*
— Do que está falando? — Verne se levantou, também.
Enquanto Virnan o observava escorregar a mão para a espada, a janela às suas costas se estilhaçou e algo pesado lhe atingiu, jogando-a para a frente. O chão duro e frio a recebeu. Por longos instantes, não se moveu. Então, rolou para o lado e arqueou a cabeça.
Observou as gotas de sangue que tingiam o piso de madeira com a visão embaçada. Elas deslizavam, encharcando as pontas dos cabelos negros, formando uma poça ao lado de uma pedra tão grande quanto sua mão.
Por um tempo tudo o que ouvia era o bater forte do seu coração e a respiração pesada. Não sabia onde estava, não entendia quem era. As ideias se misturavam, enquanto uma forte náusea a tomava, obrigando-a a se esforçar para não expulsar o conteúdo do estômago.
Alguém se agachou ao seu lado, a ajudou a ficar de pé. Foi guiada até o outro lado da sala com pernas trêmulas e hesitantes. O sangue escorria farto, agora nublando completamente a visão. Fechou os olhos e foi envolvida por braços conhecidos.
O cheiro de Marie se infiltrou em suas narinas, trazendo a familiar sensação de segurança, enquanto os pensamentos se colocavam em ordem. Outras mãos lhe ofereciam cuidados curativos e a dor foi amainando até que os primeiros sons da luta lhe chegaram.
Abriu os olhos e se deparou com o rosto preocupado de Marie. Lhe pesava ver o reflexo do medo e preocupação que a tomava, mas também lhe comprazia perceber que, por alguns instantes, ela tinha deixado cair a máscara de mentora e amiga. Marie poderia negar para si mesma, para o sol e para as estrelas, mas jamais conseguiria enganá-la. Ela a amava também.
A mestra movia os lábios sem que nenhum som lhe escapasse e a apertou mais contra si. Usou tanta força que o ar lhe sumiu por um momento. Por sobre o ombro dela, assistiu Lorde Verne decepar a mão de um atacante, enquanto Fenris interceptava as investidas de outro. O cavaleiro se esquivou de um corte transversal e se aproveitou de um breve momento de desequilíbrio do adversário para enfiar a espada na perna dele. O homem rugiu, saltitando para trás, até trombar com a mesa e se tornar vítima, outra vez, da lâmina do cavaleiro.
Dois homens entravam pela janela quebrada, jogando-se sobre o badir, mas ele percebeu a movimentação e saltou para o lado, desferindo um golpe fatal em um deles, ainda no ar.
Fantin e Alina tinham conjurado uma proteção para elas, impedindo que os inimigos se aproximassem daquele ponto da sala, caso passassem pelos guerreiros de Midiane, mas os dois tinham a situação sob controle e não tardou para se verem rodeados por corpos.
O badir cuspiu no chão, ofegante. Fenris limpou a lâmina da espada na túnica de um dos mortos e se aproximou das mulheres.
— É o melhor que posso fazer, no momento — Melina falou, retirando as mãos dos ombros da guardiã, mas Marie não a soltou, ainda estava embebida no medo que sentiu quando a viu sangrando no chão. Foi como se espíritos maléficos carregassem seu sol, deixando apenas uma noite sem estrelas, onde tudo era apenas vazio.
Pela segunda vez, no espaço de um dia, aquela terrível sensação lhe tomava e odiou-se por se sentir assim. Sobretudo, odiou Virnan por machucá-la daquela forma, mesmo sabendo que não era culpa dela.
A guardiã se aprumou entre seus braços. Lhe sorriu, brejeira.
— Eu já me sinto bem, Marie. E por mais que goste de estar em seus braços, preciso que me solte.
A mestra se demorou a obedecer, apertando-a mais contra si. Virnan até que estava apreciando aquilo, mas não era o momento, então ficou na ponta dos pés, lhe dando um beijinho no queixo. Desconcertada, a mestra a soltou com um violento tom vermelho a lhe tingir a face.
— Você é mesmo uma graça quando está envergonhada — a amiga sussurrou, e Melina ocultou uma risadinha, pois tinha captado as palavras.
A grã-mestra jamais admitiria em voz alta, mas a face irresponsável da guardiã a divertia, ainda mais quando ela mexia com Marie daquela forma, quebrando sua rigidez. Mesmo que o momento não fosse propício para isso.
