Marie passou a mão no rosto e afastou os fios longos e molhados que grudavam-se em sua testa. A chuva e o vento eram tão fortes que mal podia enxergar Virnan de pé sobre a muralha. O som da tempestade invadia seus ouvidos e as gotas grossas lhe tocavam a pele como se fossem agulhas.

A esposa tinha o olhar fixo no horizonte, como se pudesse enxergar algo mais além do vale que se estendia colina abaixo e das montanhas e florestas além dele. Segurava a adaga com as duas mãos, junto ao peito. Os lábios movimentavam-se como se estivesse em meio à uma oração e era mesmo provável que estivesse recitando a prece que os aurivas costumavam entoar antes de ir à guerra.

A ouviu declamá-la uma centena de vezes ao longo do ritual no Salão Lunar. Obviamente, não recordava as palavras, contudo sabia que era algo lugúbre, mas bonito.

— Não consigo acreditar que ela quer ir até lá sozinha! — Emya falou, também fitando o horizonte.

A apreensão crescia em seu íntimo, como se fosse uma massa palpável que pudesse expulsar de si a qualquer momento. Era tamanha, que chegava a lhe tomar o ar. O medo, é claro, era a força principal dela, ainda mais quando recordava a forma monstruosa que viu Marie e a tia retirarem do corpo de Virnan. Mas aquela sensação não era recente. O sentiu, pela primeira vez, no dia em que a irmã foi eleita para o sacrifício. Depois disso, ele se tornou uma constante em sua vida, então começou a encará-lo como um companheiro indesejável, mas necessário. Era por isso que aparentava estar tão serena naquele instante, ainda que desejasse gritar e mostrar-se realmente frágil, como seus comandantes a enxergavam.

— Se esses homens ou coisas, sei lá, são tão poderosos, é mais sensato que fujamos! — Continuou. — Contudo, com os túneis naquele estado, só nos resta lutar. Ainda assim, é uma loucura que ela queira ir sozinha.

— Ela não irá sozinha. — Marie se fez ouvir. — E os túneis estão parcialmente destruídos, mas Lian e os guardiões estão tentando estabilizar a construção com magia. Logo poderemos começar a evacuação.

Percorriam a muralha, espremendo-se entre os soldados de prontidão. Emya estacou e pegou o braço dela, interrompendo seu avanço. A fez se voltar para fitá-la.

— Espero mesmo que eles consigam em tempo. — Fez uma careta de frio, os lábios tremiam ligeiramente. — Eu entendo; de verdade. Compreendo o que deseja fazer e o motivo, mas rogo para que desista da ideia de acompanhá-la.

As mãos de Marie sentaram em seus ombros, carinhosas, assim como o olhar que lhe dedicava. Era a personificação da tranquilidade, ainda que não se sentisse assim.

— Não permitirei que ela vá sem mim — afirmou.

O corpo da irmã estremeceu de frio ou medo; Marie imaginou que os dois. Um trovão aumentou o tremor dela, que encolheu-se um pouco mais antes de falar:

— Vocês vão morrer! Não posso permitir que entre em algo assim depois de escapar de uma morte certa. Nem consigo acreditar que ela irá permitir isso depois da forma como falou àqueles homens!

Os olhos de Marie resvalaram em Melina e Bórian que as seguiam poucos metros atrás. A tia continuava mantendo a aura expandida para lhe permitir a palavra. Era um pouco cansativo, mas nada que lhe consumisse demais após tantos dias de descanso em Flyn. Acompanhava a conversa com interesse, reconhecendo na sobrinha caçula muito da personalidade do pai.

— Eu já lhe disse isso. Irei aonde ela for e farei o que ela fizer. Não a deixarei sozinha. Além disso, somente alguém com magia espiritual é capaz de lutar contra essas criaturas. E, no momento, só há cinco pessoas capazes de fazer isso aqui em Valesol.

Esperou que ela absorvesse as palavras e fez menção de continuar, mas um pequeno formigamento começou a se espalhar em seu punho. Tornou a olhar para a tia e notou que o mesmo se passava com ela, que já havia baixado a vista para a tatuagem do Círculo. Melina esticou o braço e um dos círculos na tatuagem deslizou por sua pele e avançou até se projetar no ar. Momentos depois, Tamar apareceu à sua frente e, ao lado dela, estava Nária Voltruf.

