A Ordem: O círculo das armas

7. O Guerreiro dos Mares

Capítulo VI — O Guerreiro dos Mares
 

*

 

O comandante Brenun lançou um sorriso vitorioso para Loyer e voltou-se para o horizonte, onde um navio cruzava o mar, circundando a costa. Seu sorriso aumentou ao perceber o ódio que dava forma as feições do outro.

— Lá estão eles.

O companheiro se empertigou, apertando firme o corrimão da amurada, mais por ansiedade do que pela raiva de dividir aquela vitória.

Quando Lorde Axen ordenou a captura da princesa de Midiane, enviou os dois dos comandantes em que mais confiava. Loyer seguiu por terra, a fim de emboscar Verne e seus homens e assumir seus lugares para chegarem à Ilha Vitta, onde a Ordem havia construído seu lar. Brenun seguiu por mar, deveria se encarregar do transporte da princesa, diante da certeza absoluta de que sairiam vitoriosos naquela investida.

Ancorou em Machur, uma cidade comercial, que atraía mercadores de todos os reinos do continente. Um lugar onde um navio de guerra axeano não pareceria estranho, já que aquele tipo de embarcação costumava transportar parte do minério que Axen produzia, entre outras coisas.

Machur ficava a meio dia de viagem da Ilha Vitta e, quando Loyer retornou com seus homens, a noite se erguia preguiçosa no firmamento. Brenun não conseguiu esconder a surpresa e a alegria que o tomava pela derrota do outro. Riu e fez piadas, que Loyer obrigou-se a aguentar em silêncio, já que não poderia matar o próprio irmão, embora desejasse muito, naquele momento.

— Eu disse que conseguiríamos! — Brenun cruzou os braços, satisfeito.

— Tire esse sorriso do rosto. Ainda não os alcançamos. — Retrucou.

Formulavam planos para uma nova investida contra a Ordem, quando um mensageiro, um dos homens que Loyer deixou vigiando a movimentação dos ordenados, trouxe novidades que os fizeram traçar nova rota. A princesa havia deixado a ilha em um navio que seguia para Bévis.

— Engana-se, irmão. A princesa já é nossa. Depois que a pegarmos, retornaremos para Vitta e pegaremos a joia do coração. Só deixaremos aquele lugar, quando só houver cinzas.

 

***

 

O Guerreiro dos Mares contornava o continente navegando em águas tranquilas, não muito longe da costa. Como em muitas coisas na Ordem, Virnan achava o nome do navio irônico.

Ela se mantinha de pé, na popa da embarcação capaz de transportar pouco mais de meia centena de ordenados. O navio ficava ancorado ao lado de outros dois, no lado leste da ilha, de onde poderia zarpar direto para águas profundas e longe dos recifes que circundavam aquele pedaço da costa.

Fitava o horizonte com um vinco no meio da testa a denunciar seu desconforto. A noite se aproximava rápido e já tinham entrado nas águas do reino de Bévis, o que exigia extrema cautela para avançarem.

Era o terceiro dia da viagem e a tensão que se instalou entre os ordenados e os midianos era quase palpável. Embora se tratassem com cordialidade e respeito, era inegável que todos andavam pisando em ovos. E a guardiã, cuja língua costumava ser tão afiada quanto a lâmina de uma espada, buscou o isolamento para evitar discussões desnecessárias. Ato que Melina apreciou imensamente, já que Lorde Verne havia sido categórico em rechaçar a presença dela naquele grupo, após ela o ter insultado e declarado seu desagrado por sua presença e os motivos que o levaram até a ilha.

Todavia, a grã-mestra foi enfática ao recordá-lo que a princesa era um membro da Ordem e, portanto, só seguiria viagem se estivesse devidamente protegida e, neste quesito, Virnan era a melhor escolha. Obviamente, a líder não expôs suas recentes descobertas sobre as capacidades dela e deixou que interpretassem sua posição no círculo protetor como a melhor das referências.

Apesar disso, continuava indagando-se se havia tomado a decisão correta, mesmo estando ciente de que, no fim das contas, todos aqueles questionamentos eram irrelevantes. Virnan os seguiria de qualquer forma. Foi só ouvir que Marie havia se voluntariado para aquela missão, que logo se prontificou a ir junto, ainda que tivesse confessado a anciã seu descontentamento por ter, mais uma vez, adiado sua partida.

Virnan chutou a madeira da amurada e cerrou os punhos sobre o corrimão. Ao seu lado, Marie e Fantin permaneciam absortas em seus próprios pensamentos, vez ou outra, trocando olhares cúmplices.