Virnan se viu livre e ligeiramente tonta. Escorregou a mão pelos cabelos empapados de sangue e inspirou fundo, buscando o equilíbrio. As pessoas giraram diante de seus olhos, mas logo readquiriu o domínio sobre o próprio corpo.
— Achei que tínhamos despistado eles! — Alina falou, alisando as roupas, como se tirasse poeira delas, mas não podia estar mais impecável.
Ao seu lado, Fantin estapeou a parede.
— Malditos axeanos!
Lorde Verne se aproximou da janela, notando que aquele ponto da rua se encontrava deserto. Inclinou a cabeça com cuidado, buscando a presença de outros atacantes do lado de fora. Aparentemente, aqueles eram os únicos, então deu-se por satisfeito e caminhou até a porta, enquanto Virnan dizia:
— Eles não são de Axen — assentou a mão sobre o cabo da adaga, resvalando o olhar pelos rostos masculinos dos falecidos, reparando na pele clara e avermelhada e nas roupas. — O navio deles foi avariado também. Levaria algum tempo para que conseguissem chegar à costa e, pelo menos, mais um dia de viagem até aqui. Supondo que tenham encontrado cavalos e mantimentos.
— Então, quem são esses?
— Meu palpite é que sejam caçadores de recompensa ou mercenários — Verne deslizou a mão pela madeira da porta até o ferrolho e a guardiã lhe tocou o ombro, apurando a audição e captando a movimentação do outro lado da abertura. O puxou para o lado quando esta se abriu e deu passagem a outros homens.
Obviamente, pertenciam ao mesmo grupo. Fenris se atirou sobre eles, levando-os de volta para o corredor, dando prosseguimento à luta.
— São mercenários e idiotas. — Virnan entrou no corredor, também. — Se tivessem sincronizado bem o ataque, não teríamos tido chance de revide.
Fenris era um exímio espadachim e se aproveitava do espaço estreito para impedir o avanço dos homens. Os conduzia em direção ao salão, enquanto Lorde Verne permanecia mais atrás, à frente das ordenadas.
Irromperam no salão, causando alvoroço entre os clientes da taverna. Ao perceberem a movimentação, os homens que Verne tinha deixado no salão reagiram. O local se tornou um pandemônio. A maioria das pessoas correram para a rua e Virnan guiou as companheiras para a saída, tomando a frente delas.
Um homem bloqueou sua passagem e a guardiã se aproveitou da baixa estatura para surpreendê-lo com um golpe na linha da cintura. Quando ele ergueu a espada e tentou perfurá-la, Melina reconheceu os mesmos movimentos que ela utilizou contra o comandante Loyer. Seus dedos resvalaram pelo braço dele até atingirem o peito, desferindo um golpe rápido que, a grã-mestra sabia, na realidade eram três. O homem curvou-se e recebeu o golpe final, uma cotovelada na nuca.
O ar frio da noite as envolveu quando alcançaram a rua, quase deserta. A confusão tinha afugentado os clientes da taverna e os passantes. Apenas a suave névoa que a guardiã vira pela janela, um pouco antes do ataque, preenchia a rua.
Virnan ordenou que corressem, mas mudou de ideia quando percebeu um grupo de cavalos atados a um poste do outro lado da rua. Dois homens os guardavam. As vestes demonstravam que também faziam parte do grupo de mercenários.
— Peguem os cavalos e saiam daqui! — Ela disse.
As mulheres se dirigiram para os animais e um dos mercenários tentou interceptá-las, mas argolas douradas surgiram nos pulsos de Fantin. Ela socou o ar e ele foi atirado contra a parede do estabelecimento do outro lado da rua. Virnan sorriu, divertida com a cena, e jogou-se no chão para escapar da maça estrelada* que o outro homem usava. Pela velocidade do golpe, ele sabia manuseá-la com destreza, embora fosse uma arma pesada.
Rolou para o lado, evitando ter a cabeça esmagada. A maça deixou um buraco onde estivera e arrastou barro quando empunhada novamente. Rolou outra vez, até ficar de pé para, em seguida, inclinar-se para trás, livrando-se de novo ataque.
Dentro da estalagem a luta seguia violenta e gritos de raiva e dor se misturavam ao som do metal se chocando.
O mercenário ergueu a maça e a desceu em direção ao rosto da guardiã, que firmou os pés no chão e girou o tronco, escapando do golpe por centímetros. Então, Virnan segurou o cabo de madeira, impedindo que o homem retornasse para a posição inicial. Ele puxou com força, mas ela não se moveu. Assim, ele tentou lhe dar um soco, mas foi bloqueado e recebeu um chute na virilha. Urrou de dor e largou a arma, que Virnan fez questão de atirar para longe. Ela saltou, girando o corpo e atingindo o rosto dele com outro chute que o levou a perder os sentidos.
