foi Fantin quem pôs em palavras o que o olhar da mestra dizia:

— Mas que cheiro podre é esse?!

Ela ergueu a mão até o nariz recordando que já o tinha sentido antes.

— Esperem! Senti isso antes daquela coisa aparecer e… e machucar Alina. — Puxou a mestra em questão para o seu lado, já convocando as argolas douradas para os punhos.

Um monstro, semelhante aos dois da noite anterior, surgiu dentre as árvores. Ele saltou sobre a grã-mestra, que era a mais próxima da entrada da floresta, mas Fantin socou o ar, atirando-a para longe.

— Inferno! — Virnan resmungou.

— Isso não acaba nunca?! — Fantin perguntou, preparando-se para golpear o ar novamente, mas a guardiã fez um gesto curto, pedindo que se afastasse. Ainda que não tivesse forças suficientes, ela prendeu a criatura em um redemoinho de vento e caminhou até ela que repetia sem parar:

Castir! Castir!

Verne irrompeu no local, já retirando a espada da bainha ao notar o posicionamento de defesa das ordenadas. Como ocorreu da vez anterior, ele não podia enxergar a sugadora. Mas notava as marcas que cresciam no chão diante de Virnan. Eram pegadas, como se algo lutasse com uma força invisível, tentando chegar até ela.

Sem cerimônia, a guardiã atirou a adaga no peito dela, que desapareceu da mesma forma que as outras. Ela caminhou até o local onde a adaga caiu e começava a abaixar para pegá-la quando o grito de Fantin a alertou para a presença de uma segunda criatura.

Era tarde. Não teve tempo para reação e o monstro lhe envolveu o pescoço, afastando-a da arma e a erguendo no ar. Marie iniciou uma conjuração, mas se encontrava sem forças para algo tão poderoso quanto o círculo da noite anterior. Tentou, fazer a areia ceder sob o peso dela, mas a sugadora percebeu a manobra e saltou para o lado. Verne se aproximou, usando Virnan como referência. Ele golpeou o ar, mas foi atirado no lago.

Tudo acontecia muito rápido.

Virnan se debatia alguns centímetros do chão. Amaldiçoava o fato de ainda não ter se recuperado do ritual de união com Lyla e, também, da restauração da alma de Alina e, assim, não estar em pleno uso da sua magia. Deslizou a mão pelo tentáculo usando o manibut, mas era inútil. O corpo da sugadora só era humano da cintura para cima e estava longe do alcance de suas mãos.

Marie jogou-se no chão, recuperando a adaga e avançou golpeando os tentáculos. A lâmina brilhava cada vez mais forte à medida que decepava os membros, mas um deles lhe envolveu o braço que a empunhava. Foi forçada a se ajoelhar, soltando a arma tucsiana. Verne tentou se aproximar novamente, mas como não conseguia enxergar os tentáculos era facilmente repelido. Fantin e Alina, uniram-se a grã-mestra, unindo as parcas forças para criar um círculo de retenção, mas antes que a conjuração estivesse concluída, o grito de um pássaro inundou seus ouvidos e, do peito da guardiã, um vulto se projetou voando em direção a sugadora. Ela foi lançada na água, enquanto Virnan caía no chão, rolando em direção a Marie.

O spectu Lyla bateu asas à sua volta e ela abriu os braços, deixando que retornasse para o abrigo do seu corpo. A alma mágica que as unia, a atraiu para a guardiã no momento em que sua vida se encontrou em perigo. Por maior que fosse a distância entre elas, aquele laço mágico a traria para perto dela e lhe daria a forma animal, aumentando seu poder para que pudesse defendê-la. Virnan girou a adaga, preparando-se para lançá-la na criatura, que já tinha retornado a margem, mas algo grande e pesado caiu sobre ela causando terror entre as ordenadas e Lorde Verne.

Ele era enorme. Maior do que Marie imaginou. Um arrepio percorreu seu corpo, trazendo uma ingrata sensação de impotência e recordou a conversa que teve com a tia, no dia em que os midianos chegaram à ilha Vitta. Agora, compreendia perfeitamente o medo que ela descreveu.

O dragão aproximou-se delas e Virnan a empurrou para longe, engolindo em seco.

Virnantya — ele sussurrou com um sorriso maldoso. Encarava-a com um misto de ódio e admiração, se é que era possível discernir suas emoções.