Cruzou os braços com uma carranca e voltou-se para as outras duas mulheres na embarcação. Melina dividia um momento de silêncio com a princesa Analyn, cuja serenidade diante do destino que se apresentava, chegava a ser inquietante.

A princesa era uma mulher franzina, com belos olhos castanhos e pele bronzeada; vestia uma túnica azul marinho, destinada aos mestres da Ordem, onde era conhecida como Alina. Durante os vinte anos em que viveu entre os muros do castelo, ninguém jamais desconfiou de sua real identidade e houve uma grande comoção quando se revelou, um pouco antes de partirem.

— Pelos deuses, mulher! Jamais imaginei que diria isso, mas o seu mau-humor está me incomodando mais que o seu estado normal de espírito! — Fantin reclamou. — O que vai em seus pensamentos para que aquele irritante sorriso irônico se esconda? Seu semblante anda mais nublado do que um dia tempestuoso.

Virnan ajustou a faixa na testa e apertou a madeira da amurada com força. Sua irritação era crescente.

— Essa missão não me agrada — rosnou, fazendo a mestra arquear as sobrancelhas, diante fervor com que falou.

Pousou o olhar em Marie e um sentimento ingrato, que não lhe visitava havia muito tempo, revolveu-se em seu interior: angústia. A verdade era que a presença de Marie ali não lhe agradava. Apesar de conhecer as capacidades da amiga e a de todos os ordenados que lhe acompanhariam, temia por sua segurança. Ir até a Cidade dos Eleitos não era como ir a um campo de batalha ou tratar doentes da febre vermelha nas fontes cinzas de Primian, ambas situações extremas e perigosas. O fato de estarem em companhia da última eleita viva, jogava sobre eles um manto de incertezas, banhado em sangue.

Não era apenas o exército de Axen que buscava capturar a princesa. Todo caçador de recompensas, malfeitor e interesseiro, estaria à procura deles. Era sabido que o Lorde de Axen ofereceu três vezes o peso da princesa em joias e ouro para quem a capturasse. Além deles, existiam os nobres de outros reinos, interessados em cair em suas graças, oferecendo o prêmio que tanto buscava.

Por isso, optaram por seguir parte do caminho de navio, que os manteria longe de problemas por um tempo.

Fez um muxoxo, tentando afastar os maus pensamentos que a tomavam. Embarcou em uma missão que não queria e, ainda por cima, abominava. Contudo, também tinha de admitir que ela vinha a calhar e adiantava seus próprios planos.

— Sente-se melhor? — Fantin sorriu. A beleza gritante, da qual era dona, parecia opaca naqueles dias. Olheiras escuras adornavam seus olhos e aparentava ter perdido peso. O mesmo se passava com Analyn. — Isso estava atravessado em sua garganta há três dias. Foi bom colocar para fora, não?

Deu uma tapinha nas costas dela, fazendo-a arquear uma sobrancelha. A mestra também estava agindo estranho. Andava muito calada e gentil, duas coisas que jamais foi.

— Ah! Não me olhe assim. Raramente concordamos em algo, mas essa missão também não me agrada. — Fantin confessou, buscando o apoio de Marie. Por sua vez, esta limitou-se a inclinar a cabeça, concordando. — Alimentar aquela fera com a alma de uma ordenada… — cerrou os punhos. — É repulsivo!

Alimentá-lo com qualquer alma é repulsivo. Marie complementou. Mas o mundo é como é. Não podemos fazer nada quanto a isso. Ir adiante é uma escolha da Alina…

Agitou as mãos, como se apagasse o nome e corrigiu-se:

Analyn. Não temos que julgá-la.

Fantin fez um barulhinho, como se estivesse engasgada e apertou os olhos, revelando sua raiva.

— Não me venha com essa conversa fiada! Fosse eu, estaria enlouquecendo de medo e angústia.

Passou a mão nos cabelos dourados, em um gesto brusco e Marie trocou o peso entre as pernas, não era a primeira vez que tinham aquela conversa e, cada vez, ficava mais difícil dialogar de forma serena com a companheira do círculo da sabedoria.

Ela só quer o bem para o seu povo. Não apenas ele. Há muito, entendeu que sua morte é por um bem maior. Analisando a situação, não é isso que a Ordem sempre buscou?

— Deuses! — Fantin ergueu as mãos, exasperada. — Não me lembro da frase “juro ser estúpida e me oferecerei para ser comida de dragão”, quando fiz o meu juramento!