— Venha! — Fantin chamou, já na sela de um dos cavalos.
Na esquina, soldados despontaram. Estes usavam as cores da guarda de Bantos.
— Deuses! Estamos mesmo sendo discretos! — Melina reclamou.
Lorde Verne, Fenris e o restante dos homens irromperam na rua, suados, feridos e ofegantes.
— Subam nos cavalos! — Virnan ordenou.
O ferimento na cabeça tinha voltado a sangrar e curvou-se levemente, sentindo vertigem. Verne tomou seu braço para que não caísse e Marie apeou do cavalo para apoiá-la, também. O lorde se deu conta dos homens que se aproximavam.
— Não será nada bom se formos presos pela guarda — disse. — Bévis anda acusando Midiane de tentar sabotar o sacrifício, outra vez.
Empurrou Virnan para Marie, que enlaçou sua cintura, preocupada.
— Eles chegaram muito rápido e com um contingente muito grande para separar uma “briga” de taverna. — Fenris subiu em um dos cavalos, dando a mão para um dos companheiros subir na garupa.
— Isso tudo foi armado — o lorde concluiu.
Na outra esquina, mais soldados surgiram, dando mais certeza ao que dissera.
— Tem alguma dúvida disso? — Virnan criticou, empurrando Marie para o cavalo. A vertigem tinha passado e tomou lugar na garupa.
— Como sabiam onde estávamos? — Fenris indagou, enquanto Verne montava em outro cavalo.
— Vocês passaram o dia andando pela cidade. Um príncipe de Midiane e a grã-mestra da Ordem. São figuras públicas. Mesmo sob disfarce, devem ter sido reconhecidos. — Virnan opinou, analisando os arredores. A rua não tinha saída, além das duas que os guardas ocupavam.
— Depois que soube do paradeiro da eleita, Lorde Axen deve ter se prevenido, caso Loyer falhasse. Deve ter enviado mensageiros para os aliados de outros reinos, informando que poderia estar em sua companhia. — Fantin concluiu o raciocínio dela e irritou-se. — Mas não temos tempo para discutir isso agora! Estamos cercados e sem rota de fuga!
Verne apertou as rédeas entre as mãos, voltando a desembainhar a espada.
— Isso é uma declaração de guerra!
Os soldados avançavam devagar, com a certeza de que não tinham como escapar. Atrás de um dos grupos, um homem seguia a cavalo. As cores distintas do uniforme revelavam a patente de comandante.
— Não acredito que esses homens estejam interessados nisso, Badir. Sou capaz de apostar que o governo nem imagina o que está se passando. Se soubessem, não teriam usado mercenários, inicialmente. Estou certa de que esse era o plano. Não precisariam sujar as mãos, nem chamar a atenção para uma atividade fora da sua alçada. — Virnan tornou a falar, ainda examinando os arredores.
Alina falou baixo. Mantinha-se calma e pensativa, apesar da situação:
— Decerto, estavam de olho na taverna e quando os clientes fugiram e também saímos, optaram por agir diretamente. É provável que o comandante da guarda queira cair nas graças de Axen e receber a recompensa.
O badir deixou algo parecido com um rosnado escapar.
— Isso não interessa agora. — Um dos soldados de Midiane, Távio era seu nome, chamou a atenção para si. — Somos poucos para dar conta deles.
A guardiã deslizou a mão para a adaga. Poderia usá-la, mas se o fizesse ficaria completamente fora de combate e não haveria garantias de que teriam sucesso em escapar.
Analisou as construções. Poderiam fugir pelo teto delas, mas até alcançar o primeiro, já estariam em combate direto. Além disso, ela poderia se locomover com facilidade, mas o mesmo não era certeza para os demais e a grã-mestra já era idosa, apesar de possuir um tipo de magia que lhe permitia aguçar os sentidos, melhorando seu desempenho físico.
Voltou a fixar os soldados. Era perfeitamente capaz de lidar com aqueles homens, mas partir para um ataque direto a deixaria exposta demais e o resultado poderia ser fatal. Se pudesse distrai-los, poderia se aproximar e abrir caminho para os companheiros. Obviamente, também seria uma investida perigosa e mortal.
