*
Anton encarou o vilarejo à frente; a lua despejava seu brilho sobre o caminho até ele. Espremeu os olhos, forçando a visão para alcançar as formas de duas dúzias de casebres e uma estalagem. Tochas ardiam, oferecendo luminosidade para os moradores se locomoverem entre as humildes residências.
— Tem certeza disso? — Belard questionou.
O mago se voltou para ele. Por um momento, tinha esquecido de sua presença e dos outros Manir. Na parca luminosidade do luar, o companheiro parecia séculos mais velho, embora não tivesse mais que quarenta anos.
A demora na resposta incomodou Belard, que atirou o capuz da capa sobre a cabeça, para abrigar-se do vento forte e frio que soprava à volta deles.
— É uma pergunta justa. — Argumentou. — Você afirma que essa mulher é a última Dashtru que liderou os Manir, a mesma que se tornou a Castir mais poderosa que este mundo já viu e que deveria estar morta há milênios. É natural que eu tenha minhas dúvidas.
— E se for um truque? — Miqueias o apoiou. — Se nos indispusermos com Lorde Axen, o destino mais acolhedor que teremos será encarar o carrasco.
Anton endireitou-se sobre a sela. Incentivando o cavalo a ir adiante.
— Não era um truque. — Respondeu, finalmente. As mãos deslizaram sobre o local onde a guardiã tinha lhe marcado com o manibut. Ainda sentia o toque ligeiro dos dedos dela e o medo e admiração que lhe tomaram, também.
Os Manir se entreolharam em silêncio. A verdade é que estavam curiosos e até ansiosos para descobrir se era verdade o que tinha lhes contado. Por isso, não hesitaram em segui-lo.
Poucos, eram aqueles que ainda sabiam como o Reino de Axen foi criado. Entre eles, os oito homens naquela estrada.
Seus antepassados fizeram questão de preservar a história dos aurivas; uma casta guerreira do “extinto” povo florinae. Os pergaminhos falavam pouco sobre seu reino e povo natal, mas tinham sido escritos pelos Manir e, assim, se aprofundavam na história auriva, exaltando a nobreza da família Dashtru e os feitos de sua herdeira mais famosa, que os liderou nos campos de batalha durante uma guerra que se arrastou por décadas e, também, veio a se tornar uma Castir. De todo o modo, o nome dessa auriva ainda era lembrado e honrado entre os Manir, que se inspiravam no fato de que tinha sido uma das guerreiras mais poderosas de seu tempo, muito antes de despertar a magia.
— Acho difícil acreditar que ela esteja viva após milênios — Jeil murmurou, fazendo uma careta para o vazio.
Ele brincou com o cavanhaque ralo, mirando as costas do mago Anton que, assim como ele, pertencia a família Nadalus. O mago era um primo distante, que teve a oportunidade de liderar a família e rejeitou por razões, até então, misteriosas. Contudo, ele continuou fiel aos seus e aos Manir; o que, aliás, era um requisito para se tornar um líder em cada uma das famílias.
Pouco sabiam do que aconteceu com Flyn. Os escritos antigos diziam apenas que a cidade foi cercada por uma magia poderosa que a protegeria do Cavaleiro. E que os Castir, que eram os guerreiros mais poderosos daquele tempo — em verdade, as histórias não eram muito claras quanto a isso, já que muitos escritos se perderam após uma das muitas guerras que assolaram os axeanos — saíram daquela proteção junto com um exército de aurivas voluntários. Homens e mulheres que, independentemente do dever para com as outras castas, ansiavam vingar a “morte” de Virnantya Dashtru e de muitos de seus irmãos e irmãs.
Eles seguiram aqueles heróis para uma violenta batalha contra as forças do Cavaleiro, mesmo sabendo que jamais poderiam voltar para casa. As histórias foram escritas por muitas mãos e algumas delas se privavam dos pequenos detalhes, mas todos esses escribas concordavam em um ponto. Assim que o exército florinae cruzou os limites das terras que circundavam a cidade, a Rainha sacrificou-se para conjurar a proteção em volta dela. Era uma barreira mágica tão poderosa que alguns séculos se passariam antes de que alguém conseguisse cruzá-la. Então, os remanescentes da batalha decidiram habitar as terras próximas à Flyn e, assim, Axen surgiu.
