6
Ainda sobre as marcas do passado
Maysa encontrava-se perto da janela, estava observando a vizinha mais uma vez. Um mau hábito, pensou ao fazer uma careta enquanto olhava para o cigarro entre os dedos. Era um fato, não estava obtendo muito sucesso em acabar com os maus hábitos, assim como também não estava encontrando a concentração necessária para trabalhar, provavelmente não tardaria para editora ligar cobrando o novo livro. Considerou que aquela janela, antes perfeita para iluminar o ambiente e trazer inspirações, se tornara alvo de sua distração. Mas era justamente dali, que tinha melhor visão ao observar Agatha cuidando do jardim.
– Pois é, dona Maysa… agora você não sabe fazer outra coisa da sua vida. Também como seria diferente? Olha para ela, mesmo mexendo com a terra e usando aquele pedaço de pano que ela chama de short, ainda parece tão elegante e altiva. __ agora podia falar consigo em voz alta, o filho estava no colégio. – Ei Senhor, é isso mesmo? Vocês aí de cima devem estar se divertindo. Mesmo depois de tudo que essa mulher já me disse um dia, como posso ficar parecendo uma idiota só de vê-la através da janela? Responde aí Deus, por que deu este poder a ela? Esse dom de ser tão charmosa e cativante, até o Dan não resistiu e se rendeu àquela peste. __ sorriu. – Mas o que me deixa no chão é esse sorriso que ela tem, parece o sol surgindo em um dia nublado. Porra Maysa, apenas pare, você já está ficando poética. Deixe isso para os livros.
Mas, talvez fosse exatamente isso. Agatha tinha aqueles trejeitos dos seres encantados sobre os quais Maysa descrevia em seus contos, o fato era que havia algo de mágico e misterioso naquela mulher, uma força delicada e silenciosa em seus olhos. Agatha era como a própria natureza qual você admira e se apaixona, e que nunca saberá dela por completo, afinal, a natureza sempre nos surpreende. A loira deu de ombros e voltou para sua mesa de trabalho, conseguiu escrever algumas ideias, fez anotações, começou uma ou outra pesquisa…
– Droga, eu não consigo me concentrar. O que será que ela está fazendo agora? __ pegou outro cigarro com certa impaciência aproximou-se outra vez da janela.
Agatha caminhava tentando equilibrar algumas ferramentas para jardinagem nos braços, a loira fez uma observação silenciosa: uma pessoa não deveria carregar mais peso do que o necessário. Antes mesmo de poder comemorar por aquela conclusão sábia, notou a coruja piar algumas vezes, quando olhou para baixo, Tapioca estava correndo em disparada pelo gramado atrás de Aquiles. Ela abriu um pouco mais a janela para gritar o cão com o intuito de desencorajá-lo, mas percebeu que já era tarde.
O gatinho de patinhas brancas pulou e fez um drible digno de um jogador de futebol, passou por entre as pernas de Agatha feito fumaça, a morena desequilibrou-se e as ferramentas que carregava, balançaram. Maysa xingou baixinho e antes de suspirar aliviada por parecer que a morena havia recuperado o equilíbrio, o cão surgiu levando Agatha ao chão.
Maysa parecia um velocista, passou correndo pelas portas do terraço, desceu as escadas, passou pela cozinha e tentou chegar o mais rápido possível ao jardim. Agatha estava resmungando e não era para menos, o gato estava em um refúgio na arvore que sua amiga coruja lhe indicara e Tapioca latia e balançava a cauda freneticamente. As ferramentas estavam espalhadas, alguns vasos de cerâmica quebrados e também espalhados sobre a grama.
– Hã, você está bem? __ sabia que a pergunta era ridícula, mas o que ela poderia dizer?
Agatha apoiou-se com as mãos sobre as coxas e os cabelos caiam pelo rosto, podia-se ouvir ela respirando fundo algumas vezes antes de jogar os cabelos para trás e lançar um olhar furioso para Maysa.
– Engraçadinha você.
– Eu estava na janel… __ ponderou, com certeza aquele não era o momento mais oportuno para informar a morena que estava observando-a, aproveitou para ajudar a recolher as ferramentas. – Eu estava passando em frente a janela e vi tudo que aconteceu. Sinto muito, vou deixar o Tapioca de castigo por isso, é que sabe, ele está conosco a pouco tempo e não temos obtido sucesso para adestra-lo.