Fixou a vista na névoa, uma ideia desagradável lhe ocorreu e estalou a língua.
— Parece que não tem outro jeito mesmo. Essa missão anda complicando minha vida. — Inspirou fundo. — Vou precisar de você, novamente, Marie.
Voltou-se para Melina, mostrando as mãos.
— Tenho sua permissão?
A velha cerrou os olhos, compreendendo o que ela pedia. Sentiu um leve aperto no peito, já imaginando o que seus olhos seriam obrigados a ver.
— Faça o que tem de fazer, mas ficarei grata se puder poupá-los, apertou a rédea entre as mãos.
A moça inclinou a cabeça e estalou os dedos, dizendo para o Lorde:
— Se preparem para partir.
Olhou para Fantin e Alina.
— Vocês duas, criem uma proteção em volta do grupo.
Alina saltou para o cavalo de Fantin e as duas começaram a conjurar a magia de proteção que pediu.
— Grã-mestra, conto com você para guiá-los. Use sua magia e aguce seus sentidos.
A idosa obedeceu sem questionamentos e obrigou-se a não pensar nas consequências da permissão que tinha lhe dado. Outra vez, Virnan assumia aquele aspecto inflexível de quem está disposto a fazer o que é necessário para sobreviver e proteger as pessoas de quem gosta.
A guardiã deslizou as mãos pela cintura da mestra, dizendo para ela:
— Não se preocupe comigo. Quando tudo estiver feito, irei abrir o caminho para vocês.
Marie se inclinou para o lado, a fim de olhá-la. Algo no jeito que falou lhe trouxe um mal pressentimento, mas Virnan o afastou com um daqueles sorrisos confiantes e despreocupados.
— Tomem a direção do sul e eu os encontrarei depois.
Não vou te abandonar aqui.
A amiga aumentou a pressão em sua cintura.
— Não é hora para dramas ou discussões. Preciso que se concentre e use a minha magia. Você terá de conjurar, desta vez. Se for eu, ficarei fora de combate rapidamente, como no navio.
A mestra estremeceu por se ver obrigada a canalizar seus dons, outra vez. Entretanto, diante da situação em que se encontravam, não podia se negar. Deixou os ombros se curvarem por um breve momento, então perguntou:
Como faremos?
— A diferença da vez anterior é que você irá absorver a minha magia. Eu não posso mais usá-la, mas os canais ainda estão aqui.
Não compreendo.
— Quando me tocou no navio, você viu a magia agir no meu corpo, certo?
Ela confirmou. Os soldados já estavam a apenas uma centena de metros.
— É quase a mesma coisa. Só que eu vou mostrar o que você deve absorver. — A abraçou por trás.
Marie cerrou os olhos, sentindo o agradável calor do corpo dela. Virnan encostou a testa em seu ombro e, de repente, a mestra foi sugada para o interior dela. Via cada veio mágico que percorria o corpo da amiga. Eles eram coloridos como um arco-íris e se cruzavam em alguns pontos, formando pequenos círculos de luz. Nunca tinha visto algo assim, desde que seus dons despertaram.
Melina sempre foi uma mestra exigente; a obrigava a treinar diariamente, fazendo aquele tipo de “invasão” no corpo de seus colegas, enquanto usavam seus dons. Marie sempre se sentiu mal por isso; era como se vestisse a pele dos outros por alguns segundos, como se estivesse roubando uma parte da vida delas.
Essa sensação desconfortável não a tomava naquele momento. Lhe ocorreu que isso era resultado do fato de Virnan a convidar a “entrar” sem receios. Diferentemente, das pessoas com quem treinou ao longo dos anos. Até mesmo Melina lhe oferecia certa resistência nesses momentos.
Admirou todas aquelas cores, se perguntando como nunca percebeu aquele poder. Se ela o tinha, como não podia usá-lo? Será que a teoria de Alina e Melina era verdadeira e a ex-pupila fizera aquilo consigo mesma, se privando do uso daquele poder? Quem dera ela, Marie, pudesse ter feito o mesmo.
Aqui.
A voz da guardiã soou em sua mente, afastando os pensamentos aos quais tinha se entregado. Marie ergueu uma mão fantasma e lhe tocou a região próxima dos pulmões, onde uma bola de luz azulada brilhou mais forte, após Virnan “falar”. Imediatamente, a magia lhe invadiu o corpo.
