Neste mesmo dia à tarde, quando sentou para comer o lanche que Clarice ofereceu, depois de trabalhar duramente na plantação, Layse confidenciou sorridente:
– Vi uma foto da Valentina hoje.
– Foi mesmo? Gostou de ver a foto?
– Gostei foi muito. Senti uma alegria do tamanho do mundo todo.
– Faço ideia! Eu a vi saindo da missa no sábado. Está tão diferente, mal acreditei. Já é uma mulher.
– Está bonita demais. Nunca pensei que ela seria uma mulher assim tão radiante. Perdi a fala quando vi a foto dela. O doutor falou que é recente.
– Você não a viu quando ela esteve aqui, não é?
– Vi nada. Não estava em casa quando ela foi lá, mas eu a vi no dia seguinte passando de carro com o doutor. O meu coração acelerou feito um doido. Nunca que ele bateu tanto assim.
– Ah.
– Pedi a foto menor e o doutor me deu.
– Está aí com você?
– Está não, guardei de baixo do meu travesseiro.
– Ah, sei! Você continua se saindo bem na escola?
– Continuo sim senhora.
– Não brigou mais com os meninos?
– Só dei um murro certeiro no Rodrigo Luis. Aquele menino é tão chato que merece todos os certeiros que dou nele.
– Foi? Seu murro deve ser bem forte. O que ele fez com você?
– Me chamou de mulher macho.
– Te mandaram para a diretoria?
– Mandaram não porque eu acertei na bochecha. No ano passado soltei um murro no nariz do Valdinho. Aquele filho do dono do supermercado da praça, sabe?
– Sei sim.
– Então, foi nele e saiu tanto sangue do nariz que fui parar na diretoria. Fiquei num aperto só.
– Chamaram os seus pais?
– A diretora disse que se eu fizesse de novo iria chamar a minha mãe. Que todo mundo na escola sabe que meu pai vive numa cadeira de rodas. Essas coisas assim, senhora sabe, eles tem pena dos meus pais por um monte de coisas.
– É verdade.
– Se a diretora chamar a minha mãe lá vai ser lágrima para tudo quanto é lado. Corre o risco até de inundar a escola. Porque a minha mãe é muito chorona. Só teve uma vez que ela foi na escola, e chorou tanto que todo mundo ficou foi pensando que tinha morrido alguém. Por isto que agora eu dou só um soco certeiro na bochecha para não deixar marcas.
– Que esperta que você é. Porque a sua mãe foi chamada na escola da vez que ela chorou?
– Porque eu bati num menino que ficava chamando a filha de dona Augusta de botijão de gás. A Isadora chorava todos os dias. Já não aguentava mais de pena dela.
– Você foi valente a defendendo, essa atitude foi bonita.
– Aprendi a ser valente. Meu pai me ensinou que o mundo é uma selva.
– O mundo é mesmo uma selva.
– Se não é, ainda mais que meus pais sempre falaram para não levar desaforo para casa.
– Seus pais tem toda razão, mas existem alguns momentos que é melhor não dar atenção. Muitas vezes um olhar já deixa a pessoa sem graça. O silêncio e o desprezo desarmam as pessoas más.
– Vou pensar sobre isto hoje à noite.
– Pensa sim, porque você é menina. Eu acho feio os meninos brigando, por isto, imagina uma mocinha como você.
– Num é que é verdade?
– É verdade sim, minha filha. Temos que resolver as coisas com harmonia. Sempre é possível abrandar a ira.
Clarice explicou começando a rir da cara que Layse fez. Pareceu que naquele momento que a ficha caiu e ela compreendeu que era mesmo feio menina brigar.
– Tá bem. A senhora acha que eu lendo cada vez mais, vou aprender a falar melhor?
– Claro que vai, mas por quê? Alguém debochou da sua maneira de falar?
– Debochou não, é que a Valentina não gostava quando eu falava ocê. Nunca que me esqueço disto. Também os meus pais falam assim e foi assim que aprendi a falar. É que tem tanta gente que fala tudo certo. Até a senhora, a Valentina, o doutor e as professoras lá na escola falam certinho e eu falo assim feito jeca.
