A sede era intensa e foi ela que a despertou, afastando as lembranças em forma de sonho, que a inconsciência lhe trouxe. Demorou-se fitando o céu claro que, vez ou outra, a folhagem espessa das árvores deixava ver.

Sacolejava no piso de uma carroça, ladeada por três guardas. As mãos estavam envoltas em correntes cravejadas com pequenas pedras âmbar, cuja finalidade era inibir o uso da magia. Fez um esforço para sorrir e os lábios cortados e inchados lhe enviaram pequenas ondas de dor. Não que isso fizesse alguma diferença em seu estado, afinal todo seu corpo reclamava pelos maus tratos sofridos nas masmorras de Bantos.

Voltou a cerrar os olhos, tentando captar os sons da floresta pela qual passavam. Mas tudo que lhe chegava era o som dos passos firmes dos soldados, o trote dos cavalos, o resvalar das armas no couro das bainhas, as conversas sussurradas dos homens fadigados após tantos dias de caminhada. Houve um tempo em que esses sons faziam parte do seu dia-a-dia, assim como as manchas de sangue nas vestes e espadas.

Voltou a abrir os olhos. A sede que a tomava era quase um tormento, principalmente, porque só sentia o sabor férreo de sangue. Fez um esforço para sentar-se, fingindo não ver que os guardas redobraram a atenção, ainda que não esperassem um ataque de sua parte. As correntes dos grilhões estavam presas a uma argola fixada na madeira da carroça. Eram compridas o suficiente para lhe permitir alguma liberdade de movimentos como, por exemplo, abrir os braços.

Fitou as mãos. Sangue seco e sujeira recobriam a pele, escondendo algumas das cicatrizes que possuía. A constatação a fez recordar do sonho que acabara de ter. Sonho que, na verdade, era uma lembrança de um passado distante.

 

— Você me assustou! Juro por todos os deuses que iria até as Terras Imortais, apenas para matá-la outra vez se você perecesse naquela arena!

Virnan caiu na risada, embora as dores que sentia fossem mais fortes do que deixava transparecer. Não gostava de se mostrar fraca diante de Lyla.

— Eu venci, não foi?

— Mas a que preço? Mal consegue ficar de pé. E suas mãos… — Baixou a vista para as faixas ensanguentadas que as cobriam. — Suas mãos estarão marcadas para sempre.

— Já estava na hora, não? Uma protetora sem cicatrizes pode ser facilmente confundida com alguém inábil para a função. Portanto, inútil.

 

Ergueu o olhar e fitou a mulher sentada ao seu lado. Lyla a fitou preocupada, exatamente como naquela lembrança. Virnan balançou a cabeça, esperando afastar aquela alucinação. Em vez disso, a visão dela se tornou mais nítida, reavivando a lembrança.

 

Lyla jogou-se sobre a cadeira ao lado da cama, afastando as expressões de pena e cuidado. Fez um muxoxo, fechando a mão sobre o tecido fino e delicado do vestido que usava. Era a mulher mais bela que Virnan teve o prazer de admirar e jamais se cansava de fazê-lo. A amava, contudo o amor que lhe dedicava não era romântico.

— Sabe o quanto detesto quando fala de si como se fosse um objeto substituível. — Ralhou.

— Sou uma auriva, todos nos veem assim. — Recordou, simplista. — Já tivemos essa conversa antes, mas você insiste em esquecê-la.

Fitava-a encantada com a preocupação que tentava esconder por trás da raiva. Lhe fascinava os olhos violetas e levemente repuxados, característicos da casta nobre a qual pertencia. Costumavam espelhar o brilho de uma alma pura e doce, porém forte e decidida.

A moça atirou os cabelos longos sobre os ombros, em um gesto nervoso. Ainda que expressasse revolta, foi um belo movimento. Seu perfume se espalhou pelo ar e invadiu as narinas, ainda ensanguentadas dela. Virnan, muitas vezes, acreditava que Lyla desconhecia o poder da própria beleza, noutras, estava certa de que ela a usava como a mais cruel e implacável das armas.

— Nosso sangue é misto, nossos ancestrais foram desprezados pelos Enaen e abandonados neste mundo quando eles partiram, mas o nosso maior crime é não possuir magia, pelo menos, uma digna do respeito das outras castas. Somos segregados; obrigados a habitar localidades mais humildes na cidade ou vilas afastadas. Nenhum auriva alcança posições respeitáveis ou de comando na sociedade ou exército. Não temos voz no concelho ancião. E, se um nobre se cansa dos nossos serviços, somos descartados.