Ao longo dos séculos, a verdadeira história foi se perdendo em meio a um povo miscigenado, mas era mantida viva entre os chefes das oito famílias, que a recontavam para seus descendentes. Para o povo, restou apenas a lenda da mulher que, antes da formação de Axen, teria unificado seu povo para dar fim a uma longa guerra. Uma heroína, cujo nome tinha se perdido, mas era sabido que pertencia à família Dastur; a pronúncia variou com a mistura do povo e outros sotaques, assim como Nadalush se tornou Nadalus e Garish virou Garise.
Anton fez o cavalo parar e o posicionou de frente para os outros.
— Vivemos em um mundo cheio de magia, mas é sabido que o que vemos hoje, nem de longe se compara ao passado. Vi Lorde Axen retirar a alma de um ordenado e colocar dentro de um medalhão para que eu pudesse amplificar minha parca magia; imaginem o que era possível fazer há três mil anos. — Cuspiu no chão. — Sinceramente, não estou interessado em saber “como” é possível que esteja viva neste tempo. Diante do que a vi fazer e como me fez estas marcas, — passou a mão sobre o peito — diante daqueles olhos verdes e quase transparentes; principalmente, diante do juramento, “nosso” juramento Manir, não tenho dúvidas de que ela seja a verdadeira Virnantya Dashtru. Mas se isso não lhes basta para acreditarem, então levem em consideração o fato de que é uma Manir e independentemente de a que família pertença, ela solicitou um conselho de guerra e é dever de vocês, chefes de suas famílias, ouvirem-na.
Voltou a pegar as rédeas, prestando atenção na conversa silenciosa entre eles.
— Pois bem! — Rómul disse. — É mesmo nosso dever ouvi-la, mas não me agrada nada que tenha de ser próximo à Cidade dos Eleitos. Além disso, ficarmos muito tempo longe de nossos deveres, junto ao exército, poderá chamar a atenção de Lorde Axen.
— Apenas dei o recado — Anton balançou os ombros. — Não estou obrigando ninguém a ir comigo.
— Como se aquele sujeito se importasse com o que fazemos! — Redarguiu Iberion. Ele comandava a última família a se render a união “forçada” do povo de Axen e, como os outros, ainda não conseguia aceitar aquela derrota.
Viviam em disputa pelo trono do reino há séculos, mas eles se respeitavam e se entendiam quando o assunto era a Irmandade Manir. Era um dos preceitos dela que, mesmo estando em lados opostos de uma guerra, os Manir deixariam ódio e rusgas de lado em prol da irmandade e seu povo.
— Então, vamos nos apressar. Três dias passam rápido e a Cidade dos Eleitos ainda está bem longe. Naquela vila há uma estalagem e quero ter uma boa noite de descanso antes de me aventurar até aquele maldito lugar. — Jeil proclamou, desprezando o comentário dele. Já tinham muito em que pensar para perderem tempo confabulando sobre seus respectivos sentimentos em relação ao Lorde a quem serviam.
Retornaram ao caminho, mas uma forte rajada de vento os fez parar. Aproximaram os animais para se protegerem. De repente, o vento diminuiu e as folhas que caíram das árvores próximas começaram a se juntar formando uma figura.
Era, sem dúvida, uma mulher.
Anton desceu do cavalo, ainda assustado, mas reconhecia naquele ser a mulher sobre a qual falavam minutos antes. O espírito pareceu sorrir diante da reverência que ele fez. Lhe entregou um pergaminho e desapareceu da mesma forma que surgiu.
— Inferno! O que foi isso?! — Miqueias juntou-se a ele.
A palidez do mago seria visível, se não estivessem no escuro. Ele usou de magia para criar um pouco de luz e ler a mensagem. Voltou-se para os companheiros.
— Aquilo era um espírito do ar. Um mensageiro. — Explicou, repetindo algumas das primeiras palavras do pergaminho. — Depois disso, vocês ainda duvidam?
Belard se empertigou, murmurando algo incompreensível. Ao perceber que não lhe entendiam, limpou a garganta e repetiu a frase com mais vigor:
— O que está escrito aí?
O mago lhe entregou o pergaminho, resumindo:
— Nosso destino acaba de mudar.
**
Virnan encontrou Fantin sentada em um banco no fim do salão. Teve de travar uma pequena discussão com Tamar, para conseguir o direito de ir procurá-la sozinha. Parou diante dela, vagando o olhar pelas feições da estátua às suas costas, cuja expressão parecia tão ou mais desalentada que a da Mestra.
