Capítulo 38

Acordei e escutei vozes no quarto, percebi que era a Clara e Dani conversando, só não consegui entender qual era o assunto. Levantei, fui ao banheiro fazer minha higiene:

-Bom dia! – as duas falaram juntas.

-Bom dia!

Respondi dando um suave beijo nos lábios da Clara, um no rosto da Dani e me joguei no pequeno sofá que tinha na frente da mesa que as duas estavam tomando café.

-Dormiu bem? – Dani me perguntou.

-Feito uma pedra, nem lembro se sonhei. – sorri levemente.

-Vem comer alguma coisa, Du.

-Estou sem fome, só quero um pouco de suco.

Nesse dia fomos mais cedo para o hospital. Eu precisava ver meu pai, saber se ele tinha acordado novamente, como estava a sua saúde. Entrei no quarto e o vi acordado sozinho, sinal de que a imbecil da Regina não tinha aparecido mais uma vez. Assim que abri a porta, ele olhou para mim e ficou surpreso em me ver:

-Oi – falei num fio de voz.

-Oi.

-Como está se sentindo? – sentei na cama.

-Meu lado direito não mexe direito – sorriu.

Quando ele sorriu, percebi que seus lábios não respondiam bem, o lado direito estava um pouco debilitado.

-O Dr. Marcelo já veio vê-lo hoje?

-Veio sim, disse que volta depois do almoço.

-Ele é um médico muito bacana, difícil encontramos um assim, a maioria nem olha para seus pacientes, mesmo em hospitais particulares.

-Ele realmente foi muito atencioso, me disse que você esteve aqui desde o segundo dia que estou internado, é verdade?

-É sim. A Regina me ligou informando e consegui uma liberação no trabalho, quando eu voltar vamos ver como vou pagar esses dias.

Quando mencionei o nome de sua esposa, percebi que meu pai ficou incomodado, mas não quis entrar em detalhes naquele momento.

-Você pode se prejudicar, afinal de contas você tem pouco tempo trabalhando lá.

-É verdade que tenho pouco tempo, mas acertei com um dos meus chefes que pagava esses dias quando voltasse. Ele que me disse que podia vir sem problema nenhum. Não preciso me preocupar.

-Achei que fosse morrer sem te ver, sabia?

-Não precisa falar isso, pai. Nós dois erramos muito, mas estou aqui há doze dias cuidando de você. Vamos esquecer tudo aquilo, pelo menos por enquanto.

-Tudo bem, mas precisamos conversar o mais rápido possível, não sei se vou conseguir resistir por muito tempo.

-Não diga isso, certo? – fiz um carinho em seu rosto.

Ouvi batidas na porta.

-Entra.

Dani colocou somente o rosto do lado de dentro:

-Duda, a Clara está precisando falar com você, é sobre o Vc3. Está com o Carlinhos na linha.

-Tudo bem, já estou indo.

-Pode deixar que eu fico aqui com ele, vai tranquila – piscou para mim.

-Quem é essa moça bonita, filha? Sua namorada?

Olhei para ele surpresa e sorri.

-Não pai, essa é a Dani, uma grande amiga, uma irmã – sorrimos cúmplices – minha namorada está lá fora – falei num tom mais baixo como se tivesse contando um segredo e ele riu.

-Assim que você resolver o que tem para resolver, trás ela aqui?

Definitivamente não estava acreditando no que estava ouvindo, olhei para a Dani e ela sorriu como se já soubesse disso. Beijei meu pai na testa e saí do quarto:

-Oi amor, o que houve?

-Bom, o Carlinhos ligou dizendo que estamos demorando muito e que o projeto está atrasado. Concordei com ele e disse que ia dar andamento nas coisas daqui mesmo de Curitiba, todos os dias nós enviaremos relatórios para eles e quando precisarmos, nós faremos reunião via vídeo conferência.

-Linda, você não precisa estar aqui, vai ser uma despesa desnecessária para a empresa, você não acha… – fui interrompida.

-Acho que você é minha mulher e tenho que estar com você onde estiver, se você precisa acompanhar seu pai agora, eu também vou fazer o mesmo, mas vamos dar continuidade ao nosso trabalho. Não se preocupe quanto às despesas extras da empresa, o hotel é por minha conta, eles só vão pagar se houver necessidade da vídeo conferência.