Virnan a soltou, sugando o ar e abafando uma tosse. Mas logo se recuperou e lhe envolveu a cintura, ficando um pouco de lado para ver o que se passava na rua, enquanto sussurrava:
— Lembra daquela brisa agradável no teto do castelo, em noites quentes?
Ao longe, o comandante da guarda gritou:
— Vocês estão presos em nome do governo de Bantos. Larguem suas armas e se entreguem sem resistência.
Os soldados começaram a apressar o passo. Marie inclinou a cabeça com uma resposta positiva.
— Lembre-se de como é a sensação. Então, imagine-a se tornando mais e mais forte até virar um redemoinho de vento.
A mestra obedeceu e sentiu a magia dela fluir pelo corpo. Era uma sensação diferente da que estava acostumada. Era como se aquilo fosse algo único. Era quente, acolhedora e, ao mesmo tempo, assustadora, mas não de uma forma ruim.
— É a sua única chance de sair vivo daqui, Badir. — Gritou o comandante. — Renda-se agora.
— Para o inferno! — Verne berrou de volta.
— Que a sua vontade seja feita. — Devolveu o comandante. Fez um gesto e a primeira fileira de homens se agachou, permitindo que a segunda fileira se postasse para o ataque, elevando os arcos. — Só preciso das mulheres mesmo. — Sorriu.
As flechas pararam na proteção que Alina e Fantin conjuravam e o comandante ordenou novo ataque, que também falhou. As flechas continuaram sendo atiradas, enquanto Virnan e Marie continuavam seu ritual.
— Abra os olhos — a guardiã pediu.
A névoa que tomava as ruas, havia algum tempo, subiu girando sobre suas cabeças.
— Incrível — Verne sussurrou.
Alina concordou, enquanto continuava unindo suas forças com as de Fantin, para manter a proteção erguida. Uma parede invisível os circundava, vez ou outra ondulando e espalhando um brilho colorido quando atingida pelas flechas.
— Marie — Virnan se apertou mais a ela. — A parte fácil já foi.
A mestra arqueou as sobrancelhas, contrariada.
— Agora, preciso lhe pedir algo difícil. Quero que fale.
Marie engoliu em seco e a névoa começou a se dissipar.
— Não tenha medo. Estou aqui com você e não deixarei que perca o controle.
Ela balançou a cabeça em negativa.
— É a única maneira. Isso é diferente de uma magia comum e é apenas uma palavra.
A amiga apertou os braços em volta do corpo dela e Marie curvou os ombros. Virnan sempre conseguia tirá-la de rumo. Em contrapartida, sempre lhe oferecia sustento quando necessário. Por fim, fez um gesto afirmativo.
— Nebulare. — Virnan falou. — Repita devagar.
Marie sugou o ar para os pulmões com as mãos trêmulas e suadas. Medo preenchia seu peito, mas a segurança dos braços da amiga, em volta do seu corpo, afastou o sentimento ingrato. Virnan não lhe pediria algo tão penoso, se não pudesse lhe garantir que nada de mal aconteceria aos companheiros.
Entreabriu os lábios e sussurrou:
— Nebulare.
A névoa sobre suas cabeças se agitou. O redemoinho cresceu, trazendo-a para baixo e os envolveu completamente. Era mais densa que a anterior, como uma parede de fumaça. Virnan moveu-se na garupa, sentando um beijinho na nuca da mestra.
— Viu? Não foi tão ruim! — Saltou do cavalo, alcançando o chão com graciosidade. — Fiquem próximos de Fantin e Alina e deixem que a grã-mestra os guie.
Ela entrou na névoa e foi envolvida por ela. Instantes depois os primeiros sons de luta chegaram. Melina incitou o cavalo a seguir adiante e eles a seguiram completamente às cegas. A proteção que as mestras conjuravam mantinha a névoa longe deles e, assim, podiam enxergar o caminho que Melina tomava.
Virnan não estava à vista, mas passaram por uma grande quantidade de homens inconscientes. Quando alcançaram a esquina, Fenris soltou:
— Eu tô apaixonado! Essa mulher é incrível.
— Ela é um demônio! — Verne concluiu com o coração agitado e recebeu um olhar nada amigável de Marie.
**
A névoa que as duas ordenadas conjuraram, de fato, não era uma magia comum e logo perceberam isso, pois ela tomou conta de toda a cidade, não apenas da rua da estalagem. Quando cruzaram os portões de Bantos e adentraram na floresta que a circundava, a névoa ainda estava presente e foi assim por grande parte da noite.