A ordenada se curvou, nauseada com a viagem e foi amparada por Marie e Emya. Voltruf, por sua vez, enviou um cumprimento discreto para Bórian e arrastou a vista pela fortaleza. Observou com apuro o corre-corre dos homens, a gritaria que o vento forte e a chuva abafavam, os arqueiros posicionados ao longo da muralha sobre a qual estavam e os rostos apreensivos pela certeza de que uma batalha se aproximava.

Se voltou para o horizonte. Não viu nada que pudesse provocar aquelas expressões nos homens, mas havia algo errado naquele lugar. Não enxergava o inimigo, todavia sua conexão com a água permitia que sentisse o poder sombrio que possuíam.

— Inferno de vida pós-morte. — Ela reclamou baixinho, compreendendo do que se tratava aquele poder.

Ouviu Bórian concordar com um “Né?!” e, por fim, girou sobre os calcanhares e pousou o olhar em Virnan, ainda imóvel e fitando o horizonte, enquanto sussurrava palavras para o vento. A castir parecia tão concentrada, que sequer demonstrou ter percebido a chegada deles.

— O que está acontecendo? — Tamar perguntou, recuperando-se e agradecendo o auxílio das princesas com inclinares de cabeça.

Cumprimentou Melina, sob o olhar assombrado de quase uma dúzia de homens próximos a elas. Com meia dúzia de frases, Melina explicou o que se passava. Tamar soprou o ar, compreendendo o motivo da apreensão que sentiu no laço. Passou a mão no chicote que estava enrolado em sua cintura, como se fosse um cinturão; retirou o arco e a aljava das costas e os entregou a Grã-mestra.

— Não são os reforços esperados, mas creio que podem ajudar muito.

— Onde está Fantin? — Quis saber Melina, recebendo os objetos com mãos trêmulas e ansiosas.

Ela admirou os detalhes rebuscados da arma, a pedra tucsiana cravejada nela e a palavra na língua Enaen entalhada em volta da joia. Sentia o poder fluir por seus dedos; vibrava como se estivesse sussurrando seu nome. E uma sensação de “frio” assentou-se em seu estômago.

Os ombros de Tamar subiram e desceram um par de vezes, enquanto respondia:

— Precisamos voltar para Flyn com rapidez, então ela ficou.

As sobrancelhas de Melina se arquearam, quando a focalizou.

— Estou surpresa por ela não ter vindo junto, aliás, por ter permitido que se metesse em uma situação perigosa sem que esteja por perto para protegê-la.

A frase foi dita em tom de troça, mas a verdade transbordava das palavras. Desde que morreu, na floresta, Fantin se tornou sua protetora pessoal. Realmente, foi difícil convencê-la a deixá-la partir, mas a mestra loira estava bem ciente do dever que todas assumiram ao fazerem um juramento com Virnan e acabou cedendo, após uma breve discussão em que Voltruf e Laio tomaram o partido da bibliotecária.

A mestra dos escritos desprezou o comentário e prosseguiu:

— Sabíamos que estava chovendo aqui e já que me dou bem com a água, vim com Voltruf. Quando soube disso, Lorde Verne esperneou como criança e exigiu que o trouxesse também, mas esta foi minha primeira viagem e não sabia se conseguiria realizá-la, então o deixei em Flyn. — Riu alto, lançando um olhar para Emya.

Surpreendeu-se por encontrá-la tão bela e parecida com a irmã mais velha.

— Ele está preocupado com você, Alteza. — Explicou. — É uma honra estar em sua presença, outra vez.

Finalmente apresentou-se, causando grande surpresa na princesa, que a achou muito mudada fisicamente. Nem de longe parecia a moça magricela e silenciosa, que acompanhava e servia Marie.

— Na verdade, o humor de Lorde Verne não anda dos melhores, desde que Virnan veio para cá e, logo após, Marie e a Grã-mestra. Não que ele costume ser melhor que isso, mas é mais ameno. — Sorriu mais. — Contudo, a apreensão pelo o que se passava aqui estava lhe consumindo. Agora então, deve estar torturando os ouvidos de Fantin.

— É mais provável que seja Fantin a fazê-lo. — Melina troçou.

