Um raio caiu próximo ao rio, ao longe, e o vento soprou mais forte. Zarif tentou se afastar, mas a pressão da mão de Virnan aumentou.

— Então?! — Ela indagou.

O spectu emitiu um rosnado baixo, estreitando os olhos. Sentir o toque dela o abalava ao ponto de fazê-lo perder a pose desafiadora brevemente.

— Você não pode, certo? — A guardiã afirmou mais do que perguntou. — Nós nos pertencemos.

Nossa união foi quebrada! — Ele rosnou.

Virnan chegou mais perto dele. O rosto sujo de lama e sangue, exibia uma expressão quase feroz.

— Uma união Castir é eterna!

Ela o soltou, para em seguida juntar as mãos na túnica dele, fazendo-o chegar mais perto e inclinar-se. Sequer sabia de onde tirava forças para manter-se de pé, mas enquanto ele estivesse à sua frente, usaria até a última gota da magia armazenada nas tatuagens para confrontá-lo.

— Você sabe disso! — Continuou. — Não interessa quanto tempo tenha se passado, nem o trato que fez com Érion. Você é meu spectu e eu sou sua mestra! E está chegando a hora de voltar para mim!

Zarif pousou as mãos sobre as dela, encantado com a sua fúria. Era verdade, ainda havia algo unindo-os. Fosse mágico ou apenas sentimental, mesmo que os séculos passassem e ele tivesse uma infinidade de outros mestres, sempre pertenceria àquela mulher.

Endireitou-se, oferecendo a ela um sorriso, no qual se empenhou para demonstrar algum desprezo.

Ao que parece não poderei cumprir as Ordens do meu “mestre”. Afinal, ele foi claro ao dizer que só deveria levá-la, quando seus enviados acabassem com você. Visto que o contrário aconteceu, minha missão fracassou. — Retirou as mãos dela da sua túnica e deu de ombros, deslizando o olhar para Voltruf e Bórian, que se aproximavam devagar.

Os dois espíritos aparentavam estar tão desgastados quanto a guardiã e, também, tão feridos quanto. Metros atrás, a ponte levadiça da fortaleza foi baixada e Melina passou sobre ela correndo com a desenvoltura de uma criança. Sobre a muralha, os homens encaravam o grupo envoltos em um silêncio assustador.

— Quem diria que um dia você retornaria para o lado daqueles que a aprisionaram. Já faz algum tempo, Vasti e Haniel.

Recuou alguns passos, enquanto os olhos dos dois espíritos castir, brilhavam com a manifestação dos spectus fundidos a eles.

Esperava não ter que vê-los nunca mais. Nosso último encontro foi bastante desagradável. — Fez uma careta, recordando o dia em que eles fizeram um círculo de armas e o aprisionara junto com Érion por séculos.

Adoraria passar a eternidade sem ter que ver você novamente, Dragão! — Bórian falou, causando surpresa entre as ordenadas.

A voz dele soou ligeiramente feminina, assim como seus traços se tornaram andróginos por alguns instantes, passando a impressão de que era duas pessoas ao mesmo tempo.

— Sinto decepcioná-lo, Lobo. — Zarif provocou, fazendo referência a forma original do spectu de Bórian.

Ele mirou Voltruf intensamente, antes de falar:

— Ao que parece, os spectus têm tanta dificuldade de manter suas promessas quanto seus mestres castir. — Deslizou o olhar para Virnan. — Não foi você, Haniel, quem jurou jamais deixar sua mestra voltar a se aproximar dela?

Voltruf enrugou o cenho, incomodada, e não deixou de perceber um incômodo semelhante em Virnan. A guardiã se apoiava na esposa, que traçou um círculo luminoso no braço dela; um escudo para protegê-la do poder da sua própria voz. Notou que Melina, que havia acabado de parar ao lado de Tamar, fez o mesmo em si, antecipando a intenção da sobrinha de se manifestar verbalmente.

Oh, você não deixou ela saber quando se uniram! Spectu cruel… — Zarif continuou a zombaria, aproveitando para tomar uma distância segura de Virnan. Riu maldoso, enquanto os olhos de Voltruf tornavam a brilhar, manifestando a revolta de Haniel. Foi o máximo que ele conseguiu obter como resposta dela.

O olhar dele cruzou com o de Melina. A grã-mestra estava ofegante e segurava o arco com tanta força que a mão chegava a tremer. Por mais que tivesse conhecimento da natureza de Zarif, após o Círculo no Salão Lunar, ela jamais esqueceria a dor que as garras dele lhe impingiram no passado, nem conseguiria escapar dos pesadelos que atormentaram seu sono por quase cinquenta anos.