O dia amanhecia quando Verne decidiu que podiam parar e descansar. Não ousaram fazê-lo enquanto não estivessem longe do alcance de Bantos. Apearam dos cavalos junto a um riacho e deixaram que os animais se fartassem com a água e o pasto abundante, enquanto também saciavam a sede e procuravam algo para se alimentarem nos alforjes. Havia muito pouco, mas ajudou-os com a fome do momento.
— Será que alguém pode me explicar o que aconteceu? — Fenris pediu, engolindo um pedaço de pão seco.
Ele estava sentado no chão, recostado ao tronco de uma árvore. Tinha alguns cortes na face e braços, todos em fase de cicatrização, graças ao trabalho da grã-mestra.
— Havia meia centena de homens naquela rua. Eu sei que a guardiã Virnan é uma mulher habilidosa. Vi de perto a surra que ela deu no Comandante Loyer, naquela praia. Também sei que vocês, magos, podem fazer coisas extraordinárias, mas aquela névoa…
Olhou para Marie, que se limitou a gesticular:
Só fiz o que ela pediu, da forma que pediu.
Ele ergueu as sobrancelhas, confuso, e Alina traduziu.
— Mas aqueles homens eram todos soldados treinados. Deuses, ela estava desarmada.
Até aquele momento, não tinham pronunciado nenhuma palavra relacionada ao que Virnan e Marie fizeram. Na verdade, mal conversaram, exceto para decidirem o caminho que iriam seguir.
Melina se remexeu sobre uma pedra, recordando o que se passou naquela rua. Optou pela verdade.
— Manibut. — Falou.
O cavaleiro pareceu tão confuso quanto quando viu os sinais que Marie fez e Verne deixou escapar um grunhido baixo. Ele tinha ouvido falar sobre essa técnica na escola militar, quando ainda era um adolescente, mas jamais encontrou alguém que soubesse usá-la.
— Isso é apenas uma lenda. — Retrucou o badir, cujas roupas possuíam uma grande quantidade de sangue, mas nenhuma gota era sua.
Mestra Fantin estava agachada na beira do riacho. Encheu o odre, que estava na sela do cavalo dela e Alina, e tomou um grande gole após dizer:
— Toda lenda tem um fundo de verdade.
— Quer me dizer que aquela mulher possui o domínio sobre uma técnica milenar de assassinato?
— Arte marcial.
— O quê?
— Ela prefere chamar de arte marcial. — Melina esclareceu, agastada. Pouco lhe interessava o que Virnan podia ou não fazer, mas onde e como ela se encontrava naquele momento.
O lorde passou a mão na cabeça, assentando os fios castanhos e rebeldes. Não conseguia acreditar naquela história, mas seus olhos viram os corpos no chão; ouviu os gritos de agonia. Sentou sobre um galho caído.
— E vocês abrigam pessoas assim na sua Ordem?
Melina fez um muxoxo.
— Talvez você preferisse tê-la nas fileiras de seu exército — replicou, revelando sua irritação.
Ele se empertigou, desconcertado com a severidade da resposta.
— Por doze anos, Virnan conviveu conosco e nunca demonstrou nenhum instinto assassino. Só viemos a descobrir sobre suas habilidades quando você e o Comandante Loyer desestabilizaram a paz de nosso lar. Sinceramente, Badir, apesar da curiosidade que me toma, não enxergo Virnan de outra forma que não seja a de uma guardiã da Ordem disposta a defender seus irmãos e irmãs a qualquer custo, mesmo que isso signifique retornar ao uso de habilidades antigas, das quais abdicou para estar conosco.
O príncipe cerrou os punhos e resolveu mudar de assunto.
— Ficaremos aqui até o meio da tarde, então procuraremos algum lugar para pernoitar.
Alina se mantinha à parte da conversa, fazendo uma análise mental sobre o que presenciou na noite passada e a conversa que tiveram antes do ataque. As revelações de Virnan sobre o que era um amuleto e o modo como era feito, lhe causaram grande desconforto, mas, também, lhe trouxeram muitas dúvidas. Por que o Cavaleiro Vermelho precisaria de um amuleto, se era tão poderoso ao ponto de conseguir destruir um reino inteiro em uma noite?
Abandonou suas impressões e disse:
— Há uma vila ao norte daqui. Poderemos ir até lá. Não deve estar a mais que três ou quatro horas de cavalgada.
— Apenas para pegar suprimentos. — Verne retrucou. — Não podemos nos arriscar a procurar uma estalagem.