Marie estalou os lábios, irritada. Contudo, preferiu não retrucar, afinal seria um grande desperdício de energia.

— Continue tentando se convencer de que está tudo bem, porque comigo não está dando certo. Jamais aceitaria tal destino, sem antes procurar outra solução!

Pela primeira vez, em todos os anos de convivência, Virnan ofereceu um olhar de respeitosa admiração para Fantin. A opinião dela encaixava perfeitamente na sua.

— Tudo o que puder imaginar, já foi feito antes — Lorde Verne se aproximou.

Ele andava pelo convés, lançando olhares discretos para a princesa, enquanto fingia prestar atenção na conversa de Fenris. Desde que se reencontraram, a ex-prometida procurava se manter afastada dele. Sorria e o cumprimentava, mas o diálogo não avançava e sentia-se atormentado pela frieza com a qual era tratado.

Mal se dera conta de que Fenris o conduzia em direção às três mulheres. O cavaleiro havia lhe confessado o fascínio pela guardiã Virnan, desde que a vira lutando contra comandante de Axen na praia. Completamente ciente de sua beleza física, o rapaz era um conquistador e havia decidido que ela seria sua nova vítima, mesmo o badir tendo-o prevenido de que mulheres ordenadas não se deixavam envolver por beleza, charme, galanteios e títulos, como as que ele conhecia nas tavernas.

Enquanto se aproximavam, ouviu parte das palavras de Fantin, principalmente, a última frase. Fitou cada uma, demorando-se mais em Virnan e Marie.

— Acha que não tentaram… — travou o maxilar. Na verdade, “ele” havia tentado. — Acha que não buscaram encontrar uma solução?

Estava voltado para Marie, mirando o horizonte além dela, onde um navio tomava forma.

— Durante todos esses séculos, a cada eleita que perdia a vida para aquele monstro, sábios, reis, lordes e tantos outros, buscaram um meio de impedir o cavaleiro e o dragão. Nada funcionou. — Seu rosto se contorceu de raiva.

— Aquele desgraçado é poderoso demais. — Fenris concluiu.

 

***

 

Brenun ordenou aos homens que se preparassem para a abordagem. Em poucos instantes, lanceiros e arqueiros tomaram posições nas laterais do navio, que se aproximava rápido da embarcação da Ordem, já que estavam a favor do vento.

— Prepare-se, irmão, a hora da sua vingança está chegando.

Loyer deslizou uma mão pelo abdómen, parando sobre o local exato onde a guardiã o atingiu pela última vez. Fazia uma promessa silenciosa de causar muita dor a ela, antes de ceifar sua vida.

 

***

 

A risada de Virnan causou um sobressalto neles.

— Qual a graça? — Fantin, indagou.

— Se ele é tão poderoso, por que ficou sem o seu sacrifício, há cinquenta anos? — Mirou Melina que, naquele momento, conversava com Irmão Jonis, o capitão do navio. A grã-mestra ergueu o olhar até encontrar o seu, como se percebesse que falavam dela.

Verne limpou a garganta e escondeu as mãos nas costas, enquanto ela concluía:

— Ela era de Midiane, não é mesmo? Como a nossa grã-mestra.

O príncipe ergueu o queixo, encarando-a. Algo naquela mulher o deixava apreensivo e, para seu desprazer, tanto Melina quanto Analyn faziam questão de tê-la por perto.

— Tenho certeza de que a grã-mestra não lhe contou isso. — Fantin declarou e Marie arqueou uma sobrancelha, escorando-se na amurada. Às vezes, se esquecia do quanto a amiga era observadora e sagaz, mas não se surpreendia mais com isso, diferentemente de Fantin, que sempre buscou ficar o menos possível na companhia dela.

De fato, somente o círculo de mestres conhecia a verdadeira história de Melina. Não que ela escondesse sua nobreza, mas não costumava falar de seu passado com outros. Mas, quando o fazia, as tristezas que carregava no peito se tornavam quase palpáveis para seus ouvintes.

Virnan sorriu de lado, sem perder Verne de vista.

— Não sou estúpida. A princesa é sobrinha dela e, pelo o que sei, o rei de Midiane não tem irmãos, excetuando aquela que foi eleita há cinquenta anos. Estou enganada, Lorde?

— Não. A princesa procurou o auxílio da grã-mestra, porque ela era a única pessoa que poderia lhe oferecer o conforto que necessitava. — Voltou a fitar o horizonte. O navio que vira antes, se aproximava rápido.