— Está falando demais para quem já estava de partida. — Marie chamou a atenção dele. — Neste caso, talvez seja mesmo a hora de ficar de vez.

As linhas douradas nos pulsos dela, tornaram a brilhar. Virnan lhe tocou a mão, impedindo que continuasse a conjuração.

— Estou cansada desse vai e vem de vocês! — A mestra confessou, revoltada. Mais pela aparência sofrida de Virnan, do que pela situação com o spectu.

A mão de Virnan tremeu na sua, antes de apertá-la de leve.

— Admito que também estou, mas ainda não é o momento. Prometi uma luta a Zarif e ele a terá. — A esposa fez saber, com voz arrastada.

— Sinceramente, vocês dois se pertencem mesmo! São ambos irritantes! — Marie afastou a mão dela, bruscamente.

Devo concordar! — Lyla endossou, rindo baixinho.

Os olhos de Zarif se apertaram, resvalando pelas tatuagens nas mãos de Virnan e Marie, com uma desagradável sensação de perda. A antiga mestra era uma mulher de paixões fugazes, mas intensas, e ele sempre apreciou compartilhar esses sentimentos com ela. Principalmente, quando se apaixonou por Voltruf. Ser invadido por essas emoções o faziam se sentir quase humano. Afinal, a existência dos espíritos, ao seu ver, era vazia. Eles não se apaixonavam, não formavam pares, não alcançavam aquela fantástica gama de emoções…

Os mortais lhe fascinavam.

Ele tornou a olhar para Voltruf, recordando o passado. Era tudo muito profundo quando Virnan estava na presença dela, sempre indo do ódio declarado à afeição reprimida. Sempre disposta a mostrar o pior de si, para esconder o melhor que tinha a dar.

Isso, ele nunca entendeu muito bem.

Naquele momento, porém, perguntava-se o quão mais intenso era o amor que ela dedicava à Eleita de Midiane para que conseguisse realizar uma união através de um voto sagrado. O quão doce e amargo era aquele sentimento? Quão pequeno e infinito era?

A inveja lhe corroía, aumentando a raiva que sentia de Lyla por ser aquela que, agora, conhecia Virnan como nenhum outro. Endireitou-se, aprumando os ombros que começaram a se curvar, como se estivessem sobrecarregados com o peso de eras.

— Em dez dias, Zarif… — A voz de Virnan o fez retornar ao presente. — Em dez dias haverá uma lua vermelha. O véu entre os mundos estará frágil, mesmo com os portões fechados. Nessa noite, nos encontraremos no campo de batalha. Avise ao seu “mestre” que será o último luar que ele irá assistir.

O spectu retornou o olhar para ela e riu alto, balançando a cabeça um par de vezes. Os cachinhos do cabelo vermelho se desfaziam ante o peso da água da chuva.

— Sempre que penso que você não pode mais me surpreender, você o faz. Vejo que o mestre perdeu o elemento surpresa da sua investida, outra vez.

— Se ele queria segredo, não deveria ter contado seus planos àquela abominação que cultivou em Ilan Dastur.

É justo! — Zarif concordou, zombeteiro. — Pois bem! Nos encontraremos durante a lua vermelha e esteja certa de que será uma noite tão sangrenta quanto a última, três mil anos atrás. A diferença, Castir, é que estaremos em lados opostos dessa vez!

Fez uma meia reverência, carregada de deboche.

— Até lá, então! — Recuou mais alguns passos, erguendo o indicador. — Ia esquecendo de parabenizá-la pelo casamento.

Se voltou para Voltruf, escarnecendo:

— Isso deve ter doído… — Sorriu de novo. — Mal posso esperar para pôr fim a nossa história, Virnantya!

— Sonhe comigo até lá. — Virnan se despediu.

Ele começou a assumir a forma animal. Contudo, os pés foram aprisionados por rochas, que escalaram seu corpo até os joelhos. Antes que pudesse perceber o que se passava, os braços foram envoltos por camadas de gelo.

— Marie! Tamar! — Virnan protestou, saltando o olhar de uma para outra.

A mestra midiana se afastou dela. Cerrou um pouco mais os punhos, aumentando a quantidade de rochas em volta do spectu. Na tentativa de escapar, Zarif recomeçou a transmutação, mas Tamar criou um círculo diferente à volta dele, impedindo o processo. O spectu se agitou, irritado.

— Não seja apressado. — Disse a bibliotecária, tranquila. — Desde já, agradeço por me dar a oportunidade de usar o conhecimento que adquiri na biblioteca de Flyn.

