Assim que pisou na sala, Layse viu a mãe erguendo-se do sofá olhando-a preocupada.
– Ocê quer me matar do coração, só pode! São três horas da madrugada! Onde esteve até agora?
– Estava na casa da Valentina conversando com ela.
– Graças a Deus, que alívio! Não podia ter avisado?
– Uai, eu saí e passei por lá de bobeira para falar um oi. Quase nunca vejo a Valentina. Ficamos conversando e as horas causaram este desastre.
– Agora a culpa é das horas? Não seja engraçadinha! Quando sair tem que me falar para onde vai.
– Está tudo bem comigo. Vou dormir porque estou com sono.
– Vá mesmo. Deve estar morta de cansada. Oh, dó gente! Valentina não sabe que ocê acorda com as galinhas? Boa noite, filha!
– Boa noite! Bença, mãe!
– Deus te abençoe!
No dia seguinte, Clarice ouviu com grande eto Layse cantando uma música enquanto cuidava dos canteiros de hortaliças. Esticou a orelha para ouvir melhor, porque achou que estava sonhando. Layse estava toda triste no velório e agora estava cantando? Que coisa mais estranha.
– “Te amooooo. Te amo, te amo, te amo. Está escrito nas estrelas, que eu não sei viver sem você.”
Layse estava tão concentrada no trabalho, que nem percebeu Clarice observando-a discretamente.
Depois Clarice saiu e só voltou no final da tarde. Estava passando o café, quando Layse entrou na cozinha, dizendo:
– Com a sua licença!
– Fica à vontade, Layse! Toma acento que já vou te servir o café.
– Tá cheirando tão bem este café, Clarice!
– Não tem nada melhor do que um café passado na hora.
– Tem mesmo não, uai! Com um pão de queijo então é melhor ainda.
Layse acrescentou admirando os pães de queijo assados sobre a mesa.
– Fui fazer a minha caminhada, passei na igreja e aproveitei para comprar umas coisinhas que estavam faltando. Já fazia tempo que não assava um pão de queijo aqui em casa.
– Isso é verdade mesmo.
– Passei lá pelas bandas do bar do Juarez. Você acredita que ele estava expulsando dois rapazes de lá?
– Poxa! To é besta de saber uma coisa dessas!
– Pode ficar besta mesmo. Eu fiquei foi de queixo caído. Onde já se viu expulsar os fregueses daquele jeito? Quero ver o dia que aqueles adolescentes pararem de entrar lá.
– Coitados, eles não tem outra escolha. O bar do Sr, Juarez é o único ali da praça.
– Exatamente! Era para ser um dos melhores bares dessa cidade. Ainda me lembro do tempo em que o seu pai bebia umas cervejas por lá quando vendia saúde. Passava na porta e via a alegria geral daquele mundo de homens. Depois eles foram se arrumando, uns amigaram, muitos casaram, outros deram o pé de Cielo. O Juarez era outro homem também. Tinha um sorriso de canto a canto na boca. Nos últimos tempos, sempre que passo por lá vejo a tromba dele e fico encasquetada. Tudo bem que comércio não é fácil, isso eu sei muito bem.
– O meu pai bebia lá?
– Bebia sim, ele gostava de uma cervejinha, cotadinho. Daí casou e você sabe, “quem casa quer casa.” Seu pai era um homem de família, Layse! Ah, se era! Depois a Ceição começou a levá-lo em rédea curta.
– Meu pai era caseiro sim. Depois que ficou cadeirante nem saiu mais para lado nenhum.
– A vida é assim mesmo, mas agora ele está descansando. Que Deus o tenha onde ele estiver.
– Amém!
– Gostei de ver a sua cantoria hoje. Viu passarinhos de todas as cores pelo jeito. Estranhei, afinal estava tão tristonha e de repente…
– Ah, só cantarolei uma canção.
Layse respondeu pegando um pão de queijo.
– Não estou te recriminando, só comentei.
