A Ordem: O círculo das armas

4. A Hospitalidade

 

 

*

 

— Achei que teria mais tempo.

Melina balançou a cabeça concordando com a mulher ao seu lado. Seus lábios se contraíram, expondo o pesar que a tomava. Desviou o olhar para a praia, onde Virnan conversava com os recém-chegados, e disse:

— Os deuses têm seus próprios planos e, na maioria das vezes, nossa vontade não interessa a eles.

A mulher cruzou os braços. Respingos de chuva e vento invadiam o quarto estreito e humilde, através da janela que compartilhavam.

— Tenho medo — revelou.

Melina se voltou para ela, novamente. Também se sentia da mesma forma, contudo tentava aparentar ser tão sólida quanto as rochas que compunham o castelo que habitavam. Forçou um sorriso.

— É natural — a grã-mestra disse em meio a um sussurro.

— A senhora já esteve diante dele. Como foi? — Deu-se conta que passou quase vinte anos ao lado dela e jamais lhe ocorreu aquela pergunta.

Melina inspirou. Havia erguido uma barreira para bloquear a lembrança a qual se referia, mas a sensação jamais a abandonou.

— Foi aterrador. — Confessou.

Analyn inclinou a cabeça, esforçando-se para manter os ombros eretos e aceitou, com gratidão, o braço que a idosa deslizou em volta da sua cintura. Retornou sua atenção para a praia.

— Às vezes, gostaria de ter um pouco da coragem que ela sempre demonstra.

Fixava o olhar em Virnan, deixando claro que era dela que falava.

— Não se iluda. Você é a mulher mais corajosa que já conheci e não há como descrever o que está prestes a fazer por seu povo e este mundo de outra forma.

A luta na praia foi retomada e a grã-mestra concluiu o pensamento:

— Creio que, embora Virnan se mostre valente diante dos perigos que circundam a vida de um ordenado, ela está sempre imersa em medo.

 

 

**

 

 

Virnan jogou o corpo para trás, apoiando-se na espada que Verne havia lhe entregado, e assistiu a lâmina do Comandante Loyer cortar o ar, no exato lugar em que sua cabeça havia estado. Chutou o peito dele, jogando-o para trás.

Loyer cambaleou, buscando o equilíbrio. Arrastou a espada em um golpe transversal, de baixo para cima, mas a guardiã o bloqueou. Ela girou o punho, afastando a lâmina para o lado e chutou uma pequena quantidade de areia molhada que atingiu a face dele. Enquanto o comandante axiano gritava de raiva, Virnan lhe passou um rasteira.

— Trapaceira! — Ele rosnou com a espada dela na garganta.

— Não tanto quanto você, que atacou quando não lhe oferecia qualquer risco. Considero isso como uma forma de equilibrar as coisas. — Sorriu de lado, fazendo-o pensar que aquela era uma guardiã diferente dos que conheceu.

Ela pisava na lâmina da espada dele e a chutou para o lado, deixando-a longe o suficiente para que não pudesse lhe oferecer perigo. Então, atirou a espada de Verne para um dos guardiões que a acompanhavam. Durante a luta, os soldados de Axen permaneceram imóveis, já que os guardiões se mantinham firmes entre eles e seus adversários e, também, pela surpresa de ver seu comandante travar combate com uma mulher e perder facilmente.

Virnan apontou para uma pedra, que marcava o fim da faixa de areia da praia e o início da estrada que levava à muralha do castelo.

— Aquela pedra marca o início do Círculo de Boas-vindas ou, se preferirem, o Círculo da Amizade. Se a cruzarem, significa que querem entrar no castelo em paz. Deverão deixar suas armas nos portões e serão recebidos como velhos e queridos amigos, dividirão de nosso alimento e do fogo que nos aquece.

— E se não quisermos sua hospitalidade? — Rugiu o comandante.

A moça fitou a chegada, à praia, dos ocupantes do barco que virou. Eles se largaram na areia, completamente exaustos por lutarem contra as forças da natureza. Estava certa de que, pelo menos, meia dúzia tinha perdido a vida para a tormenta e o oceano.

Um raio caiu no mar, iluminando o sorriso maldoso que lhe chegou aos lábios.

— É a sua vida e a de seus homens. — Deu de ombros e apontou para os soldados de Midiane. — Venham.

Loyer se pôs de pé, dizendo:

— Então, a Ordem está escolhendo lados, agora?

