*
Virnan apertou-se mais a ela, enfiando o rosto em seu pescoço e perdendo-se no aroma de seus cabelos, enquanto lutava contra a vontade de chorar também. Havia muito tempo não sentia necessidade de derramar lágrimas, talvez porque se obrigou a fingir que algumas verdades não importavam. Doce engano. Cada passo que a levava para mais perto de suas origens, aumentava o peso das culpas que trazia consigo.
— Não está com medo? — Ousou perguntar, após algum tempo.
Marie a trouxe para mais perto, tão perto que temeu reabrir os ferimentos dela. Limpou a garganta, arriscando-se a falar mais uma vez:
— Não, porque sei que você não é aquele que “me” elegeu e aguarda na cidade dos eleitos.
A guardiã se afastou o suficiente para ler a verdade daquelas palavras em seu rosto. A mão se fechou esmagando o cobertor sobre o qual repousavam. Suas feições se tornaram puro tormento e apoiou-se nos cotovelos, deixando uma lágrima vir à tona.
— Transformarei este mundo em um inferno, antes de deixá-lo chegar perto de você!
Marie sentou, enxugando a última de suas lágrimas, enquanto ela completava:
— E se tiver de engolir meu orgulho para isso, o farei.
Fitava a adaga, que repousava sobre as calças dobradas ao lado das botas. Mesmo na escuridão que se adensava, conseguia visualizar suas formas. Aliás, conseguia enxergar tudo à sua volta muito bem. Assim como qualquer auriva, seus sentidos eram muito mais aguçados do que os dos membros de outras castas florinae e outros povos. O que faltava de magia nos aurivas, sobrava em aptidões físicas.
A adaga liberou uma luminosidade suave, como se respondesse ao calor da raiva em suas palavras. E permaneceu assim por algum tempo, permitindo que Marie pudesse lhe admirar os traços coléricos. A princesa abriu os lábios, mas deu-se conta de que já tinha se arriscado demais com as palavras.
É o meu destino e estou em paz com isso.
A guardiã bufou, preparando-se para abandonar de vez aquele “leito”. Contudo, Marie a puxou para si. Naquela parca luminosidade, seus olhos pareciam quase felinos.
Levou os dedos aos lábios dela, delineando-os. De uma coisa estava certa, Virnan não tinha ideia do quanto a amava. Encaixou sua boca na dela e a trouxe para mais perto. Não queria discutir verdades odiosas e um futuro negro, nem seus respectivos passados e verdadeiras identidades. Se tinha admitido seus sentimentos, iria aproveitar o momento.
A beijou ardente e voraz. Deslizou as mãos na pele suave, divertindo-se em encontrá-la arrepiada e quase implorou aos deuses que a deixassem morrer naquele instante, afogada naquela bolha de felicidade antes que estourasse e fossem atiradas de volta a realidade. Aumentou a pressão das mãos e dos lábios, sem permitir que Virnan lhe oferecesse resistência — coisa que a guardiã sequer ousou imaginar — e a jogou sobre o cobertor, ansiosa para aplacar os desejos do seu corpo que, estava certa, depois daquela noite só encontrariam fim no dia de sua morte.
Deitou-se sobre o corpo amado, distribuindo beijos, hora delicados, hora exigentes. Seus lábios escorregaram pelo pescoço dela até alcançarem a orelha. Ali, reuniu forças para falar mais uma vez.
— Eu te amo!
Aquela era a única verdade, em relação a Virnan, que lhe interessava.
**
— Parece preocupado, Cavaleiro.
Fenris forçou-se a abandonar a contemplação do vazio para encarar o rosto bonito de Alina. Ele lhe sorriu, afável.
— Tudo nessa viagem me preocupa, Mestra. Mas desde que entramos neste reino, minhas preocupações se multiplicaram.
Ela descansou o queixo na mão, analisando-o.
— Você acredita nas histórias — afirmou, recordando o modo como ele reagiu na estalagem quando Fantin sugeriu a passagem por Caeles.
— Não tenho motivos para duvidar. — Deslizou um pedaço de pano esfarrapado pela espada. De tão limpa, a lâmina refletia o rosto pálido de pelos ralos e ruivos como se fosse um espelho.
Depois de descobrir o quão ignorante era em relação as verdades daquele mundo, a mestra concordava com ele. Suas certezas ganhavam novas direções a cada dia. Hora se tornando absolutas, hora incertezas e inverdades.