Suas feições enfatizavam as palavras; mal conseguia esconder a avidez de testar os novos conhecimentos. Ela encarou as duas amigas, com um sorriso no canto da boca, enquanto ouvia Marie falar:

— Vocês já conversaram e fizeram seus planos, mas eu lhe avisei, Virnan, de que não irei mais permitir que se atire em lutas insanas. Então, eis o que vai acontecer: Você vai pegá-lo de volta agora ou irei matá-lo.

— Você não se atreveria… — A guardiã ensaiou um sorriso descrente.

— Não ouse imaginar o que estou disposta a fazer por você, Virnan. Se você pode mentir e jurar devastar um mundo para me proteger, eu também posso esquecer os juramentos que fiz na Ordem e matar essa lagarto voador. — Inspirou devagar, forçando-se a conter a fúria para não romper os selos mágicos que protegiam as companheiras de círculo da sua magia. — Como vê, presto muita atenção em você e nas coisas que diz e faz. Então, decida-se rápido.

Virnan tentou argumentar:

— Olhe para mim! Não estou em condições de realizar essa façanha. — Apontou para si, evidenciando o estado lastimável em que se encontrava.

O olhar castanho e rígido de Marie percorreu sua figura em uma inspeção desnecessaria, que não durou mais que um piscar de olhos. Com efeito, ela parecia ter sido atropelada por uma manada de cavalos selvagens e depois arrastada por dezenas de metros dentro de uma floresta de espinhos. Estar em condições de fazer algo, ou não, era o menor dos problemas de Virnan. E era exatamente isso que impulsionava a raiva que Marie tentava controlar naquele momento.

— Você também não estava quando se uniu a Lyla. E na ocasião não tinha acesso a magia. Mas este é um caso diferente. Apesar do desgaste e das feridas, que nem preciso inspecionar com atenção para alcançar a gravidade, nós duas sabemos que você ainda é capaz de realizar o que estou pedindo. A sua vontade sempre foi maior que qualquer cansaço. Então, me poupe do discurso vazio que está formulando. Há três membros do nosso círculo para ajudá-la aqui. Pessoas com dons muito distintos, mas com uma forte magia curativa. — Marie retrucou, decidida.

Como falou antes, estava cansada daquele joguinho entre a guardiã e o espírito. Conhecia o tamanho do afeto que Virnan tinha por ele e estava certa de que era recíproco. E, apesar de ter alcançado os verdadeiros sentimentos da esposa, Marie sabia que ela acreditava ter falhado com sua promessa à Zarif quando permitiu que o laço entre eles fosse “rompido” e que era necessário “conquistar” o direito de tê-lo de volta.

Entretanto, após ver o estado em que ela se encontrava naquela manhã e retirar o veneno da Sombra de Ilan Dastur do seu corpo, Marie decidiu que estava na hora de parar de ser passiva à respeito de Virnan. Não podia e nem queria apenas segui-la cegamente, fingindo que os atos dela não a machucavam e plantavam medos em seu peito, ainda que fossem concisos e por um bem maior.

— O tempo está passando! — Marie alertou.

Fez um movimento suave com uma das mãos e uma estalagmite se projetou do chão, como a ponta de uma lança indo de encontro ao peito de Zarif, onde parou a poucos centímetros. O spectu do Cavaleiro Vermelho lhe dirigiu um olhar que vagou entre um velado respeito e a raiva declarada.

Aparentemente, Virnan tinha mesmo encontrado uma mulher à altura dela e, naqueles poucos instantes, Zarif identificou vários motivos para que a Eleita de Midiane tivesse conquistado o coração da sua antiga mestra.

A risada de Lyla cortou a tensão no ar.

— Gosto de você cada vez mais, Marie. — Deu um tapinha no ombro de Virnan. — Você já tem as respostas. Tamar as encontrou, como pediu, então não espere mais. Se você ainda quer brigar, que faça isso com Érion, mas do jeito correto e ao lado do spectu certo.

Virnan ainda encarava Marie com um aperto no peito. Os olhos que tanto amava lhe enviavam uma mensagem clara: ela faria o que prometeu e não se arrependeria disso. O momento se arrastou pelo o que lhe pareceu uma eternidade, antes de admitir que a hora havia mesmo chegado. Ainda existia uma parte dela que desejava fazer isso na presença de Érion, para que ele sentisse a mesma dor que um dia a tomou; para ver nos olhos dele a mesma loucura que a dominou, os mesmos pesadelos que a assombraram.

Contudo, era apenas um frágil desejo de vingança, ao qual tentava se agarrar por orgulho. A união de Érion com Zarif, era bastante distinta da que ela compartilhou com o espírito; então, era provável que ao ser desfeita não teria as mesmas consequências que para ela.