– Pois é, Layse, mas para falar certo tem que estudar muito. Ler ajuda demais. Você vai ver que com o passar dos anos vai começar a falar melhor. Quando estiver falando se escute, porque para os meus ouvidos, você tem melhorado muito. Pode ter a certeza que “ninguém nasce sabendo.”
– Então tá bom.
Layse pensava de fato à noite. Refletia sobre tudo o que acontecia nos seus dias e muito mais sobre os conselhos de Clarice. Achava que Clarice era a mãe da paciência e gostaria de ser tão paciente quanto ela era. Para Layse ser calma e tranquila como a senhora idosa a ajudaria a ser uma pessoa muito melhor. Decidiu que não daria mais nenhum murro certeiro nos meninos da escola. Depois, tirou a foto de Valentina de baixo do travesseiro e ficou olhando para ela até adormecer.
Os meses passavam e Layse crescia. O corpo quase de mulher, quando chegou aos dezesseis anos estava mais esbelto e ela trabalhava muito mais porque ficou mais forte. Recebia um salário fixo o que a deixava mais estimulada para realizar suas tarefas.
Salomão chegou a casa da família estacionando o carro na porta. Foi Ceição que o atendeu cheia de satisfação. Convidou-o a entrar apertando a mão dele.
– Que bom que veio hoje. A Layse arrumou a casa toda ontem porque sabia que era dia do senhor vir aqui para a consulta semanal.
– Coitadinha. Estou vendo que está tudo arrumado. Como vai você, Ceição?
– Estou bem, doutor Salomão. Não quero me queixar de nada. O Agenor está muito pior naquela cadeira de rodas.
– Ceição, o problema de saúde tanto seu quanto do Agenor é delicado. O seu quadro reumatológico inspira mais cuidados e a sua diabetes, se não for bem cuidada vai acabar afetando a sua visão.
– Vai ser muito triste se isto acontecer.
Ceição desabafou abaixando a cabeça, começando a chorar compulsivamente.
– Não, espera, não chora não. Eu estou aqui para ajudar. Vamos lá ver o Agenor. Vou examiná-lo primeiro.
Salomão examinou o marido, depois Ceição. Após terminar a consulta, o doutor tirou da mala algumas caixas de remédios de amostra grátis.
– Estes remédios são para suavizar na próxima compra dos mesmos. Vamos conversar um pouco lá na sala, por favor?
– Vamos sim.
– Até mais ver, Agenor! Na semana que vem eu volto.
– Até logo! Obrigado!
Agenor respondeu da cama enquanto saíam do quarto.
– Deus lhe pague pelos remédios!
– Amém, Ceição!
Salomão respondeu sentando com ela na sala.
– O senhor nos socorre sempre. É a pessoa mais bondosa que eu conheço.
– Faço o que eu posso. Estou impressionado como a plantação da Clarice vai de vento em polpa. A Layse está fazendo milagres naquele lugar.
– O senhor viu? Tenho tanto orgulho dela. E a Clarice, então? Não se cansa de elogiá-la. Eu acho que a minha filha nasceu para isto. Para lidar com a terra.
– É, tem gente que tem este dom. A situação financeira de vocês até melhorou.
– Melhorou sim. Já estivemos muito piores. Se não fosse a Layse…
– Eu sei, e como sei, se não fosse a Layse, claro! A sua filha tem dezesseis anos, Ceiçao! Fico pensando na carga dela tendo que lidar com essa situação. Tendo que suprir o sustento desta casa, meu Deus! Isto é algo impensável! Em qualquer outra cidade já teriam tirado essa menina da responsabilidade de vocês. O conselho tutelar jamais admitiria isto. E cuidado que este povo denuncia sem dó nem piedade.
– O Agenor já falou disto comigo. Não queríamos que nada disto tivesse acontecido, mas ai de nós se não fosse a nossa filha.
