Aléssia

Capítulo XL

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XL <<<

Aquela madrugada marcava a chegada definitiva do outono, mas o ar já estava mais frio há pelo menos duas semanas. Vestindo roupas reforçadas com lã, fui ao estábulo para verificar Amora. Foi com tristeza que constatei que os cavalos dispunham de poucas mantas e, preocupada com a saúde dos animais, passei horas carregando feno para as baias. Quanto maior fosse a cobertura de solo, mais protegidos os animais estariam. Voltei para casa com a lua cheia iluminando meu caminho e, por volta das três da manhã, aticei o fogo do quarto e me deitei com todas as cobertas disponíveis. A continuar dessa maneira, teríamos o inverno mais rigoroso dos últimos anos. Enrolei uma manta em meu corpo e deitei encolhida, os joelhos quase no queixo, pensando nas dificuldades do clima como maneira de me distrair daquilo que realmente me preocupava: a guerra.
Para aumentar minha angústia, Alex estava em retiro com as outras anciãs da Casa das Almas. Sua ausência aumentava tanto o frio quanto a insônia.
O esforço físico no estábulo ajudou a trazer o sono perdido, e eu estava finalmente mergulhando em sonhos quando o ruído de cavalos a galope chamou minha atenção. Apurei os ouvidos e percebi três ou quatro cavalos passando próximos a meu quarto. Aproximei-me silenciosamente da janela e movi as cortinas de maneira discreta, apenas o suficiente para enxergar os três cavaleiros que seguiam em direção ao estábulo. Vesti minhas roupas e, com Brenda em punho, me esgueirei atrás dos homens. Ainda que confiasse na segurança de nossas muralhas, não era possível relaxar. Cavaleiros chegando de madrugada era algo raro o bastante para levantar suspeitas, e as tentativas de Rei Aran para invadir Líath eram cada vez mais audaciosas. O atentado a Breno, no coração da cidade, era prova disso.
Os homens guardavam seus cavalos quando me aproximei do portão do estábulo e, abaixada entre as sombras, observei o movimento. Não falavam nada, comunicavam-se apenas por gestos, aumentando minhas suspeitas. Mas então um deles retirou o capuz que usava para se proteger do frio e indicou a saída aos outros dois. Minha apreensão se transformou em felicidade quando reconheci esse homem.
— Mestre Renan!
Minha voz alterada fez os cavalos relincharem e os moradores das casas próximas de assustaram com o movimento fora do comum. Era esse alarido que os homens tentavam evitar, chegando à cidade em plena madrugada. Mas minha alegria e estupidez quebraram o silêncio, provocando risos em meu tutor.
— Aléssia! — exclamou em um tom de voz muito mais baixo que o meu, os braços esticados para um abraço sorridente. Deixei-me envolver em um cumprimento saudoso e gastamos quase um minuto nos olhando, matando as saudades.
Os homens pretendiam dormir na Casa Comunitária, o pequeno palacete do outro lado da praça, em frente minha casa. Mas os levei para minha cozinha, e me aventurei a preparar eu mesma um chá para nosso desjejum. Assim poderíamos conversar em paz e atualizar as informações de lado a lado.
A bebida quente e a amizade amenizaram meus medos e dúvidas. A conversa fluiu com facilidade, Renan e seus amigos me contando sobre os últimos dias em Âmina. De maneira geral os relatos eram dolorosos, embora não surpreendentes. Ataques medonhos a povoados desprotegidos tornaram-se rotina. A população do reino estava sendo dizimada, e não conseguíamos entender o motivo. Cidades maiores como Luzerna eram poupadas, mas os vilarejos pequenos e desprotegidos eram, pouco a pouco, retirados do mapa.
— A vida no Castelo terminou para mim, essa é a verdade, querida. Decidi ser mais rápido do que Aran, e saí de Âmina enquanto era possível circular com relativa segurança. A essa altura já me tornei um foragido, com toda certeza. Mas cheguei aqui com tranquilidade e sem ser seguido. Tomamos todas as providências necessárias para isso.
— Fico muito feliz que esteja aqui, Mestre. Tenho certeza que seu apoio e carinho serão fundamentais pra mim no futuro que se aproxima. Mas é uma lástima perdermos nosso informante, era bastante confortável agir sabendo o que acontecia no castelo.
— Não superestime minha capacidade, Aléssia. Nossa principal informante ainda está lá, e nos manterá informados.
— Aliás esse é um assunto pendente, Renan –- disse um rapaz louro, de barba cerrada. Nosso esquema de informação funcionava com você dentro do castelo. Agora temos que garantir a segurança de nossa informante.
— Nossa informante?