Cruzou os braços e baixou a vista para a companheira ordenada. Aguardou uma explicação que a Mestra não queria dar, apesar de que sabia bem do que se tratava aquela recusa. Concentrou-se no semblante abatido e nos olhos que insistiam em fugir dos seus, carregados de um embaraço que não precisava ser sonorizado.
— Pretende ficar aí a noite inteira? — Fantin indagou, por fim.
A Castir deu de ombros e, literalmente, sentou no ar. Cruzou as pernas, como se estivesse sobre um banco ou cadeira. No rosto, uma tranquilidade que não sentia de verdade.
— Não tenho nada melhor para fazer — respondeu, brincando com a ponta da capa. Entrelaçava os dedos nela, depois soltava e tornava a repetir o movimento.
Engolindo em seco e pondo-se mais ereta sobre o banco, Fantin observou:
— Você ainda pode fazer o círculo com elas.
Virnan curvou-se para a frente. Apoiou o queixo na mão e o cotovelo sobre as pernas.
— Posso. — Interpretou um “E então, o que está esperando?” nos gestos dela. — Mas não será a mesma coisa. Como Lyla disse, somos cinco e para alcançarmos todo o poder de um círculo, ele precisa estar completo. Por que você acha que Érion foi libertado tão facilmente?
As unhas de Fantin enterraram-se nas calças e ela apertou o tecido com tanta força que a cor fugiu dos nós de seus dedos. Estava disposta a ajudar de qualquer forma, mas o que lhe pedia naquele momento era doloroso demais. Virnan voltou a ficar de pé. Aproximou-se dela, obrigando-a a erguer a face para lhe prestar atenção. Perguntava-se se tinha ideia do quanto lhe custava estar ali também. Aquelas sensações desagradáveis e pousou a mão sobre os ombros dela, então a trouxe para si.
— O que está fazendo? — Fantin perguntou, com parte da face enterrada na barriga dela.
— Cuidando de você, assim como cuidou de mim — a apertou um pouco mais.
Ela tentou resistir ao contato, mas acabou cedendo ao conforto do gesto e lhe envolveu a cintura, tal qual uma criança faria. Jamais imaginou que Virnan lhe seria um carinhoso abrigo e chorou ali, tão silenciosa quanto o possível.
— Se existe alguém neste salão que conhece a guerra, somos nós. — Virnan declarou baixinho.
Os braços a sua volta aumentaram a pressão e um soluço abafado lhe chegou aos ouvidos.
— Sou tão fácil de ler assim? — A voz saiu embargada. Uma mão carinhosa deslizou por seus cabelos.
— Na verdade, não. Nisso, somos muito parecidas; creio.
A mestra concordava. Era difícil saber o que se passava na mente dela, mesmo quando se mostrava relaxada. Virnan prosseguiu:
— Você jamais fala de seu passado, exceto daquela vez na estalagem.
Desta vez, um fungado lhe chegou aos ouvidos, junto com uma confissão:
— Não quero que vocês saibam o que me obrigaram a fazer, nem o que fiz por vontade própria para sobreviver. Não quero me lembrar dessas coisas. As enterrei no meu passado. Construí uma vida sobre essas manchas, fingindo que elas não existiam, mesmo quando vinham me assombrar, nas raras ocasiões em que viram esta maldita cicatriz que tenho no ombro. Sei que se fizermos esse ritual, serei arrastada para essas lembranças; não quero revivê-las e, se for o caso, acredito que não terei forças para me arrastar para fora delas.
O afago em seus cabelos foram interrompidos.
— A entendo. Já estive em seu lugar.
— Não do mesmo jeito. — Retrucou.
— É verdade. Mas nem por isso foi menos abominável. Eu fiz escolhas odiosas em nome do que acreditava ser o certo para o meu povo e, também, para sobreviver. Coisas que me perseguirão até mesmo na morte. — Afastou-se um pouco e a fez erguer a face. — Eu também temo mostrar essas coisas para vocês. Temo o que irão pensar. Jamais consegui concluir um círculo com meus antigos companheiros, porque não queria que eles vissem minhas dores, amores e segredos. Principalmente, porque não queria que conhecessem o meu ódio.
Falava séria e devagar, mas uma ruguinha se formou no canto da boca.
— Você me disse que não se importa com o meu passado, apenas com o que almejo para o futuro. Pois bem, lhe digo o mesmo. Tamar não vai deixar de amá-la por isso, nem eu irei.
O azul dos olhos dela tornou-se mais intenso, ante a declaração.
