Marie saiu de trás da árvore sob a qual se escondia com Melina. A luta tinha acabado. A maioria dos axeanos estava morta ou incapacitada de lutar. Aquele pedaço da estrada havia se tornado um verdadeiro campo de batalha e o cheiro da morte começava a lhe chegar, junto com um mau presságio.
Virnan segurava a adaga diante do corpo do Comandante Loyer. Havia tanto sangue em suas vestes e face, que somente os olhos se destacavam dando a certeza de que era a guardiã. A mestra focalizou o rosto aterrorizado e sem vida do homem. Os olhos esbugalhados e as mãos ainda em volta do pescoço na tentativa de pararem o sangramento que a guardiã lhe causou quando rasgou a garganta dele com a lâmina da adaga.
Não era a primeira vez que via a morte em um campo de batalha, mas foi a primeira em que quis vomitar após assistir as desgraças que os homens podiam causar a si mesmos. Principalmente, porque algumas daquelas mortes vieram pelas mãos de Virnan.
A respiração da guardiã externava o cansaço que a tomava.
— No fim, não posso fugir de quem sou. — Ela sussurrou, olhando para a adaga que gotejava o sangue do comandante.
Era como no sonho que Marie teve, ela estava banhada em sangue. A única diferença era o tamanho dos cabelos que, nele, eram curtos e cortados bem acima das orelhas.
— Eu sou a morte que caminha sobre este mundo — ela continuou a falar, causando um arrepio nas amigas que a cercavam.
De certo modo, Fantin concordava. Quando ela matou o soldado que atacou Alina, não havia nenhuma emoção em seus olhos. Era como se fosse apenas o “fim”. Ao mesmo tempo em que a temeu, também se encheu de admiração e recordou a conversa que tiveram na estalagem. Ela matou aquele homem para proteger Alina e continuou matando para proteger os outros. Não lhe escapou que só escolheu os atacantes que ofereciam risco aos seus amigos, exceto, o comandante.
Marie se aproximou. Estava assustada, claro. A ver matar em sonho era bem diferente do que assistir a realidade, mas ela ainda era a mesma mulher por quem se apaixonou. Aquela que derrubou suas barreiras e rigidez, a mesma por quem atravessaria um mundo para resgatar. Tocou-lhe o queixo, a forçando a erguer o olhar.
Se você é a morte, gostaria de morrer em seus braços. A puxou para si, emocionada.
— Vamos embora! — Lorde Verne rosnou, ainda mantendo-se atento a possíveis reações por parte dos axeanos sobreviventes, mas estava claro que eles nada tentariam. Além disso, assistir aquelas duas juntas lhe deixava irritado, como se houvesse algo entalado na garganta.
O mago Anton se aproximou. Lançou um olhar para o corpo do comandante e franziu o cenho, como se achasse que foi uma morte merecida. Fez um gesto para indicar que não oferecia perigo a nenhum deles. Mancava e mantinha a mão pressionando o ombro direito, onde havia sido atingido pela espada que Virnan lhe atirou.
— Perdão, Domna. — Disse ele, com voz arrastada e grave. Usava um tratamento respeitoso, dedicado às mulheres nobres de seu reino.
Virnan abriu os olhos. Tinha se perdido na paz que o abrigo dos braços de Marie lhe trouxe. Por um momento, esqueceu o que tinha acabado de acontecer. Mas a realidade a chamava de volta e afastou-se da amiga, depositando um olhar desconfiado sobre o homem, que voltou a mirar o corpo de Loyer, antes de se curvar.
— Perdão — repetiu.
A curiosidade firmou-se nos presentes, mesmo entre os inimigos feridos. O mago endireitou-se. As cicatrizes na face não permitiam definir sua idade real. Ainda que os cabelos fossem completamente brancos, tinha o porte de um homem de meia idade com músculos rijos como os de um adolescente. A pele possuía uma tonalidade semelhante à de Virnan, mas os olhos eram de um negro intenso.
— Eles esqueceram como o Reino de Axen surgiu. — Falou, deixando escapar notas de pesar. — Alguns só querem guerra, só vivem para ela. Pouco importa as nossas tradições, o nosso legado.