– Ainda estou triste pelo meu pai, Clarice, mas é que ontem fui ver a Valentina como comentei e foi maravilhoso.
– Ah, sim! Conseguiram se entender?
– Fizemos amor, só isto que me importa. Estou me sentindo nas nuvens.
– Estou percebendo pelo seu semblante. Que coisa boa, Layse! Foi bom?
– Bom? Foi mágico, foi sublime fazer amor com ela. Nunca pensei que fazer sexo fosse tão delicioso. Estava acostumada só com o prazer que tenho sozinha. Sabe, né? Obter prazer assim agora não me parece uma boa. Sequer imaginava o que estava perdendo.
– A masturbação é o intervalo até a hora do vamos ver.
– Vamos ver? Clarice, você diz cada coisa engraçada!
– Era assim que falávamos antes. Conta mais, vocês se deram bem na cama?
– Noooooo, bem demais da conta. Ela é muito mais do que… Ah, ia dizer que foi uma surpresa conhecê-la na intimidade.
– Posso imaginar. Esse seu sorriso diz tudo. Você confessou que a ama?
– Uai, claro que não! Nós apenas ficamos. Deixei claro o que eu queria e ela aceitou. Quase que nem consigo, porque ela correu para o quarto. Percebi que estava fugindo e fui atrás. Era ruim de eu perder aquela chance. Ainda mais estando dentro da casa dela. Não sou boba nem nada Clarice.
– Gostei! Você é muito decidida. Fez muito bem, tem que agarrar o que a vida te dá. E agora como é que vocês ficaram? Vão se ver de novo hoje?
– Aiiii, vamos! Não estou nem acreditando. Ela disse que vai me levar para Vassourinhas. Vai me buscar lá em casa e vou dormir com ela.
– Sei, sei, e a sua mãe? Aposto que ela vai abrir o falador.
– Que vai, vai, né! Fazer o quê? Não quero nem saber. A Valentina é que vai ter de se explicar com ela.
– Hahahahahaha… Adorei! Faça isto mesmo. Imagino que a Valentina vai te levar para dormir na casa que a mãe deixou para ela.
– Ah, é? Pensei que a casa fosse do pai.
– O Salomão tem uma casa que ele comprou. E tem a casa que a esposa herdou do pai e deixou para a Valentina.
– É mesmo? A senhora sabe de tudo.
– Eu conversava muito com a mãe dela quando ia comprar verduras na minha mão. Também nos falávamos muito nas missas dominicais. Era uma mulher bonita e forte. Quando adoeceu, a sua mãe trabalhava lá. Foi quando passou a cuidar dela. É por isto que o Salomão tem tanta estima pela sua mãe.
– A minha mãe me contou isso mesmo.
– Pois é. O Salomão amava demais a esposa. Era uma mulher tão feliz e apaixonada por ele, que nem te conto. Eram um casal bonito mesmo de se ver. Eles andavam pela cidade de mãos dadas. Quando passavam pela minha barraca ficava só admirando o jeito deles. Entendo muito bem porque o bom doutor nunca mais quis se casar. Tenho certeza que nunca mais vai amar uma mulher como amou a esposa. Existem amores que não se substitui.
– Hã.
– Mas não sou boba, Layse. Sei que ele não aposentou a chuteira. Também não está morto, é compreensível. Além do mais, é um viúvo muito do bonitão. Se eu fosse mais nova, ai, ai, filha, como vocês jovens dizem, eu pegava. Hahahahahaha…
– Tá falando sério, Clarice?
Layse questionou admirada.
– Claro que estou! A Silvinha, você a conhece, né?
– Aquela que anda com um véu preto sempre que vai à missa?
– Ela mesma! Menina, ela e o Salomão tiveram um caso tórrido anos atrás. Depois que o marido dela morreu encontrou logo consolo no bom doutor.
– To besta! Ela com aquela cara fechada?