– Não há sentido em culpar um animal por ele fazer o que é da natureza dele! __ a morena estava uma fera, os grunhidos que os animais faziam contribuíam para a irritação aumentar, vencida, sentou-se no gramado. – Tapioca, aqui! __ o tom era calmo, porém firme e imediatamente o cão obedeceu, mas quem seria louco de não obedecer? – Aquiles, desça dessa arvore e já para casa, e Duda vamos parar com essa piaria toda, por favor. __ depois disso só se ouvia o silêncio e as ordens sendo atendidas. Tapioca estava sentando perto de Agatha com carinha de quem se diz arrependido e se tem uma coisa que os beagles sabem fazer, é cara de arrependido.
– Okay… me diga o nome do santo, pois preciso acender algumas velas. __ a loira ainda estava embasbacada ao ver como os animais obedeceram, principalmente o cão.
– Santa Agatha, mas não precisa acender velas. Sempre tive jeito com animais. __ estirou um pouco as pernas sobre algumas begônias amarelas e foi então que Maysa viu o longo corte na coxa da moça.
– Ahhhh, puta merda! Você está sangrando Agatha, que droga. __ ela olhou com mais atenção e percebeu alguns arranhões ao longo das pernas e antebraço.
– Não deu tempo de eu usar meu superpoder e evitar isso!
Se loira e morena ainda fossem amigas, decerto Agatha saberia que Maysa se tornou uma mãe que entra em pânico com muita facilidade quando vê sangue, principalmente pelo fato de ter um filho arteiro. Instintivamente levantou, colocou a morena em seu colo e foi em direção a porta que estava aberta. Agatha não sabia se achava aquilo divertido ou se ficava ainda mais irritada.
– Vai ficar tudo bem, vamos cuidar disso. __ a morena derreteu com aquela preocupação.
– Seria uma boa se você me coloc… __ a loira a colocou sentada em uma das cadeiras. – Colocasse no chão.
Maysa correu para a pia em busca de um pano limpo que logo encontrou, mal se deu conta de que estava literalmente invadindo a cozinha da casa vizinha e remexendo suas gavetas.
– Você tem Merthiolate?
– Não…
– Tudo bem, não faz mal. __ molhou o pano e o ensaboou, respirou fundo algumas vezes, precisava se acalmar. Voltou para a morena e com delicadeza começou a limpar o sangue.
Agatha sequer disse um “ai”, estava imóvel, e seu torpor intensificou-se ao ouvir a voz da loira ressoar e dar início a uma estória. Maysa limpava os cortes enquanto a morena deixava-se relaxar ao som daquele timbre rouco e dos toques delicados que a loira usava com medo de machuca-la ainda mais, nada daquilo era apaziguador, pensou Agatha.
Àquela altura, Maysa passava o pano úmido sobre a coxa de Agatha, onde a pele fora cortada. Apesar de toda dedicação e suavidade da loira, uma dor foi despertada e começou a se espalhar pela morena, desde o centro do seu corpo até as extremidades. Agatha cerrou o punho e levou a outra mão sobre o vente, sua pele parecia queimar de tão quente, precisava que Maysa parasse, queria que não parasse… deixou escapar um suspiro longo e profundo que ressoou mais como um gemido, tentou mudar o rumo de seus pensamentos, sem sucesso.
Maysa chegava ao fim da estória quando ergueu os olhos e encontrou os de Agatha. Em qual momento seu coração passou a pulsar daquele jeito? Obvio que a loira não saberia responder, ainda mais sentindo o sangue fervilhar dentro das veias e explodindo em sua cabeça. Sua intimidade latejou e uma onda de excitação veio como um golpe certeiro, fazendo com que ela sentisse a dor e a satisfação de um prazer que ainda nem havia experimentado. Esforçou-se para recuperar a compostura, mas os olhos não desgrudaram dos de Agatha.
Aqueles cabelos betume bagunçados por toda ação anterior, os olhos tão negros quanto a noite e de brilho intenso que poderia assemelhar-se aos das estrelas. Céus! Só então a loira se deu conta de que estava ajoelhada entre as pernas de Agatha e o quanto aquilo era sugestivo, com toda aquela atmosfera que as envolviam, seria tão fácil perder o controle, tão fácil… Assim como foi no passado, recordou Maysa, a vibração da música e o magnetismo que as envolviam, o beijo dado com tanto amor e paixão, e logo depois, o amargor das palavras ditas pela morena, seu gesto era bizarro e sua declaração de amor era um ato pecaminoso, não poderia passar por aquilo outra vez.
– Desculpa… __ ergueu-se veloz, não conseguia encontrar palavras melhores para dizer. Agatha tinha a respiração visivelmente acelerada, e a loira sentiu-se obrigada a tentar mais uma vez. – Acabei me deixando levar pelo nervosismo quando vi você sangrando, é que nunca consigo manter a calma nesses momentos. __ entregou o pano que segurava com certa força para a morena. – Acredito que você prefira cuidar de si mesma, mais uma vez, eu sinto muito. Me desculpe por essa invasão à sua casa. __ não esperou uma resposta, a morena continuava imóvel e ela precisava sair dali o quanto antes e assim o fez.