Meu eto era justificado. Nem mesmo quando desconfiei de Mestre Renan passou por minha cabeça que alguma das criadas do Castelo poderia repassar informações valiosas sobre meu pai. Tentei imaginar quem poderia ser. Ada, com sua rigidez excessiva? Ou Agripina com sua autoridade que transcendia o fogão e invadia a vida de todos os que viviam naquele castelo?
O rapaz que interferira em nossa conversa chamava-se Fergus, e era um dos empregados da casa de Renan, no círculo interno do Castelo. Os dois se entreolharam por um instante e é provável que, naquele momento, Mestre Renan tenha percebido que haviam falado mais do que pretendiam.
— Às vezes me esqueço que você é filha dele, Aléssia. É muito provável que esse assunto não lhe seja agradável.
— E por que não? Seja lá quem for terá minha admiração. Trabalhar no Castelo, vigiar todos os passos do Rei e transmitir isso aos rebeldes… É preciso coragem para desempenhar esse papel. Quem é essa informante, Mestre? Alguma das criadas mais próximas de meu pai? Ou talvez mesmo Ada, nossa governanta?
Fergus e Renan trocaram novos olhares e o mais jovem deles me pareceu levemente constrangido.
— Não, Aléssia, não estamos falando de nenhuma das criadas da casa. A pessoa a que me refiro não vive no Círculo Interno, na verdade nunca atravessa os muros. Mas tem acesso direto ao Rei, e em circunstâncias tão privilegiadas, que se transformou em nossa arma secreta.
A descrição era tão precisa que deveria ter me despertado a memória imediatamente. Mas certas dores antigas só desaparecem se as enterramos fundo. Então não pensei em nada nem em ninguém.
— Você não é mais criança, Aléssia — continuou Mestre Renan com firmeza — e com certeza sabe que os homens possuem certas… necessidades… Seu pai é um homem particularmente apegado aos prazeres da vida, e não despreza em hipótese alguma uma boa companhia feminina… Creio que entenda o que estou dizendo.
A porta da casa de Matilde, o homem poderoso que a beija com paixão e, que quando se vira, vejo ser meu pai. A cena antiga voltou como se estivesse acontecendo naquele instante e dessa vez não pude conter nem o eto, nem o asco, nem ódio.
— Matilde!
O nome vazou de minha boca como um líquido amargo que a garganta se recusa a engolir. Os olhos de Mestre Renan se arregalaram, ele certamente não esperava ouvir o nome dela saindo de meus lábios. Mas não foi de nenhum dos homens a exclamação que me surpreendeu. Nas primeiras horas daquele dia, já com os galos anunciando a aproximação do sol, a inesperada voz de Alexandra me perguntava de onde eu conhecia Matilde.
O susto serviu apenas para aumentar minha desorientação. Na verdade, por mais que amasse e respeitasse Alex, eu estava presa em uma noite muito distante em que Matilde, surpresa, vem à porta de sua casa me receber de braços abertos. Meu sangue fervia com ódio, os punhos cerrados, os músculos tensos, a mão solta no ar com fúria, a dor e o eto no rosto da mulher que eu amava. Naquela distante manhã de um outono em Líath, o tapa que dei em Matilde doeu em mim.
— Responde, Aléssia, de onde você conhece Matilde?
Meu olhar contava muito da história, ainda mais para Alex que já conhecia tão bem os meandros de minha alma. As palavras seriam necessárias apenas para explicar certos detalhes, mas não para confirmar aquilo que ela, a essa altura, já sabia.
— Então é você! Pelos céus! Isso nunca me passaria pela cabeça! Ah, pelos deuses… quantos anos você tinha, Alê? Dezessete? Dezoito?
— Como assim, sou eu?
— Você me entendeu.
— Creio que não. Por que não me explica?
Ao invés disso, Alexandra saiu sem sequer cumprimentar os presentes. O que veio fazer em casa não sei, mas saiu no mesmo pé em que chegou, e permaneceu isolada na Casa das Almas por quase dois meses. Creio que teria ficado mais tempo se as circunstâncias não a obrigassem a sair. Durante esse tempo, fiz duas ou três tentativas de falar com ela, todas mal sucedidas. Por fim resolvi respeitar seu desejo de silêncio e solidão, e toquei meu dia-a-dia da melhor forma possível. Entretanto não conseguia evitar a dúvida: como estaria minha vida agora, se eu tivesse permitido a Matilde me explicar sua relação com meu pai? Havia ainda a hipótese — bastante provável — dela não me contar nada, mas mesmo isso poderia alterar meu destino, a depender exclusivamente da explicação que ela me daria, e de como eu viria a aceitar isso. O fato é que, tendo o amor de Matilde, meu interesse pelos assuntos externos ao Castelo seria diferente, e minhas ações subsequentes, possivelmente, teriam sido outras.