– “Cara fechada é sinal de cu aberto”, Layse, não se engane. As pessoas são fachadas, portanto, não seja ingênua. Lembro-me muito bem quando eles começaram, eu estava na casa dela fazendo uma visita de pêsames. Ela começou a passar muito mal. Já tinha escutado que ela andava dando uns desmaios, e como eu estava lá, fiquei em altas e tratei de chamar o Salomão para acudi-la.
– Por que ela desmaiava?
– Sei lá, nunca entendi aqueles desmaios. Para mim eram fricotes. Olha, mas quando Salomão chegou, imagina aquele homem bem trajado, todo cheiroso, hahahaha, até hoje acho graça. A Silvinha mudou completamente. Ela emplumou o corpo na hora. Deu logo uma empinada nos seios para frente. O vestido preto que usava, não sei nem como que ela fez aquilo tão rápido, subiu na altura das coxas. Dava para ver até a calcinha.
– Noooooo, que assanhamento!
Layse falou começando a rir sem conseguir ficar séria.
– Quando uma mulher decide dar uma chave de coxas vira outra. Deixa-me terminar de te contar.
– Conta.
– Vi pela cara do Salomão o quanto ele ficou desconcertado com o assanhamento dela. Uma viúva que tinha acabado de enterrar o marido, você calcula a situação. Então, ele sentou do lado dela para consultá-la. Ela pegou a mão dele enquanto auscultava o coração puxando logo para cima do seio. Pior, foi deitando a cabeça no peito dele como se não estivesse fazendo nada demais. Estava cheia de malícia, se é que você me entende. Sabe quando os olhos dos personagens dos desenhos estão quase saltando do globo ocular?
– Sei. Hahahahahahahaha…
– Os olhos dele ficaram daquele jeitinho mesmo. Ele deu só uma olhada na minha direção, porque a barraca se armou na hora. Eu que não sou boba despedi-me saindo na maior carreira de lá.
– Ah, Clarice! Estou rindo demais. Ainda não estou acreditando que a D. Silvinha com aquela cara de santa, pegou o doutor de jeito.
– Pode acreditar porque a danada pegou! Depois desse dia o Salomão passou a lhe fazer visitinhas diárias. Ele não é bobo nem nada e ficou comendo quieto. Você sabe como são os mineiros, não perdem tempo. Hahahahaha…
– Perdem mesmo não. Hahahahahaha… D. Silvinha, quem diria! Nunca que eu ia imaginar uma coisa dessas.
– Para você ver como são as coisas. Depois o povo danou a falar que eles tinham um caso, e Salomão, você sabe como ele detesta fofocas, passou a ir para Vassourinhas. Lá ele tem liberdade para fazer o que quiser longe da língua dessa gente desocupada.
– Entendi. Então Valentina não fica na casa do pai quando vai para lá. Melhor assim.
– Ela sempre fica na casa que herdou. Tem uma empregada vivendo na casa, e segundo o que o Salomão me contou, ela a mantém conservada. Converso muito com ele quando vou me consultar com ele. Adoro conversar com gente educada e de mente aberta. Ele sabe como viver bem. Tanto que sei do orgulho que ele sente da Valentina. Já me contou que desde que ela foi viver para São Paulo, nunca deixou de ligar um dia que seja para ele. É uma filha de ouro. Por aí já dá para ver que é boa moça.
– Ah, é? Por quê?
– Uai, Layse! Pai e mãe são tudo. Filhos que não valorizam os pais não valorizam ninguém nessa vida.
– Faz todo o sentido, concordo. A Valentina ama muito o pai. Ela me contou que o doutor sempre me elogia.
– Elogia demais. Nossa! O Salomão tem um respeito por você, exatamente pela forma como você tratou de trabalhar desde novinha para ajudar os seus pais. Todo mundo reconhece o seu valor porque ninguém é cego para não ver.