Um suspiro audível escapou da grã-mestra. Ela concordou, sem conseguir esconder a tristeza que a tomava pela perda de tantas vidas. Buscou a guardiã com um aperto no peito. Estava certa de que aquela tristeza sempre a perseguiria, mas não conseguia deixar de se sentir feliz por vê-la em segurança, ainda que estivesse tão ferida.
— Auriva… — o axeano sussurrou e repetiu a palavra em tom mais alto. — Jamais imaginei que esses olhos cansados veriam uma; mesmo quando Lorde Axen me falou de você. Seus olhos são como ele descreveu.
As sobrancelhas da protetora se arquearam e fingiu não notar a forma nada amigável com a qual Verne a mirava, apertando o cabo da espada, que ainda não tinha retornado à bainha.
— Acho que está um pouco confuso, velho. — Ela disse, inexpressiva.
O rosto dele se rasgou em um sorriso discreto.
— Tenho certeza que não, Domna Maxine.
A frase ecoou entre os axeanos e aqueles que ainda se encontravam de pé, retornaram para o chão de joelhos. Virnan sorriu, cínica, compreendendo.
— Temo estar um pouco perdido nesta conversa — Fenris declarou, mas foi ignorado pelos dois.
Anton continuou, enquanto a guardiã dava de ombros, ampliando o sorriso. Aquele dia não poderia ficar mais estranho, ela pensava.
— Já não existem mais aurivas puros entre nós. Ao longo dos anos, fomos nos misturando com outros povos. Deixamos nossa paz escapar como areia entre os dedos e nos dividimos sob o comando de sete casas. No entanto, uma casa permaneceu pura e oculta das outras. Ela, finalmente, resolveu se erguer e unificar nosso povo. A “sua” casa, Domna Maxine.
Retirou a mão do ferimento e sangue escorreu por ele, mas parecia não sentir dor ou incômodo. Pelo contrário, seu semblante era de pura admiração e satisfação.
— Uma auriva pura portando a arma de um castir, assim como nosso Lorde. — Anton sorriu mais. — Ele disse que o sangue auriva era mais forte em você, Domna Maxine. Você é a Adaga, assim como Lorde Axen, seu irmão, é o Machado. Sob seu comando, iremos destruir o algoz deste mundo.
Curvou-se, novamente.
— Perdoe-me por não tê-la reconhecido antes. Lorde Axen disse que você voltaria um dia. Afirmou que estariam juntos quando o dia de matar o Cavaleiro chegasse.
Ele aguardou em silêncio, enquanto ouvia o riso dela que foi aumentando até se tornar uma gargalhada. Ela deslizou a mão sobre a face, deixando o rastro dos dedos em meio ao sangue, até adquirir um semblante frio e assustador. As pernas tremeram e Marie captou o movimento; encostou a mão em suas costas para apoiá-la, caso necessário.
— Então, foi isso que ele falou para unir as sete casas? — Riu outra vez. A visão começava a ficar turva.
Um pouco mais atrás, Fantin fez uma careta, questionando:
— O que está acontecendo aqui? — Expressava o que todos se perguntavam. — Que história de auriva é essa e por que ele te chamou de Maxine?
A guardiã girou a adaga entre os dedos com ar ligeiramente enfastiado, embora todo aquele sangue não permitisse que detectassem seu verdadeiro estado de espírito.
— Levante-se, Anton. — Ordenou, desprezando a pergunta da amiga.
Inspirou fundo para clarear a mente, que começava a nublar. Estava mais cansada do que demonstrava e fazia um grande esforço para se manter de pé.
— Ah, isso faz sentido. Ele fez uma promessa de união…
O mago confirmou.
— O sangue auriva dos Dastur levará Axen de volta aos seus dias de glória!
Virnan chegou mais perto. As feições cada vez mais irônicas.
— Entendo. — Ela suspirou. — Sim, o sangue do Lorde de Axen corre em minhas veias — admitiu.
Anton mostrou os dentes em um sorriso satisfeito, que se desmanchou em seguida.