Não havia necessidade de Tamar contar essas coisas, mas depois de tudo que houve pelo caminho, ela tomou algum tempo para conhecer melhor o lorde durante a estada em Flyn. Foram muitas conversas longas, enquanto planejavam a batalha que se aproximava. Ainda que não fosse uma estrategista militar, Virnan lhe pediu ajuda nisso, pois apreciava sua visão crítica e inteligência. Desta forma, ela acabou se tornando mais íntima do lorde e seus homens, assim como acabou por conquistar o respeito dos comandantes florinae.

Sorriu largo, percebendo que a princesa apreciou a informação e tornou a dedicar atenção a Melina.

— Firea. É a palavra para fogo na língua Enaem. Use-a.

Melina a obedeceu de pronto e, como tinha visto ocorrer à Marie, a arma ligou-se à sua magia. O susto da invasão que as gavinhas mágicas lhe faziam ao corpo, fizeram com que tivesse ímpetos de resistir, mas recordou as palavras de Bórian para a sobrinha, mais cedo. Amainou as emoções e entregou-se às novas sensações. De repente, era como se estivesse ligada à tucsiana por eras. A magia que lhe percorria era reconfortante e acolhedora. Lhe transmitia uma estranha, mas querida, serenidade. E, pela primeira vez em muito tempo, Melina sentiu-se em paz.

Ergueu a vista do arco e encontrou o olhar de Tamar arregalado, assim como o de Marie. A bibliotecária deu um passo atrás.

— O que houve? — Indagou, assustada com o semblante das duas.

A mestras se entreolharam, desconcertadas. Tamar limpou a garganta, recompondo-se da surpresa, mas foi Emya quem explicou:

— Creio que a melhor forma de explicar, Tia, é dizer que está uns quarenta anos mais jovem. — Sorriu, indecisa.

Melina achou o comentário engraçado, mas quando baixou o olhar para as mãos, não encontrou as costumeiras rugas e sardas que o tempo lhe deu. Um soldado passou apressado por elas e a Grã-mestra o fez parar para analisar o reflexo no escudo. A imagem estava um pouco embaçada e as gotas grossas de água também prejudicavam a sua formação. Voltruf sentou a mão no escudo e a água que o tocava refletiu o rosto da grã-mestra com perfeição.

— Deuses! Por todos os círculos da Ordem, como isso é possível?!

Voltruf balançou os ombros, devolvendo o escudo para o soldado. O rapaz encarou Melina, assustado; afinal, como não podia enxergar o espírito, tudo o que viu foi o escudo retornar para suas mãos “flutuando” no ar. Engolindo em seco, ele fez uma breve reverência para as mulheres e partiu.

O espírito da Castir não conseguiu evitar um sorriso ao perceber o que tinha se passado. Entretanto, o sorriso partiu com a mesma rapidez com que chegou aos seus lábios. Ela também se encontrava surpresa com o que ocorreu à Melina, mas a voz e a atitude permaneceram frias, enquanto explanava:

— As tucsianas são armas feitas para o povo florinae. Somos descendentes dos Enaem, um povo imortal. Como tal, seu sangue nos concedeu uma vida longa. Consequentemente, não envelhecemos como vocês. Tenho certeza de que reparou que não há idosos como você em Flyn. Se houvesse, seria provável que tivessem alcançado algo em torno dos 600 anos de idade, talvez mais. — Deu de ombros. — É apenas uma suposição, pois nunca soube que algo assim tivesse acontecido antes, mas é certo que a tuscsiana reconheceu sua magia como forte. Entretanto, seu corpo físico é frágil.

Bórian pousou uma mão gentil no ombro da grã-mestra. Estava tão surpreso quanto os demais, mas o que Voltruf sugeria fazia sentido, então deu continuidade ao raciocínio dela:

— É provável que ao se unir a sua magia, ela regenerou seu corpo. Diferente do que ocorreu a Marie, onde a tucsiana mudou de forma para adaptar-se a ela, em você ela agiu de maneira a deixá-la mais adequada para ser sua dona e, assim, ser capaz de lhe oferecer seu poder pleno.

— É fato conhecido que os castir possuem uma larga vida, graças ao poder das tucsianas e envelhecem mais devagar pelo mesmo motivo. — Voltruf prosseguiu.

— Ainda que sejamos apenas castanes e humanas, não fugiremos à regra. — Tamar concluiu, apreciando o rosto atraente e os cabelos que vagavam entre o castanho claro e o loiro de Melina.