— Está bem! — Forçou o ar para fora dos pulmões, derrotada. Deu um passo à frente, enquanto o sabor férreo do sangue parecia aumentar no paladar, trazendo recordações de um passado distante. — Está na hora de voltar para casa, Zarif.

O spectu se debatia em uma frágil tentativa de escapar à prisão imposta, mas parou ao ouvir a frase. Toda a revolta desapareceu do semblante e curvou os ombros. A voz lhe saiu arrastada, carregada de uma tristeza profunda como se tivesse guardado ela para liberar naquele átimo.

Não há casa para voltar. Eu não pertenço mais a este mundo.

As íris vermelhas quedaram sobre ela, infelizes.

Por séculos, me agarrei a esse fio débil, que permaneceu da união que tivemos, para me manter são sob o comando dele. Maldito seja! — Aumentou o tom, expondo a raiva que dedicava ao mestre atual. — Isso não muda o fato de que agora “pertenço” a ele, Virnan.

Era a primeira vez, desde que se reencontraram, que ele a chamava pelo apelido. O fez de uma forma tão suave, que a palavra quase foi abafada pelo som da chuva, mas os ouvidos sensíveis da auriva conseguiram percebê-la e um sorriso trêmulo e discreto adornou os lábios machucados dela.

— Afinal, se estou aqui, neste momento, é porque me obrigou. Se estou preso agora, é porque minha magia está sob o controle dele. — Zarif concluiu.

As mãos de Virnan escorregaram pela face, arrastando parte do sangue e sujeira que a cobria e fazendo os cortes nela latejarem.

“Faz sentido”, pensou ela.

Desde o primeiro momento em que reencontrou Zarif, percebeu a falta de vigor dele. Ainda que se empenhasse em mostrar os dentes como um cão bravo e pronunciasse palavras ácidas, o spectu não possuía o viço de outrora. Conhecedora íntima da personalidade dele, muito semelhante à sua, sabia que era a raiva que o fazia se mostrar áspero e inabalável.

Fez uma careta para o vazio e fitou as tatuagens em seus próprios braços, antes de que erguer a face para encarar a tatuagem que atravessava a face dele; a qual não existia quando ele era seu spectu. O amargor do sangue aumentou em sua boca, junto com a revolta que a tomava.

A união entre um espírito e um castir, é para ser pura e igualitária. O espírito passa a compartilhar a magia e corpo do mestre, razão pela qual se torna sólido e visível aos humanos comuns. Contudo, o lado mais forte da união é o do castir. Sendo assim, ele pode exercer sua vontade sobre o spectu da forma que desejar. Pode, também, lhe doar ou tirar a magia nata.

Apesar disso, a União Castir sempre foi encarada com nobreza por aqueles que eram capazes de realizá-la. Era muito mais que ser “agraciado” com o dever de proteger três mundos. Quando um espírito escolhia um castir e os dois se uniam, a magia do “todo” entrava em um ciclo de equilíbrio, renovando antigos votos realizados pelos povos ancestrais quando Inamia, Domodo e Enagia ainda eram o mesmo mundo. Aquela união era feita com respeito e o castir e seu spectu se tornavam mais que parceiros. Nenhum castir, por mais impiedoso e cruel que fosse, macularia seu laço causando tal sofrimento ao espírito que o escolheu.

— Queria poder dizer que estou surpresa, mas seria uma mentira. — Virnan juntou os dedos das mãos no tecido empapado de água, lama e sangue de suas calças. — Não se pode esperar respeito de alguém que encontrou tantas formas de macular seu próprio sangue e povo, sem mencionar este mundo.

Zarif estremeceu, envolto na ansiedade pelo o que estava prestes a acontecer.

— Estou feliz por este momento finalmente ter chegado. Pelo menos, morrerei por suas mãos.

É isso o que quer?

Anseio pelo “fim” há séculos. — Ele confessou, admitindo para si mesmo que a simples ideia disso acontecer nos próximos instantes, o preenchia de uma serenidade que há muito não sentia.

A dor nos olhos dele era sufocante e Virnan tomou um momento para controlar as próprias emoções, que se revolviam em seu interior tão turbulentas quanto a tempestade que caía sobre suas cabeças, quando esta esteve em seu ápice.

— Falta algo, não é mesmo? — Ela indagou, olhando para as mãos. Falava de si, consciente de que o spectu a compreenderia como ninguém mais seria capaz. — É como um membro invisível…

Ergueu os olhos para ele.

Algumas vezes, você o sente como se ainda o tivesse. Seu peito enche-se de alegria por um instante, até se dar conta de que não passa de uma ilusão. — Zarif concluiu o pensamento.

