Aléssia

Capítulo XXXV

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXV <<<

— Agora você sabe que ela não é de confiança.
A voz fria e barrenta me recebeu e, através dela, sabia onde estava: no Bosque. Em casa. Deitei na grama, exausta, e o cheiro de terra molhada me acalmou. Olhos abertos ou fechados, não importava, o escuro era o mesmo. Mas aquelas sombras eram minhas, pertenciam-me de tal forma que já não mais me assustavam. Em casa! Bastava-me correr para meu velho quarto e tudo estaria bem.
— Sim. Ela quer nos destruir.
— Mas é você quem vai vencer. Como todos os Amaranto sempre venceram. E graças a mim. Toque-me, Aléssia, receba de uma vez sua herança e, como seu pai, você será indestrutível.
— A proposta é tentadora, Pedra. Mas assim como não confio mais em Alexandra, também não confio em você.
— Ah, obrigada pela sinceridade. Poucos foram os que tiveram coragem de ser autênticos comigo.
— Espero que considere isso a meu favor quando a hora chegar.
— Gosto de você, Aléssia. Você é forte, firme, decidida. Seu pai, na sua idade, era apenas um garoto mimado e assustado. Você se parece com sua mãe… e isso me faz olhá-la com muito mais carinho.
— Você conheceu minha mãe?
– Infelizmente não houve oportunidade para que fossemos formalmente apresentadas. Mas sim, a conheci, através de seu pai.
— O que está dizendo? Que pode ver as coisas através de meu pai?
— Um pouco mais do que isso. Meu acordo com seu pai é uma troca, Aléssia. Eu dou a ele o meu poder.
Aguardei que a Pedra completasse seu raciocínio, mas a frase ficou suspensa no ar. Talvez pensasse que eu já tinha compreendido. Ou talvez estivesse testando se eu teria coragem de perguntar.
– Certo, é uma troca. Que você lhe dá poder eu já sabia. Então a questão é o que ele lhe dá, não é?
— Consciência corpórea.
— O que?
— Sou uma pedra, Aléssia. Posso ter todo o poder do mundo, mas não posso sair de meu lugar. Por maior que seja minha força, não posso ser outra coisa além de uma pequena rocha em um pequeno bosque. Meu acordo com seu clã é bastante claro — ofereço a vocês minha fonte inesgotável de poder. Em troca, recebo uma parte de sua mente, um pequeno espaço onde possa me alojar. Nada que doa. Apenas uma forma de experimentar o mundo através de seus corpos…
Um frio intenso subiu por minha espinha e, pela primeira vez em meses, os pelos de minha nuca se eriçaram. Farejei perigo antes mesmo de digerir totalmente aquelas estranhas palavras. Com a cautela de quem está em território inimigo comecei a me levantar. Precisava sair dali.
— Já pensando em sair, Aléssia? Será que me enganei com relação à sua coragem? Sempre achei que o sangue O’Líath aprimoraria a raça dos Amaranto. O clã de seu pai possui iniciativa, mas é grosseiro. Os O’Líath, ao contrário, sempre foram muito argutos e refinados. Julguei que você nasceria com o melhor de cada lado. Será que me enganei?
— Talvez tenha se enganado. Como posso saber?
— Tentando ganhar tempo, Princesa? Ah, você já andou metade do caminho. Já estou em sua pele. Vamos, termine com isso logo. Ninguém ganha com essa demora.
— E o que acontece depois que eu te tocar?
— Você já sabe.
– Não. Você compartilha a consciência de meu pai, não é? O que fará depois que eu te tocar? Vamos os três compartilhar a mesma consciência?
— Eu prefiro você, Aléssia. Seu pai me foi útil por bastante tempo, mas gosto de sua audácia e juventude. E acho que posso extrair um pouco mais de coragem desse sangue O’Líath. Quando você me tocar seremos apenas nós dois. Seu pai deixará de ser meu hospedeiro.
— E o que acontecerá com ele?
— Não vou matá-lo, se é esse seu medo. Na verdade, o futuro do Rei Aran está inteiramente em suas mãos. Você será Rainha de Âmina e de Líath, tão logo me toque. Poderá se vingar de Alexandra. E decidirá o destino de seu pai. Está bem assim?
Não, não estava. Mas eu acabava de me dar conta de algo terrível e precisava ganhar tempo até descobrir uma saída.
— Está começando a ficar interessante.
— Poder não lhe basta, Princesa?
— Há algo mais que me interessa.
— Diga. Se estiver a meu alcance…
— Amor.
— Com Poder se tem o amor que desejar.
— Não é verdade. Com poder se tem temor. Quero amor verdadeiro. O amor de alguém a quem sempre desejei e que me despreza. Quero que ela me ame com fervor. Que me venere como se eu fosse alguma espécie de deus.
Pela primeira vez a resposta foi silêncio. Concentrei meus pensamentos naquele vazio. Precisava de uma saída.
— O poder tem muitas facetas, Aléssia. Uma delas se chama sedução. Não posso lhe dar garantias de que ela vá te amar, mas posso lhe ensinar a seduzi-la com maestria. O resultado final é praticamente o mesmo.
— Parece bom –- disse, enquanto firmava os pés no chão. Não tinha nenhuma intenção de me aproximar da Pedra, mas não podia deixá-la perceber isso.
— Venha, toque-me!
— É apenas um toque? Pensei que fosse necessário mais do que isso para selar nosso destino.
— Você fala demais! Toque-me e logo saberá do que se trata.
— Bem, se não há mesmo outro jeito de descobrir…
A única alternativa era fugir. Com cautela movi meu tronco em direção à Pedra e, no instante seguinte, girei nos calcanhares e disparei numa corrida no sentido oposto. Ouvi um som rouco, que julguei ser um grito de raiva. O chão tremeu, raízes de árvores surgiam onde antes não havia nada, meus pés enganchavam em ramos, tropeçavam em pedras. Consegui evitar o tombo uma, duas vezes. Na terceira meu pé de apoio se enroscou e caí. O chão se ergueu de maneira inacreditável e comecei a escorregar em direção à Pedra. Tentei me levantar, meus movimentos sumindo, a força nos músculos diminuindo. Como golpe final a marca ardeu como nunca e eu cedi. Deixei meu corpo inerte sobre a terra, que me levava de volta para a Pedra. Tudo em mim era dor. Eu não tinha mais defesa alguma. Estava perdida.