Marie seguiu o olhar dele, atenta ao som da sua respiração pesada. Estava mais que claro que ele ainda amava a princesa que um dia fora sua prometida. Assistir o reflexo daquele sentimento nos olhos dele, lhe causava um profundo desconforto. Era a mesma sensação em relação a Virnan. Afinal, os dois desejavam algo que não era destinado a eles.

Gesticulou:

A história diz que um guerreiro, vestido de negro, sequestrou a princesa de Midiane, que seria dada em sacrifício. Ele teria lutado com o cavaleiro e, aparentemente, o vencido. Em consequência por ter sido privado de sua “presa”, o Cavaleiro Vermelho destruiu o reino mais próximo, Caeles. Então, voltou a se abrigar em sua caverna.

Fantin cruzou os braços, complementando:

— A história é longa e cheia de “buracos”. Ninguém sabe, exatamente, o que houve. Mas depois que Caeles foi destruído, os reinos restantes acusaram Midiane de ter tentado evitar a morte da princesa, causando consequências devastadoras. Houve uma guerra e a Ordem teve de interferir para que não se destruíssem de vez.

— Melina jamais voltou a pisar nas terras de Midiane. Em vez disso, ela decidiu passar sua vida ajudando outros, já que carregava sobre os ombros a morte de milhares. — Verne concluiu, desconfortável.

O vento marítimo bagunçou os cabelos de Marie, arrastando-os da segurança da trança que costumava usar, enquanto o badir a observava, demoradamente. Virnan comentou:

— Todos parecem conhecer a história, menos eu.

A grã-mestra gosta de conversar comigo e Fantin e, às vezes, nos fala de seu passado. Marie explicou, com semblante fechado.

 

***

 

Brenun fez um gesto discreto para o homem que estava ao lado de Loyer. Era idoso e as várias cicatrizes sobre a pele, revelavam que o campo de batalha fora sua casa por muito tempo. Ele estendeu os braços, apontando para o Guerreiro dos Mares e sussurrou algo ininteligível, então, o ar frio o envolveu.

 

***

 

O badir coçou o queixo quadrado, que lhe conferia certo charme, junto com os olhos, impressionantemente, negros. Descansou a mão no cabo da espada e a outra na cintura, fazendo uma careta para o horizonte. Não conseguia visualizar a bandeira que tremulava no mastro do navio que os seguia, já que ainda estava muito distante. Notou que a guardiã também o observava com um vinco a se formar no meio da testa.

— Tudo poderia ser diferente, se Axen não tivesse interferido… — ele comentou. — Agora, só temos um caminho a seguir. — Empertigou-se, novamente desconfortável. — Se a princesa se recusar a assumir o seu papel como eleita, é provável que Midiane e os outros reinos ardam em chamas como ocorreu a Caeles.

Outra vez, Virnan riu. Ela brincava, alisando o cabo do punhal na cintura.

— Há sempre outro caminho, Badir.

— Não para isso — rosnou ele.

— Há sempre outro caminho — ela tornou a repetir, séria. — Se não consegue encontra-lo, faça um!

O Lorde ameaçou responder, mas Fantin comentou, fazendo um muxoxo:

— Essa conversa está me dando dor de cabeça! Que tal mudarmos de assunto? Já basta a tenção dessa viagem. Ficar pensando no que irá acontecer no fim do caminho, não irá nos ajudar em nada.

Era uma clara tentativa de abafar a fúria que se desenhava no rosto do badir. Virnan deu de ombros, retirando os bastões da cintura. Por um momento, Verne pensou que fossem lutar, mas ela abriu um sorriso jovial e se voltou para o mar, dizendo:

— Preparem-se. A parte tranquila da viagem acabou.

Algo invisível agitava a superfície da água, percorrendo-a velozmente. Assim que terminou de falar, o navio parou, abruptamente, lançando todos no chão do convés.

— Mas que porcaria foi essa? — Fantin sentou com a mão na cabeça. Um filete de sangue escorria dentre os cabelos dourados até alcançar a testa. Aceitou a mão que Fenris ofereceu para ajudá-la a se erguer, enquanto Virnan fazia o mesmo para Marie, certificando-se, com uma olhada rápida, que ela estava ilesa.

As três mulheres caminharam até o local onde estavam, segundos antes. Havia uma fina camada de gelo que se adensava até formar uma barreira, circundando a embarcação e os impedindo de avançar. O gelo ficava mais sólido a cada segundo.

— De onde isso veio? — Melina indagou, se aproximando. Ela cambaleou por alguns passos e a princesa a apoiou.