Dias depois eu estava conversando sobre isso com Mestre Renan. Sua presença em Líath trazia-me conforto e apoio. A convivência de toda uma vida ajudava agora a firmar uma sólida amizade confidente e, pela primeira vez, conversávamos em um tom confessional. Eu lhe contava detalhes perdidos de meu passado. Matilde entre eles. Através de Mestre Renan fiquei sabendo que a cortesã mais famosa do Castelo dos Três Círculos era sua amiga de infância.
Na verdade, os dois se mudaram de Forte Velho para lá na mesma ocasião e, pouco depois, Matilde se casou com um capitão da Guarda Real. O homem era honesto e honrado, muito diligente em seu trabalho, mas não aceitava com tranquilidade certas ordens escusas que vez por outra recebia. A Guarda Real é a corporação máxima de Âmina, e aqueles que a integram, por mais modesto que seja seu cargo, é um homem temido e respeitado em todo o reino. Para pertencer à Guarda é preciso ser um exímio soldado. Mas, segundo Mestre Renan, é preciso, sobretudo, não ter escrúpulos. Se os soldados do exército já precisam estar dispostos a realizar trabalhos sórdidos, para pertencer à Guarda isso é ainda mais importante. É preciso cumprir missões cegamente, sem nenhum tipo de questionamento, e sem jamais comentar os trabalhos em que se está envolvido.
O marido de Matilde pecou em tudo isso. Recusou-se a cumprir ordens que considerou injustas. Gritou aos quatro ventos contra toda sordidez que chegava a seu conhecimento, e estava ameaçando organizar um levante com a população do Círculo Intermediário. Um dia, saiu com a Guarda para realizar a captura de um fugitivo, e voltou morto. Recebeu honrarias de herói por morrer em combate. Matilde recebeu as armas, o uniforme e as condecorações do falecido. E nada além. Dias depois do enterro, um amigo a procurou e contou a verdade sobre a morte de seu marido: não havia fugitivo algum, era uma emboscada. Naquele dia a Guarda Real saiu com ordens de executar seu capitão que, antes de ser morto, foi estuprado e torturado pelos colegas.
Nenhuma lei protege viúvas em Âmina, mas as esposas de heróis podem receber auxílio do governo, uma concessão especial do Rei. Meu pai, no entanto, não dá ponto sem nó. A esposa do Capitão sempre foi cobiçada por nobres e oficiais do exército. O próprio Rei a desejava ardentemente, e nunca escondeu isso de ninguém. Com a morte do Capitão, meu pai procurou a viúva com a proposta indecorosa: ela poderia continuar a viver na cidade, e receberia dinheiro e apoio para tal, desde que concordasse em se prostituir para os poderosos do Castelo.
Matilde é uma mulher leal e honrada, e seu primeiro impulso foi o asco e a ofensa. Mas também é uma mulher inteligente, forte e destemida. Seu raciocínio rápido lhe mostrou a oportunidade que surgia à sua frente: se ganhasse a confiança do Rei, abriria uma trilha para a vingança
O raciocínio não era descabido. Através de meu tutor a cortesã de Âmina havia conhecido, ainda na juventude, a sobrinha da Rainha Maura, ninguém mais, ninguém menos que Alexandra dos Olhos Cinzentos. Quando a viuvez a alcançou, pouco após a morte da Rainha, Alex já ocupava seu posto à frente do Exército Rebelde. Partiu de Matilde a proposta de servir como informante, tão logo se deitou com o Rei pela primeira vez. A vaidade humana, essa deusa que cega até o mais forte dos soldados, atuava a favor das intenções da mulher. Dizendo-se honrada por poder usufruir da cama ao lado de um Rei, e cedendo a cada um de seus desejos mais infames, inclusive quando isso implicava em participar ativa e alegremente de orgias, Matilde conquistou um espaço privilegiado para informações. A vaidade, aliada ao hábito dos nobres de desprezarem seus serviçais a ponto de não cuidar da própria língua, foi munindo a cortesã com informações absolutamente secretas. Adulando o Rei, cumprindo cegamente suas ordens, realizando seus mais torpes desejos, em pouco mais de um ano Matilde estava na lista das pessoas de confiança absoluta de Aran de Amarantos. E era a principal informante de Mestre Renan.
Quando terminou de contar essa história, meu antigo tutor deu um longo gole em seu copo de vinho. Estávamos em uma das poucas tabernas existentes em Líath, compartilhando um prato de javali com batatas e um bom garrafão de vinho. A bebida deixava a língua mais ágil e as histórias mais vívidas, animadas por detalhes que, de outra maneira, talvez nunca mencionássemos. Foi assim que Mestre Renan narrou detalhes das noites de orgias promovidas por meu pai, do prazer que o Rei sentia vendo Matilde se entregar a outros homens — ou mulheres — obedecendo a ordens dele. Contou como ele mesmo, Renan, foi insistentemente convidado por meu pai para participar dessas festas, e de como se esquivava sempre apelando para um voto de resguardo. Meu antigo tutor me confidenciou que, como qualquer homem, sentia as necessidades da carne, e o prazer do sexo lhe agradaria muito. Mas entre ser obrigado a participar dos festins do Rei ou adotar o celibato como estilo de vida, optou pela segunda hipótese que o deixava livre. Ceder aos desejos da carne, naquele caso, significava se tornar refém do comando de Rei Aran. Afastado dos prazeres carnais, o professor ganhou fama de homem austero e íntegro, e tirou partido disso.