— Mas eu não sou Maxine Dastur!
Pela primeira vez, ele pareceu desconcertado.
— Mas você é como ele a descreveu! Seus olhos… Você usa a adaga! — Protestou.
Assim como estava minutos antes, quando cruzou a estrada ceifando vidas, ela se tornou sombria e assustadora.
— Seu lorde é um mentiroso, um ladrão e um assassino. Olhe para os lados, axeano, seus irmãos estão mortos por causa dele, assim como Maxine. Ela não caminha sobre este mundo há doze anos. — Revelou.
O homem empalideceu e, desta vez, somente o silêncio dominava os sobreviventes. A confusão era clara.
— Você a matou? — O mago quis saber.
— Carrego muitas mortes sobre os meus ombros, Anton, mas morrer foi uma escolha da própria Maxine.
— Então, se não é ela, é meu dever recuperar a adaga e devolvê-la ao meu Lorde.
— Você não pode levar o que sempre me pertenceu.
Girou a adaga entre os dedos e fez um movimento, como se a lançasse no ar. Em verdade, ela não a soltou. A árvore sob a qual o corpo do comandante estava se partiu, tocando o chão com um barulho assombroso.
— Quem é você? — Ele indagou, com leve estremecimento.
Ela se aproximou, deslizando a mão sobre a testa, erguendo a faixa até os cabelos. O mago focalizou a tatuagem, emudecido.
— Sou aquela que vai realizar o desejo de Illan Dastur, o Lorde de Axen. Ele estará ao lado da irmã, nas Terras Imortais, em breve.
***
A lua dominava o céu escuro quando cruzaram a fronteira de Caeles. Montaram acampamento junto a um lago e, finalmente, as ordenadas puderam cuidar dos ferimentos de Virnan.
Ela desmaiou nos braços de Marie e permaneceu inconsciente durante todo o trajeto até ali. Lorde Verne fez uma careta para os cortes expostos no corpo da guardiã e arrastou Fenris e os outros homens para dar a privacidade que as ordenadas necessitavam. Tinham lhe prestado algum socorro pelo caminho, mas era insuficiente diante de tamanho estrago que lhe fizeram.
— Me pergunto como ela conseguiu lutar daquela forma — Távio deixou escapar, enquanto juntava galhos secos para abastecer a fogueira durante o resto da noite.
— Bantos não foi gentil com ela — Fenris concordou, pensativo.
— Jamais imaginei que existissem pessoas tão poderosas entre os ordenados. — Abaixou para pegar outro galho. — Sempre nos disseram que eram pessoas especiais por possuírem dons curativos; nunca duvidei disso. Mas ver um deles tirando vidas foi assustador, ainda mais porque pregam a paz. Isso me faz pensar que temos muita sorte.
— Do que fala?
Verne estava agachado junto a uma árvore. Cofiava a barba farta, já longa pela falta de cuidados, após tantos dias na estrada. Ergueu o rosto para o homem, aguardando a resposta.
— Se todos na Ordem fossem como ela, não existiria exército capaz de se opor a eles. Felizmente, são pacifistas.
Era uma forma simplista e otimista de enxergar as coisas e o Lorde teve de concordar que tinham muita sorte mesmo. Dirigiu um olhar para as árvores que escondiam o local escolhido para acamparem. Uma luminosidade suave tocava os troncos grossos sempre que a magia das ordenadas era usada.
— Está feito! — Fantin jogou-se sobre um cobertor.
Ao longe, um dos cavalos relinchou ao mesmo tempo em que uma coruja piou. Foi o primeiro som que captaram daquele lugar. Como as histórias diziam, Caeles era um lugar sombrio e silencioso.
— Não entro em um círculo de cura há bastante tempo — Alina enxugou o suor na testa, arrastando o pé pelo chão e apagando o círculo que desenharam para a sessão de cura. — Acha que ela ficará bem?
Sentou sobre a raiz grossa de uma árvore, que se projetava do chão. Manteve as feições inalteradas quando Mestra Fantin abandonou o cobertor e juntou-se a ela, resvalando o ombro no seu.