A mão de Marie se agitou, apontando para o navio, ainda distante.

— Mas até alguns minutos atrás, estávamos navegando em águas quentes. O sol ainda está forte e o calor é intenso! — O badir se fez ouvir, esfregando a túnica, como se Virnan o tivesse sujado ao cair por cima dele. Inclinou-se para ver melhor o gelo, sem esconder a raiva que o tomava.

Virnan assoviou baixinho, enquanto o vento agitava seus cabelos. O semblante passando por uma transformação, indo da surpresa à ironia e, por fim, uma frieza equivalente à do gelo que os cercava.

— Por essa, não esperava. Parece que o comandante Loyer encontrou alguns amigos interessantes.

O vento soprou mais forte, enquanto ela voltava a guardar os bastões na cintura.

— É impossível manipular magia dessa distância! — Melina observou, incapaz de esconder a surpresa.

— Não necessariamente. — Analyn retrucou.

A princesa possuía uma voz suave e controlada, por vezes, um pouco musical. Chegou mais perto, deslizando a mão sobre o corte no cotovelo até que restasse uma cicatriz quase invisível.

— Ele deve estar usando um amuleto para amplificar a magia. Embora, não consiga imaginar onde ele poderia ter conseguido algo assim. É raro, muito raro. Dizem que o conhecimento para fazer tais objetos se perdeu. Contudo, é a explicação mais lógica para isso.

Enquanto ela falava, círculos dourados surgiram em volta dos pulsos de Fantin, como se fossem argolas gigantes. Ela apontou para o gelo e socou o ar, repetiu o movimento algumas vezes, mas tudo o que conseguiu foi arrancar algumas lascas dele. Melina tentou derreter o gelo, mas só algumas gotas se desprenderam dele.

— É inútil — Analyn declarou.

— Inferno! — Verne empunhou a espada. O objeto seria inútil quanto àquela magia, mas sentia-se mais confortável com o peso e frieza do metal. Foi imitado por Fenris e os demais homens sob seu comando. — Alguma chance de conseguirmos sair desse gelo antes que cheguem aqui?

A princesa soprou o ar, abraçando-se.

— Não mesmo — respondeu. — Se estiver certa, como acredito que estou, quem manipula essa magia está usando um amplificador e se encontra muito longe do nosso alcance para o atacarmos, portanto não temos como desfazê-la em um tempo hábil para a fuga. Nem tenho certeza se é possível desfazê-la. Mas, neste caso, meu conhecimento é limitado. A mestra Marie pode nos responder com mais precisão.

Voltaram-se para a mulher em questão. Ela não tinha desgrudado os olhos do gelo até ouvir seu nome. Voltou-se para eles.

É possível desfazer, mas não enquanto o mago que a invocou continuar alimentando-a.

Ao longe, remos foram projetados para fora do navio de Axen e iniciaram seu trabalho, aumentando a velocidade dele.

— Parece que não temos escolha a não ser lutar. — Melina concluiu com pesar.

— Aquilo é um navio de guerra axeano, não temos a menor chance — Fenris decretou.

— Alguma coisa a dizer, guardiã? Afinal, você deveria nos “proteger”. — Verne indagou para Virnan, que circundava seus homens.

Ela se aproximou de um deles e lhe tomou o arco. Deslizou a mão pela corda, testando-a, enquanto retornava para a amurada.

— Um confronto direto não é uma boa ideia. Somos poucos e, com certeza, estamos em desvantagem, se houver mesmo um amuleto envolvido.

Ela sabia que havia. A princesa tinha deduzido corretamente. Sentia dois tipos de magia emanando da embarcação axeana. Elas se misturavam, formando uma terceira de alcance assombroso. Entretanto, uma delas lhe era conhecida e se o dono dela era quem imaginava, havia algo de muito errado naquilo tudo.

Estalou os lábios. Estava mesmo surpresa por se encontrarem em tal situação. Pelo o que recordava, a magia do povo de Axen não era poderosa e nem benquista nas fileiras de seu exército. Aparentemente, seu novo lorde tinha uma visão diferente.

Inalou uma grande quantidade de ar e a soltou devagar. Não havia outro jeito. Encaixou uma flecha, dizendo:

— Vou precisar de você, Fantin. E de você, Grã-mestra. Podem me emprestar um pouco da sua magia?

As duas mulheres se entreolharam, confusas, e ela agastou-se com a demora da resposta.

— Não temos o dia todo! Se querem ter uma chance de sairmos daqui, antes que cheguem, me deem o que peço.