Ele admirou o olhar de um verde precioso, que tanto amava, identificando as lágrimas que a chuva não conseguia disfarçar. Espíritos não dormiam, não podiam sonhar; contudo, ele sonhava acordado com aqueles olhos, lamentando sua partida daquele mundo, enquanto acreditou que Virnan estava morta.

Eu tive medo de uma existência sem você. — Confessou; não havia razão para esconder isso, não quando o fim se aproximava tão misericordioso. — Estava ferido, magoado, aterrorizado. Não entendia este mundo sem você. Foi quando “ele” apareceu à minha frente, como se fosse o sol após uma longa noite de tormenta. Ele disse palavras doces, que acalmaram um pouco da agonia que me consumia. Aos poucos, começou a preencher o vazio que você deixou. Então, nos tornarmos “um” pareceu ser perfeito.

Baixou a vista para o chão. A chuva havia se tornado uma garoa, mas os trovões e raios ainda estavam presentes.

Estava enganado. Algumas pessoas são insubstituíveis e o laço que formamos, ainda que forte, não passa de poeira. — Tornou a encará-la. — Eu quis muito odiar você, mas a única pessoa a quem consigo odiar verdadeiramente sou eu. Me odeio por não ter sido capaz de protegê-la dela — desviou o olhar para Lyla, cuja expressão cansada não se alterou, embora ela tenha unido as mãos trêmulas às costas para esconder o desconforto que a verdade lhe trazia — e permitir que Érion usasse a minha magia para destruir tudo aquilo que ajudei você a proteger.

Ergueu a face para Virnan, outra vez. Oferecia a jugular para ela.

— Hoje, não será um grande golpe para Érion, pois há muito tempo que ele não necessita de mim. Contudo,minha morte irá causar alguma dor a ele. — Sorriu abertamente, mostrando os caninos ligeiramente pontudos. — Mate-me e depois parta para a proteção de Flyn, pois aquele que Érion enviará à seguir, será o algoz de milhares.

Acho que não entendeu, estou pegando você de volta. — Assegurou ela, estreitando os olhos e forçando-se a continuar de pé.

— Não pode ter de volta o que já está perdido. — Ele afirmou, melancólico.

— É o que veremos — Virnan desafiou.

Como se o que disse fosse a deixa para que Marie e Tamar agissem, as duas se acercaram dos dois.

— Honestamente, estou cansada, molhada até os ossos e ainda zangada com você, Virnan. Então, deixem para jogar conversa fora mais tarde! — Marie encostou a mão no peito de Zarif, fechando os olhos e se concentrando na tarefa que iria realizar.

Por diversas vezes, Virnan afirmou que recuperaria Zarif, mas a verdade é que não sabia se isso seria mesmo possível. Então, quando retornou à Flyn, pediu a Tamar que investigasse se havia mesmo uma chance disso ocorrer. Afinal, todos os pergaminhos e livros da biblioteca do Templo de Cazz foram transportados para a cidade, junto com os portões, quando Lyla elaborou os planos para fechar a passagem entre os mundos. Era muito conhecimento para que fosse abandonado além das proteções do reino.

Assim que chegou a Valesol, Tamar aproveitou um breve momento de calmaria para contar a amiga o que descobriu. Mesmo que Lyla, com a ajuda de magos anciões, no passado, tivesse conseguido “desfazer” o laço entre Virnan e Zarif, eles não foram completamente separados.

Não há como ele voltar. — Voltruf se manifestou, chegando mais perto deles, junto com Melina.

Ela sentia um cansaço incomum, graças ao desgaste e ferimentos da luta. Entretanto, a mente estava agitada diante dos acontecimentos que presenciava. Embora tivesse pronunciado a frase com bastante ênfase, os sentimentos que dedicava a Virnan, a faziam desejar estar equivocada. Havia notado o breve traço de inveja nas feições da auriva quando lhe falou sobre sua união com Haniel após a morte. E agora que a agitação do combate tinha partido, a lembrança daquela rápida discussão se achegava impetuosa, trazendo junto um estranho e desagradável aperto no peito, o qual imaginou jamais ser capaz de sentir após a morte.

Fato era que, a tristeza que atravessou o olhar de Virnan naquela hora, lhe doeu.

Longe de ser o combate, os ferimentos ou a iminência da morte definitiva, como ocorreu à Bórian, foi aquele olhar e o sentimento que lhe trouxe, que a fez se sentir “viva” novamente. Voltruf apertou o cabo da espada na cintura, observando a fisionomia séria de Tamar se modificar para exibir a confiança de um mestre a passar uma importante lição aos alunos.