Naquele momento, menos rígido e mais humano, Renan me olhava com franqueza e, pela primeira vez, se dirigia a mim como amiga e não como Princesa ou tutelanda.
— … e agora temos seu relacionamento com Matilde… Imagino como Alex esteja se sentindo. As duas são muito amigas, e ela ficou tão perturbada com o sofrimento da outra…
— Sofrimento? Do que você está falando?
— Do sofrimento de Matilde quando a você a deixou, oras! E agora entendendo porque ela nunca nos contou os detalhes, porque fugia do assunto quando queríamos entender o que estava acontecendo. Não se atrevia a dizer que estava envolvida com a filha de Aran. Muito provavelmente, se aproximou de você apenas com interesse de espionagem, mas acabou se apaixonando. Seu primeiro amor desde Niall…
Tomou mais um gole enquanto afagava a vasta cabeleira branca, pensativo.
— Entenda agora a situação de Alex: está há tempos preocupada com o sofrimento de sua amiga, e sempre empenhada em ajudar de alguma maneira. De repente descobre que ela própria, Alex, está entre Matilde e seu grande amor. Para que uma seja feliz, a outra acabará sofrendo. Mesmo considerando que Matilde e Alexandra não são mulheres que pensem no amor como posse. Ainda assim, acho que a intensidade do que ambas sentem por você, torna tudo muito difícil.
Suas palavras aumentavam minha sensação de estupidez pelo tapa dado em Matilde. Virei de uma só vez o copo que estava à minha frente. O vinho desceu quente e minha visão ficou turva por apenas um instante.
— O tapa que dei nela está doendo em mim, Mestre. Sinto-me estúpida, nem sequer lhe dei uma oportunidade de explicação. Sempre soube que ela se deitava com os nobres da cidade, mas nunca imaginei que com meu próprio pai… Num primeiro instante me senti traída pelos dois, mas logo em seguida a razão falou mais alto: meu pai não fazia ideia do meu relacionamento com Matilde. Mas a recíproca não era verdadeira, ela sabia muito bem com quem estava envolvida. E nunca sequer me deu uma pista, não me preparou para a possibilidade daquele encontro. E não foram poucas as vezes que perguntei quem era o todo-poderoso que a visitava vez por outra, e interditava toda a quadra de sua residência. Ela sabia que eu estava desconfiada, mas não me disse nada.
— E o que ela diria, Aléssia? Que dormia com seu pai?
— Não sei como eu reagiria a essa revelação… Mas ela poderia ao menos ter tentado. Seria mais fácil aceitar uma terrível verdade contada do que um segredo descoberto ao acaso.
— Ela estava apaixonada por você, a filha do homem que assassinou cruelmente seu marido. Matilde dedicou sua vida a destruir seu pai, e de repente se vê numa situação absolutamente inesperada. Acho um pouco mais difícil de entender porque ela não confiou esse segredo a mim ou Alex, mas ainda assim é razoável pensar que estava amedrontada com a situação. Até porque era muito provável que, sabendo do envolvimento de vocês, Alexandra passasse a desconfiar das informações de Matilde. E, seja como for, apesar do amor que sente por você, Matilde não recuou nem um momento em sua vingança, e continuou a nos alimentar com informações preciosas. Talvez seja correto dizer que o ódio por seu pai, acumulado ao longo de muitos anos, falou mais alto do que o recém-nascido amor pela filha do Rei. E, veja só, coloque-se em seu lugar, Aléssia: como ela poderia ter certeza de que você não era como ele? Ela a amava e temia ao mesmo tempo. No fundo, sabia que deveria evitá-la a todo custo. Mas não conseguia. Percebe Matilde presa nessa armadilha?
— Nos últimos dias tudo o que tenho feito é reviver aquela cena. Meu tapa em seu rosto, seu olhar quase cínico para mim, a maneira debochada como me disse suas últimas palavras… Palavras escolhidas para me machucar, me ferir. É até difícil crer que ela tenha me amado algum dia. Naquele instante, tive certeza de que havia me feito de idiota, que apenas se divertia comigo, tal o cinismo e arrogância do que falou.
— E o que pode Matilde ter lhe dito de tão grave assim, Aléssia?
