Aléssia

Capítulo LIV

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> LIV <<<

Naquela noite encontrei Alex. Estava aos pés de uma sequoia e parecia me aguardar. Seu rosto estava magro e abatido, um sorriso triste e cansado. Abraçou-me amorosamente, depois me pediu para não fraquejar.
— A Pedra não tem poder sobre mim — eu disse com entusiasmo.
— Por quanto tempo, Alê? Ela está tentando encontrar um espaço, uma fraqueza em você.
— Não encontrará, eu lhe prometo. Eu lhe juro!
Alex acariciou meu rosto com ternura e franziu o cenho.
— Todos temos nossas vulnerabilidades, amor. Qual a sua? Encontre-a antes dela.
— Não é ela, é ele — eu disse com segurança. E contei sobre as visões que tinha em meus sonhos.
Foi Irina quem serviu meu café da manhã. O dia amanheceu inesperadamente chuvoso, e minha serviçal andava silenciosamente, como se temesse despertar minha fúria. Mantinha a cabeça baixa, sem seu jeito solene e altivo. Estaria conformada com seu destino? Ou apenas tentava me ludibriar? Ordenei que limpasse o quarto e cuidasse de minhas coisas. Isso a faria mexer nas anotações sobre a escrivaninha e, se chegasse aos ouvidos de meu pai, reforçaria a farsa que eu apresentava para ele.
Naquela manhã saí para o trabalho pela primeira vez. Vesti minha roupa de combate, me armei com Brenda e fui primeiro para o campo de treino. Chad me recebeu com alguma surpresa. Não sabia ao certo como se comportar em minha presença, por isso tomei a iniciativa de mostrar os novos rumos de nosso relacionamento. Aproximei-me devagar e, enquanto ele se abaixava em uma mesura, saquei Brenda rapidamente e o obriguei a uma defesa difícil. Não lhe dei tempo para encontrar uma posição confortável – ataquei-o com uma chuva de golpes rápidos e variados. O terreno estava escorregadio por causa da chuva e Chad tinha dificuldades em se manter equilibrado. Quando o suor escorria por seu rosto e sua derrota parecia iminente, abaixei minha espada e, rindo, convidei-o para um abraço. Eu estava realmente contente em vê-lo, e deixei isso claro.
Olhei para o pequeno grupo de alunos de Chad. Eram filhos de funcionários e sonhavam em chegar ao exército real. Teriam outros momentos para aprender a arte da espada, entretanto. Agora eu queria movimentar as coisas no castelo, e seria bom ter no exército alguém que conhecesse minha agilidade em uma luta.
— Vejo que você continua no campo de treinos, Chad.
— Para mim é uma honra cuidar do futuro de nosso exército, Alteza.
— Fico feliz por isso. Mas, no momento, o presente me preocupa mais do que o futuro. O que acha de utilizar sua técnica em um campo de batalha?
— Vossa Alteza está me convidando…
– … estou ordenando — era necessário ser autoritária — que venha trabalhar comigo. Eu o quero como meu braço direito no Exército Real de mina. Creio que, a essa altura, já saiba que sou Chefe-Em-Pessoa de nosso exército, não é?
Não sabia, e sua feição transpareceu isso. Não sei se ficou feliz ou assustado, mas guardou os sentimentos para si e curvou-se numa mesura.
Fiz uma sessão de treino com ele, para alegria dos meninos. Mas em seguida os dispensei, informando que um novo instrutor seria contratado em breve. Era mentira, mas que diferença fazia?
E finalmente veio a hora de me apresentar ao exército. Cheguei já aquecida para a luta, caso algum engraçadinho resolvesse testar minhas habilidades. É bem verdade que minha fama de espadachim era grande por todo o reino, mas muitos consideravam isso uma lenda. E, a exemplo de Diana, como acreditar em uma Princesa que nunca aparece? Era hora de me conhecerem de verdade.
Apresentar-me ao Exército, em um dia de muita chuva, tinha sido um acaso que me veio bem a calhar. Demonstrava minha seriedade e ânimo para o trabalho em um dia que a maioria dos soldados preferiria ficar em suas casas. E não foram poucos os que negligenciaram suas funções naquele dia. Mas a notícia de que eu estava lá se alastrou como pólvora, e os soldados preguiçosos chegaram correndo, muitos arrumando as armaduras enquanto se apressavam em se apresentar.
Galvan, entretanto, não estava lá.