Emya acompanhava a conversa com atenção, saltando o olhar entre eles. Enxergava Bórian e Voltruf, graças a um círculo brilhante em seu braço, o qual recebeu após reclamar do quão desconfortável se sentia ao ver a irmã e Melina conversando com o vazio.

A líder da Ordem passou a mão na face, ainda assustada. Gotas de água fria saltaram no vazio, quando falou:

— Pensarei nisso depois. — Recusava-se a se entregar aos pensamentos que se atropelavam na mente e, assim, perder o foco do que estava prestes a acontecer. Contudo, não deixava de se perguntar quais as verdadeiras consequências daquela mudança. Olhou para onde Virnan estava, completamente entregue aos pensamentos. — Agora, temos um batalha a travar.

Um trovão deu ênfase às suas palavras. Voltruf seguiu seu olhar e abandonou a discussão para se aproximar de Virnan. A moça mordiscou os lábios com os olhos presos ao horizonte, mas estava bem ciente de tudo que se passava à sua volta. Piscou algumas vezes, antes de dedicar a atenção para a recém-chegada.

— Tirando a tragédia que nos trouxe a este momento, qual foi o maior número de Sombras com as quais lutou ao mesmo tempo? — Perguntou o espírito, sem importar-se em cumprimentá-la.

Os lábios da castir se contraíram, enquanto revolvia as memórias das viagens entre os mundos e das batalhas que travou longe de casa.

— Trinta, eu acho. — Escorregou a mão pela testa, afastando os fios molhados que grudavam-se a ela. — Naquele dia, cheguei a acreditar que, finalmente, tinha encontrado a morte. Entretanto, a possibilidade disso acontecer em Enagia me irritou tanto, que consegui eliminá-los, mas isso me custou muito caro…

Seu semblante tornou-se sombrio com a lembrança.

— O meu máximo foi dez. — Se inclinou sobre a amurada, analisando o estreito pedaço de terra, entremeado de rochas, que cercava a fortaleza, antes de dar lugar a um fosso profundo, de onde pedras e lanças pontiagudas se projetavam ameaçadoras.

Virnan a imitou e sorriu de lado, discretamente.

— Estou feliz por você estar aqui, Nária. Obrigada por ter vindo.

Se ainda pudesse corar, as bochechas pálidas de Voltruf teriam ficado vermelhas. Entretanto, a mistura de satisfação e desconforto modificou sua fisionomia, trazendo um riso suave para Virnan.

— Você anda muito sentimental, Auriva. Não é a primeira vez que batalhamos juntas. Além disso, enquanto estiver em Domodo, este é o meu dever.

— Tem razão, eu costumava ser mais impetuosa. Mas descobri que, às vezes, é bom deixar as pessoas saberem o quanto são importantes para nós. — Inspirou fundo. — De fato, lutamos juntas muitas vezes. Contudo, está será a primeira vez em que lutamos lado a lado, como amigas. — Sorriu mais abertamente.

Alguns instantes se passaram antes que Voltruf retornasse a sua frieza costumeira.

— Com efeito, você mudou muito, Auriva. Mas meio que sinto um pouco de saudades da antiga você.

A risada de Virnan cortou o som da tormenta, atraindo os companheiros.

— Por favor, não me diga que sente falta de trocar socos e insultos comigo!

— Disso não. Era muito desgastante e acho que já não tenho forças para esses jogos.

Os outros se aproximaram, dando fim a conversa delas. Contudo, Virnan ainda se demorou observando a antiga companheira de círculo. Amava Marie acima de qualquer coisa, mas não podia negar que a presença da falecida castir ainda mexia consigo e lamentava o passado turbulento que tiveram.

Afastou o olhar e concentrou-se em Melina. Sorriu largo, dizendo:

— Tinha certeza de que havia sido uma mulher muito bela na juventude, mas usar a palavra “bela” parece ser injusto, já que ela não faz jus à realidade.

A grã-mestra devolveu o sorriso com um misto de desconforto, pela nova aparência, e vaidade pelo elogio recebido. Sabia bem que, se o momento permitisse, Virnan continuaria os elogios, apenas para desconcertá-la. Felizmente, Voltruf retomou a palavra:

— Posso sugerir uma estratégia? — Limpou a garganta, afastando o olhar do vale, onde deixou-se concentrar por algum tempo.