Como se fosse um golpe de misericórdia, das trevas nasceu um som uivado assustador. O animal saltou sobre mim: meu fim, pensei. Preparei-me para a pior morte possível, mas ao invés de despedaçado, meu corpo estava sendo arrastado. E não, não íamos em direção à Pedra.
A marca latejava ainda, mas estranhamente não queimava como antes. Com o sofrimento amenizado pude notar, horrorizada, a situação em que me encontrava. O lobo cinzento, o mesmo que há muito frequentava meus sonhos e que eu encontrara na Floresta Escura, arrastava-me como uma presa qualquer.
A fera largou meu corpo aos pés de uma pessoa. Uma mulher vestida em rica sandália ornamentada com pequenos brilhantes. Uma esperança agitou meu coração, ao mesmo tempo em que um leve afagar de cabelos me amparava.
— Obrigada, Alex. Ela vai ficar bem. Agora vá, precisam de você lá.
Reconheci a voz: minha mãe! Maura me acolheu nos braços e seu carinho foi o melhor bálsamo para todos os meus tormentos recentes.
— Você entendeu o principal sobre a Pedra, minha filha. Agora feche sua mente para as influências desse ser nefasto, não a deixe controlá-la.
— Como é possível, mãe?
— Esforce-se. Mantenha-se pelo caminho que tem seguido até aqui. Em breve as coisas ficarão mais fáceis. Por enquanto resista. Resista com todas as suas forças!
Com um beijo na testa aconselhou-me a descansar, quando tudo o que eu queria era sua companhia.
— Precisamos seguir nossos caminhos. Nos veremos em breve. Vá em paz.
Acordei no meu quarto de recolhimento, com a luz dourada do poente iluminando as paredes. Uma senhora, sentada à minha cabeceira, se agitou ao perceber meu despertar. Ofereceu-me chá e, quando sentei na cama, olhou assombrada para minhas costas. Então saiu e voltou em seguida com Alex.
Minha prima corou levemente e desviou o olhar ao me ver.
— Deixe-me ver suas costas, Aléssia. Céus, temos machucados severos aqui. Vamos precisar de vários unguentos. Deite-se de bruços, vou organizar minhas preparações e já volto.
— Agora eu sei porque sua opinião a meu respeito mudou tão rápido, Alex.
Alexandra estancou o passo já no limiar da porta, mas não disse nada. Deixou-me sozinha por longos minutos. Voltou, como havia prometido, trazendo muitas vasilhas e uma legião de senhoras para lhe auxiliar. Passaram as horas seguintes untando minhas costas com ervas, que deixavam atuar por tempo cronometrado. Depois banhavam a área machucada e aplicavam novo preparado. Por fim enfaixaram-me o tronco com unguento sobre os ferimentos, serviram-me um chá de melissa mais forte que o de costume e me ordenaram que descansasse. Alex foi a última a sair do quarto e antes de fechar a porta, me olhou atentamente.
— Descanse em paz, nada de mal vai lhe acontecer. Cuidarei pessoalmente para que seus sonhos sejam suaves e seguros.
De alguma forma ela cumpriu a promessa. As três noites seguintes foram de descanso. Só quando meu corpo estava recuperado é que retomamos a rotina de conversa ao pé do caldeirão. O ambiente estava mais calmo do que da última vez e me senti em paz, como quem regressa à rotina da própria casa e se anima por estar em família. Alex havia sido severa comigo. Eu havia sido injusta ao julgá-la. De certa maneira estávamos com nossas contas acertadas. E guardávamos agora a cumplicidade de coisas que apenas nós entendíamos.
Assim transcorreram mais vinte e nove dias e chegamos, então, à noite da Segunda Iniciação. Mais uma vez me serviram a beberagem sagrada, depois me ornaram com flores e o vestido branco e, na mesma formação da cerimônia anterior, fui reconduzida ao círculo em torno da fogueira. Meu cabelo solto varria o centro de minhas costas numa sensação aconchegante que elevava meu espírito feminino. Assumi meu lugar no círculo com a cabeça erguida, mas não numa postura rígida e autoritária, justo ao contrário. Era um orgulho de ser a mulher que eu sou, única como qualquer pessoa deve ser. Mas esse orgulho não era arrogante, era suave e compreensivo, dando a todas as minhas irmãs o direito de serem exatamente como eram. Sim, irmãs. Todas as mulheres naquele círculo, independente de idade ou origem, eram minhas irmãs. E não apenas elas, mas todas as mulheres de Líath. Todas as mulheres de Âmina. Todas as mulheres do mundo são irmanadas por essa mesma essência feminina, que eu descobria ao longo daquele ciclo iniciatório. Os Mistérios Femininos compartilhados à beira do caldeirão, no calor transformador da cozinha.
Assim, altiva e feliz, dancei e cantei em volta do círculo, mais uma vez os olhos fixos nos de Alexandra, mas agora compartilhávamos um sorriso cúmplice, que me dava a sensação de estarmos sós, meu corpo dançando nos braços dela.
O movimento circular e a música formavam o ambiente propício para que a beberagem abrisse caminhos por meu corpo e alterasse meu nível de consciência. Dessa vez eu aguardava a transição e, ainda que envolta na alegria da celebração, vigiava minha mente para não me deixar ser feita refém. Foi assim que percebi quando um arrepio percorreu minha espinha e atingiu minha cabeça. Senti como se uma coroa de fogo se erguesse de meu crânio para os céus. Com um sorriso de satisfação e reconhecimento, deixei que a energia purificasse meu ser e abri os olhos para enxergar além do véu. Foi assim que o milagre que eu desejava desde a infância aconteceu.
A princípio percebi apenas vultos entre as senhoras da Irmandade das Almas. Formavam uma outra fileira de corpos e dançavam num segundo círculo fora do nosso. Minha mente não reagiu nem julgou e os olhos aceitaram a visão que se tornou nítida. Reconheci Maura pouco atrás de Alexandra, um enorme sorriso no rosto, dançando com graça e leveza, exatamente a mulher deslumbrante de quem tanto me falavam. Não contive o sorriso. A noite toda se transformou em uma festa. Mesmo quando não fui mais capaz de manter o véu erguido, mesmo quando minha visão voltou a ser limitada a uma pequena realidade, mesmo assim a alegria não me abandonou. Pois agora a alegria provinha de um entendimento maior sobre a substância de que é feito o mundo.