– É, ainda mais que o doutor sabe muito bem que eu nunca andei por ai vagabundeando. Se não tivesse começado a trabalhar para ajudar os meus pais nem sei o que teria sido de nós. Já as pessoas eu não faço ideia do que elas pensam.
– Não se engane com as pessoas, elas podem não falar das suas boas atitudes, mas ficam de olho no seu comportamento. Não espere ouvir elogios. O povo prefere criticar e procurar por defeitos. Também, elogio não enche barriga. O que não é dito de coração, não faz falta.
– Também acho. Bom, são quase cinco horas. Já vou puxando o meu carro. Na segunda-feira proseamos mais.
– Vai, menina! Não gostei nada de você ter vindo trabalhar hoje, te falei que não era para vir. Você é teimosa demais.
– Sei que falou, mas ficar na minha casa ouvindo a minha mãe chorar teria sido pior.
– Tudo bem, mas temos que guardar luto.
– Vim trabalhar para distrair a cabeça. Ficar com Valentina também foi ótimo porque não fiquei pensando na morte do meu pai. Dentro do meu coração ele vai viver para sempre.
– Tenho certeza disso. Vai lá aproveitar a sua vida. Ah, agora que você já sabe como se faz, trata de dar umas boas chaves de coxa na Valentina. Mostra quem você é. Aposto que ela vai querer sempre. Hahahahahahahaha…
– Ah, Clarice! A senhora é fogo! Tchau! Hahahahahaha…
– Curta a vida que você ganha muito mais! Hahahaha, tchau!
Layse entrou em casa cumprimentando a mãe. Viu-a soltando o lenço com o qual secava as lágrimas dos olhos.
– Oi, mãe! Tudo bem?
– Tudo bem, filha! Já vou passar um café. Vai tomar um banho?
– Vou, para tirar o suor do corpo.
Layse andou alguns passos, mas parou voltando-se para a mãe.
– Como a senhora está se aguentando?
– Nem eu sei, é muito doloroso não ter o seu pai mais aqui. A casa está vazia, sem graça, sombria.
– Mãe? A casa está como sempre esteve. Tudo que tá sentindo é dentro da senhora. É tristeza, muita tristeza. Sinto a mesma coisa porque essa dor está no meu íntimo. Temos que continuar com a nossa vida. Pegue com Deus, peça a Nossa Senhora para aliviar a sua dor. É o que estou fazendo cada vez que penso no pai.
– Eu não quero parecer fraca.
– Diante da dor da morte, todos que amam são fracos, não é vergonha sofrer pela nossa perda, mãe. Deixa eu te dar um abraço.
Layse abraçou a mãe emocionada, chorando nos braços dela. Lembrou-se que não chorou nos braços de Valentina, se controlou ao máximo para não deixar transparecer aquela tristeza.
Afastou-se da mãe segurando o rosto dela carinhosa.
– Não existe nenhuma palavra que possa falar para confortar o seu coração. Nós temos que suportar. Hoje choramos, amanhã choraremos um pouco mais, vamos chorar até lavar essa grande dor. Até que chegue o dia em que vamos trocar o choro pelos sorrisos. Ficamos combinadas assim?
Ceição depositou um beijo no rosto dela ensaiando um sorriso apagado.
– Estamos combinadas sim. Obrigada, minha filha. Obrigada por parar e olhar para mim. Obrigada por enxergar a minha dor e se preocupar comigo.
– Tudo bem, mãe. Estou aqui para a senhora. Agora passe o café enquanto vou me lavar.
Continua…
Olá Astridy…vou comentar dois capitulos em um..rsrsrs. Que tristeza pra layse, perder o pai não é nada fácil, mas essa menina com mente de adulta, sempre nos surpreende! Valentina também ajudou muito nessa recuperação….rsrsrs, mas enfim amando essas duas juntas e aguardando esse novo encontro. beijos autora
Olá, Sophiebrt!
Ok, gostei do teu comentário. Fico feliz que esteja gostando da história!
Beijos!
Muito obrigada!