— Não tenho medo, Mestra. — Ele deslizou a lâmina para a bainha. — O que me preocupa é o que poderemos encontrar aqui. Existem rumores de ladrões e assassinos que se abrigam nestas florestas. Hoje encontramos alimento e uma boa caça. Temos água para alguns dias, mas não conheço ninguém que tenha atravessado este reino e retornado para contar sobre o estado dele. Escapamos do exército de Axen, mas não acredito que estar aqui seja mais seguro do que nos arriscarmos com eles.
A bibliotecária concordou novamente.
— Contudo, sou apenas um guerreiro. Tenho um “senhor” para servir. E apesar de ter liberdade para aconselhar, é ele quem toma a decisão final.
Ela afastou a vista para a fogueira, onde Lorde Verne contemplava o fogo, ouvindo Távio e outro soldado falarem sobre as trilhas que encontraram durante a caçada da tarde.
— Não deveria dizer isso, mas esta é a primeira vez em mais de dez anos ao lado de Lorde Verne, que discordo de suas decisões. — Baixou a vista para o chão. — Ele não tem sido o mesmo desde que reencontrou a princesa.
Alina sorriu.
— Ele não é o mesmo homem há mais de vinte anos. — Disse. — Na última vez em que o vi, nem de longe se parecia com o príncipe gentil que iria se casar com Analyn. Certamente, piorou muito até nos reencontrarmos na Ilha Vitta.
Ele a focalizou, arqueando uma sobrancelha. Uma trancinha de cabelos ainda mais ruivos que a barba, balançou na lateral do rosto dele.
— Acredito que seu Lorde não ama a princesa há muito tempo. O que ele sente é o reflexo de um obsessão boba, surgida do fato de ter sido rejeitado por ela e, também, pelo destino que se apresentou para separá-los. Mas que sei eu do que se passa no coração alheio? — Encolheu os ombros.
Fenris mostrou os dentes, quase cerrando os olhos, em um sorriso largo. Era, de fato, um homem muito bonito. Seria muito mais não fosse a cicatriz que lhe atravessava a bochecha direita até o nariz. Mas ela lhe conferia certo charme e dava-lhe um aspecto mais maduro.
— Já que entrou no assunto, Mestra, perdoe-me a invasão de sua privacidade, mas não posso negar o que meus olhos viram, nem fingir que não notei o modo como você e Mestra Fantin têm agido.
A mulher se empertigou, lançando um olhar para a direção em que Fantin estava. Ainda que não pudesse vê-la, sentia sua presença.
— Não compreendo.
— Já que estamos falando de amor… — ele sorriu, novamente. Desta vez, com um jeito quase infantil. — Na noite após fugirmos de Bantos, quando deixamos o acampamento para permitir a conversa entre a princesa e Lorde Verne, fui fazer uma ronda e deixei você e Mestra Fantin conversando próximo ao rio. Retornava para junto de vocês quando vi o beijo que trocaram e tomei outro rumo.
A bibliotecária corou violentamente.
— Outra vez, peço perdão por esta invasão. Mas notei que se mantém distante de Mestra Fantin. Conversa com ela o mínimo possível, sai quando se aproxima, entre outras pequenas coisas. Contudo, percebi o modo como a olha e é exatamente igual a forma que ela a observa.
— Onde quer chegar, Cavaleiro?
Fenris enfiou os dedos nos cabelos bagunçados.
— Que sei eu do amor, Mestra? Nunca encontrei alguém que me tomasse o coração dessa forma. Só entendo de guerra. Mas conheço as mulheres e os vários sentimentos que elas conseguem expressar com apenas um olhar. Nesses últimos dias, vejo muito disso neste grupo. A princesa e a guardiã, você e Mestra Fantin.
Ela deslizou os dedos da testa até a ponta do nariz, desconfortável.
— Não sei bem o que se passa entre vocês duas, mas é óbvio que se gostam. Nem precisaria ter testemunhado aquele beijo para saber disso.
— Como assim? — Franziu o cenho.
— Ora, Mestra Fantin está sempre olhando para você. Está sempre perto de você. Se não ao lado, poucos passos atrás. Ela tem um jeito um tanto bruto de falar e agir, mas com você é sempre gentil.
Não era o que ela imaginava ouvir quando puxou assunto. Fantin fazia mesmo aquilo? Nunca percebeu nada de diferente em seus gestos. Ficou em silêncio por alguns instantes, avaliando seu próprio modo de agir e pensar em relação a companheira de círculo. Será que ela tinha razão quando afirmou que passou tanto tempo olhando para os livros que esqueceu como se interpretava as pessoas?
Inspirou fundo, rejeitando a ideia.
— Estou certa de que qualquer tentativa de relacionamento entre nós está fadada ao fracasso, pois acredito que Mestra Fantin queira apenas uma companhia para o prazer e não alguém para compartilhar uma vida. Não tenho mais idade para prazeres fugazes, quero algo sólido e duradouro.