-O hotel não é por sua conta, é por nossa conta – sorri.

-Não adianta eu ir contra a sua vontade, não é mesmo?

-Não. Dessa vez não.

-Tudo bem, senhora cabeça dura – sorriu.

A Clara ligou novamente para o Carlos e avisou de nossa decisão, demoraram um pouco para chegar a um acordo, mas finalmente isso aconteceu:

-Agora vem cá, amor!

-O que foi?

-Meu pai acordou e quer te ver – sorri.

-Como assim?

-Clara, você está igual a Rafa – ela fez uma cara linda de quem não estava entendendo – não entende uma coisa assim, tão simples.

-Você pode ser mais clara?

-Amor, presta atenção: a Dani foi lá dentro me chamar e meu pai já estava acordado quando eu entrei, aí ele me perguntou se ela era minha namorada, eu neguei, óbvio, disse que era uma grande amiga e que minha namorada estava aqui fora. Com isso ele disse que queria te conhecer, nada além disso.

Puxei a Clara pela mão até entrarmos no quarto, bati levemente na porta e ouvi a voz de Dani autorizando nossa entrada:

-Oi, pai!

-Oi filha, entra – ergueu a mão para que eu segurasse – estava aqui conversando com a Dani, gostei da sua amiga.

-Já está procurando “descaração” com minha amiga, pai? – sentei ao seu lado na cama.

-Não Duda,  eu  sei  que  ela  não  gosta  disso,  ela  é  igual  a  você,  mas  se  gostasse…  –     sorriu e acompanhamos.

-Você teve a quem puxar, Dudinha.

-Não começa, tá Dani?

-Aquela moça bonita encostada na porta é a sua namorada, Duda?

Olhei para a Clara, sorri e ela devolveu o sorriso, mas um pouco sem graça.

-É sim, pai – estendi a mão para ela se aproximar – Sr. Moura, essa é a Clara.

A Clara deu um beijo no rosto do meu pai e ficaram trocando gentilezas, falando besteiras a meu respeito, me deixando deveras envergonhada e a Dani, que se diz minha amiga, estava rindo daquilo tudo.

A conversa continuou animada até o Dr. Marcelo chegar. Pediu para que nós saíssemos do quarto para que ele pudesse fazer os exames de rotina. Assim que ele terminou foi conversar conosco e disse que meu pai tinha acabado de tomar uma medicação e que já estava dormindo. Até aquele momento ele estava bem e que não teria muitas seqüelas, nada que algumas sessões de fisioterapia não resolvessem, fiquei aliviada com a notícia.

Os dias que se seguiram foram corridos: pela manhã íamos para o hospital e a tarde voltávamos para o hotel para dar prosseguimento ao projeto, às vezes não havia necessidade e ficávamos trabalhando no quarto do meu pai. Na realidade não queríamos que ele se sentisse sozinho, já que a Regina não havia aparecido e sabia que ele já tinha saído do coma. Os filhos dela apareceram algumas vezes, mas também não demoravam muito.

Às vezes enquanto eu discutia algumas ideias com a Clara, passava o olho rapidamente pela cama do meu pai e o via me olhando admirado, eu sorria e voltava com o que estava fazendo, preferia não fazer nenhum tipo de comentário. A Dani nos ajudava dando algumas opiniões e no que fosse mais necessário. Até aquele momento eu não havia encontrado uma razão plausível para ela ficar ali conosco todos aqueles dias, mas resolvi não questioná-la. Meu pai estava se dando muito bem com ela enquanto  eu e minha namorada estávamos concentradas no projeto.

Meu relacionamento com a Clara estava maravilhoso, voltamos a não discutir mais. Se não fosse o motivo de estarmos todos os dias no hospital, poderia falar que estávamos em lua de mel. Passávamos as madrugadas nos amando de diversas formas, calma, brutalmente, mas nenhuma delas deixava de ser intensa, aproveitávamos até o último gozo. Meu pai estava adorando-a e a Dani nunca atrapalhou nada entre a gente mesmo estando o tempo inteiro conosco.