– Ah, Ceição, eu faço ideia!
– Foi Deus que colocou essa menina na nossa vida.
– Pode ter sido, mas, eu não sei como a sua filha aguenta. Trabalha duro na plantação, na casa de ração e ainda estuda.
– Ela é forte e decidida. Foi bom mesmo conversarmos sobre este assunto. A Layse deixou ontem estes quatrocentos reias comigo. A partir de agora ela vai começar a pagar o aluguel desta casa.
– É mesmo? Eu posso continuar pagando sem o menor problema.
– Não carece mais não doutor, muito obrigada mesmo. O senhor não faz ideia como nos ajudou todos estes anos.
– Ajudei porque pude ajudar. Eu me preocupava muito da Layse acabar encontrando alguém que pudesse querer se aproveitar da situação. Com tantos abusos infantis por aí. Depois que ela quietou lá com a Clarice percebi como você ficou mais aliviada. Foi melhor assim.
– Fiquei sim.
– Ela ter parado de carregar as compras foi muito bom também. Lá no mercado, aquelas crianças todas sabem que não podem, mas elas trabalham, porque se não trabalharem não comem. O povo fala, mas também não ajuda. Até recolhem animais abandonados, já as crianças ninguém quer saber.
– O senhor tem razão. O que tem me preocupado são os boatos. O senhor sabe do que estou falando. Sobre a Layse e a Clarice.
– Sei sim, mas não sou homem de dar ouvidos para boatos. Você deveria fazer o mesmo.
– Não é fácil, mas fico calada. Agora me dê notícias da Valentina. Ela está gostando da faculdade?
– Está muito bem e está amando o curso de medicina. Sempre foi muito estudiosa como você sabe. Ela virá passar o próximo feriado em Cielo e vou trazê-la aqui.
– Que boa notícia! É verdade que a Valentina sempre foi estudiosa. Desde novinha queria ser médica.
– E será! Tenho muito orgulho dela. Não vejo a hora de ela vir trabalhar aqui. Não tenho mais a mesma energia de antes e quero reduzir minhas horas de trabalho.
Layse chegou neste momento, mas ao ouvir que estavam falando sobre Valentina, ficou parada na porta escutando sem entrar.
– Entendi. Ela já deve estar até namorando.
– Isto ela não me conta, mas sei que está. Você sabe, não é? Ela tem lá a orientação sexual dela. Fazer o quê? Aceitei como tinha de ser.
– Eu faço votos que Layse se case e me dê muitos netos.
– Isto só o tempo dirá. Preciso te lembrar, que na minha falta a Valentina ajudará vocês como eu tenho feito sempre.
– Sim, só não sei se é certo. Vai sobrecarregar a sua filha com os nossos problemas para quê, doutor? O senhor nem sabe se ela vai querer assumir essa responsabilidade de cuidar da nossa saúde.
– Ela vai assumir sim, por que não o faria? Conversamos sobre isto e está tudo acertado. Ela vai cuidar dos meus pacientes com muito prazer.
– Se o senhor está dizendo.
– Você viu a foto dela que a Layse trouxe?
– Foto da Valentina? Vi não. Deu uma foto dela para a Layse?
– Dei sim, a Layse me pediu. Falou que queria te mostrar.
Ceição estranhou o fato, comentando rapidamente:
– Ela chega em casa tão cansada, coitadinha, deve ter esquecido de me mostrar.
– Tudo bem. Deixa que as coisas vão acabar se ajeitando com o tempo. Agora vou indo.
– Até logo, doutor e obrigada!
– Tem nada que agradecer não. Até breve!
Layse afastou-se andando para não ser vista. Seguiu pela rua caminhando para clarear os pensamentos.
Após mais um dia extenuante na plantação, Layse sentou na cozinha conversando com Clarice enquanto lanchava com ela. Layse tinha cada vez mais ideias novas e como sempre fazia, passou a compartilhar as mesmas com a senhora.