— Mulheres! — Ele estalou os lábios. — Vocês adoram complicar as coisas.
— Está sendo indelicado, senhor.
Ele ergueu as mãos, pedindo desculpas.
— Perdão se lhe ofendi, não era a minha intenção. Veja, Mestra, você a quer e ela também lhe deseja. Por que não começar por aí? Às vezes, os prazeres da carne abrem caminhos para o coração. Por que não se arrisca um pouco? — Se ergueu, ofereceu uma breve reverência a ela e se afastou com passos pesados.
***
Era por isso que não queria me render a você. Sabia que iria amaldiçoar meu destino assim que assumisse esses sentimentos.
Marie fez um gesto revoltado para o vazio. Virnan, que tinha acabado de acender uma pequena fogueira para aquecê-las e vagava pelo lugar usando apenas a camisa, ainda úmida, terminou de se enfiar dentro das roupas com movimentos vagarosos. A mestra já tinha se recomposto e alisava o tecido grosso do cobertor, sentindo o cheiro dela em sua pele.
Ainda de costas para ela, a guardiã inspirou fundo e fingiu afastar os cabelos da face para enxugar uma lágrima que teimava em lhe escapar. Voltou para junto dela e lhe envolveu a cintura por trás. Encostou a cabeça em suas costas e assim ficou por algum tempo.
Desde que ouviu aquele esperado e sonhado “eu te amo”, se entregou ao silêncio. Era irônico que tivesse vivido tanto tempo para encontrar o amor nos braços de alguém que estava prestes a se entregar à morte tão pacificamente.
A midiana se afastou. Sentia-se muito mais atormentada agora que tinha se deixado tocar do jeito que sonhava do que quando evitava ficar perto dela para escapar àquele desejo.
Sabia que veria minha própria tristeza refletida em você. Não tem ideia do quão custoso foi resistir ao que sinto. Nunca tive medo por minha vida, mas descobri o quão ingrato é esse sentimento no dia em que reconheci que te amava. Temi que este momento chegasse, que você descobrisse a verdade. Principalmente, temi e ainda temo o momento de lhe dizer adeus.
Virnan passou a ponta dos dedos pela face alva dela.
— Acho que sempre soube — disse. — Quando a grã-mestra apresentou Alina como a eleita, fiquei aliviada. Mas sempre achei estranho. A magia dela é poderosa, mas não se compara a sua. Entretanto, me deixei enganar pelo o que diziam. Até mesmo o nome dela recorda o da grã-mestra e o seu. — Brincou com uma mecha dos cabelos dela, enquanto interpretava a resposta.
Alina era minha serva em Midiane. Ela me seguiu até a Ordem e hoje é uma boa amiga. Quando chegamos a ilha, expressei meu desejo de me manter incógnita pela necessidade de ser apenas uma mulher normal, mas a minha tia e Verne pensavam diferente.
Fez uma pausa, fitando o fogo antes de tomar um alento e continuar.
Ainda existe um grande ressentimento em relação à Midiane e o sacrifício que não se realizou; caso me descobrissem lá, sob os cuidados da eleita que escapou dele e gerou uma guerra que perdurou por quase vinte anos, poderiam insinuar uma nova conspiração.
— Coisa que já acontece hoje, após a morte das outras eleitas. — Virna emendou.
Era fato que a paz entre os reinos do continente era muito frágil.
Sim! Então, minha tia insistiu para que a serva que me acompanhou também adotasse outro nome a fim de me preservar. Ela escolheu Alina por se parecer com Analyn, imaginando que, caso alguém viesse a descobrir minha presença na ilha, esse nome serviria como um despiste. Achei uma medida desnecessária e perigosa, mas Verne concordou com a ideia. E Tamar, este é o seu verdadeiro nome, ficou muito feliz em fazê-lo.
— Ela não tem cara de Tamar — Virnan comentou, experimentando o nome.
Confesso que não consigo mais chamá-la assim. Para mim, sempre será Alina, assim como meu nome é Marie.
O vento soprou fazendo as chamas da fogueira diminuírem por um instante.
Quando Verne chegou à Ilha e se fez necessário que você seguisse conosco, pedi que ela se passasse por mim até que chegássemos à Cidade dos Eleitos. Sei que não foi justo e peço desculpas pela mentira, mas não sabia como e nem tinha coragem de lhe contar que estava me guiando para a morte.