Tomei o garrafão da mesa, minha mão levemente trêmula ao encher o copo. Depois o esvaziei em um único gole e aguardei alguns minutos até que o álcool fizesse seu efeito.
— Ela me comparou com ele.
— Com seu pai?
Sacudi a cabeça, afirmativamente.
— Ela lhe acusou de ser como ele?
— Não, não foi isso… me comparou a ele… de uma maneira mais sórdida.
Renan fez um sinal de que não estava entendendo e que era para eu prosseguir. Com a língua trôpega e o juízo mole, repeti as últimas palavras de Matilde, aquelas que nunca haviam abandonado minha memória:
— “E se eu lhe disser que você é melhor amante do que ele? Ficará feliz?”, foram essas suas últimas palavras. Nada fácil de se ouvir. Ainda mais naquele tom de voz raivoso e cínico de quem estava se esforçando pra me fazer sofrer. Voltei para o Castelo arrasada. Aqueles foram os piores meses da minha vida. Como se não bastasse a desilusão amorosa, ainda pesava não poder contar com a amizade de Amaryllis. Nunca tinha me sentido tão solitária!
— Foi na época em que lhe perguntei o que estava lhe acontecendo?
— Um pouco antes, na verdade. E enquanto me estilhaçava de dor por Matilde, não podia imaginar como as coisas piorariam tão rapidamente. Aos poucos comecei a descobrir toda a sordidez que meu pai me escondia. Aí, sim, minha vida virou um inferno completo. Foi quando você percebeu que havia errado.
Renan suspirou fundo, depois pegou o cachimbo, limpou o fornilho, acendeu o fumo e deu uma tragada longa e lenta. Com um olhar distante, e uma voz mais pausada que o habitual, começou a comentar aquele período.
— Eu sabia que estava acontecendo algo com você, era visível para qualquer um que a conhecesse. Tão óbvio e notório que não sei como seu pai não percebeu. Se ele fosse distante de você, seria simples entender. Mas a questão é que ele sempre foi muito atento. Aliás, essa é uma questão notória. Quando conheci Aran, não conseguia imagina-lo amando alguém. Disse isso a Maura diversas vezes. De forma velada, inicialmente. Com todas as letras, quando ela insistiu naquele maldito casamento. Mas ela dizia que havia uma centelha de amor dentro dele, ainda que muito escondida.
Interrompeu a fala para dar uma longa tragada, depois ficou olhando a rua fora da taberna. Eu tomei mais um largo gole de vinho para controlar a ansiedade. Temia que ele mudasse de assunto justo quando falava de minha mãe.
— Quando ela dizia isso — continuou finalmente — eu pensava que se referia a um possível amor de Aran por ela. Achava que Maura estivesse se iludindo. Hoje acho que ela enxergou nele o que ninguém mais foi capaz de ver.
Parou novamente e tomou um gole de vinho antes de dar mais uma tragada. Parecia ser difícil para ele falar daquela época.
— Sua mãe era uma mulher muito especial. Provavelmente a pessoa mais sábia que já conheci. Foi uma grande perda…
Parou com um grande suspiro, e ficou um instante olhando o vazio. Então se levantou de modo inesperado, fazendo um gesto para eu segui-lo.
— Todo homem merece vadiar de vez em quando, mas nós já estamos abusando de nosso direito. Vamos embora, Aléssia, vamos retomar nosso posto nessa revolução.
Saímos da taverna para a noite de Líath. Mestre Renan estava tão alterado pela bebida que precisei acompanhá-lo até a casa de hóspedes. Depois atravessei a praça observando a lua, a cabeça produzindo imagens desconexas. Depois de tanto remexer o passado, seria natural que eu pensasse em minha mãe, Matilde ou mesmo Amaryllis. Entretanto, o único pensamento coerente que tive foi com Diana. Como estaria?
Os dias seguintes foram de muito trabalho no exército. Depois de longas discussões com Alex, eu auxiliava Breno no treinamento das tropas. Concordei em auxiliá-los, com a promessa de que a vida de meu pai seria poupada. Alex sustentava sua posição de que seria impossível destruir a Pedra dessa forma. Eu, no entanto, acreditava no impossível, e convenci Alexandra
Líath, por sua tradição bélica, possuía um exército organizado, mas tínhamos poucos oficiais de carreira. Nossas fileiras eram formadas por voluntários, homens e mulheres cansados de injustiça. Observando-os chegar em hordas, eu duvidava da inteligência de meu pai. Independente de qualquer conceito de humanidade, os bons tratos sempre se revelam melhor arma de dominação. É fácil se rebelar contra a mão que lhe agride e bem mais difícil se revoltar contra a mão que lhe alimenta e acarinha. Falo por experiência própria. O mal que meu pai me fez foi involuntário. Ainda assim, não pior do que o que fez por vontade própria. A diferença foi ter deixado para os desconhecidos a benção de odiá-lo sem culpa.