Olhou para Marie e ela se aproximou, com os lábios comprimidos. Era loucura.

Não é uma boa ideia. Nunca fizemos isso. Posso acabar lhe machucando. Protestou a mestra.

— Não temos muitas opções, no momento. — A amiga retrucou.

Apontou para a madeira do convés, onde uma fina camada de gelo se formava. O ar à sua volta havia se tornado mais frio, formando pequenas nuvens quando respiravam. Era certo que, em alguns minutos, a temperatura chegaria a um nível crítico e eles não teriam capacidade de reação quando fossem abordados.

A mestra engoliu em seco.

Nunca absorvi magia de duas pessoas ao mesmo tempo. É perigoso demais!

— Já é uma situação perigosa. Eles estão se aproximando, mas ainda estão longe demais para que eu consiga mirar e atirar com precisão.

Melina se aproximou da mestra e pousou a mão no braço dela, suavemente. Compreendia o intento da guardiã. Ela possuía a habilidade, mas não a magia. Necessitava aguçar os sentidos, com um tipo de magia que a grã-mestra possuía, enquanto Fantin poderia fornecer mais força à sua flecha.

Também entendia o medo de Marie. Seu dom era raro e perigoso, se não conseguisse dosar a entrada e saída de magia de seu corpo, poderia matar as três.

— Vamos ajudá-la — disse, mas a mestra permaneceu indecisa até que Fantin lhe deu uma tapinha nas costas, incentivando-a. Não tinham mesmo opção e discutir desperdiçava um tempo precioso.

Tomaram suas posições. Marie pousou a mão nas costas da amiga, enquanto Fantin e Melina colocaram suas mãos nos ombros dela.

— Não o mate. — A grã-mestra pediu à guardiã, que arqueou um dos cantos da boca, irônica.

Ela inspirou fundo, fazendo um gesto para Marie, que iniciou o processo de transferência com mãos trêmulas. O medo se enraizava no peito, tomando conta de sua razão por alguns instantes.

— Está tudo bem, Marie. Você não vai me machucar — a amiga lhe sorriu largo. Sentiu o corpo dela vibrar, canalizando a pouca magia que possuía para aumentar sua resistência.

Marie fechou os olhos, não precisava deles para ver a magia estendendo-se pelo seu corpo, tecendo uma camada de proteção. Era a primeira vez que a tocava durante esse processo e não pôde deixar de achá-lo bonito e sentir-se orgulhosa, graças a perfeição com a qual o fazia.

Quando chegou à Ordem, Virnan mal podia concentrá-la em um ponto. O que fazia, naquele momento, era o resultado de um árduo treinamento. Mesmo assim, tinha a impressão de que havia algo errado naquilo. No entanto, lhe devolveu o sorriso e dedicou-se à sua tarefa.

A guardiã mantinha a flecha apontada para o navio. Ela podia enxergá-lo com perfeição, reconhecia o comandante Loyer na proa, ao lado de dois homens. Entretanto, não podia mirar com a precisão necessária. Quando a magia de Melina fluiu por seu corpo, a usou para aguçar os sentidos.

Ouvia as respirações ansiosas dos companheiros, seus corações batendo forte pela ansiedade e medo. Sentiu o vento lhe acariciar a pele, soube a velocidade que percorria e o quanto poderia interferir em seu disparo. Por fim, olhou para o homem à direita de Loyer. Ele mantinha os braços erguidos à frente do corpo, suor lhe escorria pela testa, os lábios apertados. A guardiã focalizou o amuleto no peito dele, aumentando a pressão em volta do arco ao perceber do que se tratava. Um grito de ódio ficou preso em sua garganta e Marie captou sua instabilidade quando ela soltou

***

 

Brenun sorria largo.

— Eles são nossos — decretou.

O irmão fez uma careta.

— Já disse para não subestimar a Ordem.

Ele arqueou uma sobrancelha, descrente.

— Ora, irmão, são apenas curandeiros. Só porquê teve o azar de cruzar com uma guardiã que sabe usar o corpo como arma, não significa que os outros sejam iguais. Além disso, quando abordarmos o navio, estarão impossibilitados de nos oferecer resistência, graças a magia de Anton. — Olhou para o homem, que mantinha-se concentrado.

Então, o viu ser jogado para trás quando uma flecha o atingiu. Por alguns instantes, o fitou emudecido, enquanto Loyer se aproximava. Anton gemeu, deslizando a mão até o peito e notando que a flecha não o penetrou. Loyer a pegou e entregou ao irmão.