Com palavras cadenciadas, a bibliotecária explicou:

— A separação deles é como uma ferida aberta na alma de Virnan, a qual “sarou” um pouco quando Lyla se tornou o spectu dela e desfez as barreiras que bloqueavam sua magia. — Pousou a mão nas costas de Virnan e a água que se acumulava no chão começou a girar devagar em volta delas, sem ultrapassar a linha dos joelhos. — Nos últimos dias, passei um bom tempo lendo sobre a Ordem Castir e o seu surgimento. Para a minha felicidade, os bibliotecários de Flyn cuidaram bem do acervo que pertencia ao Templo de Cazz e o seu sistema de organização, me permitiu encontrar a informação com “rapidez”, mesmo tendo um pouco de dificuldade com a língua enaem.

Fez uma pausa, investigando a face de Marie, onde uma expressão quase dolorosa surgiu e desapareceu rapidamente.

— De fato, uma União Castir é mesmo eterna. — Prosseguiu, mirando os lábios trêmulos de Marie se apertarem. — Não pode ser desfeita completamente. Ainda há um fio de união entre Virnan e Zarif. Sempre haverá, até que um dos dois morra. É fraco, mas está lá. Só temos que restaurá-lo. Na prática, será como fazer um ritual de cura. — Sorriu, demonstrando a ansiedade por testar os novos conhecimentos. — Não é tão fácil quanto faço parecer, mas não será problema para o nosso Círculo.

Mas e quanto a Lyla? — Bórian abandonou o silêncio e cruzou os braços grossos diante do peito.

Nossa união não é definitiva. O voto será quebrado quando Virnan recuperar o que lhe tirei e não haverá consequências, já que esses foram os termos. — A falecida rainha explicou.

Lyla estava feliz por realizar o sonho da irmã, mas não conseguia evitar sentir uma pontada de tristeza. Através daquele laço, apesar do pouco tempo que o compartilharam, se sentiu “viva” novamente. Era como se tivesse encontrado o verdadeiro propósito da sua existência. Dividir pensamentos e emoções com Virnan a fez compreendê-la e também se compreender de uma forma jamais almejada.

Eu te amo” a voz de Virnan a alcançou através do laço, trazendo consigo um sentimento tão carinhoso e reconfortante, que quase a fez perder a determinação de pôr fim àquela etapa de suas “vidas”. Sabia que Virnan queria dizer muito mais que isso e ela também, contudo não era necessário. Estavam em paz, e os erros e acertos cometidos pareciam irrelevantes diante todo o amor que vertiam uma pela outra.

Vai sentir minha falta?” Lyla perguntou com deboche.

Nunca”. Virnan respondeu, mirando-a nos olhos.

Ela não sorria, mas Lyla sentia a leveza que emanava, misturada à tristeza da separação. O spectu sorriu para a irmã, maliciosa. Revelou:

“Eu acho que irei sentir. Terei saudades, principalmente, de sentir você fazendo amor com Marie.”

Lyla escondeu um risinho com a mão, esperando a resposta que não veio, pois Marie afastou-se de Zarif, buscando o ar como se tivesse corrido léguas. A mestra tomou um instante para se recuperar, sentindo o gosto amargo das palavras se assentar na boca antes de proferí-las:

— Eu sinto muito, Virnan.

A esposa a fitou, confusa. Necessitando lhe mostrar, mais do que falar sobre, Marie lhe tomou a mão e ambas foram sugadas para o interior de Zarif. Longe de ser uma experiência semelhante as vezes em que fez isso com humanos e Virnan, Marie acreditava que jamais seria capaz de encontrar palavras para descrever a sensação de conhecer a essência de um espírito.

Era como se estivessem dentro de pequenos universos, tão coloridos que as cores se misturavam e chegavam a lhe cegar por momentos. Os veios mágicos eram completamente diferentes de tudo que seus olhos alcançaram na vida e, na sua primeira incursão, a mestra demorou algum tempo explorando-os, até entendê-los. Não fosse a urgência, o teria feito com mais apuro e saciado a curiosidade. Agora, sabia bem o que procurava e guiou Virnan por eles rapidamente.

— Aqui. — Marie falou.

Virnan não a via, mas sentia seu toque e o calor aconchegante da magia dela a lhe envolver, afastando o cansaço, frio e dores do corpo físico. Ela não a viu, realmente, mas teve a sensação de que uma mão invisível se projetou naquele espaço multicolorido e apontou um determinado local, onde uma fraca luz prateada emanava.

— É o seu laço com ele. — Marie explicou.