— A Ordem não tem lados, senhor. Mas os homens de Midiane parecem ser mais espertos que os de Axen e, como optaram por entregar suas armas, quando isso lhes foi solicitado, poderão gozar de nossa hospitalidade.

Cruzou as mãos às costas e começou a andar.

— É só largarem as armas, também. — Recordou.

O comandante deslizou o olhar sobre seus homens. Aparentavam estar desgastados pelo esforço de chegarem ali. Os conhecia, muito bem, para saber que conseguiriam lutar contra um exército inteiro antes de se entregarem ao cansaço. Conteve a vontade de sorrir. Tudo se encaminhava como o planejado.

Ofereceu um leve inclinar de corpo para ela, descansando a mão espalmada sobre o peito em um gesto de paz e humildade.

— Que assim seja. Por esta noite, que haja paz entre nós. — Falou.

Virnan respondeu com um leve arquear de sobrancelhas e um sorrisinho, então continuou seu caminho. Loyer sussurrou, ciente de que o som da tempestade impedia que qualquer um, mesmo próximo, pudesse capitar suas palavras:

— Sorria enquanto pode, guardiã. Quando o dia raiar, o seu castelo estará ardendo em chamas, enquanto retorno para o meu senhor com a eleita e com aquilo que a Ordem protege desde sua criação.

A guardiã interrompeu as passadas por um instante e se voltou para fitá-lo, demoradamente. O soldado acabou por se indagar se a magia da Ordem lhe permitia ouvir tão longe e em meio a todo aquele barulho. Quando reiniciou a caminhada, ele balançou a cabeça com a tolice que se deixou pensar.

Verne se apressou a seguir Virnan com seus homens, enquanto o comandante aguardava as instruções dos guardiões que permaneceram na praia.

— Você não devia tê-los deixado livres, guardiã! — Verne se queixou para ela.

Já se encontravam nos portões do castelo e adentraram no pátio, onde meia-dúzia de guardiões e irmãos esperavam por sua passagem, imersos na curiosidade que os tomava.

— O que o faz pensar que estou interessada em sua opinião, Badir?

O lorde adiantou o passo e parou à frente dela.

— Você não entende, se deixar esses homens passarem a noite aqui, teremos nossas gargantas rasgadas enquanto dormimos!

— Neste caso, é bom permanecer de olhos abertos, Badir!

O empurrou para o lado e avançou por mais uma dezena de metros até a base da escadaria que levava ao salão de entrada do castelo.

— Não vou permitir que você, — olhou para os lados e corrigiu — que vocês, coloquem a vida de Analyn em risco! — Ele bradou, envolvendo o braço dela com a mão. Apertou firme.

Virnan o fitou com evidente desagrado.

— Como você ousa?! — Afastou a mão dele, facilmente.

Verne era quase duas cabeças mais alto que ela, entretanto a jovem guardiã possuía uma presença marcante e a forma como ela o fitou, lhe trouxe uma sensação tão desconfortável quanto a visão de um campo de batalha após um violento embate entre dois exércitos.

— Veio até aqui para levar uma mulher inocente para aquele monstro devorar e ainda tem coragem de dizer que não vai nos permitir pôr a vida dela em risco?! Você é uma piada, Lorde!

Fantin surgiu no alto da escadaria e a guardiã se afastou, concluindo:

— Se a minha vontade imperasse, Badir, vocês já estariam fora desta ilha.

Verne franziu o cenho, perguntando:

— Mas que tipo de ordenada é você?!

Ela respondeu por sobre o ombro:

— Do tipo que não gosta de sacrifícios! — Chegou ao topo da escadaria e deparou-se com o olhar perscrutador da grã-mestra. Passou por ela, dizendo: — Lembra do que conversamos sobre paz?

Esperou que ela confirmasse.

— Pois bem, esses homens não têm nenhuma — Afirmou.

Posicionou-se atrás dela e assistiu a entrada de Verne, Loyer e companhia, quando a grã-mestra os autorizou. Pelos costumes, um hóspede tinha de esperar um convite para entrar na casa do anfitrião. Fazê-lo antes disso era desrespeitoso.

— Grã-mestra Melina — disse o lorde, oferecendo uma reverência breve.

Com evidente desagrado, Loyer repetiu o movimento, após receber um olhar profundo e inquisitivo da idosa. Ela inclinou a cabeça como cumprimento.

— Você já conhece as regras, Lorde Verne.

— Venha em paz e parta em paz — falou ele, exibindo um sorriso cínico, embora tivesse pronunciado as palavras com cuidadoso respeito.