A guardiã não se movia, encarando-o com olhos úmidos. Entreabriu os lábios, mas nenhum som lhe escapou. Ao seu lado, o espírito Lyla tomou forma, assumindo uma posição ameaçadora, ainda que estivesse na pele humana. Contudo, as mãos eram as pontas das asas de um pássaro, cheias de penas longas e afiadas como adagas.

Vejo que encontrou um novo Spectu. — Ele mostrou os dentes pontudos e afiados. — Irônico que seja a Senhora das Terras do Sul, justo aquela que lhe tirou o anterior.

Ele inspirou fundo, depois soltou o ar formando uma ligeira nuvem de fumaça. Sob as garras dele, a sugadora se debatia. Ele a ergueu e com uma mordida lhe arrancou a cabeça. Humanos precisavam de armas como a tucsiana para matar um espírito, mas espíritos podiam se destruir facilmente, e Zarif, o dragão, era infinitamente mais poderoso do que aquela pobre e infeliz criatura que o Cavaleiro modelou. Ele cuspiu a cabeça dela fora, assistindo o vento se encarregar da areia negra em que se transformou.

Os olhos amarelos dedicaram-se a Marie.

Meu mestre a espera, eleita de Midiane. — Farejou o ar. — Ah, ele estava certo… Você é perfeita.

Lorde Verne tomou uma posição de defesa, interpondo-se entre ele e Marie. O dragão soltou um bafo quente, como se risse da insignificância daquele homem. Voltou-se para a guardiã, que andou até ele erguendo uma mão trêmula para tocá-lo.

— Deuses! Ela enlouqueceu?! — Verne grunhiu, sentindo o toque suave da mão de Marie em seu ombro.

Os dedos de Virnan alcançaram seu alvo, deslizando devagar sobre a pele escamosa de diferentes tons de vermelho. Zarif fechou os olhos por um instante.

Ele sentiu o seu despertar. Sabe que você ainda caminha por este mundo. Está vindo à sua procura, mas antes enviará todos os demônios sob seu comando.

— Eu senti a sua falta, velho amigo. — Ela disse, ignorando o alerta dele.

Encostou a cabeça nele, deixando algumas lágrimas escaparem e Lyla foi invadida pelos sentimentos dela. Era uma dor tão profunda que, por um momento, sua vontade de permanecer ali fraquejou. Foi isso que fez a sua melhor amiga? Foi assim que a destruiu? Deu-se conta de que sua imaginação jamais chegou perto da realidade.

O dragão fez um barulho baixo, como se estivesse com algo preso na garganta. Afastou-se do contato dela.

Ele está vindo. — Repetiu, abrindo as asas e mostrando os dentes. — Eu queria ver você, ter certeza de que a magia que senti surgir neste mundo ontem à noite era mesmo sua. Não posso negar que estou feliz, pois, finalmente, posso ter minha vingança. Você morrerá quando nos reencontrarmos e “será um belo dia para vestir vermelho”! — Alçou voo.

Virnan permaneceu no mesmo lugar, fitando-o até que não restou mais nada além de um ponto negro no céu. Marie se aproximou, pousando a mão em seu ombro, mas ela se afastou. Deixou-se cair de joelhos, encostou a testa no chão, gritou e chorou esmurrando a terra úmida.

A mestra tentou acalmá-la, mas era como se houvesse uma parede entre elas.

— Maldito! Maldito! Maldito! — Virnan gritava cada vez mais alto. — Maldita você também! — Ergueu a cabeça e focalizou Lyla. — Maldito o dia em que nos conhecemos, Deminara! Maldito o dia em que me deixou entrar naquela arena! Maldito seja o seu sangue! Veja o que vocês fizeram comigo!

Lyla deu um passo atrás, assumindo completamente a forma humana e a viu ficar de pé. Virnan enxugou as lágrimas, respirando pesadamente.

— Mas desta vez vai ser diferente. — Falou mais calma. — Ele não vai tirar as pessoas que amo novamente. Não vai tirá-los de mim, assim como fez com você e Zarif! Juro por todo o sangue que já derramei, Lyla, o meu e de outros! Vou me redimir dos meus pecados e matar o seu irmão!

— § —


Oi, amores!

Saudades? Eu senti! rs…

Bem, ainda estou devendo as respostas aos comentários, mas prometo que estarão todos respondidos até amanhã à noite. Sem ilustrações desta vez, mas vou tentar rascunhar algo para o próximo.

Espero que estejam curtindo!

Beijo grande!



Notas:



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