Novamente, Virnan sentiu a mão invisível apontar, desta vez, para si. Ela não tinha corpo ali, mas baixou a vista e deparou-se com uma projeção fantasmagórica do seu corpo. Um fio prateado saía do peito, frágil e quase sem brilho. Em contrapartida, havia centenas, talvez milhares, em um emaranhado de gavinhas douradas, que representavam sua conexão com Lyla.

A guardiã tocou o fio prateado e uma sensação aconlhedora, de reconhecimento, a tomou. Era Zarif, o sentia como no passado, como se o tempo não tivesse transcorrido e eles não houvessem se perdido. Contudo foi efêmero. A alegria logo deu espaço a outra sensação, era sufocante e carregada de tormentos. De repente, Virnan quis gritar e sair dali. Algo a impelia a fugir, ao mesmo tempo que parecia querer aprisioná-la.

Sentiu, outra vez, a magia da esposa lhe envolver como um escudo carinhoso, que amainou as emoções conflitantes.

— Ali — Marie “apontou”, novamente. Desta vez, para o que seria o centro do “universo” Zarif.

As duas mulheres retornaram para o campo frio e molhado. Lama espirrou para os lados quando Virnan caiu de joelhos, escondendo o rosto entre as mãos trêmulas. Chorava baixinho, um grito preso na garganta. Os pensamentos se atropelando, enquanto aquela dor crescia em seu íntimo, devastando todas as esperanças que se permitiu cultivar.

Eu sinto muito, Virnan — a voz de Zarif a alcançou, baixa e tristonha.

Não havia mais qualquer coisa em seu semblante, que recordasse o homem de ar presunçoso e provocador. Aparentava uma fragilidade quase infantil.

Eu avisei, não pode recuperar o que já está perdido.

Ela chorou mais alto, amaldiçoando Érion de todas as formas possíveis, esmurrando a lama algumas vezes. Os pensamentos de ódio e dor rodopiavam na cabeça, despertando aquela parte sombria que Virnan ansiava manter no esquecimento.

Os ouvidos zuniram, ressoando palavras antigas, oriundas de uma época em que ela acreditava que se desejasse algo com afinco, nada no mundo a impediria de alcançá-lo.

Os humanos não eram suficientes para ele. — Zarif soou tranquilo, ainda que não se sentisse assim diante da reação de Virnan ante a descoberta de que, assim como fez com Lorde Axen, Érion também incutiu uma Sombra nele. — São apenas um mundo. Ele precisava saber se conseguiria criar algo novo com espíritos para, no futuro, tentar fazer o mesmo com os enaem. Ele testou bastante antes de também me transformar numa abominação.

Onde ela está? A sua Sombra. — Marie indagou, afastando a visão da esposa. Queria abraçá-la, oferecer conforto, mas sabia que isso estava muito além das suas capacidades no momento, então resolveu se ater a tarefa de descobrir a verdade.

Zarif respondeu, sem tirar o olhar da antiga mestra:

A Sombra de um espírito é diferente da Sombra de um humano. Uma Sombra espiritual é capaz de se apartar do seu hospedeiro, enquanto devora sua essência e magia. E mesmo que o consuma completamente, continuará existindo. Érion não precisa de mim há muito tempo. Sou apenas um pobre mensageiro. Sou o brinquedo dele, nada mais. — Sorriu torto, encarando a dor no olhar de Virnan, enquanto ela se esforçava para ficar de pé. — Conquiste uma pequena vitória agora, Virnan. Mate-me. Sem mim, aquela abominação, enfraquecerá um pouco. E, mesmo o laço com Érion não sendo tão profundo quanto o de um Castir, ele ainda ficará desnorteado…

Ele parou de falar, de repente. Virou a cabeça para o lado algumas vezes, como se estivesse a escutar o vento. Em verdade, algo queimava em seu interior, alertando-o para o fato de que o tempo deles se esvaiu.

Se apresse. “Ele” percebeu que me encontro em perigo e está vindo para cá.

Para endossar o que disse, a tatuagem que atravessa a face dele, começou a brilhar.

Faça logo!

— Eu não posso! — Virnan gritou de volta.

Você não entende! Não posso protegê-la dele. Não posso evitar que ele cause a mesma destruição que realizou em Caeles!

Ao lado de Voltruf, Melina se empertigou quando ouviu o nome do reino. Alguns dos seus piores pesadelos envolviam aquele lugar e o espírito à sua frente. Quando fizeram o Círculo no Salão Lunar e vivenciou as experiências de Virnan, tornou-se um pouco custoso pensar no spectu com o mesmo medo e rancor, tamanho era o amor que a guardiã dedicava a ele e vice-versa.