Eu não conseguia me conformar com a omissão da Regina com o estado de saúde do meu pai e ele parecia não se importar com isso, aliás, parecia até aliviado com a sua ausência e grato, feliz com a minha presença. Teve um dia que não resisti, foi mais forte do que eu e resolvi tocar no assunto:

-Pai, sei que você está me omitindo alguma coisa sobre o sumiço da Regina aqui no hospital depois que você deixou o coma.

-Eu sei que você já percebeu, acho que já está na hora de você se interar de algumas coisas.

A Clara e a Dani fizeram menção em sair do quarto:

-Não, vocês ficam também. Já percebi que minha filha não tem nenhum segredo com vocês.

-Estou ficando preocupada, pai.

-Duda, sei que você nunca gostou da Regina e tenho conhecimento dos motivos. Demorei algum tempo para entender e lhe dar razão, mas já foi tarde demais para voltar atrás em minhas atitudes com você. Tenho consciência que fui um péssimo pai antes mesmo da Regina aparecer. Eu não te ensinei nada, não  te vi dar os primeiros passos, não te ouvi falar as primeiras palavras, não te acolhi em noites de pesadelo, não fui a nenhuma festa dos dia dos pais em sua escola, não fui nada do que um pai normal poderia ser e hoje tenho remorso disso tudo. Infelizmente achei que o dinheiro que lhe dava, conseguia suprir minha ausência, mas percebi tarde demais que não era isso o que você queria. Filha, hoje sei que não lhe conheço, não sei coisas básicas sobre você. Não participei da sua escolha profissional, não tenho conhecimento dos seus projetos de vida, não sei sua cor favorita, o sabor de sorvete que mais gosta, a música, o livro… Não lutei por ti quando você me ligou ainda quando era criança dizendo que queria morar comigo, hoje sei que muita coisa poderia ter sido evitada, muita mágoa que você tem em seu coração e que não deixa ninguém perceber, hoje não existiria se eu te ajudasse naquela época. Desde criança você era uma pessoa muito intuitiva, mas nem eu nem sua mãe nunca lhe demos atenção, achávamos que era coisa da sua imaginação. Muita coisa estaria diferente hoje, tenho certeza, eu só precisava lhe dar ouvidos.

Meu Deus! Meu pai estava admitindo seus erros ali para mim, minha namorada e minha amiga, pessoas totalmente estranhas para ele até então, inclusive eu, era uma completa desconhecida.

Definitivamente lembrar de coisas desse tipo não me fazia bem, meu pai tinha razão ao dizer que ainda tenho muita mágoa com coisas que aconteceram ainda quando eu era uma criança e depois que cresci também, mas aprendi a passar por cima disso tudo para tentar ser feliz. No espiritismo chamamos isso de suicídio inconsciente e depois que me tornei espírita, aprendi a perdoar as pessoas que me magoaram, magoa e magoarão.

A Clara e a Dani estavam sentadas em frente a uma mesa que conseguimos colocar ali para darmos continuidade aos nossos trabalhos, eu estava com as mãos nos bolsos da calça jeans na janela olhando  para algum ponto que não tenho noção do que era, minha visão já estava embaçada pelas lágrimas.

Não conseguia encarar meu pai e nem as outras duas naquele momento que eu estava tão frágil. Ele falava, falava e as lágrimas brotavam dos meus olhos, estava quase numa retrospectiva da minha vida que detesto lembrar, prefiro guardar as lembranças ruins. Quanto mais eu escutava o meu pai falando, só queria que ele tirasse uma dúvida que martelava em minha cabeça até aquele dia:

-Filha, eu te amo, preciso que você me perdoe por tantos erros que cometi com você… Eu quero… – interrompi.

-Por que você se casou com aquela mulher?

-Porque eu estava ficando velho, precisava de alguém para cuidar de mim, ela dizia que me amava. Você não falava comigo, a sua irmã é muito jovem e eu não posso criar esse tipo de expectativa com  vocês duas.

Eu continuava de costas para os três, balançava a cabeça negativamente:

-Que motivo mais idiota.

-Eu sei, foi mais um erro. O maior da minha vida, o que quase me levou embora.

-O que ela fez contra você? – perguntei com medo da resposta.

-Um dia cheguei mais cedo do trabalho e a encontrei no telefone, ela não percebeu minha chegada. Estava conversando com alguém que não consegui entender quem era, disse que não estava bem com o casamento e que estava praticamente passando fome entre várias outras coisas.