— Nunca joguei palavras ao vento, Fantin. Amo cada uma de vocês. Sei que é estranho afirmar isso, já que nunca fomos unidas na Ordem, mas o amor se manifesta de diversas formas e no tempo certo.
Ela concordou, quase deixando um sorriso tomar os lábios.
— Não consigo evitar — declarou. — Não quero retornar àqueles dias.
Virnan lhe sorriu, ainda que não quisesse realmente fazê-lo, mas sabia que a amiga necessitava daquilo. Fantin precisava de paz tanto quanto ela mesma.
— Já disse que também não quero isso. — Recordou. — Quando se nasce para a guerra, não é possível olhar para trás e não ver corpos em vez de pegadas. Vocês saberão que a mulher que sou hoje, é bem diferente da Virnan do passado. Eles não me odiavam nem temiam à toa. Assim como você, gostaria que isso ficasse enterrado, contudo mostrarei a vocês porque meu desejo de pôr fim a essa era de sacrifícios e guerras sem sentido é muito maior.
Ergueu o olhar para a estátua, tremendo diante do rosto que agora lhe parecia sombrio e cruel.
— Desde que este mundo surgiu, a guerra está presente nele. Talvez seja uma piada divina, mas a destruição faz parte da nossa natureza tanto quanto o desejo de paz.
Fez uma careta para o mármore e voltou a fitá-la.
— A ocorrência de tantos conflitos desde que o Cavaleiro foi libertado, me leva a uma conclusão desagradável. — Estalou os lábios, inspirando fundo. — Ele está por trás deles.
Os lábios de Fantin foram comprimidos até se tornarem apenas uma linha. “Por quê?”, era a pergunta que os olhos dela faziam:
— Creio que suas intenções sejam as mesmas de quando ele destruiu o Reino do Sul. São muitas almas mágicas para alimentar o poder do seu amuleto. É o que imagino. — Balançou os ombros, ligeiramente.
As mãos de Fantin deslizaram para a capa dela e a apertaram com força. Recordava o Guardião Milan, cuja alma tornou-se o amuleto que Anton usou em perseguição a elas.
— Se não fizermos algo, Mestra, isso acabará como Lyla descreveu e não estou disposta a permitir que ele destrua o meu lar de novo. Mas, desta vez, não falo de um lugar. Não me refiro a Flyn ou a Ilha Vitta. Meu lar é onde Marie e vocês estiverem. Hoje, não existe nada mais precioso para mim. Então, se tenho que lhes mostrar a minha verdadeira face, engolirei minha vergonha e medo.
Afastou-se de vez e a ordenada se pôs de pé. Ela fitou o vazio por algum tempo; as dúvidas claramente se debatendo em suas expressões.
— Você confia em mim? — Virnan insistiu.
Fantin retornou o olhar para ela. Finalmente, deu-se conta de que a Castir também se mostrava incomodada, mas forçava a firmeza em seus gestos e voz.
— Sim — respondeu com voz falha.
Um ligeiro sorriso deformou a face da outra.
— Confia em Marie, Tamar e Melina?
— Sabe que sim.
— Então, não há nada a temer.
Voltou a abraçá-la e Fantin retribuiu, ainda indecisa. Começava a sentir-se bem com seu toque, mesmo aquela estranha sensação ainda a incomodando.
— Como será? — Quis saber.
Virnan coçou a bochecha, afastando-se.
— É difícil explicar.
— Tente. Por favor.
Ela balançou a cabeça algumas vezes; a mente retornando ao passado. Foi em um salão como aquele, no Templo de Cazz, que participou de seu primeiro círculo e aquela noite perdida no tempo lhe rendeu muitos pesadelos. Seu incômodo era notável e Fantin chegou a se arrepender de ter lhe pedido aquilo.
— Não encontro palavras para explicar com exatidão. — Suspirou. — Mas, se você resistir, será doloroso para todas nós. Quanto a como será se o oposto acontecer, não sei dizer, já que nunca fui adiante. — Pousou a mão no braço dela.
Fantin a notou ligeiramente trêmula e perguntou-se se aquilo tinha algo a ver com o que estava prestes a acontecer ou se ainda não se encontrava completamente restabelecida, no tocante a saúde. Era difícil dizer, já que ela tinha voltado a face para o lado, evitando que lesse suas expressões.
O vento soprou à volta delas; algo estava errado. Instintivamente, Fantin conjurou as argolas douradas nos pulsos. Percebeu a presença de mais alguém no local. Contudo, não o avistava.