Obviamente, “conhecê-lo” melhor só aumentou as certezas da grã-mestra sobre o quão destrutivo ele poderia ser. Mesmo assim, condoeu-se do desespero na face dele e sentou a mão no ombro de Virnan. A voz sumiu, esmagada pela incerteza de não ser capaz de encontrar palavras coerentes e apropriados para ajudar a aplacar a agonia que corroía a guardiã. Então, torceu para que aquele simples gesto, conseguisse transmitir seus sentimentos.

A tatuagem de Zarif brilhou mais forte e Marie tomou sua decisão, expulsando o ar dos pulmões pesadamente. Ela retirou as machadinhas do abrigo na cintura e apertou-as com tanta força que seus dedos doeram. Tornou a se aproximar do espírito.

— Por favor, Marie, não! — Virnan implorou.

— Perdão. — Disse a mestra para a esposa. — Eu entendo a dor que está sentindo muito mais do que pode imaginar. O dia em que você o conheceu está tão vivo em minha memória, como se fosse uma lembrança minha. A sua alegria em tê-lo consigo, o cuidado, o carinho… Lembro de todas essas coisas do ritual que fizemos e dos sonhos que tive antes disso. — Enxugou uma lágrima teimosa, que lhe escapou para unir-se a chuva que banhava a pele alva. — Queria poder devolver esses momentos para você, amor. Em vez disso, irei pôr fim ao sofrimento dele e aumentar o seu.

Aproximou-se um pouco mais de Zarif e ergueu uma das machadinhas.

Cuide bem dela . — Sussurrou o spectu e recebeu um meneio de cabeça positivo de Marie.

A ordenada engoliu em seco, abominando a tarefa que estava prestes a desempenhar. A mão tremeu um pouco antes que ela começasse a desferir o golpe fatal, que não chegou a se concretizar porque Virnan lhe tomou o braço. A guardiã encarou-a, sentindo uma forte vertigem. Tinha dificuldades em respirar e pensar.

— Eu faço… — Sussurrou entre soluços.

Marie baixou a mão. Deu um passo atrás, odiando aquele momento tanto quanto Virnan e desejando um dia ser capaz de apagar a dor da alma dela.

— Você nasceu quando minha magia despertou — Virnan murmurou. — É justo que seja eu a pôr fim à sua existência.

A tatuagem na face dele brilhou mais forte, outra vez. Não tinham mais que alguns momentos antes que o novo inimigo chegasse. Ela ergueu a tucsiana, enquanto as lembranças da vida ao lado dele jorravam em sua mente arrastando consigo incontáveis lágrimas.

Encararam-se, cúmplices, pela última vez. E foi com um grito de puro desespero que Virnan desceu a adaga em direção ao seu melhor amigo.

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Olá, amores!

Demorou, mas chegou! Rs… Peço desculpas pelo sumiço, mas o fim de ano foi um pouquinho complicado e lá se foram meus planos de finalizar o texto em dezembro.

Retornando com as postagens semanais e desejando que após este capítulo vocês não queiram comer um pedacinho do meu fígado. Rs…

Até o próximo e Feliz Ano Novo! [Super atrasado!]

Beijos!




Notas:



O que achou deste história?

6 Respostas para 44. Adeus

  1. Ai gente, pq tanta maldade, Tataah?! #chateada Mas como disse uma das moças, não vou desistir de ti!

    Espero que de alguma maneira isso seja reversível, que Zarif volte, nem que seja como um espírito brincalhão!

    Beijão e bom ano novo!

    • Depois de séculosssss… Aqui está a resposta ao comentário! kkkk… Perdão, Preguicella. Muito obrigada pelos desejos de um bom ano novo, que já se passou faz tempo, rs… Espero que o seu tenha sido tranquilo e em paz.

      E, bem, espero que você não tenha mesmo desistido de mim e lido a história até o fim. rs…

      Beijos!

  2. Só não digo q degustarei teu fígado pq odeio fígado.
    To de mal…
    E to falando sério…
    Nos vemos no próximo cap. sim… não desistirei e ti,
    mas tu tem sorte de estar mto longe.
    Humpf…

    • Que bom que tu não gosta de fígado, porque eu adoro o meu! Então, vamos deixá-lo no cantinho dele. rsrsrs…

      Beijos!

  3. Nossa… Coitado do Zarif, Tattah… Tô aqui fungando lendo este capítulo. Sem palavras! Jurava que ele ia voltar pra Virnan.
    Que ódio desse Erion, meu deus!
    Ansiosíssima pelos próximos e finais capítulos desta saga!
    Adorei a ilustração.
    Abraços!

    • Olha, Naty, também me doeu matar o coitado, rs… Eu gosto muito desse personagem, mas ele e Virnan já tinham se perdido.

      Beijão!

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