— Não tenho dúvida alguma. — Afastou o olhar da guardiã, deitada sobre uma esteira. Marie limpava um dos ferimentos no braço dela, tinha acabado de fazer o mesmo com o do abdômen e os cortes na face. Voltou-se para Alina. — É a sua vez.
Deslizou a mão por suas costas, lhe trazendo um arrepio prazeroso. Por fim, alcançou o pescoço. A magia fluiu pelos dedos macios, apagando o corte que a espada do soldado axeano fizera.
Alina passou os dedos no local. Estava certa de que não tinha ficado cicatriz, afinal o dom da cura dela era muito forte. Limpou a garganta, soltando o ar em seguida.
— Obrigada. Mas não precisava se incomodar.
Fitou a copa escura da árvore, ligeiramente desconfortável. Tentou se afastar, mas a mestra pousou a mão sobre a sua.
— Nunca mais me assuste assim — Fantin pediu, aumentando a pressão na mão dela. — Se sentir que não pode mais suportar, não hesite em me falar.
Alina sorriu, confirmando.
— No fim das contas, não somos guerreiras. Nunca usei tanto uma magia defensiva quanto tenho feito nos últimos dias.
— Aparentemente, é o que somos agora. Pelo menos, até deixar Marie naquele maldito lugar!
Um suspiro escapou dos lábios rubros de Alina, externando a mesma sensação de impotência e raiva que ela sentia em relação ao assunto.
— Confesso, ainda tenho esperanças.
A frase arrancou um sorriso de Fantin que, num rompante, a puxou para si. A envolveu em um abraço carinhoso e enfiou o rosto entre os seus cabelos. Foi uma surpresa, assim como muitas das atitudes dela e permaneceram unidas, compartilhando o calor e o silêncio por um longo tempo. Ainda que seu corpo desejasse se afastar, Alina não sabia se era aquilo mesmo que queria. Na verdade, nunca sabia como agir na presença dela, mesmo antes do Festival de Mirdes.
Desde que a viu, pela primeira vez, nutriu uma forte paixão. Mas sempre esteve bem consciente de que não era o tipo de pessoa que a atraía. Fantin era uma conquistadora, mesmo quando não estava tentando ser. Não o fazia por vaidade ou orgulho e sempre agia com discrição. Mas, aos seus olhos, ela estava em busca de algo em todas aquelas pessoas. Algo que, com certeza, ela, Alina, não possuía.
Fantin aumentou a pressão em volta do seu corpo antes de se afastar. Piscou algumas vezes, assistindo Marie enrolar uma faixa no tórax de Virnan. A grã-mestra não estava à vista, tinha se retirado para se lavar no lago, levando junto as roupas da guardiã na esperança de que pudesse retirar o sangue delas.
— Eu entendo Marie. — Baixou a vista. — Ela não queria se envolver com Virnan sabendo que o relacionamento delas não teria futuro. O que ela não entende, é que partirá desse mundo sem ter se permitido viver completamente, experimentado algo único e puro. Não quero que o mesmo aconteça comigo.
Falava devagar, como se estivesse conversando consigo mesma. Contudo, não era esse o caso. Fitou a mestra ao seu lado, envolvendo a mão dela.
— Você não gostaria de viver isso? Não quer amar e ser amada na mesma medida?
Como não obteve resposta, sorriu.
— Decerto, é uma conversa estranha para se ter em um lugar como este. Principalmente, em meio ao que estamos vivendo nos últimos dias e que, ao que parece, está longe de acabar. Mas eu gostaria de saber a resposta.
— Por quê?
Ela riu, acentuando a beleza dos olhos azuis, apesar da pouca luminosidade.
— Porque se estivermos vivas ao final dessa viagem, gostaria que me desse a oportunidade de conquistar sua afeição. No sentido romântico.
Alina se afastou, agastada.
— Não entendo a razão de brincar assim comigo! Sei perfeitamente que não sou o tipo de pessoa com quem costuma se relacionar. Por que me atormenta?