Mandei Chad com meia dúzia de soldados, mas retornaram com a notícia de que o antigo chefe do exército havia deixado a cidade durante a noite, levando sua família e todos os pertences. Não era de surpreender. Talvez a humilhação o levasse ao exército revolucionário. E talvez isso fosse bom.
Ou ruim. Qual seria sua reação se soubesse que eu, na verdade, comandava os rebeldes e não o exército de meu pai?
A deserção de Galvan era, na verdade, uma oportunidade de mostrar aos homens quem comandava ali. Assim, mandei um aviso ao Rei, organizei uma tropa e saí em missão de busca.
O sol estava no meio de seu caminho quando saímos. Cerca de cinquenta homens me acompanhavam, Chad entre eles. Tinha medo de um motim, então queria alguém que me transmitisse confiança. Galvan era de Luzerna, e presumi que retornasse para sua casa. Assim, mandei duas pequenas equipes contornar o Castelo e procurá-lo nas imediações, enquanto chefiei o grupo maior em direção à terra natal do fugitivo. Tendo o estorvo de mulheres, crianças e bagagem, com certeza não estaria muito longe. Queria-o prisioneiro mais do que qualquer outra coisa.
As marcas no solo úmido mostrava que estávamos no caminho certo. O sol estava próximo do Monte Vermelho quando vimos uma pequena caravana, meia milha à nossa frente. Avançamos a galope, sem pausa para uma refeição. Prometi aos homens uma recompensa farta pelo sacrifício, e eles me seguiram. Nosso ânimo foi renovado quando percebemos quão perto estávamos.
Alcançamos os fugitivos e dividi as tropas em duas, uma correndo a planície pela esquerda, e a outra à direita. Não havia rota de fuga e Galvan nem tentou fazê-lo. Ao contrário. Como um homem decente, colocou-se a frente do grupo e pediu que ninguém fosse molestado. Prometi que seus familiares seriam tratados com o mesmo respeito que ele mostrasse por mim e, imediatamente, Galvan se curvou a meus pés.
Eu montava Amora e vi aquele guerreiro abaixado sob as patas de meu cavalo. Ordenei que retirasse sua armadura e ele me olhou incrédulo. Retribui com um olhar severo para sua família. Imediatamente, me obedeceu. Permaneceu apenas com as malhas de frio. Mandei que recolhessem também suas armas e escudos. Já não era um guerreiro e voltou a pé, despido como um escravo, amarrado a meu cavalo.
Chad ficou responsável por escoltar a família de volta ao castelo. Ordenei que os bens fossem levados até meus aposentos e que as pessoas fossem tratadas com respeito. Gritei em alto e bom som que nenhuma mulher ou criança devia ser molestada, e assim Galvan partiu sabendo que eu cumprira minha promessa. O que não tornava minha sentença menos cruel: os homens, até ontem liderados por ele, agora riam largamente de sua situação vexatória. Galvan jamais teria poder sobre aqueles homens novamente, eu arruinei seu comando para sempre.
Alternei o ritmo da cavalgada de maneira a provocar a queda de Galvan inúmeras vezes. Por diversas ocasiões o arrastei pelo terreno irregular e pedregoso. Em outros momentos, andava tão devagar que parecia que jamais chegaríamos ao castelo. Com isso prolonguei seu sofrimento por toda a tarde e o obriguei a seis horas de caminhada ininterrupta.
Choveu forte no último terço da caminhada. Os pingos grossos doíam quando batiam na pele, e Galvan os sentia como açoites em seu corpo praticamente nu. Esse era um dos momentos em que os guerreiros abençoam suas armaduras, e agora os soldados humilhavam seu antigo líder atirando sobre ele pequenos pedregulhos que causavam furos na roupa precária. Muitos dos homens o chutavam quando ele se demorava em andar, e assim o antigo general de meu pai entrou sujo, rasgado, machucado e humilhado em nosso quartel-general.
Mandei enclausurá-lo na masmorra, e fui ver meu pai. O rei estava acompanhado por Dom Otto, e tive a sensação de que se aliviara ao me encontrar. Olhou sorridente para o conselheiro que, evidentemente, não estava tão feliz assim. Otto nos fez uma mesura e saiu rapidamente. Então contei a meu pai sobre a captura de Galvan e frisei que sua família seria mantida intacta.
— Empenhei minha palavra e vou cumpri-la.
