*Taça tilintando*
– Eu gostaria de fazer um brinde, na verdade são dois. – A filha de Maurice se levantou com a taça na mão. – O primeiro é para a Vera e meu pai. Vera, gostaria que soubesse que estou realmente muito feliz por meu pai ter encontrado uma mulher tão incrível e doce, nos conhecemos há pouco tempo pessoalmente, mas por telefone já tivemos conversas inesquecíveis. Fico feliz com esse compromisso e quero que desde já saiba que estarei sempre disposta a lhe ajudar no que for possível de minha parte. Em segundo, gostaria de agradecer a recepção de todos, agradecer por vocês, família e amigos por fazerem parte desse momento tão feliz para essas duas pessoas maravilhosas. Tim-tim. – Todos nós tocamos nossas taças.
– Você não acha essa filha do Maurice muito estranha? – Sef me perguntou em voz baixa enquanto todos conversavam.
– Estranha? – A olhei e completei. – Não a acho estranha.
– Ela se mostra demais, gosta de chamar atenção para si. – Ele falou levando o garfo a boca.
– Yousef, você poderia fazer menos comentários assim? – Olhei para minha mãe e vi seu sorriso em minha direção e dei outro de volta. – Ela é filha de Maurice e tem todo direito de fazer um brinde.
– Ainda sim isso não me agrada. – Seu telefone tocou e saiu da mesa.
– O que foi, prima? – Clara me perguntou, estava sentada e minha frente.
– Nada, Clarinha. – Me mantive interessada na conversa que rodava a mesa.
– Kaykay, amanhã iremos todos para a casa em Angra.
– Olha, que ótimo, mãe.
– Voltaremos apenas na segunda.
– Ah, não poderei ficar, Yousef precisa estar em São Paulo na segunda pela manhã.
– Converse com ele, é tão difícil passarmos um final de semana em família. – Ela segurou minha mão. – Considere isso como presente de casamento.
– Vou ver o que posso fazer. – Olhei para a porta e meu namorado entrava feito louco. – O que houve?
– Eu preciso falar com você.
– Já estou terminando aqui, só um minuto.
– Eu preciso falar com você agora, levanta logo dessa mesa. – Ele falou puxando meu braço.
– Com licença. – Todos me olhavam e eu não sabia mais como disfarçar todo meu descontentamento com aquela situação. – Você não precisava ter me tratado daquela forma.
– Disse que precisava falar com você, custa fazer algo que eu mando?
– Primeiro que você não manda, você pede, e se eu tinha dito que terminaria em um minuto você tinha que esperar.
– Nós precisamos voltar para São Paulo. – Ignorou completamente o que eu havia dito. – Algum vândalo quebrou a vidraça da minha loja.
– Eu não posso e nem vou voltar, faz mais de um ano que não vejo minha mãe e esse final de semana é comemoração do noivado dela.
– E eu vou ter que ir sozinho resolver isso? Sua mãe você pode ver quando quiser, minha loja é importante nesse momento.
– Vá sozinho. Vou apenas pegar minha mala. – Ele me empurrou contra o carro. – Você vai voltar comigo sim.
– Yousef, eu já estou cansada desse seu comportamento, hoje foi a gota d’água para tudo que vem fazendo. – Empurrei ele também e saí andando em direção ao restaurante novamente.
– Isso não é um ponto final, Kayla, apenas eu tenho esse direito, você quer um homem com punho forte é o que vai ter. – Pegou minha mala e jogou no meio da rua, espalhando todo o conteúdo. – Espero você em São Paulo e se não aparecer eu volto e te levarei pelo cabelo. – Os seguranças do lugar vieram em minha direção, um deles segurou Yousef arrastando-o para longe de mim.
– A senhorita está bem? – Um deles perguntou e eu não fui capaz de responder, só saí do transe quando um par de mãos me abraçou por trás me levando para longe dali.
– Ei, olha pra mim. – Finalmente consegui mover alguns músculos para olhar para a voz que me chamava. – Vou te levar pra casa da Vera, entra aqui no carro. – Abriu a porta e entrei no automático.
– Senhorita, juntei todas as coisas que estavam espalhadas pela rua. – Olhei para o lado e o segurança estava entregando minha mala que havia sido jogada.