Notas:



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4 Respostas para Capítulo XXXV

  1. Diana, magnífico:

    “Era um orgulho de ser a mulher que eu sou, única como qualquer pessoa deve ser. Mas esse orgulho não era arrogante, era suave e compreensivo, dando a todas as minhas irmãs o direito de serem exatamente como eram. Sim, irmãs. Todas as mulheres naquele círculo, independente de idade ou origem, eram minhas irmãs. E não apenas elas, mas todas as mulheres de Líath. Todas as mulheres de Âmina. Todas as mulheres do mundo são irmanadas por essa mesma essência feminina, que eu descobria ao longo daquele ciclo iniciatório.”

  2. Oi Diana

    A cada nova atualização fico na expectativa pra saber o que vai acontecer em seguida! Momentos tensos da princesa com a pedra, eta mulher porreta essa Alê rrssrrs

    E as primas se entendendo…

    Muito lindo a segunda iniciação ?

    Agora chega logo domingo!!!!

    Abrs ?

    • ???
      Gratidão, Lins! A história tá esquentando, né? O capítulo de domingo está muito emocionante mas, embora eu também esteja louca para vê-lo publicado, to rezando mesmo é para que chegue logo o sábado ? rssssss

      Um beijo carinhoso, querida, adoro receber seus comentários ?

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