— Concordo.
— Façamos o seguinte, montaremos acampamento aqui. Távio e os rapazes poderão ir até a vila comprar suprimentos, assim que os animais estiverem descansados. Podem pernoitar por lá. Creio que não chamarão a atenção se não estiverem acompanhados por mulheres. Até lá, nos viramos com caça e água do riacho.
E Virnan? Marie perguntou e Alina traduziu para os homens.
O badir esfregou os olhos.
— Se ela é tão forte, é certo que se safou. Se não nos encontrar até amanhã, é melhor presumir que morreu.
A mestra se ergueu, apreensiva.
— Duvido que aquela lá, morra tão fácil. — Fantin comentou. — Venha, Marie, vamos descansar um pouco. Logo, logo, ela aparece com aquele sorriso irritante, jogando aquele charme vagabundo para você.
***
A noite chegou rapidamente, aumentando a aflição das ordenadas pela ausência de notícias da guardiã. Marie observava o céu estrelado, apreensiva. Ao seu lado, Fantin atirava pedrinhas na água do riacho, com crescente irritação.
A mestra de longos cabelos loiros, não verbalizava, mas a situação em que se encontravam, estava levando-a aos limites e sumiço de Virnan não estava ajudando. Não que não tivesse se sentido da mesma forma quando os Irmãos morreram no navio, mas era diferente porque sabia o que tinha lhes acontecido, enquanto Virnan era uma incógnita.
Ela teria escapado? Sido pega? Morrido?
Isso atormentava as duas mulheres. Em contrapartida, a grã-mestra foi enfática ao dizer que acreditava que ela estava bem e logo as alcançaria, demonstrando uma fé fora do comum nos dons e habilidades da guardiã.
— O que a faz ter tanta certeza? — Lorde Verne indagou, quando a ouviu se expressar assim.
— Ela não deixaria Marie sozinha. — Sorriu de lado, aparentando possuir um profundo conhecimento dos sentimentos da guardiã.
O Lorde buscou a mestra, que fitava a fogueira com semblante indecifrável. As mãos dela se fecharam em volta do tecido das vestes. Melina continuou falando com a certeza de que pronunciava verdades absolutas:
— O amor que ela lhe tem é grande.
A mestra ensaiou uma negativa, mas Melina a cortou com um gesto, arqueando os lábios finos e enrugados em um sorriso bondoso.
— Não comece com isso de novo. Ela é jovem? Sim. Brincalhona? É uma verdade irritante.
Endireitou-se sobre a pedra na qual sentava. Desde que conversou com Virnan em sua biblioteca particular, não conseguia esquecer as verdades que leu nos olhos dela. Foi um momento marcante, assim como tantos outros que viveu ao lado dela depois disso. Não interessava quem Virnan era de verdade, só o que ela trazia em seu coração por Marie.
— Mas ela não mentiu quando declarou seu amor e você sabe disso. Então, pare de fingir que não acredita.
Uniu as mãos, assistindo o bailar das chamas, e continuou:
— Quando ela nos encontrar, conte a verdade. Já está mais do que na hora disso acontecer.
Uma expressão doentia tomou a mestra. Ao vê-la, Verne trincou os dentes, compreendendo, afinal. Achou-se ridículo e, ao mesmo tempo, sentiu raiva de Virnan, Marie e si mesmo. Durante aqueles dias, prestou atenção na interação das duas. Reparava na forma carinhosa com a qual a guardiã falava com a mestra e como esta reagia aos seus gracejos, como os olhares se buscavam em meio a conversas mudas ou como sempre se tocavam, mesmo não sendo necessário. Preferiu ignorar os sinais porque não podia admitir que alguém tivesse ocupado o lugar que, um dia, foi seu. Mas, agora, não podia mais fugir da verdade; não depois de ouvir as palavras da grã-mestra e assistir a transformação no rosto de Marie.
Melina concluiu, retornando o olhar para a mulher que era uma cópia delicada e serena de seu irmão mais velho:
— Quando ela chegar, conte de uma vez que você é Analyn.
— § —
* Maça Estrelada: Consiste em uma haste de madeira ou outro material sólido, e uma cabeça esférica de metal, coberta com grampos afiados.