-Aparentemente isso não é um motivo para sua pressão subir tanto.

-Não era mesmo, mas depois que ela encerrou a ligação, começamos a discutir e ela colocou seu nome no meio, disse barbaridades, inclusive que seu maior desejo era que você morresse e que na primeira oportunidade que tivesse, faria isso com as próprias mãos aí os gritos aumentaram e no alto da discussão comecei a passar mal e estou aqui hoje. Acho que o restante você já sabe.

Não aguentei mais segurar, as lágrimas já caiam descontroladamente. Meu pai quase morreu por causa de uma louca que ameaçou minha vida. Pela primeira vez ele teve atitude de pai, tentou me defender verbalmente e acabou em uma cama de hospital e quase desencarnou. Definitivamente eu não podia ver aquela mulher na minha frente, ameaçou a minha vida e quase matou meu pai mesmo que sem a intenção.

-Filha, acho que a maior raiva dela é que um pouco antes de casarmos, passei quase tudo o que   é meu para seu nome e o da sua irmã, mas tenho uma procuração para movimentar.

-Como você conseguiu essa procuração?

-Quando você veio morar comigo você assinou uns papeis e um deles é uma procuração que sou seu representante legal no estado do Paraná.

-Então tudo isso foi por causa de dinheiro?

-Infelizmente, sim.

Enxuguei as lágrimas que caiam, virei meu corpo e caminhei até a cama do meu pai, beijei-lhe na testa e vir-me-ei para a Dani e a Clara:

-Preciso ficar um pouco só, mas estarei no hotel.

Assim que cheguei ao quarto do hotel, tomei um demorado banho, vesti um short e uma camiseta. Abri uma garrafa de vinho, sentei no chão da varanda, assisti o sol terminar de se por e logo depois olhava para um ponto inexistente no horizonte.

Bebia o vinho igual a água, mas as vezes levantava e bebia coca cola para cortar o álcool. Não chorava mais, minhas lágrimas secaram, meu estoque acabou. Eu não chorava há anos e em poucos dias tinha acabado minha reserva. Eu estava com os olhos fechados, a cabeça apoiada na parede e continuava sentada no chão.

Senti braços conhecidos me envolverem, nem precisei abrir os olhos para saber quem era, o perfume e o toque eram inconfundíveis. Deixei-me ser abraçada, precisava daquele toque, daquele carinho que meu corpo tanto conhecia e queria:

-Está sentindo-se melhor?

-Um pouco, mas juro que se eu cruzar com aquela mulher, eu a mato.

-Não diz isso, Du… Vem cá…

Ela me puxou e me jogou debaixo da água gelada do chuveiro.

-Hei, por que você fez isso? Não estou bêbada.

-Eu sei, mas precisa esfriar a cabeça.

Terminei o banho e a Clara estava sentada na cama me esperando:

-Bebe água, Du. Senão amanha você vai acordar com uma baita de uma ressaca.

Sentei na cama e liguei para a recepção pedindo água.

-Por que você pediu água? Tem no frigobar.

-Tem água gelada no frigobar, eu detesto água gelada e você sabe disso.

-É verdade. É que não consigo me acostumar com uma pessoa que não gosta de água gelada – sorriu.

Algum tempo depois estávamos deitadas, eu com o corpo todo enroscado ao da Clara e com o nariz em seu pescoço respirando seu perfume natural que tanto gosto:

-Você comeu alguma coisa?

-Só o almoço.

-Vou pedir um lanche pra você.

-Não amor, estou sem fome.

-Du… Você não pode ficar sem comer.

-Eu sei, prometo que como direitinho amanhã, certo? Mas, hoje já bebi muito vinho, coca cola e água. Meu estômago está cheio.

-Tudo bem, mas amanha você não me escapa em nenhuma das refeições, certo?

-Sim, senhora – sorri tristemente.

-Nem um beijo de boa noite eu vou ganhar? – perguntou fazendo dengo.

Beijamo-nos calmamente por longos minutos, meu coração estava angustiado, meu sexto sentido em alerta. Não liguei muito para isso, precisava aproveitar do carinho e da companhia da minha mulher. Ainda bem que fiz isso, pois não imaginava que meu mundo estava prestes a desabar em minha cabeça.



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