A Ordem: O círculo das armas

41. Em meio à tempestade

*

— Você me parece muito ansiosa por sangue! — Virnan falou para a irmã.

As asas de Lyla se estenderam e ela planou por alguns metros antes de batê-las novamente.

— Esta não seria você? — Respondeu.

Havia transmutado para um pássaro maior do que fazia normalmente. E, assim, permitiu que Virnan pudesse montar em suas costas.

— Creio que as duas estão — a castir declarou.

— Você está louca por vingança!

— E você não?! — Ficou de pé e deixou-se cair.

As tatuagens em seu corpo brilhavam, oferecendo uma proteção ao espírito. Coisa que, infelizmente, não teve tempo de fazer durante a luta com Lorde Axen.

Enquanto despencava dos céus, visualizou Marie e os outros, finalizando o campo neutro. Aumentou a resistência do ar para suavizar a queda e focalizou o grupo de sombras que marchava em direção à fortaleza.

Para dar mais tempo para a conclusão do ritual encabeçado por Voltruf, ela retardou o avanço das sombras convocando o auxílio de espíritos do ar. Que atraíram a força da tormenta para o local onde eles estavam, fazendo a chuva forte aumentar o volume de água do rio e impedindo que eles o atravessem por um tempo.

Contudo, foi uma solução temporária, já que as Sombras possuíam uma grande quantidade de magia e logo encontraram uma forma de ultrapassar a barreira imposta. Então, Virnan se adiantou ao plano e foi até eles.

Ela pousou bem no meio do grupo, fazendo a magia jorrar para fora de si intensamente. O impacto foi tal, que uma pequena cratera se formou no local e os seres próximos foram lançados à metros de distância. A castir correu em direção ao primeiro oponente, aproveitando o breve momento de surpresa. Não teve escrúpulos de lhe cravar a adaga no peito, enquanto ele ainda estava no chão.

Era um inimigo a menos, só isso.

**

Algumas centenas de metros atrás, Marie obrigou-se a se concentrar na tarefa que desempenhava. O medo revolvia suas entranhas, agora que Virnan estava lutando contra as Sombras e ansiou encerrar o ritual logo.

— Ela ficará bem — Voltruf afirmou, como se lesse seus pensamentos. — Apenas dedique-se ao que estamos fazendo. Quanto mais cedo terminarmos, mais rápido poderemos ajudá-la.

A mestra lhe dirigiu um inclinar de cabeça e retornou a atenção o que fazia, moldando o solo sob seus pés com a ajuda e orientação de Bórian.

***

— O que exatamente um campo neutro deve fazer? — Emya indagou.

Entre a agitação de traçar os planos para a investida e a pressa de realizá-lo, limitou-se a apenas observar e não atrapalhar.

Ela observava a silhueta da irmã, ao longe, executando movimentos ritmados com as mãos, onde fios dourados adornavam os pulsos. A magia que ela e o resto do grupo manipulava, criava círculos luminosos no chão onde, a cada novo movimento ou palavra proferida, símbolos estranhos se formavam e desapareciam.

O mago Anton, que estava um passo atrás do comandante Guil, que a ladeava, respondeu:

— Não é algo comum nos dias de hoje, onde a magia começa a se tornar escassa. Mas em tempos antigos, costumava-se criar esse tipo de local para “igualar” o poder de exércitos. Resumindo, todo mago que nele pisasse seria privado da magia, enquanto ali permanecesse. Esse tipo de campo também bloqueia investidas externas.

A princesa se voltou para olhar o rosto marcado dele.

— Mas isso as deixará vulneráveis também! — Observou.

O axeano sorriu.

— Pelo o que entendi, somente a castir entrará no campo — cruzou os braços, pensativo. — Confesso que estou curioso para saber como ela poderá fazer isso. Ela é uma mestra do manibut e isso lhe confere uma larga vantagem tanto contra magos, quanto contra pessoas não-mágicas. Mesmo assim, pelo o que ouvi de Miqueias, essas Sombras possuem uma força física descomunal.

Melina, que estava alguns metros adiante da torre de vigia, caminhou pelo espaço estreito e lotado de soldados. Eles se espremeram à sua passagem, lançando olhares curiosos. A grã-mestra enfiou as mãos nos cabelos e a água deles escorreu farta pelo pescoço e ombros, unindo-se a que encharcava as roupas. Ela ouviu a parte final da conversa e encarou Emya, que deu um passo atrás, espremendo-se entre Guil e Anton, no espaço minúsculo.