Maysa chegou em casa e foi direto ao terraço, mas dessa vez não tinha interesse em observar a vizinha, era apenas para tragar mais um cigarro. Precisava desesperadamente que aquela fumaça com cheiro de cereja lhe acalmasse. O cigarro acabou em questão de minutos, até pensou em retirar outro da carteira, mas sentiu-se culpada ao lembrar da promessa que havia feito para o filho, recordou do quanto o pequeno ficou assustado quando ela teve uma crise respiratória e parou na emergência de um hospital, diagnostico? O uso demasiado dos cigarros começava a lesar as vias respiratórias. Prometera que pararia, e realmente conseguiu diminuir a quantidade dos maços por dia, mas sabia que ainda estava sendo falha e precisava deixar aquele vício de lado.
– Bem feito, Maysa! __ sentou em frente ao computador. – Não bastou só o vício com cigarros, né? Tinha que ficar viciada em espionar a vizinha, tinha que ter um cão estabanado e teimoso para derrubá-la, e então você decide bancar a heroína e para quê? Voltar para casa com as emoções à flor da pele, puta merda, viu! Qual o seu problema, garota? Deixa essa mulher em paz, coloque persianas na droga dessa janela, vai escrever, desenvolver sua história. É isso, trabalhar porque as contas não vão ser pagas sozinhas.
Maysa mal tinha coragem de encarar seu reflexo no espelho que havia ao lado, sabia das emoções conflitantes que borbulhavam dentro dela, e sempre que olhava o velho espelho que sua mãe lhe deixara, uma herança de família, era como se ela conseguisse se enxergar além do aspecto físico, era surreal, talvez algum estágio de loucura, mas sempre lhe ocorria assim. Começou a pensar se realmente era uma boa ideia ter retornado para Cabritos, meneou a cabeça e começou a escrever:
Abalada
Ainda não esqueci aquele beijo
As lembranças fervilham em minha mente
O gosto da tua boca permanece na minha
Embora eu já tenha provado de outros lábios
Nenhum me marcou como os teus
Abalada, é assim que estou
O caldeirão fumegante que se fez minha mente
Trata de recriar toda aquela cena
Do passado ao presente, mais uma vez
A urgência por pouco não nos devorou
…
Abalada estou, abalada ainda estou
Ainda não esqueci e me pergunto:
Será que algum dia esquecerei?
Ah, eu sinto raiva!
RAIVA POR PERCEBER O QUANTO VOCÊ AINDA ME ABALA
AHHH, QUE DROGA AGATHA
EU QUERO VOCÊ!
A batida da mão sobre o teclado fez a escrivaninha estremecer. Maysa desistiu de continuar o que estava escrevendo, sabia que qualquer construção de frase que saísse através de seus dedos, estaria relacionada a Agatha e não era sobre a morena que precisava escrever. Apoiou a cabeça no encosto da cadeira e sorriu. Pensou sobre o momento na cozinha, sentiu novamente a sensação da pele de Agatha esquentar sob suas mãos. E teve a certeza de que se não fosse pelo pouco de sanidade que ainda lhe restava, teria tomado aquela mulher em seus braços e devorado aqueles lábios em um beijo eloquente.
– Isso, cometa essa loucura e veja o estrago que causará em sua vida. Ora Maysa, concentre-se. __ suspirou. – Se bem que, quando eu a olhei, posso jurar que ela tinha a mesma ânsia e brilho no olhar, se eu a beijasse, ela não iria recuar. __ seu sorriso se desfez. – O que você está pensando? Querendo se iludir, é? Claro que ela recuaria e você ainda corria o risco de levar uns tapas. Presta atenção nela, parece uma princesa encantada à espera do príncipe. Com certeza planeja ter a família perfeitinha e feliz, a casa dela tem até jardim, típico dessas donas de casa que regam as flores enquanto esperam o marido chegar do trabalho. Lembre-se, você não veio aqui para reviver uma antiga paixão e sim para dar uma qualidade de vida melhor ao seu filho, esqueça a Agatha de uma vez por todas.
Foi um pensamento imperativo, arquivou a nota que quase formara o início de uma declaração e foi até a cozinha em busca de café. Voltou para o computador e abriu o arquivo da estória que estava escrevendo, mergulhou de cabeça no trabalho até a hora de ir buscar o filho no colégio.
Nossa a Maysa foi meio grossa, sair e nem ao menos se despedir. Algo na Agatha é muito misterioso.