— Estamos ouvindo — Tamar falou, puxando o capuz da túnica sobre a cabeça, para evitar as gotas grossas de chuva que espetavam seus olhos ao tocá-los.

— Campo das Flores Mortais. — Falou devagar, encarando Virnan.

Todos perceberam o claro desconforto que tomou as feições da Castir. Virnan se empertigou, abandonando o ar brincalhão, e voltou-se para ela completamente.

— Onde você ouviu isso?! — Perguntou, ríspida.

O espírito escorregou as mãos para as costas, onde as cruzou. Diferentemente do que ocorria em Flyn, o vento e a chuva ali não a afetavam e o mesmo acontecia com Bórian. Nária piscou algumas vezes antes de responder com voz fria e monótona.

— Depois que assumi minhas funções como Castir, raramente voltava para visitar o reino do norte, Norobor. Meu irmão era um homem difícil, você deve recordar dele na guerra.

Virnan encheu as bochechas de ar. Os olhos se apertaram, enquanto tentava imaginar onde ela queria chegar com aquilo. Respondeu:

— Narós, Terceiro Comandante do Exército do Norte. Impossível esquecer a estupidez em carne e osso. Trombamos algumas vezes nos campos de batalha e outras tantas quando fui obrigada a ir para o Norte em fastidiosas missões diplomáticas para a Ordem Castir.

Não conseguiu evitar um sorriso irônico, ao recordar que era tudo menos diplomática; um argumento que usou muitas vezes para o Grão-mestre Castir.

— Perto dele, você mais parecia uma simpática ovelhinha. E depois que soube que era seu irmão, entre alguns rumores, entendi o motivo de evitar ir para a casa com frequência e a razão do Grão-mestre me empurrar essas viagens.

Uma risadinha baixa escapou de Voltruf, enquanto assentava as mãos na cintura.

— Ele morreu de febre vermelha alguns anos depois da guerra. O visitei um pouco antes disso. De fato, nosso relacionamento não era dos melhores. E decaiu mais quando me tornei uma Castir e, literalmente, escapei de um casamento arranjado com um de seus melhores amigos. — Abanou a mão ao lado da face. — Mas este assunto não interessa aqui. O fato é que, como sua morte era dada como certa, ele não se importou em quebrar o juramento que todos os que estiveram presentes no dia em que a guerra pelo trono chegou ao fim, foram obrigados a fazer. Narós me contou o que aconteceu naquele dia. O Círculo do Trovão sempre soube que você estava metida nos acontecimentos que levaram a guerra ao fim, mas tudo que sabíamos era oriundo de boatos. E me custou acreditar que você pudesse ter feito aquilo sem receber uma punição e que nenhuma palavra à respeito escapou.

— Houve um acordo entre os Demirs, para que nada fosse dito. — Virnan esclareceu, incomodada por ser guiada para um assunto indigesto e sombrio.

— E, assim, você escapou da morte por traição.

— Não considero o que fiz como traição; era necessário. Só isso. Foi escolha dos Demirs, manterem aqueles homens ali. — Defendeu-se, fazendo uma careta. — Você pretende chegar a algum lugar com esta conversa? Não temos muito tempo para tagarelar sobre coisas que ocorreram há milênios atrás.

Elas se mediram com o olhar e, por um instante, Voltruf se sentiu no passado, ainda que não tivesse a intenção de provocá-la.

— Do que estão falando? — Bórian resolveu intrometer-se.

— Estamos discutido sobre como ela articulou o fim da guerra pelo trono e matou metade dos herdeiros dos reinos, exceto os do sul, para isso. — Voltruf elucidou, tranquila.

Um gemido raivoso escapou dos lábios de Virnan.

— Não me dê tanto crédito! — Ela reclamou, sob o olhar abismado de Bórian.

Voltruf riu, entortando os lábios ligeiramente. Seus olhos violetas se apertaram um pouco, graciosos. Sempre apreciou aquela expressão na face de Virnan. Era como se ela estivesse prestes a partir para o ataque, contudo, era exatamente o contrário. Era justo nesse tipo de situação, que ela demonstrava o sangue frio que possuía.

— Estou mesmo lhe dando crédito demais! — Reconheceu. —Você é esperta, mas Narós disse que todos sabiam que não fez sozinha.