Virnan ensimesmou-se por algum tempo, pensando nos últimos doze anos de sua vida. Por fim, falou:
— Mesmo estando magoada, não posso reclamar. Afinal, também não fui sincera. — Retirou a adaga da cintura e a lâmina começou a brilhar suavemente. — Até onde seus sonhos a levaram, Marie? Como sabia que eu não sou o Cavaleiro que a espera no final dessa viagem?
****
— Pretende passar a noite toda aí?
Fantin afastou os olhos do céu estrelado que conseguia visualizar entre espaços na folhagem espeça das árvores. Ergueu as sobrancelhas, surpresa com a presença de Alina.
— Acho que Lorde Verne entendeu o recado e não se atreverá a ir até o lago. — Concluiu a Mestra dos Escritos.
Foi contemplada com um sorriso largo e charmoso.
— Na verdade, estava aproveitando um pouco do silêncio — Fantin esclareceu.
— Neste caso, perdoe-me por interrompê-la. — Começou a se retirar, mas a outra lhe tomou a mão.
— Fique. O silêncio não é tão agradável quanto você, nem tão belo.
Ainda que distante, a luz da fogueira no acampamento chegava até ali, mas não era forte o suficiente para permitir que ela visse o rubor na face de Alina. Contudo, a mudez repentina dela lhe deu a certeza de que tinha conseguido lhe deixar desconcertada e divertiu-se com isso.
Se afastou para lhe dar espaço junto ao tronco da árvore em que se recostava e permitiu que ela a cobrisse com o cobertor que levava nas mãos.
— Está frio — disse Mestra Alina.
— Obrigada. — Ergueu uma das pontas do tecido, convidando-a para entrar debaixo dele também.
Os olhos da bibliotecária brilharam, enquanto se decidia. Por fim, a conversa que teve com Fenris retornou à sua mente. Buscou no olhar dela o afeto que ele alegou enxergar. Sim, havia algo diferente ali, mas não acreditava que pudesse ser amor. Sentou.
— Elas estão demorando — falou para puxar assunto.
— Se tiverem se acertado, posso imaginar o motivo. — A outra sorriu, maliciosa.
— Não acredito que se renderiam à luxúria diante da situação em que vivemos.
Fantin gargalhou.
— Deuses! Não existe momento e lugar certo para o amor! Além disso, está mais do que na hora das duas colocarem seus sentimentos em panos limpos. Vai ser horrível ter que aturar Virnan mal-humorada até a Cidade dos Eleitos, mas não seria justo que descobrisse a verdade lá. E, também, devo confessar que tenho esperanças de que ela conheça um meio de impedir esse maldito ritual.
Alina endireitou-se, resvalando o ombro no dela. Era algo em que vinha pensando desde que a grã-mestra comentou que imaginava que ela fosse contemporânea ao Cavaleiro. Fantin chegou mais perto, dizendo:
— Deixando este assunto indigesto de lado, antes de você chegar, me perguntava se pensou no que lhe disse.
Era claro que tinha pensado. Cada momento livre do seu dia arrastou sua mente para aquela declaração. Não tinha a menor intenção de compartilhar momentos de luxúria com Fantin; fazer isso seria como abrir um buraco em seu peito. Recordou o que Fenris lhe disse e resolveu conduzir a conversa de forma a obter respostas claras.
— Somos mulheres muito diferentes. Certamente, irá se cansar de mim logo.
— Como pode ter tanta certeza?
— Seus relacionamentos nunca são longos. — Observou, irônica. — Seria apenas mais uma para entrar na sua lista de conquistas.
— Me acha tão fútil assim? — Não conseguiu esconder a decepção.
— Não disse isso. Só creio que o que você procura não está em mim. — Tentou remediar.
— Você tem uma péssima opinião sobre si mesma. — Fantin estalou a língua, sentindo o princípio da irritação.
Alina escorregou os dedos entre uma mecha de cabelos que lhe caia sobre os ombros.
— Sei bem o que falam de mim pelas costas e é verdade. Tenho sede de conhecimento. Me dedico aos escritos e isso me satisfaz plenamente. Mas o amor que tenho pelas palavras já afastou muita gente de mim.
Sentou mais ereta.
— Você quer sexo, Mestra? Eu posso lhe dar isso. Mas sei que logo irá se cansar como os outros antes de você.
Fantin mordeu os lábios para não soltar um palavrão. Fitou o céu novamente, então disse:
— Tão sábia e ao mesmo tempo tão cega.
Com um movimento brusco, se pôs de pé. Alina a imitou, desconfortável pela dureza nas palavras que proferiu. Contudo, percebia que a conversa descambava para a sinceridade e não para os joguinhos, como o de costume.