— Pelo o que Virnan me disse, sem magia, eles são apenas cascas à espera do fim do sofrimento em que foram atirados. — Soou tão sombria, que um arrepio percorreu o corpo da sobrinha. — Como o mago acabou de falar, todo aquele que pisa no campo é privado da magia, mas Virnan não irá pisar.

A declaração atraiu mais dúvidas para eles, no entanto a Grã-mestra mudou de assunto:

— Como anda a evacuação? — Deu um passo à frente para entrar no local.

Pouco tempo depois de estabelecerem o plano, Lian avisou que os túneis tinham sido estabilizados e a evacuação se iniciou. Agora, ele e os guardiões monitoravam o êxodo para fora das proteções seculares da fortaleza. Os ordenados tiveram um breve momento de descrença quando se viram diante de uma grã-mestra jovem e ainda mais autoritária, mas logo reassumiram a sobriedade, deixando para satisfazer suas dúvidas em um instante propício e pacífico. Retornaram para os túneis, acompanhados pelos magos integrantes do exército midiano, a fim de mantê-los transitáveis e prevenirem novos desmoronamentos, durante a evacuação.

— Mais rápida do que imaginávamos — Guil respondeu, cofiando a barba farta e entremeada por fios grisalhos. A noite insone e os últimos acontecimentos lhe pesavam, mas mantinha uma postura inabalável, embora ela desaparecesse sempre que algo lhe era revelado.

Comprimiu os lábios, que desapareceram debaixo do bigode, então falou:

— Estava pensando… Eles vêm à procura dela, correto? Não teria sido mais sábio e menos desgastante, se ela tivesse partido? Se não estivesse aqui, não haveria razão para entrarmos em conflito.

O sorriso condescendente de Melina o incomodou.

— Diga-me, Comandante. Se você fosse um homem que massacrou seu próprio povo, causou a morte da irmã, arquitetou guerras para roubar almas mágicas e exige sacrifícios humanos para alimentar sua fonte de poder, o que faria? E se você, finalmente, tivesse a oportunidade de matar a pessoa que frustrou seus planos no passado e que ainda pode fazê-lo no presente; se soubesse que ela está ferida e vulnerável em determinado local, hesitaria em destruir esse lugar, mesmo havendo a possibilidade, talvez a certeza, de que tal pessoa não estivesse mais lá?

Ele a analisou, ainda com um pouco de dificuldade em conceber a nova aparência. Escorregou o olhar para a chuva, sem responder. Não havia necessidade de fazê-lo, afinal.

Melina sentenciou:

— Mesmo que ela partisse, mesmo que a matem, eles não irão parar até que Valesol seja apenas um amontoado de cinzas. E continuarão em frente até que o mesmo aconteça com este mundo. Não espero que absorvam essas coisas tão rapidamente. Sei que é muito e vocês só tiveram acesso à informação resumida. Para ser sincera, espero que não cheguem a conhecer toda a verdade. — Inspirou fundo. — Vocês não precisam ter este tipo de pesadelo.

A gravidade do semblante do comandante se equiparava a de Anton. Contudo, o mago parecia menos tenso. Melina se aproximou da amurada e o vento lhe atirou respingos de chuva na face. Seus lábios tremiam de frio, mas quando aguçou os sentidos, a magia se espalhou pelo corpo e o aqueceu agradavelmente.

— Você deve partir, Emya. Lian e os outros irão cuidar de você.

— Desculpe, Tia, mas não pretendo me acovardar nem deixar Marie para trás.

Melina sorriu, benevolente.

— Uma boa rainha sabe reconhecer as batalhas que é capaz de lutar e as que não tem capacidade para enfrentar. Sua irmã não está sozinha, então poupe-se.

Deu-lhe as costas e enfiou uma mão na aljava. Não havia sequer uma flecha nela, mas quando a tocou uma seta se materializou. Encaixou-a no arco, recordando as instruções de Virnan. As gravuras entalhadas na arma brilharam, então ela disparou.

** **

Virnan conjurou um escudo de ar à sua volta, no exato instante em que desferiu um golpe seco na garganta de outra Sombra caída, antes que ele fosse capaz de agir. O adversário seguinte, foi mais ágil e lhe atirou uma grande onda de magia. A castir foi lançada para trás e caiu em uma poça de lama. Suas botas afundaram até a metade quando se pôs de pé, escapando por alguns milímetros de ter a cabeça decepada pela lâmina de uma espada. Ela jogou o corpo para trás, cortando o ar com a adaga. A lâmina do inimigo se partiu e um dos braços dele foi arrancado. Um grito animalesco ecoou, enquanto Virnan enfiava a adaga no abdômen dele arrastando a lâmina até o peito.