— Somos Amarantos, não nos preocupamos com esse tipo de coisa.
— No entanto, os homens só sentirão vontade de me seguir se pensarem que estão seguros comigo, e é isso o que quero que pensem. Galvan será punido de forma exemplar. Aliás, já está sendo. Sua fuga foi um favor enorme que me prestou. Os homens me viram humilhá-lo, e agora ele já não serve para mais nada. Jamais será um guerreiro ou um líder em campo. Está totalmente destruído. Como destruídos serão todos os meus inimigos, um a um.
Meu olhar era duro e sem nenhuma bondade. Meu pai sorriu. Aos poucos eu encontrava o lado mais sombrio de minha alma, e isso me assustava.
Nos dias que se seguiram à captura de Galvan, comandei exercícios de guerra com o exército. Dividi a tropa em grupos e criei competição entre eles. Possuíam objetivos e eram instigados a cumpri-los. Para isso, todavia, precisavam prejudicar os outros grupos. Em poucos dias começaram as rivalidades. Eu acirrava a amizade entre os homens de um mesmo grupo e instava os grupos uns contra os outros. Quinze dias depois, Chad me chamou para uma conversa particular. E o fato de não ter me recriminado publicamente demonstrava seu respeito e consideração por mim.
— Um exército precisa ser unido — disse-me com preocupação, e estava certo.
— Um exército precisa ser impiedoso — respondi com firmeza. Mas ali não era hora nem local para uma conversa desse tipo. Ordenei que me encontrasse a noite na Casa Principal, e ele o fez. Chegou pouco depois do jantar e o levei a meu gabinete particular. Convidei meu pai a participar da conversa e abri meus mapas e estudos de guerra na frente dos dois.
— Estou preparando o exército em pequenos grupos — disse apontando minhas anotações — e vou utilizá-los em missões específicas. A estratégia que estou montando está esquematizada nesses papéis.
Estendi as folhas para que pudessem olhá-las, mas não os deixei com a mente livre para analisá-las:
— Quero homens terríveis na batalha. Homens capazes de matar o pai, a mãe ou os próprios filhos, se preciso for. Para esses homens, o objetivo deve ser superior ao sentimento. Competição é a forma correta de criar esse estado de espírito. O homem que se habitua a ganhar, não quer voltar a perder. E o homem que ganha sabe que os vitoriosos não têm escrúpulos.
— Isso pode funcionar na criação de indivíduos implacáveis. Mas precisamos de um exército unido e, com vossa permissão para externar minha preocupação, Vossa Excelência está dividindo nosso exército.
— Por hora — respondi com segurança — Estão divididos enquanto possuem objetivos que são concorrentes entre si. Mas estarão unidos quando o objetivo for único. Preciso de homens que não tenham escrúpulos, e que se unam a qualquer um que possa ajudá-los a conquistar o que precisam. O espírito deve ser, por um lado, de competição interna, um querendo ser melhor do que o outro, o que significa que todos se empenham em melhorar. E, por outro, de pacto para vitória, espírito de superação para vencer. Nesse momento, os homens são instigados a amar seus companheiros de equipe e odiar os membros de outras equipes. E quando esse sentimento estiver borbulhando de tanta agitação, então os grupos serão dissolvidos e reconstruídos. E os soldados precisarão aprender a trabalhar com os homens que antes odiavam e a destruir os seus melhores amigos. Farei isso em tempo recorde, lhes prometo, e então treinaremos o exército para seu único objetivo: estraçalhar nossos inimigos.
Chad pegou os papéis sobre a mesa e os analisou juntamente com os que já estavam em suas mãos. Leu e pensou por alguns minutos, mas não encontrou uma forma de raciocínio que me tirasse a razão. Enalteceu minha inteligência e curvou-se. A partir daquele instante eu possuía liderança total sobre o espírito de meu antigo instrutor.