***
Emya passou a mão nos olhos, que pesavam diante do cansaço da cavalgada longa. Caminhava de um lado para o outro diante da tenda que os soldados haviam acabado de montar para que repousasse. A ansiedade de chegar logo à fronteira lhe tomava, mas seria necessário encarar mais dois dias de viagem até lá.
O vento soprou, trazendo o aroma das refeições que os soldados preparavam e desejou que outro espírito se materializasse à sua frente, trazendo novas notícias do esposo e da irmã. A carta de Verne foi sucinta, mas muito explicativa e ainda lhe custava acreditar que eles estavam em Caeles, viajando em companhia de uma florinae com o intuito de encontrar misteriosas armas capazes de pôr fim à vida do Cavaleiro Vermelho.
Estalou os lábios ao notar a aproximação do Comandante Guil. O homem não cansava de lhe recordar sua fragilidade de mulher e, principalmente, o fato de que era uma princesa e que não deveria estar ali, vestida em calças e portando uma espada que ele acreditava ser inútil em suas mãos.
Obviamente, ele não colocava os pensamentos em palavras, mas pouca coisa escapava aos olhos observadores da princesa, cuja sagacidade escondia-se por trás da beleza. Ele estacou ao seu lado, fingindo-se amistoso.
— Gostaria de lhe falar por um instante, Alteza.
— Já está falando, Comandante. — Não queria ser grosseira, mas tinha percebido que o homem parecia reagir melhor àquele tipo de tratamento.
Ele perdeu um pouco da animosidade.
— Sei que está seguindo ordens do rei e do badir, mas espero fazê-la reconsiderar a decisão de seguir conosco para a fronteira. Acabo de receber notícias de lá e a tensão entre o nosso exército e os dos nossos vizinhos só aumenta. Por enquanto, só há relatos de pequenos embates que não chegaram a causar mortes, mas a situação começa a se tornar insustentável e logo a guerra irá eclodir de vez. — Fez uma pausa breve, incomodado com o olhar castanho e frio dela. — Com todo o respeito, é insanidade que nossa futura rainha vá se meter em tal lugar.
Ela endireitou-se, inspirando devagar e fundo.
— Mas é exatamente por isso que estou indo até lá.
O homem franziu a testa.
— Como futura rainha de Midiane, é meu dever impedir que um derramamento de sangue sem sentido aconteça. Não estou indo fazer guerra, Comandante. Meu objetivo é a paz.
** **
Ela passeou o olhar pelas plantas e arbustos. Havia uma presença no “ar”, mas não conseguiu identificá-la; parecia vir de todas as direções. Piscou algumas vezes e a sensação cresceu em seu íntimo, então ergueu o braço com o punho cerrado. Apontava para o arbusto às costas de Virnan. Não enxergava nada, mas estava certa de que tinha algo ali.
A reação da guardiã foi um sorriso sabichão.
— Ele é amigo — disse, tocando seu braço e, gentilmente, a forçou a abaixá-lo. — Mas não devia estar aqui. Bem, na verdade, ele está atrasado. Deveria ter vindo ao nosso encontro na floresta.
Fez um gesto suave.
— Ishtar — chamou, mirando o arbusto.
A folhagem não se moveu, entretanto um garotinho translúcido se materializou diante do arbusto. A forma como surgiu causou um leve sobressalto na mestra do círculo da sabedoria. Ele chegou mais perto delas, exibindo um sorriso amistoso no meio de rosto rechonchudo e sapeca. Se fosse humano, poderia apostar que teria uma pele corada e salpicada por sardas, que revelariam seu gênio travesso.
Algo naquele rosto infantil causou desconforto em Fantin. Parecia “errado”. Enquanto ele se aproximava, ela baixou a vista para o chão e descobriu que ele não tinha pés. Suas pernas seguiam até altura dos joelhos e esmaeciam depois deles.
— Já disse que não gosto quando assume essa aparência — a guardiã ralhou, cruzando os braços. Contudo, o sorriso permanecia em seus lábios. — Deixe que Mestra Fantin o conheça de verdade.
A criança lhe mostrou a língua, mas obedeceu. Cresceu, adquirindo as formas de um homem de ombros largos e sorriso devasso. Os cabelos eram longos até a cintura; agitados, como se estivessem contra o vento. Em um primeiro momento, eles pareceram fios, mas logo a mestra os identificou como penas. Pelo menos, era a palavra que mais se encaixava ao que via. Os olhos dele eram de todas as cores; ora azuis, ora verdes, ora negros, e assim por diante. Cada vez que ele piscava, a cor mudava e o mesmo ocorria com suas penas. Assim como a sua versão infantil, ele não tinha pernas.