Fez um esforço para coçar o queixo, travando o maxilar para não gemer de dor, então desmanchou a seriedade e exibiu os dentes, brincalhona. Mesmo havendo um grande abismo entre suas castas, jamais se encararam de outra forma que não fosse como iguais.

— Você é uma idiota! — Lyla a ajudou a sentar.

— Uma idiota que acabou de livrá-la de um casamento indesejável, deminara! De nada!

Lyla torceu o nariz para o título de nobreza que ela usou. Assim também eram chamados todos os de sua casta. Virnan só o utilizava quando estavam às sós, para provocá-la. Se aprumou. Fitou o horizonte através da janela semiaberta, aspirando o ar puro que ela permitia invadir o quarto humilde.

— O torneio é uma tradição, você sabe. O prêmio para o vencedor sempre foi a realização de um desejo, geralmente, material. Pelo o que me recordo, o Demir, meu pai, não mudou as regras para essa disputa.

— Pare de tentar me contrariar! Ambas sabemos que ele convidou todos os deminaras nobres e descompromissados do reino com o intuito de encontrar o melhor pretendente para você. Afinal, o rei está moribundo e não possui herdeiros. Logo, todas as famílias deminaras estarão disputando o trono. Alianças precisam ser alinhavadas. O que seria melhor do que um casamento?

Lyla estalou os lábios e Virnan sorriu.

— A conheço melhor que qualquer outro. Conheço os anseios do seu coração e você não teria me deixado lutar, se não temesse o resultado do torneio. Ou será que a convivência comigo está tornando seu coração rebelde e o fez apenas para provocá-lo?

A nobre balançou os ombros quando riu. Pensou que tinha escondido bem suas intenções quando resolveu realizar as vontades da amiga de participar da disputa, permitida apenas a sua casta.

— Ambos! — Atirou um gesto despreocupado no ar. — Ele está furioso porque a inscrevi como minha campeã. Disse que fui desonesta, mas o recordei de que é permitido aos nobres escolher campeões para representá-los e que não há nenhuma lei que impeça que sejam aurivas.

Sorriu, vitoriosa. Lyla abominava as distâncias entre as castas de seu reino e era uma ferrenha defensora de mudanças em algumas leis como, por exemplo, àquelas que impediam o casamento de membros de castas diferentes. Continuou:

— Chamou-me há pouco, para saber o que eu desejava. Respondi que o meu desejo é que o seu desejo seja realizado. Você venceu honradamente, é merecido. — Fez uma pausa. — Tem certeza de que quer isso?

Ficou pensativa, como se esperasse o teto desabar sobre suas cabeças. E era mais ou menos isso que estava para acontecer.

— Acha que deveria pedir sua mão? — Brincou.

— Deuses! Nem pensar. Você não seria uma consorte fiel. Me obrigaria a assistir um triste desfile de amantes chorosos.

 

 

A guardiã piscou algumas vezes, mas a imagem de Lyla ainda estava lá. Decerto, a febre retornava ao seu corpo, trazendo junto aquele belo fantasma de seu passado.

Quando os companheiros fugiram, se viu vítima de uma nova vertigem. Marie lhe tirou uma grande quantidade de magia; como isso não acontecia há muito tempo, não suportou a fadiga. No meio do combate, acabou por perder os sentidos e só recobrou a consciência em um dos calabouços da prisão de Bantos.

— Você não deveria estar aqui. — Sussurrou para o fantasma.

Os guardas seguiram seu olhar, mas acabaram por ignorá-la. Desde que saíram de Bantos, ela vinha tendo momentos de lucidez e delírio, graças ao tratamento nada bondoso que recebeu nas câmaras de tortura da prisão. O capitão da guarda não era do tipo que engolia uma derrota tão humilhante. Ainda ansiava capturar a eleita, então esforçou-se para arrancar qualquer informação que a guardiã pudesse lhe oferecer. Mas ela surpreendeu seus torturadores, mostrando-se mais resistente do que aparentava e nenhuma palavra sobre o paradeiro da princesa lhe escapou, exceto, piadas e provocações.

