Aléssia

Capítulo XLVII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XLVII <<<

O pôr do sol escorria pelas nervuras do Monte Vermelho. A paisagem, somada ao aroma de alecrim e rosas, provocava-me uma nostalgia cortante. Meu corpo dolorido recebia de bom grado minha antiga cama, e tudo em volta dava-me a sensação de ter acordado de um longo sono. Estava novamente em meu quarto e com guardas a minha volta, mantida prisioneira por meu amoroso pai. Não fosse pela ausência de Lara, eu duvidaria de tudo o que havia vivido nos últimos dois anos.
Lara.
Meu quarto era vazio e frio sem ela. E estar ali aumentava o ódio que agora sentia por meu pai. Ao menos esse favor ele me fez: deu-me um motivo real para odiá-lo.
Pela passagem do sol na janela, calculava que estava em meu quarto há cerca de doze horas. Agripina trouxera-me as refeições e, periodicamente, outras criadas arrumavam algo para fazer em meu quarto. Havia um sentimento de calma, de vida retornando à normalidade. As meninas mais antigas, habituadas comigo, expressavam suas saudades e alegria em me rever. Procurei ser gentil com todas, e creio que minha tristeza fosse indisfarçável.
Minha última refeição naquele dia foi javali no molho de maçã. Meu prato predileto nunca foi tão amargo. Havia também uma jarra de suco de maçã, do qual tomei um copo.
Quando meu pai chegou, aproximadamente uma hora depois de me servirem, a comida estava intacta sobre a mesa. Beijou-me na testa, como se eu fosse ainda sua pequena criança, depois se sentou na beira da cama e acariciou meu rosto. Estava calmo e carinhoso, conforme minhas lembranças mais antigas. O pai que eu tanto amara e em quem confiara por toda minha vida. Não o Rei Aran, o monstro que eu descobrira recentemente e que, na última noite, havia me dado uma amostra de sua fria perversidade. O contraste era tão medonho, que eu me sentia inclinada a pensar que aquele homem gentil, amorosamente sentado à cabeceira de sua filha, era uma pessoa a parte do monstro assassino que dizimava o reino com sua fúria incontrolável.
— Espero que esteja mais descansada, meu amor. Mais algumas horas e tudo estará terminado, confie em mim.
Apesar da doçura em sua vez senti um medo gélido. Mas não disse nada.
— Lastimo que as responsabilidades de nosso clã lhe pareçam tão pesadas. A culpa é minha por tê-la poupado demais na infância. Não é à toa que meu pai dizia que o amor é a pior fraqueza de um homem.
— Meu avô dizia isso?
— E estava certo. Você aprenderá com o tempo, Aléssia. Mas espero que não lhe seja uma lição muito amarga.
Estava habituada a pensar em meu avô como um sujeito carismático e bondoso. Agora percebia que, provavelmente, era tão bondoso quanto meu pai. Minha família era uma maldição.
— Eu lhe trouxe um presente, Aléssia, espero que goste — e ao terminar a frase, bateu palmas — Ela irá lhe ajudar com os cuidados pessoais. Eu volto em algumas horas e quero encontrá-la pronta. Mas nada impede que antes você aproveite os dotes de Irina, e relaxe um pouco.
Irina era uma jovem ruiva de rosto triangular e uma cintura estreita que acentuava o volume do quadril. Estava vestida de maneira a enaltecer as curvas de seu corpo e era, sem dúvida, escolhida a dedo para aquilo que meu pai pretendia. Ele se aproximou da jovem e, com um sorriso deliciado, acariciou-lhe o rosto.
— Uma beleza, não acha? É estrangeira. Foi capturada do lado de lá do Monte Vermelho e fala muito pouco nossa língua. Mas tenho certeza de que você será uma ótima professora. Lembro-me do quanto você era curiosa sobre o que havia do lado de lá da montanha. Creio que Irina terá enorme prazer em lhe contar. Aproveitem bem as próximas horas. Quando eu voltar, quero que esteja lavada e usando suas roupas cerimoniais.
Saiu apressado. A pobre Irina permaneceu em pé no centro do quarto sem saber o que fazer. Indiquei que deveria levar a bandeja de volta à cozinha e a dispensei.
Não permiti que as criadas acendessem os candelabros. O escuro me agradava. Tentei extrair das sombras o máximo de paz que podia encontrar enquanto pensava no que fazer.
Eu sabia o que me esperava e não pretendia me deixar conduzir até esse destino. Olhei a janela algumas vezes, apenas para me certificar de que era mesmo impossível saltar e continuar viva. Mas a morte começava a parecer uma solução viável.
A não ser pelo fato de que isso abria a meu pai a perspectiva de arrumar outro herdeiro. Alguém menos rebelde. Alguém mais a caráter para seus propósitos.
Tinha que haver outra solução. Eu precisava escapar. Mas como?
Da outra vez Lara me propiciara a liberdade.
Lara… tudo me levava de volta a ela, eu me torturava em tristeza. Tinha sido minha culpa. Não tivesse se envolvido comigo, hoje Lara estaria com as demais meninas, cuidando dos afazeres domésticos da casa de meu pai. Amar-me foi sua perdição. Meu avô tinha certa razão: o amor pode ser uma coisa medonha.
As horas gotejaram como uma chuva mansa na janela. Não encontrei forças para o suicídio, nem uma alternativa para a fuga. Talvez a oportunidade surgisse quando me levassem ao Bosque. E se não surgisse… bem, seria o fim de qualquer jeito. Uma espécie de suicídio ainda em vida.