Ele abriu os braços, curvando-se levemente. No rosto, um desafio para a guardiã, que fingiu não notá-lo e partiu para o que lhe interessava.
— E então? — Indagou.
O espírito do ar respondeu:
— Está feito.
A voz dele era como os sussurros do vento na folhagem das árvores; baixa, suave. E a mestra recordou das noites quentes em que costumava caminhar pelo pomar da Ilha Vitta, ouvindo o vento e as ondas a quebrarem na praia, ao longe. Estranhamente, lhe pareceu quase musical.
— Ela marcha rumo à fronteira de seu reino.
A guardiã mostrou-se satisfeita, contudo uma sombra pairava em seu semblante.
— E o mago?
— Ele os convocou. — Sorriu, mostrando dentes pontudos e inumanos. — Os observei por algum tempo, como me ordenou. O mago parecia convicto, mas os outros tinham dúvidas. Decidi esperar.
Aguardou que ela se manifestasse, mas nada ocorreu além de um arquear de sobrancelhas. Então, continuou:
— Eles estavam curiosos, mas reticentes. Então, quando apareci para lhes entregar a mensagem… — sorriu, recordando o eto dos homens. — Estão indo para o local indicado. — Creio que não duvidem mais.
Ela cruzou os braços, dando de ombros.
— Não posso culpá-los. São milênios e não algumas décadas, mas se seguem os preceitos dos Manir, irão ajudar.
Tornou-se sombria por algum tempo e Fantin continuou a fitar o espírito, que também lhe prestava atenção. Ele “andou” ou “flutuou” — não sabia como definir — à volta dela e estacou à sua frente. Por fim, Virnan esticou o braço e abriu a mão; uma pequena bola de luz repousava nela. Ishtar não se moveu, ainda mirando a ordenada e as argolas douradas em seus pulsos.
— Pode ser dela? — Perguntou, o nariz subindo e descendo ligeiramente, como se estivesse a farejar como um animal.
A guardiã ergueu uma sobrancelha. Os lábios se rasgaram em um sorriso satisfeito, contudo respondeu negativamente.
— Em outra ocasião — prometeu.
Ishtar aparentou estar decepcionado. Chegou ainda mais perto de Fantin. Tão próximo que a mulher prendeu a respiração, incomodada com a invasão de seu espaço pessoal, e cogitou esmurrá-lo, como teria feito a qualquer um que fizesse isso sem sua permissão. Entretanto, a dúvida se conseguiria realizar tal feito com um espírito lhe tomou e optou por permanecer imóvel.
— Sua magia tem um perfume doce. — Disse ele. — Mal posso esperar para prová-la. — Tornou a sorrir, quase maldoso.
Então, se voltou para Virnan e aceitou aquele “grão” de magia que ela lhe oferecia. Quando o tocou, uma suave luz dourada se espalhou pelo corpo translúcido e, por um instante, ele pareceu quase tão sólido quanto elas.
— Esteja por perto quando o dia raiar. Tenho outra missão para você. — Pediu a guardiã.
Ele fez uma reverência às duas e, antes de se afastar, disse:
— Lhes desejo boa sorte.
Desapareceu em meio a um redemoinho de vento, que ergueu-se em direção ao buraco no teto, arrastando algumas folhas das plantas. As duas mulheres permaneceram em silêncio, fitando o lugar em que foi possível divisá-lo pela última vez.
— Mas o que foi isso?! — Fantin soltou, finalmente.
Virnan realizou seu costumeiro dar de ombros, então lhe tomou o braço e explicou:
— Ishtar é um espírito do ar.
— Sério?! Não tinha notado! — Foi sarcástica.
A companheira continuou, sem demonstrar incômodo:
— Vai perceber que existem muitos tipos de espíritos naturais. Estamos cercados deles, mas a maioria raramente toma forma; preferem unir-se às forças da natureza. Ele é um ventius. Isso o define como um espírito da tempestade, se preferir. São velozes, temperamentais, selvagens… Mesmo sendo uma Castir, é um pouco difícil e cansativo exercer minha vontade sobre eles, mas Ishtar é um “velho” conhecido. Digamos, apenas, que trocamos “favores”.
Fez uma pausa, e começou a guiá-la em direção ao centro do salão, onde as amigas aguardavam. Em verdade, Fantin não tinha lhe dito se iria ou não fazer o ritual, mas algo lhe dizia que a resposta era positiva.