Ela cambaleou para fora da lama; o terreno encharcado e escorregadio prejudicava os passos. Rolou no chão, fugindo de um golpe de machado. Ficou de pé e bloqueou a investida de outra sombra, contudo, outro se aproximou pelo flanco direito e a estocou. Um grito lhe escapou, enquanto a lâmina invadia sua carne e era jogada para as profundezas da dor. Deu um passo atrás e aquele que a feriu puxou a lança.

Os olhos maquiavélicos dele brilharam avermelhados para, logo em seguida, perderem o viço quando uma flecha encontrou abrigo em seu peito. A seta o atravessou, deixando um buraco do tamanho de um punho, onde chamas queimaram a carne dele. Outra flecha, outro inimigo morto. Virnan empunhou a adaga, estirou o braço e a lâmina cresceu, tomando a forma de um punhal longo, o girou e lâmina cresceu mais alguns centímetros, tornando-se uma espada curta.

Preferia a forma de adaga, pois sempre apreciou o uso de armas pequenas, como punhais e facas de lançamento. Era um gosto derivado do treinamento Manir, que prezava pelo combate corpo à corpo. Entretanto, na atual situação, seria bom manter alguma distância do inimigo. A espada brilhou quando a agitou e o ar partiu o atacante mais próximo ao meio e decepou as pernas de outro, que ela não hesitou em cortar a cabeça.

Virnan estava usando uma grande quantidade de magia para manter a maioria deles afastados, diminuindo o número de adversários a enfrentar, aumentando a força do vento e os empurrando para trás. Eram fortes, mas ela reconhecia que não chegavam aos pés da Sombra de Lorde Axen. Concluiu que a razão para tal, poderia ser o fato de que eram Sombras jovens, em comparação à dele. Nem por isso, eram menos difíceis de combater.

A coisa tendia a piorar, já que eles começaram a realizar a transmutação do corpo, adquirindo as feições monstruosas, semelhantes às de Lorde Axen. Ela continuou avançando entre eles, pouco a pouco, conduzindo-os rumo ao campo neutro. Escapava de seus golpes, desferindo outros tão letais quanto.

Está pronto!” Lyla sussurrou-lhe e, um instante depois, o spectu desceu do céu com garras afiadas e longas em uma transmutação pela metade. Ela rolou pelo chão, enfiando suas penas entre as pernas de dois desavisados. Então, saltou e assumiu a forma animal para escapar de uma machadada. Voltou a forma humana e atirou as penas no peito do inimigo mais próximo, juntando-se à Virnan.

** * **

Tamar uniu-se a Marie, um pouco depois do campo que acabaram de criar. As duas mestras estavam ofegantes e trêmulas, graças ao esforço de criar o círculo invisível que tornava o campo à frente neutro.

— Deuses! Isso está deixando meus nervos a flor da pele! — Queixou-se a bibliotecária, retirando o chicote da cintura. Ainda que soubesse o que fazer, nunca entrou em um combate real, excetuando o resgate de Virnan na fronteira de Axen. Mesmo assim, na ocasião, apenas usou seus poderes para criar um escudo para si e Fantin.

— Isso me parece bem desastroso — disse Voltruf atenta a luta.

Ela deu uma olhadela no chicote de Tamar e inflou as bochechas, como se ainda fosse capaz de respirar. Por fim, deu de ombros e pegou a espada que trazia na cintura.

— É uma palavra bastante adequada. — Bórian sorriu, também retirando a espada da bainha. — Está pronta?

— Nasci e morri pronta!

Voltruf agitou as mãos e a água que caía aos seus pés começou a solidificar. Bórian riu alto, preenchido por uma familiar euforia.

— Isso não te faz sentir viva de novo?!

Ela ergueu as sobrancelhas, pensativa. Acabou por dar de ombros. Estava “viva” de outra forma, mas jamais poderia comparar aquela existência à anterior.

— Não me faça perder tempo com pensamentos estranhos. Só vamos ajudar aquela auriva de uma vez, antes que ela destrua o lugar e saia por aí contando que fez o serviço sozinha.

Começou a andar na direção da luta.

— Vocês sabem o que fazer — Bórian disse para as ordenadas e correu atrás da amiga.