Falava baixo para não chamar a atenção de Marie e dos midianos na floresta. Se colocou de pé, caminhando para longe dela, mas Mestra Fantin a seguiu e a puxou para trás da árvore sob a qual estavam sentadas, onde nenhum olhar curioso poderia tocá-las.
— Sei bem que mereço essa desconfiança, mas não estou brincando. — A pressionou contra o tronco. — Talvez tenha começado como uma noite de sexo, de pura satisfação carnal. Mas eu te notava antes disso.
Alina tentou empurrá-la, mas Fantin era ligeiramente mais alta e muito mais forte fisicamente.
— Ainda que nossa convivência tenha sido muito pouca ao longo dos anos que compartilhamos na Ordem, sua companhia sempre me agradou. Apreciei cada momento ao seu lado, cada conversa, até mesmo o silêncio. Simplesmente, era bom estar com você, e ainda é.
Sorriu, demonstrando um ligeiro desconcerto, afinal nunca tinha se declarado para alguém. Geralmente, ela era o alvo de confissões amorosas.
— O festival foi apenas uma noite de prazeres até o dia em que descobri que estive com você. Naquele momento, ele ganhou outra importância para mim.
Chegou mais perto e Alina prendeu a respiração, atenta as reações do seu corpo contra o dela e aceitou os lábios que tomaram os seus com um estremecimento de prazer. Retribuiu o beijo com o mesmo vigor, devolvendo as carícias que recebia.
O chamado da grã-mestra as separou. Fantin abandonou seus lábios, demonstrando pesar. A fitou por um longo instante, então saiu de trás da árvore, deixando um alvoroço no peito de Alina.
***
Virnan abriu os olhos e deparou-se com o rosto melancólico de Lyla. O espírito a fitava, sentada ao lado da fogueira. Alheio a sua presença, Lorde Verne estava agachado ao lado dela, admirando a adaga que lhe pertencia.
— Você está ouvindo? — Lyla perguntou. — Flyn está sussurrando seu nome. A cidade de nossos antepassados clama por você.
Encararam-se por um longo momento, então ela desapareceu e a guardiã sentou, chamando a atenção do lorde. Ele virou o rosto para não ver o seio desnudo dela, quanto o cobertor caiu. Marie se apressou em lhe atirar a capa sobre os ombros, já que as roupas dela estavam em farrapos e depois de lavadas e secas, Alina tinha se oferecido para fazer alguns remendos. Ao vê-la desperta, a Mestra dos Escritos se aproximou, depositando as roupas ao seu lado.
Virnan a impediu de se afastar, tomando-lhe uma das mãos e deslizando a outra pelo seu pescoço. Como a mestra imaginou, Fantin não deixou sequer uma cicatriz. Ainda em silêncio, ela ofereceu um sorriso grato à guardiã e se afastou.
Irritado, o badir deu às costas para que ela pudesse se vestir, contudo não saiu do lugar nem pretendia sair. Afinal, esteve esperando seu despertar, desde que montaram acampamento.
Era o meio da tarde, mas a copa fechada das árvores mantinha o local escuro, obrigando-os a manterem a fogueira acesa. O crepitar do fogo lhe prendeu a atenção, enquanto ela se aprontava.
Sente-se bem? Marie perguntou a ajudando a fechar a blusa.
Virnan inclinou a cabeça em uma resposta positiva, ainda que todo o corpo reclamasse pelas dores que ainda sentia. E complementou com uma frase atrevida, através de gestos:
Definitivamente, preferiria que você me tirasse as roupas em vez de me vestir. Não mostrou o costumeiro sorriso malicioso, mas o jeito que a fitava era deveras revelador. A mestra corou diante da gargalhada de Fantin, que estava perto o suficiente para captar a mensagem.
— Pelo visto, ela está ótima! — A outra observou, entregando uma caneca de chá para a guardiã, que emborcou o líquido goela abaixo, tamanha era a sede que sentia. — Você nos deu um trabalhão! — Contou, apontando para os riscos no chão, que foram o círculo de magia curativa.