Ela juntou as mãos, escondendo-as em baixo das mangas longas da túnica.

— Mas não foi assim que chegou. — Repreendeu.

O nobre se empertigou, sentindo um sabor amargo no paladar. Havia muito tempo que não se sentia desconfortável diante de uma frase tão simplória.

— Infelizmente, não estava em meu poder decidir isso. Contudo, peço humildes desculpas pelo transtorno e agradeço por sua intervenção.

Ao seu lado, o comandante de Axen riu.

— Como um bom covarde! — Falou.

Divertia-se com o fato de que o lorde não revidaria de forma violenta, já que estavam sujeitos à uma tradição milenar de hospitalidade. Como um príncipe, ele jamais desrespeitaria seus anfitriões, iniciando uma briga sob seu teto. Mas aquela era uma tradição que morria lentamente e ele, Loyer, não se privaria de aproveitar a oportunidade de realizar sua missão, quando foi convidado a entrar naquele castelo de forma tão prestativa.

Afinal, Lorde Axen estava certo.

A Ordem lhes abriria todas as portas que desejassem sem questionamentos, mas descobrir que o badir tinha conseguido chegar na ilha antes dele, o levou a medidas desesperadas e uma pequena mudança nos planos. Contudo, acreditava que isso não afetaria o resultado.

De fato, seria até melhor.

Os guardiões passariam a noite preocupados com possíveis embates entre os dois grupos e se descuidariam das outras alas do castelo, deixando o caminho livre para que conseguisse ir até o Salão dos Mestres. Então, capturaria a eleita e destruiria aquele lugar.

— Mestre Lian cuidará das acomodações dos senhores e seus homens. — Melina preferiu ignorar o comandante. Amanhã, com os ânimos mais calmos, conversaremos sobre os objetivos que os trouxeram até aqui.

O lorde se adiantou.

— Se me permite, senhora, é um erro consentir que esses homens pernoitem entre estas paredes.

— Com medo, Badir? — Loyer provocou, novamente.

— Basta! — Melina alteou a voz. — Nesta ilha não existem lados. Não tomamos partido nas desavenças de outros reinos. Entretanto, oferecemos mediação para o entendimento. Assim como fizemos desde nossa criação.

— Se não tomam partido, por que esconderam a eleita Analyn por vinte anos? — O comandante inquiriu.

A idosa sorriu, diante do murmúrio que se espalhou entre os ordenados presentes. Mestra Fantin calou as vozes com um gesto brusco, mas não escondeu a surpresa que também a tomava.

— Percebo que já não há a necessidade de guardar esse segredo, já que o expôs tão abertamente e Lorde Verne não pareceu incomodado com isso. — Melina observou. — Mesmo assim, este não é o local ideal para esta discussão.

Ela fez um gesto suave e deu de ombros.

— Prefiro me aprofundar nesse assunto após o desjejum de amanhã. Todavia, deixe-me esclarecer os fatos, comandante. Se alguém, mesmo uma nobre marcada para a eleição, deseja passar seus últimos anos seguindo os princípios de nossa irmandade, não serei eu a impedi-la.

Repetiu suas ordens para os presentes e retirou-se, com Fantin em seu encalço.

 

***

 

Verne tomou um longo gole de vinho, satisfeito pela refeição farta e saborosa, após tantos dias na estrada. Não podia ser diferente, a Ordem fazia jus à fama hospitaleira. Mesmo assim, não se sentia seguro sob o mesmo teto que Loyer e seus homens. Depositou o copo sobre a mesa, com ligeiro ruído e passeou o olhar pelo salão de jantar até encontrar o comandante.

Loyer também foi convidado para compartilhar a mesa da grã-mestra, mas recusou com fingido respeito e educação. Ele ria, entretido em uma conversa sussurrada com seus homens. A guardiã que os recebeu na praia não estava à vista naquele momento, mas tinha dado uma volta pelo salão um pouco depois do início do jantar e deixado outros guardiões vigiando o lugar. Ele tomou outro gole de vinho, satisfeito. Pelo menos, a garota era esperta e desconfiada.

O lorde continuou sua inspeção do salão. Vários pares de olhos o miraram de volta, mas nenhum era aquele que desejava e foi encontrar. Além disso, boa parte dos presentes mantinha os capuzes das túnicas sobre a cabeça, dificultando o reconhecimento.