As duas mestras ladearam o campo preparado até chegarem ao fim dele, poucos metros antes do fosso que as separada da segurança da fortaleza. Marie conjurou argolas douradas nos punhos, ajoelhou-se, depositando as mãos no chão. Como não poderia lhe oferecer auxílio nessa conjuração, Tamar fez o chicote enrolar-se até adquirir as formas de um escudo e postou-se na frente da amiga.

*** ***

Lyla transmutou e alçou vôo sob ataque intenso. Clarões de magia cruzavam os céus na esperança de tocá-la, mas o spectu desviava em meio à mergulhos e piruetas. Então, despencava na forma humana, lançando penas afiadas nos oponentes.

Do alto, assistiu a magia de Marie percorrer toda a extensão do terreno. O solo do local onde Virnan estava começou a ondular. Pedras brotaram em alguns pontos, derrubando sombras, noutros, o solo cedeu fazendo-os afundar. Enquanto isso, Virnan correu na direção do campo neutro, cortando qualquer um em seu caminho. A magia da esposa não a afetava, visto que aumentou a resistência do ar para caminhar sem tocar o chão.

— Nebulare! — Conjurou a névoa, apressada.

Não era muito forte, apenas o suficiente para confundir as Sombras e ainda permitir que Melina e Lyla pudessem enxergar suas vítimas do alto. Uma flecha dourada passou sobre sua cabeça e seus ouvidos sensíveis captaram um grito de dor, poucos metros atrás. Alguns passos depois, foram as penas de Lyla que passaram perigosamente próximas do seu corpo.

Voltruf surgiu à frente dela. O espírito ergueu a mão e magia abandonou seu corpo, convertendo as grossas gotas de água em gelo, que foram impulsionadas para a sombra com a qual Bórian travava combate. Elas o atravessaram, deixando uma grande quantidade de buracos no corpo enegrecido e de aspecto animalesco.

Uma forte onda mágica atingiu as costas de Virnan e ela foi jogada contra Voltruf. As duas rolaram por um declive e caíram em uma poça de lama, abraçadas.

— Parecem os velhos tempos — o espírito riu.

— Nem me diga, eu era melhor nisso. — Gemeu, puxando-a para mais perto do seu corpo, a fim de evitar que tivesse a cabeça separada do corpo quando uma lâmina carregada de magia desceu em direção a ela.

O fato de ser um espírito não a pouparia da morte “definitiva”, se acaso fosse fatalmente ferida naquela investida. Afinal, as sombras não pertenciam a Domodo e a magia que dominavam agia de forma semelhante a espiritual, ainda que suas essências fossem bem distintas.

Virnan socou o ar com a mão livre e o inimigo foi jogado para trás. Então ela o prendeu com correntes de ar e Voltruf afastou-se dela para congelar a água da chuva. Com um gesto delicado fez o gelo atravessar o corpo da criatura.

A guardiã recuperou a tucsiana, que estava caída ali perto.

— Vamos acabar logo com isso.


Olá, amores!

Atrasada! Super atrasada! Perdão!

Fim de ano a demanda de trabalho aumenta um pouco e tenho de comprar a ração dos filhotes, né? rs… Peço que tenham um pouquinho de paciência comigo e não se preocupem, nunca deixo meus textos sem finalização. Também sou leitora e sei que a pior coisa para nós é acompanhar um texto e descobrir que ele foi abandonado. [Ainda estou traumatizada com “fluttering feelings” rs. Neste caso, um mangá/manhwa, cuja autora, infelizmente, faleceu]. << Mas fica a dica para quem curtir esse tipo de leitura e gostar de um romance lento, que nunca vai ter fim, rs…

Retomando… Este capítulo é referente ao que não postei na semana passada. O desta semana será publicado no sábado à noite.

Beijão e até sábado!



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 41. Em meio à tempestade

  1. Tattah, não se preocupe com o atraso! Todas sabemos como é a vida e suas demandas.
    Olha, o capítulo compensou a espera! Agora a magia vai rolar solta! Rrrsss…
    Valeu!
    Abraços e bom fim de semana.

  2. Uau…
    Totalmente sem folego apenas de ler.
    Adoro ver as soluções pra cada desafio… Virnan usar do ar para não tocar o solo… Sensacional.
    Qto ao atraso, sabemos q tem q alimentar os filhotes… fica tranquila, sobre a noticia de ter cap no sábado… A M E I…
    Tattah, mais um cap sensacional, mesmooo…
    Esperando sábado chegar.

    • Haha, que bom que curtiu a solução da Virnan, amore! Ela ainda tem muito mais para mostrar!

      Beijos!

Deixe uma resposta

© 2015- 2018 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.