– Obrigada. – A mulher que me socorreu pegou e colocou no banco de trás. – Eu já volto, ok? – Balancei a cabeça que sim e ouvi o pneu cantando do carro de Yousef. Não sei quanto tempo fiquei ali e nem quantas pessoas viram aquele vexame, pequeno show particular. – Voltei, ninguém lá dentro viu o que aconteceu, disse para sua mãe que houve um problema e seu namorado precisou voltar para São Paulo e eu iria com você levar a mala para casa dela.
– Você viu tudo o que aconteceu? – Perguntei com a cabeça baixa, tentando segurando as lágrimas que insistiam em cair.
– Não vi muito, mas apenas o suficiente para não comentar com mais ninguém. – Ligou o carro, mas não saiu do lugar. – Espera, deixa eu colocar o banco de um jeito mais confortável. – Colocou o banco quase todo horizontal e deixou seus dedos deslizarem por meu cabelo. – Descanse um pouco, quando chegar eu te chamo. – Fechei meus olhos e deixei as lágrimas caírem, em momento algum a mulher voltou a falar, depois de mais de meia hora finalmente chegamos ao apartamento de minha mãe. – Vamos subir?
– Belinda, obrigada. Não sei o que faria se não tivesse aparecido.
– Não me agradeça. – Pegou minha mala no colo. – Apenas fique calma. – Seguimos em direção ao elevador em silêncio. – Ele te machucou? – Perguntou sem olhar para mim.
– Acho que mais por dentro que por fora. – Olhei meus pulsos e ela olhou na mesma direção. – Foi a primeira vez, sabe? Ele jamais havia encostado um dedo sequer em mim.
– Isso não justifica ter feito. – Entramos no elevador e o silêncio voltou mais uma vez. Ela abriu a porta e me deixou entrar primeiro. – Onde eu posso colocar sua mala?
– Pode deixar em qualquer lugar. – Sentei no sofá. – Obrigada por ter me trazido aqui.
– Não agradeça. – Foi até o bar e serviu duas taças de vinho. – Ajuda a relaxar.
– Você já disse isso em algum momento da noite. – Peguei a taça, mas antes de abaixar a mão ela segurou meu braço com delicadeza. – Parece mais feio do que realmente é. Não dói, acho que…
– Não diga nada, por favor, você não imagina como meu coração dói a ver isso. – Seus dedos deslizaram de forma lenta e suave. – Me diga que acabou, que não vai mais chegar perto daquele monstro.
– Acabou. – Bebi quase que todo o conteúdo da taça. – Desculpe por ter acabado com sua festa, mas você pode voltar, por favor, não fique aqui por minha causa.
– Não, ficarei aqui, a festa já estava chegando no fim. Eu não te deixaria sozinha de toda forma. – Levantou e colocou a garrafa de vinho na mesa em frente ao sofá. – Precisa da terapia do vinho. – Deu um leve sorriso e eu me permiti olhá-la. – O que foi?
– Não é nada, apenas estou tentando imaginar o moletom mais largo que essa capa de sofá em você, me parece ter uma elegância natural.
– Você iria se surpreender, não se deixe enganar pelas roupas que visto agora, eu gosto muito de ficar à vontade. – Nos serviu um pouco mais de vinho. – Devo admitir que estava ansiosa para lhe conhecer, Vera é sempre tão doce a falar de você e depois de dezenas de fotos, algumas pornográficas de quando estava na banheira tomando banho.
– Fotos de bebê, não as considere pornográficas! – Sorri de leve. – Eu fiquei com ciúmes quando minha mãe ligou mais cedo, sabe?
– Mesmo? Por que?
– Faz tempo que não a via, muito trabalho e meu…Yousef sempre arrumava algo mais importante para fazer quando comentava que gostaria de vir para o Rio, aí você chega e minha mãe simplesmente te adora.
– Não pense dessa forma, jamais poderia ocupar seu lugar, fico emocionada com o carinho que ela me ofereceu nessa tarde e no dia de ontem, não conheci minha mãe e aquilo me tocou, mas creio que você é insubstituível, não importa o tempo que fique fora.
– Obrigada por isso, Bela, mas você disse que havia ficado curiosa em me conhecer.
– Ah, isso não importa muito. – Falou tirando os sapatos e sentando mais à vontade no sofá.
– Claro que sim.