As bochechas de Virnan encheram-se de ar, novamente. O soltou na mesma proporção que começava a perder a calma. Ainda assim, explicou com equilíbrio:

— Havia articuladores em todas as castas. Algo precisava ser feito antes que não restasse mais nada de Flyn, e os planos já estavam em andamento muito antes que eu me inteirasse deles. Apenas usei a influência do meu nome sobre os aurivas e aceitei fazer o serviço sujo e assumir a culpa de bom grado. Era a pessoa perfeita para assumir a culpa. Ninguém poderia me tocar assim que revelasse que minha magia espiritual despertou e estava destinada a me tornar uma Castir. E mesmo que desprezassem as leis e me enviassem para a morte, iria com o orgulho de quem está em paz com seus atos.

— Mas de que inferno vocês estão falando?! — Bórian se queixou, ainda confuso. — Foi uma tragédia que tantos herdeiros tenham morrido na batalha da Colina Merida, mas como Virnan poderia ter algo a ver com isso?! Por Cazz! Ela era apenas mais um soldado auriva no meio de milhares.

O olhar frio de Voltruf o atravessou como se fosse uma lâmina e daquele gesto ele tirou a certeza de que estava redondamente enganado. Ela explicou, devagar:

— No dia em que a guerra chegou ao fim, parte dos quatro exércitos e seus respectivos líderes se reuniram na Colina Merida. O reino do sul deu um ultimato para os demais. Aceitar a derrota ou perder todos os herdeiros de uma vez, incluindo aqueles que não estavam presentes.

— Isso é loucura!

— Mas foi o que aconteceu. Eles disseram “não” e, em um breve instante, algumas dezenas de homens e mulheres morreram pelas mãos dela — encarou Virnan, novamente.

— Isso é um absurdo, é brincadeira! — Bórian retrucou.

No entanto, a amiga não riu, muito menos Virnan, que voltou a focalizar o horizonte. Depois de ouvir a última frase proferida pela antiga companheira, a Castir já sabia para onde aquela conversa estava indo e tratou de interrompê-la.

— O que você está sugerindo é impossível, Nária. — Jogou os cabelos ensopados para trás da cabeça. — Levamos seis meses para preparar aquele campo e não temos mais que alguns momentos até as Sombras chegarem aqui.

Nária passou a mão no rosto, como se estivesse incomodada com a chuva. Em verdade, parecia tão seca quanto em um dia de sol.

— Naquela época, você ainda não era uma castir e conseguiu realizar tal façanha. — Argumentou.

— Com ajuda de dezenas de pessoas! — Virnan rosnou.

Nária não se abalou com o olhar zangado dela. Assim que Melina a inteirou do que se passava, a resposta para aquele problema se tornou clara em sua mente como um dia ensolarado.

— Hoje você possui conhecimento elevado. Está chovendo forte e aqui estão duas mulheres que podem dominar a água e mais duas pessoas que conseguem fazer o mesmo com a terra. Se unirmos forças, podemos preparar o campo para você.

Bórian pousou a mão no queixo. Estava um pouco confuso, mas conseguiu compreender o teor da conversa, ainda que não tivessem se aprofundado em detalhes. Só havia uma explicação para que tantas pessoas com dons mágicos morressem pelas mãos de Virnan em um instante, sem que houvesse uma tentativa de revide. Disse:

— Tudo isso ainda me parece um absurdo, mas se entendi bem o que se passou na Colina Merida, o que Volt está sugerindo é melhor que a ideia suicida que você teve.

— São duas centenas de Sombras. A balança do poder está completamente inclinada para eles. No entanto, se agirmos com inteligência, podemos ganhar essa luta. — Voltruf agitava as mãos, enquanto falava. — Não precisaremos de muito espaço, desde que consigamos deixá-los próximos e direcioná-los para o local que desejamos. Sabe que é uma boa ideia.

Os lábios de Virnan estalaram. O pássaro Lyla, que havia pousado em seu ombro, momentos antes, saltou para a amurada e tomou a forma humana. Os olhos violetas pousaram na irmã mais velha, enquanto os sentimentos conflitantes dela a invadiam. Pediu-lhe calma através do laço e após um longo momento de agitação sentimental, Virnan se forçou a seguir o conselho e responder:

— É uma ótima ideia, mas não temos muito tempo. Mesmo que vocês possam prepará-lo, ainda necessito de muito tempo para conjurar uma lâmina. Acabei de ser curada do veneno de uma Sombra e Lyla também não está com plenos poderes.