— Não sei como ele me encontrou após tantos séculos, mas mesmo com a magia aprisionada, costumava me visitar na Ilha Vitta. Não o enxergava, claro. Mas ele sabia como se mostrar e, de certo modo, era um alento saber que estava por perto. Enfim, quando recuperei a magia, ele apareceu no meio da minha conversa com Lorde Verne e lhe dei uma missão.
— Qual?
Faziam uma curva pelo caminho, passando por um laguinho repleto de peixes. Virnan encarou outra estátua, desconfortável. Nunca apreciou aquele salão. Mesmo sendo um lugar agradável e projetado para reforçar a magia de um círculo. Sentia-se deslocada ali. Estacou no meio do passeio, pedrinhas rangeram sob suas botas. Soltou o braço dela.
— Pedi que nos ajudasse a impedir uma guerra. As movimentações do exército de Axen tinham se intensificado enquanto fui prisioneira de Loyer. Passei muito tempo inconsciente, graças a febre e ferimentos que sofri, mas nos raros momentos de lucidez ouvia a conversa dos soldados. E Loyer era um bufão; adorava contar vantagem. Enfim, juntei o que ouvi com outras coisas que Lorde Verne me contou. Não é apenas Axen que está se movimentando, mas todos os outros reinos também o fazem e o alvo principal é Midiane.
Pousou uma mão na cintura, enquanto a outra alisava a adaga nela. A jóia no cabo brilhou, fraca, como se pedisse para sair de seu abrigo.
— Uma guerra está prestes a começar. E isso, é claro, só trará mais poder para Érion. — Sentenciou, deixando uma ligeira tristeza vir à tona. A afastou com um piscar de olhos e se pôs mais ereta. — Mas vamos deixar esta conversa para depois, pois a noite já chegou e temos muito a fazer. Você irá nos ajudar?
Fantin mordiscou os lábios, tomando sua decisão.
— Sim. Eu vou tentar.
Virnan lhe sorriu, satisfeita. E recomeçaram a andar em direção ao centro do salão.
— Poderia me explicar o motivo dele querer “provar” a minha magia?! — As palavras do espírito não lhe saíam da cabeça.
Mirou a Castir de esguelha, observando um sorriso divertido deformar suas expressões agradavelmente. Sorrir era algo que ela fazia o tempo todo, mesmo que não sentisse vontade e, de alguma forma, isso acalmava a Mestra; o que, naquele momento, era uma contradição, já que desejou lhe bater inúmeras vezes quando lhe sorria daquela maneira após uma de suas travessuras na Ordem. Demorou-se alguns segundos pensando sobre isso. A mulher à sua frente não era a Virnan da Ordem.
Estava certa de que ela tinha deixado aquela face para trás no momento em que embarcaram no Guerreiro dos Mares. Ainda mantinha o riso irônico, os dares de ombros, a língua afiada e provocadora, mas lhe ocorreu que aquilo tudo não passava de resquícios daqueles doze anos de calmaria na Ilha Vitta e não conseguiu evitar a aproximação de uma leve tristeza.
Afinal, apesar de terem se passado poucas semanas desde que zarparam naquele navio, todas tinham mudado naquela viagem. Um grande exemplo disso era ela mesma que, finalmente, decidiu-se a ir atrás do amor de Tamar.
— Não consegue imaginar o motivo? — Ela inquiriu.
— Ora, não estou com humor para os seus rodeios florinae. Você e os seus, têm o péssimo hábito de dar informações pela metade. É terrivelmente frustrante; para dizer o mínimo.
A outra gargalhou, jogando as mãos atrás da cabeça e entrelaçando-as. Caminhou alguns metros assim, então parou e endireitou-se, ficando de frente para ela.
— Ora, Fantin, alguma vez se perguntou a natureza da sua magia? O motivo de conseguir exercer tanta força sobre seus adversários com apenas um soco no vazio?
Ela deu de ombros, deixando claro que nunca tinha se preocupado com aquilo. No seu entendimento, magia era magia e tudo que tinha a fazer era aprender a usá-la da forma correta. Virnan afastou alguns fios do cabelo que lhe caía sobre os olhos.
— Experimentei sua magia naquele navio e foi como se tivesse voltado a ser uma Castir. Melina e Marie foram de grande ajuda, mas foi por sua causa que consegui convocar tantos espíritos e permiti nossa fuga. Sempre que nos tocamos, um sentimento diferente nos envolve porque nossa magia vibra, buscando entrar em harmonia.