— Se eu quisesse apenas sexo, poderia obtê-lo em qualquer lugar. Sou uma mulher atraente e sobram olhares de desejo sobre mim. — Não falava com arrogância, apenas apontava para a realidade. — Quer saber o que me atrai em você? É exatamente isso. Você não me olha como um animal faminto. Não quer me devorar.
Deu um passinho à frente, então girou sobre os calcanhares para se colocar de frente para ela outra vez.
— Acha que não percebi seus sentimentos?
— Do que está falando?! — Alina gaguejou.
Fantin diminuiu a distância entre seus corpos.
— Eu te disse, Alina. Já te observava antes daquele festival. Não sou nenhuma criança boba e inexperiente. Sei reconhecer o desejo e a paixão em um olhar. Você pode ter acreditado que conseguia disfarçar, mas não é verdade.
Chegou mais perto.
— Sabe, quando percebi isso, comecei a esperar pelo dia em que você viria a mim, como muitos outros. Imaginava quando você confessaria uma paixão infinita que, na verdade, era apenas desejo. Mas você nunca veio e, em vez de observada, eu me tornei a observadora. Aprendi a reconhecer os significados do seu silêncio e apreciar o modo como você segura o queixo quando está compenetrada em encontrar a solução para algo; o jeito como brinca com seus cabelos quando está nervosa; o modo como fita o horizonte quando acha que está sozinha na torre oeste do castelo.
Alina ameaçou recuar, mas ela a segurou.
— Quando descobri que estive com você no festival, acreditei que você mudaria a forma de olhar para mim, já que tinha alcançado seu objetivo. Mas você não mudou nada e percebi que eu também não.
Pousou as mãos na cintura dela.
— Não me importo em dividi-la com os livros e pergaminhos. Se tiver de me enfiar na biblioteca para estar contigo, pode ter certeza de que o farei. Você é linda, mas não me importaria se não fosse. Sua personalidade me instiga, seus gestos me atraem. Você é uma pessoa introspectiva, tímida, mas entre quatro paredes é uma adorável tempestade. Você é fria na maior parte do tempo, mas quando me beija é ardente. Esqueça o que falei sobre o fim desta viagem, eu não quero esperar tanto.
Enfiou a mão entre os cabelos dela. Acariciou a nuca, lhe arrancando um suspiro de prazer se aproximando do rosto dela.
— E o que será de mim quando essa “obsessão” passar e você se cansar? — Alina insistiu, a fim de obter uma resposta ainda mais clara e conseguiu.
— Você não entendeu, Alina. Eu só quero você e, se me rejeitar, isso não irá mudar porque eu te amo e estou cansada de esperar que você perceba isso.
Pousou os lábios nos dela. Receou a rejeição, mas Alina não tinha nenhuma intenção de o fazer e entreabriu os lábios, convidando-a para mergulhar em sua boca, carinhosa e exigente. Suspirou quando as mãos dela escorregaram para o interior da blusa, distribuindo carícias pelas costas e retribuiu o carinho com um beijo mais ardente, arrancando gemidos roucos de sua garganta.
De repente, Alina se afastou.
— Eu também te amo — disse com voz entrecortada, apertando a mão no braço dela.
Ofegante, Fantin lhe sorriu, tentando lhe fazer um carinho na face, mas ela deu um passo cambaleante para atrás. Então, notou que algo pegajoso e quente escorria do peito dela. Um grito lhe escapou quando percebeu uma forma escura às suas costas e a criatura respondeu o grito de forma assombrosa, enquanto Alina tombava para a frente.
*****
Um pássaro piou ao longe, quebrando a linha invisível que unia seus olhares. Marie se sentia cada vez mais desconfortável.
O último sonho que tive, me mostrou o dia em que a sua magia despertou. Vi o que você viu, senti as suas emoções como se elas fossem minhas e, quando acordei, chorei como você chorou.
Suspirou, dando um tempo para organizar os pensamentos.
A última coisa de que me recordo é o seu reflexo em uma poça d’água. Você tinha tanto sangue sobre si… Então, você notou a presença de alguém, se voltou e ele estava lá. Acho que era… O que era mesmo?
Recordou a visão devastadora daquela vila em chamas, dos corpos dos soldados mortos e das formas humanas e translúcidas que vagavam pelo lugar.
Ele se parecia com eles, mas era diferente dos outros fantasmas. Era isso que eles eram, certo?
Virnan confirmou e fechou os olhos para receber o carinho que ela lhe fez na face.
— Ele não era um fantasma, era um espírito.
As sobrancelhas da midiana se ergueram, enfatizando sua confusão.