— E você prefere ir até lá sozinha e usar seu manibut contra eles. Funcionaria bem se fossem apenas magos, mas Sombras… Vi seu estado esta manhã. Se um deles conseguiu retalhar você daquela forma, duzentos não deixarão nem vestígio de que um dia andou sobre este mundo.

Bórian argumentou e arrependeu-se da dureza das palavras ao notar o incômodo que se assentou na face de Marie. Era difícil admitir, mas ele gostava da mestra, dos seus modos e jeito de pensar. E, cada vez que a ouvia falar, seu respeito e admiração por ela cresciam. Nessas horas, quase esquecia que ela era uma amitsha.

— Merda! Pareço ser tão estúpida assim?! — Virnan queixou-se. — É verdade que pretendia e ainda pretendo ir até lá, mas não planejava cair no braço com eles. Sei bem os meus limites. Ser uma castir, não faz de mim imortal.

Abanou a mão no vazio, tentando transmitir segurança à Marie. Aparentemente, não deu muito certo, pois a mestra mordiscou os lábios em um gesto que, sabia, significava nervosismo. Acariciou a adaga na cintura e Voltruf pousou a mão na dela sobre o cabo, compreendendo suas intenções.

O poder que a tucsiana carregava, naquele momento, era uma grande vantagem, mas só podia ser usado uma vez. Este era um dos motivos para que Virnan estivesse tão desgastada quando lutou contra Lorde Axen. O ritual que fez um pouco antes da chegada de Fantin ao Salão Lunar, lhe custou uma grande quantidade de magia.

— Aceite minha sugestão e guarde isso para quando estivermos lutando por Flyn e os Portões. Não desperdice esse trunfo. — Curvou-se na direção dela. — Ao menos uma vez, Virnan, nos deixe ajudá-la. Nos deixe expiar nossos erros. Se este plano não der certo, siga adiante e use a adaga!

Afastou-se devagar, admirando o sorriso que se desenhou nos lábios da auriva, com um misto de irritação e querer. Virnan sempre foi capaz de levá-la a extremos com apenas um gesto e isso não mudou com o passar dos séculos e a morte.

— Se tivesse agido assim no passado, Nária, jamais teria tido a coragem de levantar os punhos contra você. Muito bem, vamos trabalhar no seu plano. Vamos criar um campo neutro.

 

 

 


Olá, amores!

Demorou, mas voltei! rs… Espero que tenham curtido o feriadão e estejam relaxadas.

Quero agradecer pela paciência. Responderei todos os comentários assim que possível.

Abaixo, coloquei uma imagem do Mapa de Domodo. Finalmente, né? rs… Devia ter feito isso há muito tempo. De preferência, nos primeiros capítulos, mas como alguns desses lugares foram nascendo durante os capítulos, não seria de grande ajuda. Agora, sim, está tudo no lugar, ou quase, rs. O mapa ainda é um esboço, mas espero que ajude a clarear a mente de vocês.

Beijão e até o próximo capítulo!

 




Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 40. Colina Merida

  1. As ilustrações estão maravilhosas, adorei o mapa já viajei por ele.
    Tadinha da Marie vendo e sentindo Virnan irredutível na intenção de se lançar sozinha nesta guerra.
    Naria se valendo do conhecimento q tem para mostrar a Virnan a melhor saída para a guerra q está por começar.
    Por fim Layla servindo como a consciência e fazendo Virnan se acalmar nas horas decisivas, adoro a ligação delas.
    Por fim falarei da beleza da família pelo q Virnan falou imagino a beleza de Melina.
    Aguardando o próximo cap. este foi realmente mto bom, mtas informações importantes, amei…
    Parabéns Tattah…

  2. Linda ilustração, Tattah! E o mapa foi enriquecedor também!
    Deu pra entender porque a Maxine ficou doida pela Grã-mestra! Rrrsss…
    Brincadeiras a parte, que bom que estão todos se unindo para resolver os perrengues, e melhor ainda que a Virnan está aceitando ajuda.
    Ansiosa pela batalha!
    Perdoada pelo atraso! Só não deixe a história incompleta, por favor!
    Abraços

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