— Ela não está aqui — disse a Grã-mestra, com um sorriso jovial, que ele foi forçado a retribuir. —  Analyn nunca jantou no salão comum, assim como muitos ordenados, que preferem fazê-lo na cozinha.

O conde estalou a língua e fitou os outros ocupantes da mesa. As túnicas brancas eram iguais as dos demais, mas as faixas azuis marinho nas cinturas revelavam que todos eram mestres. Sentavam-se mais afastados dos dois, permitindo-lhes uma ligeira privacidade para que pudessem conversar.

— Ela sabe que estou aqui?

— Com toda a certeza. Vocês chegaram com alarde e não há muito que aconteça nesta ilha sem que todos saibam.

— Então, por que não veio me ver?

Melina apertou os olhos, com ar benevolente.

— Não sei o que se passa no coração dela, mas é provável que tenha optado por passar sua última noite sob esse teto com as pessoas de quem gosta. Não me preocuparia, se fosse o senhor.

— E se ela não quiser ir? — Ele indagou, deixando uma ligeira esperança de que isso acontecesse escapar na voz.

— Vocês foram noivos, se não estou enganada.

O nobre confirmou, comprimindo os lábios. Sabia que ela conhecia, muito bem, a sua história com a princesa, mas decidiu não comentar. Do pouco que conhecia de Melina, sabia que, muitas vezes, ela se utilizava de rodeios para chegar ao cerne do assunto.

— Então, a conheceu bem. Diga-me, acredita que ela deixaria seu povo sofrer para se preservar?

As expressões severas do rosto dele se suavizaram.

— Analyn jamais seria capaz de tamanho egoísmo.

A idosa sorriu, concordando. A princesa era, reconhecidamente, uma das melhores pessoas que conheceu na vida.

— Então, deixe que ela se despeça de seus amigos. Amanhã você a levará de volta a Midiane e, a nós, só restará a saudade e boas lembranças dos anos que passamos juntos.

O conde curvou os ombros.

— Se me permite a sinceridade, grã-mestra. — Ela sorriu, incentivando-o a continuar. — Após vinte anos ao lado dela, a senhora me parece muito tranquila quanto a essa despedida.

Melina inalou profundamente.

— Como disse, Lorde, tive vinte anos ao lado dela e os vivi plenamente, me preparando para esse fatídico momento. Sei o que ela passou, não por termos convivido estes anos, mas porque já estive em seu lugar. Felizmente, não era meu destino pertencer àquela fera e lamento, profundamente, que Analyn não tenha a mesma sorte que eu tive.

O lorde se calou por algum tempo, fitando a bebida rubra que tomava. Sentia-se ainda mais desolado naquele momento, do que se sentiu vinte anos antes, quando esteve ali para deixar Analyn sob os cuidados da Ordem. Tomou o resto do vinho e sentiu-se grato, quando uma das mestras se aproximou, aquela que se chamava Fantin, e tornou a encher sua taça. A mulher o fitou por um instante longo, como se pudesse compreender o peso que carregava sobre os ombros. Por fim, ela inclinou a cabeça e afastou-se para dar atenção aos companheiros.

Ele pigarreou, olhando para as mesas ocupadas pelos homens de Axen.

— Por mim, já estaríamos longe daqui. Essa tempestade foi útil para evitar mortes, mas quando ela se for e estivermos fora desta ilha, Axen fará de tudo para capturar Analyn.

 

— § —

 


Olá, amores!

Quero agradecer pela companhia em mais uma aventura e pedir desculpas no atraso da postagem. Mas, para compensar, adianto o capítulo de Domingo, para que ninguém dispense a folia do carnaval para esperar por ele, rs…

E, aproveitando…

Notei que há muitas leituras na história, mas poucos comentários. Geralmente, isso não me incomoda, mas gostaria muito de saber a opinião de vocês sobre o que estão lendo, principalmente, porque esta aventura é um pouco diferente do que costumo escrever. Então, por favor, desamarrem esses dedinhos. rs… Críticas são sempre bem-vindas, desde que construtivas. 😉

Beijo enorme e um ótimo carnaval à todas! :*



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para 4. A Hospitalidade

  1. Guria, cada cap melhor q o anterior, to amando a estória…
    Só não me deixa na espera pro próximo cap. e não vale falar q adiantou o de domingo de carnaval…
    k k k k

    • Ôxeeee…

      Com certeza que vale! rs…
      Ah, obrigada, lindona! Feliz que esteja gostando!
      Um beijão mega carinhoso pra ti.

      🙂

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