Puta que pariu eu to surtandoooo! Como assim véi? Ai mds se eu n to conseguindo processar essa informação imagina a Virnan? Meu deusssss
Desconfiei, depois me confundiu, com a Analyn ser chamada de Alina, e agora isso, escondeu direitinho…
Quando eu acho que começo a entender essa trama você solta uma bomba e embaralha tudo. Parabéns, a quarentena tem sido proveitosa graças a essa leitura.
Caraí que babado!!! Manolo, de início achava que Marie poderia ser essa princesa, pelo fato dela não se permitir amar e tal, mas, eis que surge essa tal Alina, aí até desconsiderei, putaquelamerda! Isso vai ser tenso, Virnan vai ficar puta da vida quando souber ;x
Aqui sem palavras depois desse cap. Como assim Marie e Analyn ???Adorando as reviravoltas da historia ,hiper mega ansiosa esperando pelo próximo post.Bem que podia rolar um extra nê autora ??? obs. adorei o desenho muito boa sua arte parabéns
Olá, Pollyana!
Que bom que gostou da ilustração. Desenhar é outra das minhas paixões. Pelo atraso na resposta, sabe que não rolou o extra que pediu, né? rs… Espero compensar em breve.
Beijo enorme!
Aí, Maga! Só uma palavra: Maravilhoso!!
O que comentar? Espanto?! Choque?! Prazer em ler?!
Eu não sei… Creio que essas duas juntas vão abalar o mundo do Vermelho. rsrs
Ah! Obrigada pelo desenho que fez da minha Marie. Sabe que a mestra Marie é minha perdição nessa história, não é? rs Não tem para ninguém. Ela é demais!
Um beijo e um Xero, Tattah!
Kkkkk… És muito corajosa de arrastar tuas asinhas para Marie! rs… Temo pelo teu futuro, Carol! Kkk…
Brincadeiras à parte, muito obrigada pela companhia, mestra! Sabe que tenho um carinho enorme por ti e sou super fã do teu trabalho.
Um xêro!
Puta que pariu!!!!!!! como assim a Marie é a Analyn? eu imaginei mil e quinhentas coisas mas não cheguei nem perto da realidade. To me sentindo no filme Sexto Sentido, vou ter que ler de novo pra ver se deixei algo passar batido. Agora me lembrei de algo que Verne falou sobre sua analyn estar lhe ignorando como se ele não existisse, e realmente não me lembro dele e Marie conversarem e nem como era os pensamentos dela para com ele. A Virnan na hora que souber vai ascender e virar a Deusa do Apocalipse. Autora será que antes do apocalipse chegar dá pra rolar um beijinho no meu casal crush ….rsrsrsrsr, porque depois vai ser manibut, pancada e bomba.
Kkkkk… Adorei o “Deusa do Apocalipse”.
Sim, existem algumas partes em que dou dicas, mas são muito sutis. Por exemplo, quando Verne chega ao castelo, ele procura por Analyn no salão de jantar e Melina diz que ela não costuma fazer as refeições ali e prefere a cozinha. [Marie estava lá, mais cedo]. No Navio, sempre que ele fala da princesa na conversa com Virnan, ele olha na direção de Marie.
E por aí vai. Foram dicas miúdas.
Respondendo a pergunta: Dá! E como dá! Kkkk…
Até o próximo!
Beijos!
Oi??? Marie é Analyn??? Olha, tô chocada!!! Acho que ando lendo os capítulos muito rapidamente. Eu realmente não esperava! Gente…
Nossa, quando a Virnan souber disso, aí sim ela vai virar um demônio! A magia dela vai até voltar! Kkkkk…
Começando a ficar com dó do tal Cavaleiro Vermelho agora. Rrrsss…
Cara… Nossa essa história está muito maravilhosa! Meu, tem que virar um livro depois do fim da publicação aqui. Certeza que vou ler de novo, e mais uma vez depois do final.
Tattah, meus parabéns! Arrasando demais na história e nas ilustrações.
Mega super plus advanced empolgada, e aguardando o próximo capítulo!
Me desculpe esta centena de exclamações. Acho que só elas representam o sentimento momentâneo.
kkkk… Eu adorei as exclamações e ri com algumas partes do comentário. rs… Não tinha pensado em livro, mas bem que a ideia me agrada. rs…
Muito satisfeita por ter conseguido causar surpresa com a identidade da Marie. rs… Por um tempo, achei que não conseguiria. Quanto a Virnan, melhor nem comentar o que ela pretende fazer com o Cavaleiro. Certeza de que não é nada agradável.
Mais uma vez, obrigada pela companhia!
Beijão e até o próximo!