— Um fantasma é uma ilusão da alma de alguém que morreu. São resquícios, impressões. Eles são atraídos para as Terras Imortais quase imediatamente após suas mortes. Mas, como disse antes, a magia tem seus eleitos. Às vezes, um mago é tão poderoso que após a morte sua aura mágica o mantém consciente e lhe permite resistir a atração das Terras Imortais. Obviamente, existem outros tipos de espíritos e estes podem ser reconhecidos como naturais. Sua origem vem das forças mágicas que regem este mundo. Nascem de eventos específicos. Geralmente, eles se incorporam às forças da natureza; o vento, o fogo. Estamos cercados deles, mas a maioria raramente toma forma, de modo que são invisíveis aos nossos olhos.
Isso é incrível.
— Meu povo sempre foi muito próximo à natureza, razão pela qual a maioria dos nossos dons mágicos eram elementares. Mas havia alguns, e estes eram pouquíssimos, que despertavam para os dons espirituais e esta, como você já deve saber, é a natureza da minha magia.
Marie confirmou com um inclinar de cabeça.
— O espírito que você viu se chamava Zarif.
Quando ele falou com você, a chamou de “meu príncipe em vermelho” e quando você o tocou, ele tomou a forma de um dragão. Foi assim que eu soube. Não quis acreditar. Rejeitei essa ideia o máximo que pude, mas após todas aquelas revelações, mais cedo, e a resposta que deu à pergunta de Fantin, não pude mais negar a verdade.
— E como sabia que não sou o que te espera?
A princesa deslizou a mão pelos cabelos dela, demorando-se na altura da face. Não era tola de dizer que não tinha medo de amá-la, ainda mais agora que sabia quem e o que era. Contudo, a verdade fortaleceu aquele sentimento. Conhecer seus medos e desejos através daquelas lembranças lhe deram a certeza de que Virnan merecia cada gota de amor em seu ser, ainda que não acreditasse merecer.
A mulher por quem me apaixonei não é uma assassina. Não como ele. É o que meu coração diz. Além disso, estive em sua mente. Pelo menos, percebi suas emoções durante esses sonhos.
Virnan sorriu quando lhe beijou a mão. Inspirou fundo alisando a adaga na cintura.
— Você a viu? — Perguntou de repente.
A resposta foi rápida.
A mulher de olhos violetas?
— Lyla — a nomeou.
A postura de Marie se modificou. Ficou mais rígida, assim como o semblante perdeu a suavidade.
A vi em alguns sonhos, rápido demais para descobrir a relação que tinham, mas sentia o seu amor por ela.
Virnan sorriu, notando os ciúmes que a tomavam.
— Eu a amava, mas não da maneira que amo você. Ela era uma deminara e eu uma auriva. Existia um abismo entre nós, mas Lyla foi o mais próximo que tive de uma irmã. E foi porque ela se referiu a mim desta forma, diante de uma dezena de soldados e escandalizou meu superior e seu pai, que passaram a me chamar de príncipe. Eu tinha os cabelos curtos e, como sempre fui franzina, ao longe parecia um rapaz.
Passou a mão nos cabelos. Em verdade, sentia falta deles curtos.
— Só conheci paz em Flyn durante meus primeiros vinte anos de vida. Era assim que Caeles se chamava naquela época. Uma guerra estourou entre as famílias deminaras que queriam o trono e tive de deixar minha posição de Protetora pessoal de Lyla e ir para os campos de batalha. Costumava retornar para o acampamento com muito sangue nas vestes, então me apelidaram de sanguinária. De fato, eu não costumava poupar ninguém que se apresentasse como meu adversário. O apelido uniu-se ao outro e me tornei o príncipe vermelho, cavaleiro vermelho, entre outros… Então, minha magia despertou, Zarif me escolheu e virei o príncipe dragão.
A visão nublou, enquanto recordava os acontecimentos que a levaram até aquele momento. Limpou a garganta e deu um passo atrás.
— Eu sou o “original”, Marie. É de mim que as lendas falam, mas as verdades que elas contém podem ser consideradas míseras gotas em meio a um oceano de mentiras.
Um audível suspiro de alívio escapou da mestra e ela principiou um sorriso. Virnan farejou o ar, arqueando uma sobrancelha.
— Isso está errado — disse. — Muito errado.
Marie levou a mão ao nariz.
Que cheiro podre é esse?
— Você pode sentir?!
Ela confirmou. Virnan lhe entregou a adaga.
— Segure. Diga luminai.
Curiosa, Marie obedeceu. Imediatamente, a arma inteira começou a brilhar. Era uma luz forte, mas não o suficiente para cegá-la. Permitia ver tudo à sua volta por uma boa distância, como se fosse uma tocha. Virnan cruzou os braços, deslizando o olhar sobre as águas escuras do lago e a mata em volta. Marie lhe devolveu a adaga e a luz diminuiu.