Marie ainda estava corada, quando finalizou a tarefa. Somente Virnan conseguia deixa-la desconcertada daquela forma. Lhe sapecou um beijo na bochecha, demonstrando o alívio por vê-la bem e recebeu um abraço apertado. Por fim, afastou-se, iniciando uma frase, mas Verne se voltou, notando que ela já se encontrava vestida e lhe atirou a adaga nas mãos.
— Fale sobre isso. Comece contando sobre sua relação com Axen.
Ela retirou a lâmina da bainha. Deslizou o dedo sobre a joia no cabo, admirando o próprio reflexo nela. Nem de longe, era a mesma mulher que a recebeu em uma cerimônia imponente, muito tempo antes. Se eles soubessem quanto sangue aquela lâmina derramou…
— Não é hora para isso — Fantin traduziu os gestos irritados de Marie.
O lorde fez um muxoxo.
— Se ela tem alguma relação com Axen… — interrompeu-se, diante da cólera que visitava a face da princesa.
— Ele tem razão — Virnan falou, amenizando os ânimos, a voz arranhando a garganta.
Pousou a mão no braço de Marie, notando a ausência dos demais homens. Nem mesmo Fenris se encontrava à vista e algo lhe dizia que essa era a vontade do lorde.
— Se estivesse em seu lugar, também não esperaria para obter respostas cruciais para nossa segurança. — Declarou.
— Então? — Ele quis saber.
Ela fez um gesto afetado, mirando a grã-mestra do outro lado da fogueira. A idosa se mantinha em um silêncio contemplativo. Lhe sorriu, distraída, então se endireitou sobre a esteira que ocupava. Um vento frio os envolveu e ela se pôs de pé, erguendo o olhar para a folhagem escura das árvores.
— É uma história longa. Tenho muitas histórias longas.
Alina bebericou um pouco de chá e despejou mais um pouco na caneca da guardiã, quando esta lhe pediu com um gesto.
— Que tal começar nos falando sobre a tal Maxine? — Sugeriu a bibliotecária.
Virnan suspirou, cansada.
— Sempre perspicaz, mestra. — Sorriu para Alina. — Esta viagem está tomando alguns rumos inesperados. — Comentou, farejando o ar. — Mas, primeiro, me permitam agradecer por terem me resgatado.
— Aparentemente, você estava indo muito bem sozinha. — Verne retrucou.
— Impressão sua, badir. Saber o que fazer e conseguir fazê-lo são coisas bem diferentes. Provavelmente, teria conseguido escapar, mas não iria muito longe, diante do estado físico em que me encontrava. Foi com alegria que notei a presença de vocês e resolvi agir.
Lhe faltava a firmeza costumeira no domínio do próprio corpo. Certamente, aquela sensação iria perdurar até se recuperar completamente. Se um círculo de cura foi necessário, seu estado não devia ser dos melhores e, era certo, ainda necessitava de uma ou mais sessões de cura.
— Você é uma de nós. Sem chances de deixá-la para trás. Ainda mais, para ter o mesmo destino que Milan! — Fantin afirmou. Como sempre, demonstrando as emoções inflamadas.
— Mesmo assim, obrigada! — Virnan se curvou, levemente.
— Por que aquele mago a confundiu com essa tal Maxine? — Alina foi direta. Tinha repassado a estranha conversa que presenciou várias vezes. Mais como uma forma de ocupar a mente para evitar pensar em Fantin.
— Por que desperdiça uma pergunta, a qual já sabe a resposta? Ele falou dos meus olhos, não? Os olhos dela se pareciam com os meus, mas não eram iguais como ele afirmou. Os dela eram verdes amarelados, na luz direta passavam a impressão de serem mais claros.
Encostou-se em uma das árvores, aspirando o cheiro delas. Foi invadida pela saudade de um tempo que não voltaria. Lyla tinha razão, conseguia ouvir os sussurros. Flyn a estava chamando, implorando, chorando.
— Houve um tempo em que os florinae habitaram estas terras. Houve um tempo de paz e outro de guerra entre eles. Então, um tempo de trevas chegou. — Passou a mão sobre o tronco da árvore, pensativa.