No dia seguinte, Chad era o mais empenhado em instigar os homens nas nossas simulações de batalhas. Eu havia colocado um grupo para defender um caixote com ouro. Todos os outros receberam ordens para roubar o ouro. Se o grupo defensor conseguisse evitar o roubo, o ouro seria deles. Do outro lado os grupos responsáveis pelo roubo eram inimigos entre si e deviam conseguir seu objetivo sozinhos: quem roubasse o ouro ficaria com ele. Se fosse um homem sozinho, estaria rico. Se fosse um grupo, dividiriam entre eles. Assim, era interessante se arriscar e se tornar o herói de si mesmo, mais do que ser um bom companheiro e ajudar os demais na concretização de um resultado comum.
Os grupos de ataque possuíam cinquenta homens cada. O grupo de defesa possuía apenas vinte soldados, mas tinham a seu favor um prédio fortificado.
A batalha começou logo após o alvorecer e se estendeu bem depois do pôr do sol. Dois novatos que estavam no grupo de defesa foram recolhidos com ferimentos sérios, e isso bem antes do meio do dia. Os remanescentes criaram bloqueios com pedras para reforçar as posições perdidas, e resistiram bravamente.
Até o pôr do sol, mais de cinquenta soldados atacantes estavam feridos. A batalha terminou no início da terceira hora após o pôr do sol, quando um soldado vestido de mulher ofereceu comida aos homens que suportavam o cerco. Enganados pelo escuro, e enfraquecidos pela fadiga, aceitaram a oferta, abrindo uma entrada para a comida. Ao invés de comida o rapaz ofereceu sua espada, e feriu com gravidade os dois homens que abriram a porta. Os atacantes perceberam a brecha e pularam sobre a abertura. Os guardiões do ouro, por sua vez, demoraram a entender o que acontecia. Julgaram que o portão estava sendo atacado, sem notar que o inimigo já estava dentro dos muros. O invasor tomou como refém um jovem que, vendo a morte de perto, confessou onde o tesouro estava escondido. Dentro do baú havia, além de ouro, uma trombeta para anunciar a vitória.
Minha guarda pessoal entrou imediatamente em ação e afastou os invasores da área de ataque. Depois retirou de dentro do prédio todos os homens, menos o vencedor. Esse foi exibido em triunfo no alto dos muros do prédio central. Havia lucrado cinquenta onças de ouro e tornara-se imediatamente rico. Como se isso não bastasse, para causar inveja nos demais, nomeei-o comandante, e lhe dei para controle os homens que havia vencido.
Tivesse o grupo de defesa resistido por mais trinta minutos, e o tempo estaria esgotado. O ouro seria dividido entre eles. Perderam por pouco, e agora buscavam um culpado. Odiavam-se, estavam seriamente divididos e, para piorar, teriam que se submeter ao homem que os arruinara e os humilhara, enganando-os de maneira tão torpe.
Dispersei a tropa com ordens para que se apresentassem ao primeiro canto do galo. Queria as tropas exaustas e irritadas, ainda que isso significasse o meu próprio cansaço.
Minha guarda pessoal me escoltou de volta à casa principal. Esses eram os únicos homens do exército que me amavam. Foram escolhidos a dedo por Chad, e tinham fama de serem os melhores lutadores do exército. E eram os únicos que usufruíam de minha bondade. Seu soldo era três vezes superior ao soldo de um soldado comum. Além disso, eu os presenteava com ouro frequentemente. Uma quantia pequena para que não se tornassem barões, mas grande o bastante para que me amassem e desejassem mais. Cuidavam de mim com a ferocidade de uma mãe defendendo a cria recém-parida.
Por duas luas completas comandei o exército. E quando a lua estava crescendo pela terceira vez, reuni os sete melhores soldados de minha guarda pessoal e fui à casa de Matilde.

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Notas:



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4 Respostas para Capítulo LIV

  1. Oi, Rocco!
    Cada vez fico mais impressionada como você consegue surpreender a cada capítulo. Eu fico sempre com aquele gosto de “e agora?”
    Eu estava me perguntando por onde andava a Matilde e por que a Aléssia ainda não havia procurado por ela. Aí está. rs
    Maravilha, Rocco!
    Beijão!

    • Ah, Matilde tinha que aparecer, não é? A cortesã mais famosa de Âmina ainda vai dar o que falar, Carol. Essa não é mulher de meias palavras, tenho certeza de que nos dirá a que veio

      Fico sempre besta quando você comenta minhas coisas Beijos, Mestra amadíssima

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