Qual o problema?
— Como se sente? — Ela respondeu com outra pergunta, mantendo a adaga firme como se aguardasse um ataque, tentando identificar de onde vinha aquele mau cheiro repentino.
Me sinto ótima. Por que a pergunta?
Ela fez menção de responder, mas o fedor se tornou mais forte. Então ouviram o grito de Fantin se elevando das proximidades do acampamento.
*** ***
Fantin segurava Alina, o braço em volta da cintura dela oferecendo resistência a criatura cujo tentáculo tinha penetrado a bibliotecária.
Ela não a soltaria, jamais deixaria que aquela “coisa” a levasse. Gritou de raiva, desespero e medo. Uma argola dourada brilhou em volta do pulso livre e ela socou o ar. A magia atingiu a criatura, iluminando uma face sem olhos. Repetiu a conjuração, mas, outra vez, a criatura a recebeu sem que ela lhe fizesse algum dano.
Os guerreiros de Midiane surgiram entre as árvores com espadas em mãos. Fenris procurou pelo inimigo girando sobre o calcanhar, mas não havia nada ali, exceto as duas mestras em uma posição estranha. A tocha que Verne segurava iluminava todo o local.
— Mestra, o que…
Fantin golpeou o ar novamente e a magia encontrou resistência. Foi então que perceberam o sangue que escorria dentre os lábios e o peito de Mestra Alina. Fenris levou um segundo para entender e agir. Ergueu a espada e atacou o local onde viu a magia desaparecer. Os outros seguiram o exemplo, mas nada do que faziam surtia efeito. Eram arremessados para longe por aquela força invisível.
A grã-mestra juntou-se a eles, lutando para soltar o tentáculo que prendia a mestra. Mas sua magia, assim como a de Fantin e as armas dos homens, parecia não surtir efeito naquele demônio.
— Não a solte! — Melina gritou.
— Por nada deste mundo! — Fantin respondeu.
Uma luz suave começou a escapar do corpo de Alina, que havia perdido os sentidos. Ela percorria o tentáculo que a penetrava até que atingiu o fim dele e a criatura a soltou.
Foi essa cena desesperadora que Virnan e Marie encontraram quando chegaram ao local.
O corpo de Alina tombou sobre Fantin e o monstro começou a se afastar, mas a guardiã jogou-se sobre ele, inclinando-se para o lado a fim de escapar do esporão na ponta de um dos muitos tentáculos. Contudo, foi atingida por outro e berrou quando ele atravessou sua coxa direita.
Verne instigou os homens a investirem contra o inimigo, seguindo os membros sujos de sangue e Virnan usou o corpo como uma alavanca para arremessá-lo no chão, mas outro tentáculo a atingiu e foi jogada contra uma árvore. Caiu buscando o ar e certa de que tinha partido algumas costelas.
De joelhos, recorreu a adaga e atirou. Ela atingiu o tentáculo que estava prestes a penetrar o peito de Fenris e fincou-se na árvore próxima, aprisionando a criatura, mas era uma questão de tempo até que se libertasse.
— Não a deixem escapar! — Ela gritou, mas os homens não a enxergavam, então permaneceram parados.
Melina conjurou fios dourados que envolveram o monstro e Marie traçou movimentos no ar, invocando argolas azuladas em volta dos pulsos, assim como fez na estrada. O chão sob os pés da criatura cedeu como areia movediça e ela afundou até a cintura. A mestra fez um novo movimento e o chão se solidificou.
Virnan apoiou-se na árvore e gritou:
— Protectiare numh. Repita!
Marie não ousou sentir medo de falar naquele momento. Repetiu a frase com voz firme e, assim que terminou, o chão a sua volta começou a brilhar no formato de um círculo com letras estranhas. Ele se expandiu até cercar todo o local. A criatura berrou e, desta vez, todos podiam enxergá-la.
— Mas que diabos é isso? — Verne perguntou.
Era uma mulher, pelo menos tinha uma aparência que recordava uma. As mãos e cabelos eram tentáculos longos com pontas rígidas, afiadas e mortais. Ela não tinha olhos e a boca era uma profusão de dentes afiados. A pele era negra e lustrosa, como se estivesse untada de óleo.
O lorde recuperou a espada, caminhou até ela decepando os tentáculos livres que o atacavam, arrancando mais gritos aterradores. Não estava disposto a perder tempo com explicações. E adiantou-se para aproveitar a magia que a princesa conjurou e que lhe permitia machucar aquele monstro, assim como o enxergar. Ergueu a espada para ceifar a vida dele, mas Virnan mancou até o seu lado, deixando um rastro de sangue pelo chão.