Como a única esperança era parecer conformada, fiz exatamente o que meu pai desejava: tomei um banho e vesti minha túnica cerimonial. Depois aguardei no escuro absoluto até que a porta se abriu.
Rei Aran se absteve de brincadeiras sobre minha nova criada. Nenhum comentário sobre o escuro. Nenhuma palavra de escárnio. Deu-me um beijo na testa, me pegou pela mão e saímos juntos de meu quarto.
Fomos escoltados por dois soldados até a orla do bosque. Ali mais uma dúzia de homens nos aguardava, Drusus entre eles. Curvaram-se para nós e mostraram suas armas em sinal de servidão. Cumpri o ritual como Princesa, e meu pai sorriu de contentamento. Alegrava-lhe ter de volta a filha dócil e gentil. Não lhe passava pela cabeça que qualquer coisa pudesse sair errada. Também eu tinha perdido a esperança de fuga. Meu pai havia vencido e caminhávamos para celebrar essa vitória.
Conhecia aquele bosque como a palma de minha mão. Foi ali que brinquei em toda a minha infância. Foi ali que me apaixonei por Amaryllis. Foi ali que descobri em profundidade quem realmente sou. Foi ali que descobri quem meu pai realmente era. Foi ali que minha vida foi amaldiçoada para sempre. E era ali que tudo terminaria.
Morrer na espada de um soldado provavelmente seria um destino melhor. Mas faltou coragem. Ou faltou certeza? Se eu tentasse fugir, algum dos soldados se atreveria a me matar? Pouco provável. Por bem ou por mal, o que me esperava era a Pedra.
Com esse estado de ânimo acompanhei meu pai e seus soldados na mata escura. Uma coruja piou seguidamente e tive a sensação de que nos acompanhava na noite úmida.
Meu pai e seus soldados trajavam armadura de couro fervido e botas longas, enquanto eu caminhava com dificuldade, usando uma sandália amarrada aos tornozelos e uma túnica longa que precisava ser levantada para não se prender aos galhos baixos. Minhas dificuldades ditaram o ritmo da caminhada e em momento algum meu pai se mostrou impaciente. Caminhava a meu lado, guiando-me pelo braço como um cavaleiro com sua dileta dama, enquanto os soldados nos acompanhavam um passo atrás.
A chuva dos últimos dias tornava o caminho mais difícil e traiçoeiro. Desejava eu o conforto das roupas militares, mas a partir de agora, ao que tudo indicava, levaria a vida de uma dama da corte.
A menos, claro, que meu pai confiasse em mim o suficiente para me permitir portar uma espada. O que não deveria acontecer tão cedo.
A madrugada estava avançada quando chegamos a nosso destino. A Pedra brilhava ao longe, mesmo na noite sem lua. As folhagens à sua volta refletiam sua luz assombrada e causavam calafrios. Uma coruja pousou na Pedra e voou para longe quando entramos no halo de luz. Depois pousou em um galho baixo acima da Pedra e me encarou com seus olhos arregalados. Voou em seguida acompanhada por um grito agudo que foi ganhando distância até deixar a noite inteiramente silenciosa.
— Você sabe o que vai acontecer, Aléssia. E se será por bem ou por mal só depende de você. Posso pedir para os guardas se afastarem e resolveremos isso na maneira antiga, pai e filho na transmissão de uma herança familiar. Ou posso ordenar que lhe amarrem, e seguiremos com os rituais à sua revelia.
— Pode dispensar seus homens, não há necessidade de nada disso.
— Não tente me enganar. É minha filha, mas…
Não precisava completar a ameaça, seu tom de voz era o suficiente para transmitir a ideia. Fiz um gesto resignado e dei-lhe minha palavra. Beijou-me na testa com um sorriso amoroso e pediu aos homens que nos esperassem trezentos metros à frente.
Dois anos antes eu havia fugido. Agora todo meu sofrimento era injustificado. Todos os meus sonhos com Alex eram poeira. Toda a confiança que a população de Líath e Âmina me devotava caía por terra. Não era minha culpa e ainda assim eu me sentia fraca. Queria pedir-lhes perdão, explicar o quanto lutei contra o meu destino. Alguém mais, antes de mim, havia lutado contra essa maldição? Ou todos os meus ancestrais a haviam aceitado resignados? Ou, pior ainda, esperado ansiosos por ela?
Mas a teimosia me transformava em heroína? De que adianta lutar e perder? Só os vitoriosos podem ostentar os louros. E eu havia perdido.
Meu pai desembainhou a espada e a colocou sobre a Pedra. Chamou nossos ancestrais do último ao primeiro. Com o clã Amaranto reunido, apresentou-me como sua filha e herdeira. E então eu disse as palavras:
— Juro por meu Sangue obedecer à Pedra. Juro, por cada um de meus ancestrais, ceder minha consciência à Pedra, para que seu poder seja manifesto. Juro me entregar à Pedra e por ela morrer… ou matar. Todo inimigo da Pedra é meu inimigo. Todo aquele que injuria a Pedra, injuria-me também. E todo aquele que tenta aniquilar a Pedra será por mim aniquilado. Assim foi através dos tempos e assim permanecerá eternamente, porque agora juro jamais quebrar essa corrente.
— Que a corrente jamais seja quebrada!
A voz de meu pai reverberou como se fosse pronunciada por um coro. E, antes que o último som morresse no ar, estiquei meu braço esquerdo para que a magia se completasse.
Meu braço nu tocou a Pedra fria e úmida. Senti-a viscosa, lodosa, e lembrei do sangue de Lara derramado ali. Fechei os olhos. O remorso por aquela morte seria meu último pensamento livre.