Verne agastou-se.
— Não lhe pedi para contar uma lenda idiota, guardiã! Vá direto ao ponto! Quem é Maxine Dastur?
A moça tomou um gole do chá, calma. A impaciência do homem a divertia, ainda que não fosse o momento adequado para isso.
— Mas não é uma lenda, Badir. É a história de um passado real. Obviamente, existem muitos floreios por aí. Em cada canto deste continente contam a história de uma forma diferente, mas um elemento é comum à todas as versões: O Cavaleiro. E é impossível falar de Maxine e seu irmão Ilan, Lorde de Axen, sem falar sobre ele.
Soprou o vapor que se elevava da caneca.
— Creio que a grã-mestra concorda comigo. Afinal, ela conheceu Domna Maxine.
Melina franziu o cenho.
— A idade é cruel com os velhos, Virnan, mas a minha memória permanece intacta. Não me recordo de conhecer alguém com esse nome.
A jovem sorriu com um jeitinho convencido. Conhecedoras da sua personalidade, o gesto preparou as ordenadas para algo inesperado. Ela tomou um alento e disse:
— Compreendo. Imagino que será mais fácil recordar, se pensar nela como o guerreiro solitário, em vestes negras, que a salvou do sacrifício há cinquenta anos.
— § —
Ola Tattah! tive que comentar de novo…rsrsrs. Fui reler a historia pra tentar entender algumas coisas, e relembrar outras, e qual é minha surpresa ao perceber que a Domma Maxine apresentada neste capitulo, já havia aparecido no primeiro capitulo, e que parece que ela é uma peça muito importante na sua historia…. to aqui em colicas esperando o proximo capitulo, pois com certeza ele ira clarear bem as coisa. Beijos autora, mais uma vez afirmo, a historia tá ótima.
Haha… É verdade, Sophie. Falei de Maxine lá no prólogo e não me referi a ela novamente até este capítulo. Parecia um episódio solto, né? Mas te garanto, tudo que foi comentado na história, tem motivo e é importante para os rumos dela.
Beijos e até o próximo!
Oi, Táttah!
Demorei um pouco para chegar, mas aqui estou. rs
Eu não me surpreendi com as ações da Virnan, pois acredito que ela tenha um passado muito mais sombrio do que apareceu até agora. Pelo que lembro do início, ela partiria para cumprir um destino, antes de ser pega nessa missão. Tenho para mim que o destino dela e essa missão foram cruzados. rsrs
Adorando o momento Fantin, que pelo andar da carruagem será uma boa aliada de Virnan!
Um beijão Tatita e como todos aqui, ansiosa demais para saber o que vem por aí! rs
Ahh, mestra, adoro ter você por aqui. Então, o passado dela está bem próximo de se revelar e, como ela mesma já disse em outro momento, se tiver de matar irá matar. Já que você pegou o fio da meada é mais ou menos por aí mesmo. O que ela tinha de fazer e essa missão têm uma ligação.
Já a Fantin, depois daquela conversa na estalagem, dá para perceber que elas possuem vivências parecidas em campos de batalha, ainda que as experiências não tenham sido as mesmas. Mesmo sendo uma ordenada, ela não se ilude com a ideia de que sempre se pode evitar matar, afinal, existem situações e situações.
Beijos!
Olá Tattah… a historia tá ficando cade vez melhor, e não se preocupe, não tá ficando confusa. To adorando as nuances da nossa Virnan, tó louca aguardando o decifrar da sua vida, tenho certeza que viram muito mais surpresas. Ah e também não vejo a hora da descoberta de que a Marie é a Analyn. Não dá pra perder mais nenhum capitulo.
Que bom que não está ficando confuso, Sophie! Como falei em outro momento, às vezes me parece muito simples, mas posso estar percorrendo caminhos estranhos à vocês.
Valeu pela companhia e, não se preocupe, estamos chegando perto dessas revelações.
Beijos
Gente, a coisa tá ficando cada vez melhor!
Tattah, você arrasa!
Obrigada mesmo!
Valeu, Naty! 😉