— Minha magia não tem nada a ver com o ar. — Negou.
Virnan deu um soco no vazio e a força do golpe tocou a mestra, fazendo os cabelos dourados esvoaçarem. Além dela, a água no laguinho se dividiu por um momento. Arbustos, mais adiante, perderam folhas e até galhos.
— Mesmo?! — Inquiriu em tom de deboche, enquanto baixava a mão. — Toda essa força que você libera ao golpear o vazio é uma forma de controle do ar.
Reparou na descrença que crescia na face da mestra.
— Assim como eu, você controla a resistência dele. Por si só, isso já é uma prova mais que o suficiente, contudo há outra coisa que assenta essa verdade. — A expectativa estampou-se na face alva. — Mesmo Ishtar estando invisível, você foi capaz de pressentir a presença dele e encontrá-lo. Pelo o que sei, mesmo os outros Castir podendo enxergar espíritos, eles não conseguiam ver ou sentir a presença dos espíritos do ar, se estes não permitissem.
Fantin teve vontade de rir, tamanha era sua descrença. Aquela bem que podia ser uma de suas costumeiras brincadeiras, contudo a amiga se mostrava muito séria e o modo como a fitava não deixava que dúvidas lhe alcançassem. Limpou a garganta, onde uma pedra imaginária lhe arranhava as cordas vocais, fazendo com que sua voz soasse estranhamente rouca e baixa:
— E eu que achava saber tudo sobre mim. Quanta inocência!
Retornou ao caminho que seguiam, mas parou, mais uma vez.
— Não terei de fazer esse tal pacto, terei?! Não gostei muito da forma como aquele seu “amigo” espírito me olhou.
A amiga tornou a rir. Novamente, compreendia suas preocupações. Para alguém que não fazia parte do seu povo, a ideia de passar o resto da vida e a morte, também, conectada a outro ser podia mesmo parecer assustadora.
— Não precisa se preocupar com isso. Vocês são Castanes; apesar de possuírem uma magia espiritual forte, não a possuem em uma quantidade significativa para firmar um pacto. — Observou o sorriso dela, notando que aparentava ter retornado ao seu normal. Entretanto, estava quase certa de que aquilo não passava de uma fachada.
— Por que deu sua magia a ele?
— Assim como Zarif, Ishtar nasceu no dia em que a minha magia despertou e também foi atraído por ela, mas quando chegou até o local onde estávamos, já tínhamos feito o pacto. Mesmo assim, ele passou a me seguir. Estava sempre por perto e confesso que gostava disso. Naquela época era bom ter olhos extras. Como lhe disse, espíritos da tempestade são difíceis de controlar e acabei aprendendo a negociar com eles. Um grão de magia é nada, comparado ao que gastaria impondo minha vontade sobre eles.
— Sinceramente? Quanto mais você revela, mais tenho certeza de que estou longe de conhecê-la e as verdades que seu povo carrega sobre este mundo.
Novamente, Virnan interrompeu seus passos. Estava nervosa; provavelmente mais que ela, contudo brincou:
— Então, anime-se! Dentro de instantes vocês saberão mais sobre mim do que eu mesma.
Voltei, amores!
Desculpem a demora na postagem. Prometo responder os comentários até o meio da semana.
Beijos!
Tatita!
Estou retornando. Me aguarde! rsrsrsr
Bjus
Aguardando, aguardando com ansiedade, Mestra! 😀
Bem-vinda de volta! rs.
Beijos!
Que saudades, Tattah!!!
Adorei conhecer melhor o Ishtar, e fiquei rindo do jeito moleque dele.
Que bom que Fantin aceitou tentar fazer o círculo. Ansiosa para saber como as coisas vão se suceder!
Oww, saudades também, Naty!
Beijão!
Tattah,
Mto bom…
Gostei de ver as duas se entendendo e Virnan conseguindo trazer Fantim de volta ao grupo. E tb de ver a força de Emya, dela sabendo se impor.
Confesso q imaginei a mesma coisa q Fantim a respeito de Ishtar principalmente pela maneira nada gentil q ele se dirigiu a ela… me lembrou aqueles machistas q babam ao ver mulher e temi mesmo q ela tivesse q se unir a ele.
Adorei… parabéns…
Kkkkk…
Ishitar é como Virnan o descreveu: Um pouco selvagem, mas não é maldoso.
Beijão!