Quando o segundo dia de tortura se iniciava, um velho conhecido chegou à cidade e se viu muito satisfeito com sua captura. O Comandante Loyer fez questão de transportá-la para Axen imediatamente, ansiando pelo momento de sua vingança. Garantiu ao capitão beviano que ele seria bem recompensado pela captura e apressou o retorno para o seu reino de origem.

Um brilho suave se espalhou ao seu redor quando o fantasma sorriu. Sua mente estava confusa. Ela estava mesmo ali? Não, Lyla tinha partido há muito tempo. E aquele fantasma era apenas um reflexo da febre.

Afastou a vista para o homem que cavalgava alguns metros atrás da carroça, admirando a lâmina da adaga que lhe pertencia. Loyer sorria, enfeitiçado pelo brilho da arma.

— Você está morrendo. — O fantasma de seu passado disse, trazendo-lhe um arrepio a coluna. Sua voz parecia tão real que não resistiu a lhe responder.

— Já não era sem tempo. Estou cansada.

Um dos guardas chutou suas pernas, pedindo silêncio. Segurava firme o cabo da espada que descansava sobre suas pernas fora da bainha. O mesmo acontecia com os demais.

— Por que veio me atormentar, outra vez?

Agora recordava o motivo de ter enrolado o cabo da adaga. Avistara aquele fantasma doze anos antes e acreditava que a joia no cabo estava externando seus arrependimentos, por isso a cobriu.

— Não bastou me prender e pôr “correntes” na minha magia?

— Você fez isso consigo mesma. Sabe disso. Pelo o que me recordo, estava bastante ciente do seu crime e das consequências quando o cometeu.

— Fiz o que era necessário para proteger você e o nosso povo. Mas você não acreditou em mim. Talvez, fosse melhor tê-la deixado morrer naquele dia. Talvez, eu também devesse ter morrido.

O soldado a chutou novamente, e o fantasma sorriu, benevolente.

— Talvez, todos devêssemos ter morrido. Nos pouparíamos de muita dor. Você principalmente. Mas se o fizéssemos, Érion teria ganhado em sua primeira tentativa. Está certa, não acreditei em você e também cometi um crime imperdoável. — Mostrou-se melancólica. Mas não finja para mim, você não desejava a morte naquela época, nem a deseja agora. Passou doze anos naquela ilha esperando o retorno dele. Só não sei se o que quer agora é justiça ou vingança. De todo modo, está aí sangrando e procurando um meio de escapar e cumprir seu objetivo.

Um ar sombrio tomou conta do rosto da guardiã quando ela sorriu, abandonando o aspecto doentio. Apesar da traição e dos erros cometidos, Lyla ainda a conhecia como ninguém, mesmo sendo apenas um fruto da sua imaginação febril.

O fantasma sorriu, novamente.

— Eu estarei ao seu lado até lá. Serei o seu Spectu. Por isso, não segui para as Terras Imortais. Por isso, me prendi a adaga sabendo que um dia ela retornaria para suas mãos.

A imagem dela ondulou e Virnan trincou os dentes.

— Você é apenas uma ilusão, uma projeção da adaga.

É a mentira que tem se contado por todos esses anos?

Uma dor profunda a inundou. Sabia que era verdade, aquela era mesmo Lyla. Fitou as mãos. Finalmente, compreendia que foi a presença dela que a permitiu viver até aquele momento, que a manteve sã.

— Não sou Zarif, mas farei o meu melhor. Eu a escolhi, Virnantya. Então, aceite-me quando estiver preparada. — Desapareceu, como se fosse um reflexo na superfície de um lago.

Aquela dor era um buraco sem fundo, que se expandia mais e mais com a tristeza que a dominava. Ainda não podia perdoar Lyla e saber que ela não seguiu para as Terras Imortais para ficar ao seu lado, aumentava sua revolta. Jamais a aceitaria como seu Spectu. Jamais permitiria que se tornasse o seu espírito guardião.

Balançou a cabeça algumas vezes, obrigando-se a deixar o choque das revelações de lado. Precisava se concentrar em escapar, agora que estava completamente consciente pela primeira vez em dias. Sabia que seria uma tarefa complicada, graças ao desgaste físico em que se encontrava, mas não era impossível.

Seu olhar pousou em Loyer, que esfregava a joia verde no cabo da adaga.

— Não é uma arma para um homem como você, Comandante. — Alteou a voz.

Loyer incitou o cavalo a chegar mais perto.