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Notas:



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10 Respostas para Capítulo XLVII

  1. NÃO!!! Não creio que depois de tanta luta contra essa união com a Pedra ela vai se render… Como diz o povo da minha terra, quase caí das pernas quando li esta parte…
    Muito triste pela Alessia e ansiosa pela continuidade. Abraços e bom fim de semana.

    • Às vezes a gente ganha, às vezes a gente perde. Assim é a vida, Naty. Mas talvez isso faça Âmina encontrar tempos de paz, finalmente. Aléssia é herdeira do trono de Líath tanto quanto de Âmina. Unindo os dois reinos, não haverá mais motivo para brigas. E sem um exército inimigo à solta, é provável que Rei Aran deixe o povo em paz. Enfim, nem sempre as coisas são do jeito que a gente sonha.

      ‘Guenta firme que domingo tem novas emoções.
      Um grande beijo e muito obrigada pelo carinho e pelos comentários

  2. Olá Diana, tudo bem com você? Primeiramente quero te parabenizar e agradecê-la pelas maravilhosas histórias que compartilha conosco. Parabéns pelo seu dom, você nos envolve de uma forma tão singular, onde os sentimentos emanados por seus personagens se tornam intensos dentro de nós. Em Aléssia, a cada situação que ela passa é como se conhecêssemos e vivenciássemos junto a sua trajetória. Parabéns pelo talento, e desejo que essa história maravilhosa se transforme em livro, e você possa cada vez mais contribuir para a literatura LGBT. Muito Obrigada!

    • Você sabe como alegrar o dia de uma pessoa, Carol!!!

      Gratidão enorme por cada uma de suas palavras. Isso é o que eu chamo de uma injeção de ânimo! E vou retribuir seu carinho com uma boa notícia: estou trabalhando em uma edição revista e ampliada de Aléssia, que pretendo lançar no formato eBook em 2018.

      Seja bem-vinda aos comentários do Lesword, espero que você tenha um final de semana maravilhoso (deixa um tempinho na agenda para ler o capítulo de Aléssia no domingo rsss).

    • “Alex deve tá morta pra não ter impedido isso”

      É Letty, a situação não está nada favorável. Rei Aran levou a melhor dessa vez. Mas se ele concordar em ceder o trono à filha, como ela é também Rainha de Líath por direito, então poderá exigir a unificação dos povos. Isso tira o Exército Revolucionário da ativa e traz paz ao reino. Vejamos os rumos que as coisas tomarão daqui em diante.

      Grande beijo e, mais uma vez, muito obrigada por seus comentários

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