– Por que não cultiva rosas em um daqueles terrenos lá detrás? Essa propriedade é imensa e não justifica não usar todos os espaços para novos cultivos. Aquele pedaço ao lado do muro, eu já plantei mais milhos.
– Porque está plantando tanto milho? Estou achando um exagero.
– Tenho uma ideia que pretendo colocar em pratica futuramente.
– Tudo bem, mas rosas? Você acha? Eu nunca quis mexer com rosas por que ouvi dizer que é muito trabalhoso.
– Se serei eu que irei mexer não vejo porque não começar logo.
Layse respondeu sorridente.
– Estou falando porque observei que as floriculturas que tem na cidade compram rosas de outros municípios.
– É mesmo? Não tinha dado fé disto. Você está se esquecendo das pragas e doenças que costumam ocorrer.
– Não estou não. As pragas e doenças eu posso combatê-las com fungicidas e inseticidas. A senhora pode plantar rosas e até violetas. Tenho lido tudo sobre este assunto. Viu só como as parreiras de uvas estão dando lindos cachos?
– Vi! Minha filha, que coisa mais linda! Você sempre com as suas boas ideias. Que dia que eu pensei que acabaria plantando uvas? Sem contar que qualquer dia nem vou ter mais que ir vender na feira porque as pessoas estão vindo comprar direto aqui em casa.
– Acho que nem deveria mais vender na barraca e muito menos aqui. É cansativo e não precisa mais deste desgaste. A senhora devia mandar consertar aquela camionete que está coberta lá na garagem.
– Consertar para quê?
– Não pensa em ir mais longe? Pode revender parte da produção para os sacolões e até para os supermercados de Cielo e de cidades mais próximas. Tem muitas verduras e frutas que eu adio a colheita um pouco para não perder. Isto nem é bom, temos que colher na hora certa.
– Pensando bem você tem razão.
– A excelente qualidade dos seus cultivos é indiscutível. A senhora vai ver como todos vão querer fechar um contrato sem pensar duas vezes.
– Você está certa. Aliás, as suas ideias tem sido excelentes. Eu é que estou ficando ultrapassada.
– Não está nada. Eu não saberia nada se a senhora não tivesse me ensinado tudo.
– Sim, minha filha, mas essa visão comercial que você tem eu nunca tive. Sem contar que você tem aprendido muito lendo feito uma louca. Eu ficaria para sempre vendendo na barraca. Até a barraca triplicou de tamanho porque você construiu uma maior. Isto é tudo é o seu panorama do negócio. Eu só te acompanho e confesso que te admiro cada dia mais.
– Obrigada!
Clarice ergueu-se decidida falando para Layse.
– Vá à sua casa e se arrume bem bonita. Vamos até à cidade mais próxima comprar as mudas em viveiros agora mesmo. Eu nunca me arrependi por levar as suas ideias adiante. Na volta iremos aos supermercados, sacolões e floriculturas negociar com eles. Ligeira, vá em um pé e volte em outro!
– Já estou indo, mas vai ser preciso contratar dois rapazes para ajudar. E um motorista também para fazer as entregas com a camionete.
– Vou contratar sim e quando você completar dezoito anos eu farei questão de pagar suas aulas na autoescola. Deixa tudo comigo. Vai logo, minha filha!
– Temos também que adquirir calcário. Pode deixar que já fiz uma lista do que teremos de comprar.
– Isto você me lembra na volta e compra tudo que for necessário.
– Pode deixar. Eu não demoro.
– Não demore mesmo.
Continua…
“Pois a natureza não nos faz crescer apenas em forças e tamanho. À medida que este templo se amplia, se amplia dentro dele o espaço reservado pra alma e pra inteligência.”
William Shakespeare.
Vixi, Valentina namorando? Coitada da Layse, vai sofrer horrores…
Mas, certeza que a futura médica vai ficar de cara quando vir o quanto a menina cresceu, mudou, evoluiu.
Olá, Naty!
Pois é verdade, a Valentina vai ficar impressionada quando reencontrar a Layse.
Adoro!
Muito obrigada!