— Espere! Ainda não.
— Enlouqueceu?!
O pranto de Fantin se elevou, chamando a atenção deles. Estava no chão, agarrada ao corpo de Alina. Ao seu lado, a grã-mestra enxugou uma lágrima.
— Ela está morta. — Disse.
Sem Ilustrações hoje, amores, mas espero conseguir fazer algo legal para o próximo capítulo.
Então, como estamos? Aliviadas? Angustiadas? Desejando que a autora tropece e caia de bumbum no chão? rs…
Beijo enorme! Até o próximo!
Nossa!!! tô sem fôlego até agora, parabéns, cada capítulo mais intenso
Você Tattah me fez chorar até capítulo não acredito que matou á Alina ela pelo que pude perceber vai e é muito importante para o grupo você não pode matar ela por favor. E. Muito bonito o amor da Virnan e Marie e de Fantin e Alina e cada capítulo mais e mais revelações e descobertas impressionante está de parabéns até aqui você escreve divino. Bjsssss e abraçossssss..,…,….
Eu continuo sem palavras!
Nunca ia desejar um tombo seu, Tattah! Pior pra gente ficar sem capítulos!
Cara, tô com o queixo cada vez mais no subsolo…
Adorando! Definitivamente, dos melhores contos do gênero que já li!
Parabéns e gratidão eterna por compartilhar conosco!
Faça virar um livro depois!
Oh, Naty, obrigada pelo carinho e presença constante!
Sempre fico muito feliz em encontrar seus comentários em cada capítulo e, também, muito satisfeita em saber que estou lhe proporcionando (à todas vocês) uma boa diversão.
Bem, vamos ver! Quem sabe faça mesmo um livro depois de uma boa revisão? Tudo é possível!
Beijão!
Não sei nem o que pensar. A cada novo capítulo você vem com mais detalhes, mais revelações e nos deixa com a expressão na cara de ‘como assim’!? É como estou nesse momento. Mas sei, espero eu, que o próximo venha com boas notícias e a recuperação da Alina! Espero mesmo, tá legal?? 😉
Já ia esquecendo, só gostaria de ter um pouquinho da sua imaginação neste momento, nunca que iria desejar que levasse um tombo! Longe de mim pensar isso. Rsrsrsrs
E que venha o próximo! :*
Abrs ?
Oi, Lins!
Já falei na resposta do comentário abaixo que é muito gratificante surpreendê-las assim. Bem, devo confessar, que também estou um pouco surpresa em conseguir fazê-lo dessa forma. A história ganhou alguns rumos interessantes que não foram planejados inicialmente, mas ainda seguem a ideia original.
Está sendo uma experiência interessante escrevê-la, já que, apesar de adorar fantasia, nunca escrevi algo do tipo.
Feliz que estejam curtindo cada capítulo e que a leitura não esteja se tornando cansativa.
Você é uma fofa! Obrigada por não me desejar um tombo! rs…
Um beijão e até o próximo! 😉
Tattah, tô passada com essa história e as revelações que estão acontecendo ao longo dos capítulos! Tipo certeza que Marie e Virnan tinham coisas a ver com o príncipe e a princesa, sim eu tinha, mas jamais imaginei que seriam elas essas personagens. Tá arrasando mais uma vez com essa história!
Agora, se Alina não retornar ao mundo dos vivos, eu vou torcer para que sua pessoa caia e bata de cóccix no chão, que é pra doer bastante. É, sou má, muito má, quando acontece alguma coisa com uma personagem que gosto muito, principalmente se ela estiver no meio de um momento super romântico, se declarando para o seu amor! hahaha
Bjus
Pôxa, Preguicella!
Malvada mesmo, hein? rs… Felizmente, nada me aconteceu até agora. rs…
É uma delícia surpreender vocês. Bem, elas representariam esses papéis desde o início, mas não queria que ficasse claro e, pelo visto, consegui fazer um bom trabalho nesse quesito. É muito gratificante! ^^
Valeu pela companhia! 😉
Beijão!
Espero q em um mundo de magia onde temos guardiãs e mestras Alina de alguma maneira sobreviva a esta criatura….
E SIM… das alternativas apresentadas escolho NO MINIMO a 3ª para a autora.
Aff…
é como cola, nos gruda na leitura de cada cap. parabéns…
Oh maldade! rsrs…
Tá bom, fiz por merecer, rs…
E se tá grudada na leitura, é sinal de que está bom! 😉
Beijão!