— Finalmente! Estava achando que você morreria antes de alcançarmos a fronteira de Axen. — Sorriu maldoso. — Não seria uma grande perda, é um fato. Mas isso destruiria a possibilidade de usá-la para criar um novo amuleto para Anton.

Mirou o homem que cavalgava do outro lado da carroça. Este meneou a cabeça, deixando o capuz da túnica escorregar, revelando uma pele macilenta e carregada de cicatrizes.

— Anton — ela experimentou o nome dele. — Ah, o sujeito do gelo! Desculpe pelo seu amuleto. Na verdade, foi um acidente, não era a minha intenção quebrá-lo. Eu esperava acertar seu coração. — Provocou.

O homem fez uma carranca e Loyer cuspiu no chão.

— Suas piadas estão chegando ao fim. — Cantarolou ele, apontando a adaga para ela. — Agora que tenho isto, entendo porque conseguiu me vencer no castelo e o que fez no mar e em Bantos. A pedra do coração não estava no altar porque você estava com ela. — Mirou a pedra no cabo da arma. — Anton confirmou que há uma grande magia nela. A sinto vibrar, como se ansiasse expulsar todo esse poder.

Virnan gargalhou alto, capitando um movimento discreto entre as árvores.

— Você não entende nada, Comandante. Nem mesmo sabe o que a pedra que tanto busca é. Alguma vez se perguntou o motivo do seu Lorde a querer tanto?

O maxilar dele se contraiu. Claramente, ela estava com a razão. Não tinha ideia do que aquilo tudo se tratava e acreditava que não precisava saber. Era um soldado, bastava-lhe seguir ordens e, desde que houvesse sangue na lâmina da sua espada e seu povo estivesse seguro, o resto não lhe interessava.

A carroça passou por um buraco, fazendo com que os ferimentos dela latejassem. Rilhou os dentes, mas aquela dor poderia ser comparada a picada de um inseto, se confrontada a todas as outras que já sentiu. Observou o caminho que ficava para trás; um túnel obscuro, formado por árvores de troncos grossos e raízes profundas, cuja copa parecia se entrelaçar. As árvores se tornavam maiores à medida que se aproximavam de Axen, ainda assim, muito menores do que as que compunham as florestas de Caeles.

Outra vez, capitou algo nas sombras e uma ruguinha discreta se formou em um dos lados da sua boca, ficou mais evidente quando focalizou Anton.

— Ah, você não sabe, mas o “querido” Anton tem uma boa ideia. Não é mesmo?

O mago não respondeu. Fingiu não reparar no rosto inquisitivo do comandante e concentrou a atenção no caminho à frente.

— Admito que essa adaga é especial. Contudo, um homem como você não pode usá-la. Pelo menos, não da maneira correta.

Ele incitou o cavalo a se aproximar mais da carroça. Estava tão perto que bastava se curvar um pouco para tocá-la. Os guardas redobraram a atenção.

— É muito simples usar uma adaga, guardiã. Basta penetrar a ponta de metal na carne do inimigo.

A moça alargou o riso, notando o retorno da fadiga e da febre. Precisava se apressar.

— Como eu disse, comandante, um homem como você jamais poderia usá-la da maneira correta. — Deslizou os dedos sobre a face, onde uma grande mancha de sangue seco e um hematoma quase negro maculavam sua beleza. Explicou: — A joia encrustada no cabo se chama tucsia. É muito rara, tão rara que a única pedra encontrada foi dividida e usada para confeccionar apenas seis armas.

Falava um pouco arrastado, movimentando as mãos devagar, em gestos miúdos e desconexos. Um brilho suave e ligeiro escapou dentre as sombras das árvores, respondendo à pergunta silenciosa que ela fizera sem levantar suspeitas do comandante e seus homens.

Tinha notado a presença dos amigos, há poucos instantes. O olfato apurado lhe trouxe o perfume dos florais que a grã-mestra usava para banhar-se e que costumava ficar impregnado em suas vestes. Não tardou para que Fantin se deixasse ver rapidamente.

O mago Anton a fitava com uma sobrancelha arqueada. O nome daquela joia não lhe era estranho e revolveu a memória em busca da informação, enquanto ela continuava a explanação:

— Essa pedra tem uma cor esverdeada, mas quando tocada pelo sol, adquire um tom azulado. A pedra do coração é de um verde intenso, como o de uma esmeralda. Desde que me lembro, ela nunca esteve naquele baú sobre o altar do salão dos mestres. Pelo menos, não a verdadeira. — Sorriu, inclinando a cabeça devagar. — Ela sempre esteve à vista e ao alcance de todos. Isso te lembra algo, comandante?