– Seu olhar nas fotos sempre era muito seguro e ao mesmo tempo doce, aquilo me causou certa curiosidade mórbida.
– E pelo que viu hoje deu pra perceber que não sou nem um pouco segura. – Abaixei a cabeça e senti seus dedos levantando meu queixo me fazendo encará-la.
– Não, apenas confirmou, apesar do que aconteceu sempre manteve o olhar firme, tanto que não deixou espaço para o que aconteceu dentro do restaurante ser comentado.
– Todos adorariam comentar.
– Sim, concordo, mas todos que a conhecem simplesmente respeitaram e esperaram por sua atitude.
– Menos você.
– Sou um caso à parte, não te conhecia antes e o que aconteceu me deixou morta de raiva, tinha vontade de dar alguns belos tapas no seu namorado.
– Ex.
– Sim, ex. – Passamos algum tempo em silêncio e então tudo voltou novamente a minha cabeça, deixei que as lágrimas caíssem. – Ei, não fique assim. – Se aproximou do meu corpo e seus braços me envolveram e as lágrimas vieram com mais força. – Calma, calma.
– Eu não deveria ter permitido nada daquilo, não sei onde o meu verdadeiro “eu” se escondeu. Sabe, eu já defendi dezenas de mulheres que sofreram agressão e sempre me achei superior a isso, sempre imaginei que minha postura caso um dia acontecesse fosse diferente da submissão, mas hoje eu vejo que é muito mais que isso.
– É muito difícil manter uma postura firme quando sofremos algum tipo de agressão da pessoa que nos diz que ama pela manhã e do nada se torna um agressor sem emoções. Mas acredite quando digo, você foi muito mais forte do que muitas mulheres são. Só tenho medo do que venha acontecer.
– Sou advogada, darei entrada em uma denuncia e pedido de distância mínima dele.
– Isso já fará toda a diferença.
– Irei fazer isso agora! – Me levantei. – Quanto mais cedo melhor. Você pode ser minha testemunha? – Peguei minha bolsa em cima da mesa.
– Claro. – Ela se levantou e logo estávamos descendo o elevador novamente. – Sabia que era uma mulher ímpar.
– Não pense que sou ímpar, apenas estou fazendo o que qualquer mulher nessa situação deveria fazer, quanto mais cedo buscar por ajuda e denunciar o agressor mais serão poupadas, elas não imaginam o quanto isso pode salvar suas vidas. – Ela desarmou o carro e abriu a porta para que eu entrasse e logo tomou o lugar do motorista.
– Você sabe onde tem delegacia por aqui? Faz muitos anos que não venho para cá.
– Claro, vou guiando seu caminho. – E assim foi, em poucos minutos estávamos dentro da delegacia abrindo um B.O. contra meu ex namorado. Passei por um exame de Corpo Delito, questionário de agressões verbais, sexuais e corporais.
– Senhorita Martins, irei encaminhar o pedido de liminar de distância para o Juiz de plantão e creio que em menos de 24 horas ele receberá a intimação para se apresentar na delegacia mais próxima. Iremos dispor um policial preparado para que possa retirar suas coisas da casa do acusado quando a senhorita se sentir confortável para o fazer. – A mulher que me atendeu deixou tudo bem claro e me deu uma cópia do pedido junto do boletim de ocorrência.
– Obrigada, Sargento. – Saímos da delegacia e me senti em paz, ao mesmo tempo que confusa, não era assim que eu esperava que um término acontecesse.
– Você está bem? – Belinda me perguntou assim que entramos no carro.
– Sim, apenas cansada e triste. – Deu partida no carro e parou próximo à praia. – O que estamos fazendo?
– Sei que está cansada, mas o mar ajuda a lavar a tristeza. – Tirou seu sapato antes de sair do carro e caminhar em direção a areia, eu apenas a observei, tirei minha sandália e a acompanhei numa breve caminhada até a beira do mar. – Seu dia foi difícil e sei que talvez esteja querendo descansar. – Falou enquanto se abaixava e molhava seus dedos na água fria que tocava nossos pés. – Mas já ouvi falar que a água salgada leva tudo. – Quando terminou de falar tacou um punhado de água no meu corpo.