— Falei para não os subestimar.

Sangue escorreu para o convés, pingava do frasco que o mago usava como amuleto para amplificar sua magia. Havia sido um tiro certeiro.

 

***

 

O efeito foi imediato. O gelo parou de avançar sobre o convés e voltaram a sentir o calor do sol. Marie fez questão de se afastar, mas Virnan pegou outra flecha, dizendo:

— Ainda não. Preciso de um pouco mais!

— O que tem em mente? — Fantin perguntou.

— Só me deem um pouco mais. Posso prendê-los por algum tempo, mas depois disso, não poderei ajudar muito. Então, escapar estará nas mãos de vocês.

As pernas dela fraquejaram, mas manteve-se de pé. Havia muito tempo que não sentia tanta energia fluir pelo corpo e apesar de ter aumentado sua resistência magicamente, não poderia se prolongar muito no uso da magia alheia. Marie lançou-lhe um olhar preocupado, prestes a se recusar, mas a grã-mestra lhe deu um aperto leve no ombro.

— Só mais um pouco — ela disse.

Virnan atirou a segunda flecha no mar. Fez o mesmo com as duas seguintes, em pontos diferentes, formando assim, um triângulo. Instantes depois, o navio axeano passou no centro dele e uma coluna de água se elevou, circundando-o.

— Não posso acreditar! — Analyn deixou escapar. — Nunca vi uma invocação assim!

A guardiã largou o arco e apoiou-se na amurada para manter-se de pé. Marie tentou apoiá-la, mas foi repelida.

— Não! Eu estou bem. Livre-se do gelo e tire-nos daqui, a barreira não vai durar muito. — Voltou-se para Irmão Jonis. — Não estamos longe do cinturão de Bevis. Nosso navio é leve e pequeno, comparado ao deles. Não conseguirão nos seguir até lá e, se tivermos sorte, vão acabar afundando!

O homem inclinou a cabeça e correu para o leme.

— É suicídio! — Verne soltou, compreendendo o plano. — Mas pode dar certo.

Voltou-se para os homens sob seu comando.

— Preparem-se para lutar.

Marie cerrou os olhos, novamente. O gelo começou a se desfazer, tomando a forma de névoa e desaparecendo ao entrar em contato com ela, após ser arrastada por uma corrente de ar que circundava a mestra.

Estavam livres.

As velas inflaram com o vento forte e começaram a se afastar dos inimigos. Conseguiram colocar algumas centenas de metros entre as duas embarcações, antes que a magia que a guardiã invocou começasse a diminuir. Mesmo assim, não estavam distantes o suficiente e assim que se viram livres, os axeanos voltaram a pôr os remos em funcionamento, avançando rápido em sua direção.

Virnan deixou-se escorregar até o piso do convés. Marie ajoelhou-se ao seu lado.

Você está bem?

— Nunca estive melhor! — Brincou, mas a exaustão era mais que evidente nas mãos trêmulas e respiração entrecortada.

Poderia ter matado você!

Seus gestos eram duros e revoltados.

Nunca mais me obrigue a fazer isso! Nunca mais!

Recebeu um sorriso como resposta. A guardiã baixou o olhar para as mãos. Apesar do desgaste, havia sido muito bom ter toda aquela magia percorrendo seu corpo. Por alguns instantes, sentiu-se a mulher que um dia fora.

— Estão perto! — Alguém gritou.

— Peguem os escudos! — Fenris berrou de volta.

Estavam perto o suficiente para que as flechas axeanas os alcançassem e, instantes depois, dezenas de setas cruzaram o ar. Fenris se agachou ao lado delas, protegendo-as. Um gemido lhe escapou, quando uma flecha atravessou o metal do escudo e se alojou em seu braço. Ele quebrou a ponta e a retirou, mordendo os lábios de dor.

Ali perto, um dos soldados agonizava. Fantin tentou chegar até o homem, mas outra saraivada de flechas a impediu e pôs fim ao sofrimento dele. Os axeanos estavam mais perto, agora, e lanças rasgaram o ar, trazendo gritos de agonia e mortes no Guerreiro dos Mares, que se mantinha firme em seu curso. O cinturão de Bevis se agigantava à medida que aproximavam dele. Era um conjunto de pedras grandes e afiadas que se espalhavam próximo à costa daquele reino, cujo comércio marítimo era quase inexistente graças a impossibilidade da aproximação de grandes navios.