Loyer apertou firme o cabo da adaga. Sim, ele sabia ao que se referia e engoliu em seco por sua estupidez ao não notá-lo antes.

— A grã-mestra — falou. — Ela usa um medalhão com uma pedra verde no centro.

As correntes fizeram barulho quando ela bateu palmas.

— Bravo! Sabia que havia um pouco de cérebro nessa cabecinha! — Piscou.

Anton admirou o gesto, concentrado na cor dos olhos dela. Eram tão claros que, por vezes, lhe pareciam transparentes. Onde tinha ouvido falar de olhos assim?

— Ouça-me bem, guardiã. Lhe faço uma promessa. Quando chegarmos a Axen, irei usar esta adaga para extirpar sua pele, beberei do seu sangue para comemorar seus gritos de agonia, satisfeito por arrancar esse sorrisinho do seu rosto — inclinou-se na direção dela para dar ênfase a ameaça.

Virnan riu alto, balançando os ombros.

— Você me diverte, Loyer.

Pronunciou o nome dele com um leve sotaque e Anton, finalmente, recordou onde tinha ouvido falar da pedra no cabo da adaga e o que ela fazia. Mas essa informação não o preocupou tanto quanto o significado da cor daqueles olhos.

A carroça parou, assim como todo o comboio. Uma árvore estava tombada no meio do caminho, impedindo a passagem.

— Infelizmente, para você, isso nunca irá acontecer. — Ela afirmou para o comandante.

— Auriva — Anton pronunciou, capturando a atenção de Virnan.

Ele ergueu a mão, conjurando uma magia de contenção, mas antes que ela pudesse se concretizar, a guardiã esticou o braço, puxando um dos guardas para si. O movimento foi tão rápido que não houve espaço para reação. A magia de Anton atingiu o rapaz e Virnan lhe tomou a espada, cravando-a no pescoço do guarda mais próximo.

O sangue jorrou em sua face quando ela retirou a lâmina e a atirou em direção ao mago. Anton foi jogado no chão, pelo impacto. O terceiro guarda não ofereceu reação, pois uma flecha encontrou abrigo em suas costas e o corpo tombou para fora da carroça.

Surpreso, Loyer afastou-se, gritando ordens para os homens. O soldado que conduzia a carroça tentou saltar para fora dela, mas a guardiã o puxou pelas vestes, o jogou sobre o piso de madeira, lhe tomando as chaves das correntes antes de o atirar para fora da condução.

Fenris surgiu à galope, cruzando a clareira como um pequeno demônio ceifador. Atrás dele, Lorde Verne coordenava o ataque e saltou do cavalo para se engalfinhar com um soldado, que preparava o arco para atacar Távio. A luta que se desenhou na praia da Ilha Vitta, finalmente, se iniciava.

Por trás das árvores, as ordenadas forneciam apoio aos guerreiros, deixando de lado o desagrado pela guerra. Quando Távio enviou um dos soldados para contar que tinham avistado o comboio que transportava Virnan para Axen, cruzando a mesma vila em que tinham ido buscar mantimentos, não houve discussões. Nem mesmo Lorde Verne ousou se negar a ir resgatar a guardiã, ciente de que seria voto vencido.

A jovem conquistou o respeito de seus homens ainda no Guerreiro dos Mares e desde que desapareceu, volta e meia, os ouvia sussurrando sobre o que teria lhe acontecido e torcendo para que estivesse viva.

Melina disparou uma flecha, que se alojou na perna de um soldado. Ela colocou outra seta no arco e procurou um novo alvo. Assim como Virnan, um dia ela pertenceu ao círculo de proteção e apesar de algumas décadas longe dele, seu corpo ainda recordava como usar todas as armas com as quais treinou. Fazia disparos precisos, usando a magia somente para aguçar os sentidos. Causava ferimentos que tirariam os homens do combate, mas não os mataria.