– Sua… – Ela saiu correndo e eu corri atrás, acabamos caindo e nos molhando, desisti de tentar molhá-la quando se jogou no mar, sumiu por alguns segundos e logo emergiu toda molhada e com um sorriso lindo. Fiz o mesmo e a água gelada rapidamente me deixou acordada e leve. – Você tinha razão, isso é revigorante, faz anos que não tomo banho de mar. – Ela mergulhou novamente e reapareceu na minha frente, acompanhei todo o desenho de seu rosto com as gotas que escorriam.
– Eu na maioria das vezes tenho razão, ainda mais quando o assunto é curar cansaço. – Beijei seu rosto e deixei um abraço apertado, aquele carinho e toque que recebi dentro do abraço me fizeram arrepiar, mas toda a confusão foi deixada de lado quando uma onda nos acertou. – Acho que essa onda trouxe areia pra dentro da minha roupa por algumas gerações.
– No meu caso foi água dentro do ouvido por algumas gerações. – Paramos na frente do carro e enquanto ela o destravava comentei. – Tem certeza que quer molhar todo o estofado do seu carro?
– Não tem problema, mas eu vou tirar essa calça e essa blusa enquanto dirijo.
– Você é louca ou algo assim?
– Algo assim… não se importa, não é?
– Não, mas talvez não seja confortável se formos paradas por uma blitz.
– Creio que quem nos parar não vai se importar, minha habilitação está em dia. – Começou a se despir e eu apenas olhei para o outro lado. – Se isso te incomodar eu posso colocar a roupa novamente. Ou simplesmente fique como eu.
– Jamais, nudez pública nunca foi meu forte.
– Ah, mas eu já te vi nua e não vai ser uma nudez completa.
– Quando eu era um bebê, creio que algumas coisas mudaram. Me sinto mais confortável molhada.
– Bem, você que sabe. – Ela simplesmente entrou no carro e deu partida, realmente estava bem daquele jeito, mas não ousei olhar mais de uma vez em sua direção. Por sorte o prédio da casa da minha mãe era próximo. – Chegamos!
– Vai subir assim? – Apontei para seu corpo.
– Se sim talvez serei acusada de atentado ao pudor, isso seria mau.
– Ah sim, seria.
– Pelo menos creio que iria me defender, certo? Poderia lhe conseguir um atestado de insanidade.
– Facilmente. – Comentei sorrindo enquanto colocava de volta sua roupa. – Caso minha mãe esteja em casa seremos duas com atestado, mas antes ela diria mil vezes que não vai cuidar de ninguém caso a gente pegue um resfriado. – Sorrimos enquanto o elevador subia.
– Isso parece bem ela, mas não comentei que ela não vai voltar para casa, prometi que te acordaria cedo para irmos juntas até Angra.
– Ah, claro… Mas ela vai dormir onde?
– Creio que com meu pai, isso não é bom de se imaginar, se puder me poupar de mais perguntas.
– Você é daquelas que pensa que nascemos de repolhos?
– Repolhos? Não são das cegonhas que viemos? Me sinto enganada. – Gargalhei com a brincadeira e percebi que há tempos não tinha uma noite tão divertida, mesmo com todo o mal que aconteceu antes. Realmente Belinda era de uma alma cativante, era impossível não se sentir bem ao seu lado, minha mãe estava coberta de razão.
– Qual a sua idade mental, hein?
– Talvez uns 4 ou 5 anos. – Parou no meio da sala. – E essa criança que vos fala precisa de um banho urgente e temos apenas um banheiro.
– Eu tomo banho no banheiro do quarto da minha mãe, não se preocupe. – Abri minha mala que estava despedaçada e comecei a busca por uma roupa.
– Parece tudo meio sujo, talvez não seja bom usar.
– Verdade, você está em qual quarto?
– Acho que no que era seu. – Caminhei até lá e ela veio atrás de mim.
– Minha mãe sempre mantém algumas coisas minhas por aqui. – Abri a porta do guarda-roupas e fui até a gaveta, achei um short jeans velho e uma camiseta do Ramones. – De volta a adolescência.
– E roupa íntima?
– Isso se salvou, sempre guardo elas em uma bolsinha.
– Mulher precavida vale por duas. – Mexeu em sua própria mala. – Bem, já que vai tomar banho no quarto de Vera irei tomar meu banho, a areia está começando a me incomodar. – Fui para o quarto de minha mãe e tudo estava como me lembrava.