Verne deu a ordem e seus homens revidaram o ataque, causando poucos danos ao navio inimigo. Os axeanos se afastaram por um momento, então traçaram curso para interceptá-los com o esporão da proa, que se projetava acima da linha da água, reforçado por placas e uma ponta metálica.

— Isso não é nada bom. — Fenris constatou ao perceber a manobra.

— Se nos atingirem, irão nos partir ao meio — Verne gritou, erguendo o escudo para se proteger.

Virnam segurou o braço de Marie e sorriu.

— Acho que está na hora de devolver o gelo! — Piscou para ela.

A mestra entendeu o recado e se pôs de pé. Virnan tomou o escudo de Fenris e se colocou na frente dela, que invocava a magia que desfez, minutos antes. Gelo se formou na superfície da água, crescendo rápido até se tornar tão sólido quanto as rochas das quais se aproximavam. Sem tempo para mudar a rota, o navio axeano trombou com ele. O esporão o rompeu facilmente, mas o obstáculo lhe causou danos no casco e reduziu a velocidade drasticamente, permitindo que O Guerreiro dos Mares alcançasse o Cinturão de Bevis, onde não podia ser seguido.

A guardiã escorregou para o chão, novamente. Apertou os olhos, sorrindo.

— Até que foi divertido!

 

— § —



Notas:



O que achou deste história?

13 Respostas para 7. O Guerreiro dos Mares

  1. Nossa cada capítulo fica mais divertido Tattah e emocionante, quero só ver hora que Virnan descobrir quem é verdade eleita isso é se já não sabe. Muito legal ler sua história. Abraços……..

  2. Maneiríssimo, Táttah!
    Agora posso apreciar as histórias e a sua está na lista de ansiedade semanal. rsrs
    Bom, o que me atiçou a curiosidade foi o fato da Virnan saber que tipo de amuleto era aquele que o cabra mago do navio Axeano tinha. Fora a emoção da luta e como a magia ocorre para os ordenados.
    Devo dizer que quem é uma maga da literatura é você, Táttah!
    Um beijão e tô na ansiedade aqui.
    PS.: Agora sou a leitora que pede mais! rsrsrs Bora postar outro capítulo! rsrs

    • Kkkkkkkkk…

      Adoro causar ansiedade! Kkkk… Essa é das boas!

      E adoro ter você me acompanhando e sempre me ajudando, né? rs. Bom… Quanto ao amuleto, não se aperreie, vou explicar um pouco mais adiante, mas já adianto que as nossas ordenadas não vão gostar nada de saber sobre ele.

      Cê anda caprichando nos elogios, meu ego vai ficar mal acostumado. rs… Brinks!

      Beijão, Mestra!

  3. Oi, Tattah!
    Confesso que estava adiando começar a leitura, Pq sabia que ficaria exatamente assim… Ansiosa por mais.
    Estou amando. Sou completamente apaixonada por ficção e fantasia. Suas personagens são complexas, e esse mistério que gira em torno delas, fascinante.
    Amei o mundo criado por vc, e sei que muito mais esta por vir. Obrigada por mais uma história maravilhosa. Já estão sentindo falta de “ler” vc.
    Parabéns! Vc é Foda!
    Beijos

    • Oi, Bibiana!

      Outra vez, me agraciando com a sua presença, sempre muito querida. Se você é apaixonada, imagine eu. rs… Amo ficção e fantasia! E tô para lá de feliz por saber que você está curtindo.

      Com certeza, há muito mais por vir e a revelar.

      Beijão enorme pra ti!

      Até!

  4. Uia!!! Que capítulo!
    Sem palavras! A coisa tá começando a esquentar!
    Curtindo muito a história!
    Valeu!

    • A coisa ainda vai esquentar muito, Naty. Aos pouquinhos as explicações vão chegando e os problemas também.

      Curtindo muito a sua companhia!

      Beijão!

    • Arrancar um “uau” da Isinha não é fácil! É um baita de um elogio! rs…

      Beijo, minha linda!

    • Demorei um pouquinho para postar, mas planejo compensar os atrasos em breve, Pollyana. Obrigada pela companhia, visse?

      Beijão!

  5. Tattaaahhh, tô na moita mas tô acompanhando e tô amando! Já agarrei amor por Virnan! E um ódio louco por Loyer! hahaha

    Até o próximo! Bjão!

    • Preguicella, lindona!

      Valeu pela companhia. Rs… Eu ri pelo “ódio louco” [Haha, muito bom!]. É, o sujeito é persistente, mas as meninas deram um jeitinho nele, por enquanto. rs…

      Beijão!

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