Todos os ordenados sabiam o mínimo de combate corporal para defenderem-se, caso não houvesse um guardião por perto. Certamente, isso nunca foi necessário até aqueles dias. Marie usava uma magia semelhante à de Fantin, traçava gestos fluídos no ar, espalmando as mãos como se empurrasse algo. O resultado dos movimentos era visto onde a batalha se desenrolava. Pequenas colunas de terra e pedra erguiam-se, derrubando homens; o solo rígido tornava-se arenoso, sugando pessoas até a cintura.

Virnan livrou-se das correntes. Apesar do esforço que tinha feito para matar os guardas, agora pagava o preço. Tantos dias sem movimentar-se, todo o sangue derramado e a gravidade dos ferimentos a fizeram se dobrar ao lado da carroça, expulsando do estômago nada mais que o suco gástrico.

Jogou-se no chão para escapar da espada de Loyer. O comandante tentou novo golpe e sua espada se chocou com a de Lorde Verne. Estavam lado a lado e Verne lhe deu uma cotovelada na face, jogando-o para trás. O comandante se afastou e um soldado tomou seu lugar como adversário do badir.

Mestra Fantin cruzou o campo de batalha, em que a estrada havia se tornado, ao lado de Alina. Enquanto esta última lhe oferecia proteção, Fantin usava sua magia lançando socos no ar que atiravam homens no chão, como frutos a cair de uma árvore.

Eram poucos em relação aos axeanos, mas a magia das ordenadas lhes dava uma grande vantagem. Elas alcançaram Virnan, que teve um pouco de dificuldade para se concentrar nas faces amigas. A guardiã recuperou seu equilíbrio e reuniu as forças restantes, alcançou a espada de um soldado morto e a atirou com precisão, assustadora, no peito de um homem que iria atacar o badir pelas costas. O príncipe engoliu em seco ao perceber o quão perto da morte esteve. Meneou a cabeça, agradecendo, e escolheu novo adversário.

— Venha! — Fantin a puxou para si, surpresa por vê-la em estado tão deplorável. Começou a enfiar o braço em volta da cintura dela, mas a guardiã a afastou.

— Não deviam ter vindo! — Se queixou, mas não conseguia esconder a felicidade por revê-las.

Um soldado se chocou contra a barreira de Alina e suor escorreu pela face desta. Dividir forças com Fantin tornava o peso da magia menor e, portanto, conseguia resistir por mais tempo. Mas naquele momento a erguia sozinha.

— Depressa! — Falou, no instante em que cedeu ao cansaço. A barreira caiu e o axeano quase lhe cortou a garganta em um golpe, mas Fantin a puxou para trás em tempo. Mesmo assim, um filete de sangue escorreu pelo pescoço alvo da mestra. Virnan desferiu um soco no flanco direito dele, o homem curvou-se e ela lhe torceu o braço, ouvindo os ossos de partirem. Tomou-lhe a espada e lhe cortou a garganta, assim como ele tentou fazer com Alina.

As duas mestras estremeceram diante da cena, mas nada disseram. Não era momento para conversa e jamais tinham se iludido com a ideia de que poderiam resgatá-la sem derramar sangue.

— Vamos embora! — Fantin pegou um dos cavalos dispersos pelo lugar e arrastou Alina para a sela. Tentou fazer o mesmo com Virnan, mas a guardiã endireitou-se, respirando fundo. Sussurrou uma oração de morte para o vento e atravessou a distância que a separava do comandante Loyer, deixando uma trilha de corpos para trás. Estocou, quebrou ossos, cortou. Seus pulmões queimavam, a ferida no abdômen sangrava, as mãos tremiam, mas o ódio a consumia queimando em seu peito como combustível para o fogo da morte que há muito não sentia.

— Dê-me a adaga! — Ela jogou-se sobre Loyer e os dois rolaram pelo chão, disputando a posse do objeto.

O comandante rosnou como um animal.

— Somente morto. — Respondeu, socando o rosto dela com a mão livre.

— Assim será. — Ela sentenciou, cuspindo sangue.



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para 12. Lyla

  1. Já não era sem tempo essas notícias de Virnan! Agora mais detalhes sobre a origem dela começam a aparecer e a história aparece com mais aspectos do passado.
    Ansiosa pelo próximo capítulo.
    Adorando essa história!
    Valeu, Tattah!

    • Então, Naty, se segura na cadeira porque o passado da nossa guardiã está chegando como uma bomba. Prometo muitas surpresas nos próximos capítulos.

      Como sempre, muito alegre pela sua companhia.

      Beijão!

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