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para Capítulo XL

  1. Eita, essa da Matilde saiu do fundo do baú, hein? Custei a lembrar quem era a Diana, referida no comentário acima!
    Mas, feliz com o capítulo extra! Obrigada e parabéns!

    • Oi Naty, tudo ben? Tem gente demais nessa história, né? ???Eu também me perco, às vezes. Diana está no capítulo 41, e acho que vai nos acompanhar por um tempo a partir de agora.

      Gratidão pelo comentário, Naty. É muito bom te ver por aqui. Um grande beijo.

  2. Oiiiii

    Tô muito feliz, capítulo extra!!!! 😛 Arrasou kkkkk

    Sra. Diana Rocco se você estivesse na minha frente agora morreria asfixiada de tantos abraços e beijos que iria te dar! Com todo o respeito, viu? 😛

    Como assim a Alex é a melhor amiga da Matilde?! Fiquei bege. E a Alê descobrindo mais coisinhas do papai!

    Já tô super ansiosa pelo próximo capítulo mulher! E querendo, quer dizer, necessitando saber da Diana da história também.

    Pode maltratar, mas maltrata aos poucos! ;P

    Muitos abrs pra ti! o/

    • ? abraços e beijos recebidos com muito carinho, Lins! (mas vamos combinar que é melhor não me matar antes que eu termine de postar Aléssia, certo? ?

      Revelações! Revelações! Tem muita coisa vindo pela frente, menina! Teremos notícias de Diana e companhia. Líath precisa do apoio de Forte Velho, essas personagens reaparecerão, isso é certo.

      “Pode maltratar, mas maltrata aos poucos!” >>> não me dê ideias, Lins ? É um perigo alimentar a imaginação de um escritor kkkkkk

      Beijos, querida, muito obrigada pelos comentários, isso é um enorme incentivo para continuar escrevendo.

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