Capítulo 9

Decidimos não tomar banho juntas, afinal de contas iríamos nos encontrar com nossas amigas e acabaríamos nos atrasando. Deixei Clara ir primeiro, pelo que vi em sua mochila, imaginei que ela deve demorar e muito na preparação. Por muito pouco, não desistia de sair e agarrava Clara ali mesmo na porta do banheiro, aquela visão que tive do seu corpo ainda com gotículas de água e cabelos molhados fez minha calcinha molhar. Fechei os olhos, respirei fundo e passei por ela sem ao menos encostar, sabia que não resistiria e ela percebeu isso, sorriu.

Saí do banheiro só de calcinha enxugando meus cabelos distraidamente quando olhei em direção a Clara, quase engasguei com minha própria saliva. Cena: ela estava com um vestido que tinha um decote que dava vontade de mergulhar para tentar descobrir seus mistérios, uma sandália que a deixava com minha altura e terminando de secar os cabelos. Quando ela me olhou, tive consciência que ela fez aquilo de propósito e gostou da minha reação porque o sorriso que abriu foi um dos mais lindos que já vi.

Tentei puxar alguns assuntos banais para não prestar tanta atenção nela, mas estava quase impossível ter Clara ali na minha frente daquela forma e não poder tirar aquela roupa e ir noite adentro com muito sexo.

Dessa vez ela me pediu para dirigir, disse que não gosta quando está de salto, não acreditei nisso, mas fiz o que me pediu. Ao chegar ao Mercado do Peixe, Rafa e Bruna já estavam nos aguardando em uma das mesas, quando nos viram, fizeram um estardalhaço só. As outras pessoas que estavam presentes devem ter pensado que éramos quatro loucas que tinham acabado de sair do Juliano Moreira – o sanatório mais conhecido da cidade.

Para variar, conversamos, eu e minha amiga nos engalfinhando e as outras duas rindo as nossas custas. Acho que nunca vamos nos encontrar sem que isso aconteça, foi uma noite fantástica. Entre uma conversa e outra, Bruna nos convidou para irmos a Off Club na noite seguinte, disse que não estava muito a fim, mas Clara insistiu:

– Vamos Du…

– Poxa Clara, me diz o que vou fazer lá já que não gosto de música eletrônica?

– Me fazer companhia, oras! Prometo que não vamos demorar – disse e fez uma cara de dengo que não tive como resisti. Cocei a cabeça um pouco acima da nuca e cedi.

– Tá bom, você venceu. Mas, nem adianta tentar me convencer do contrário porque não vamos demorar, ok?

– E nem quero – sorriu maliciosamente para mim.

– Ora, ora, ora… quem diria em Duda? Logo você está cedendo a caprichos de mulher – Rafa me cutucou.

– Rafa, você é idiota ou está fazendo curso intensivo?

– Você é minha professora no curso, amiga.

– Que nada, você é autodidata, aprende numa facilidade surpreendente. Pedi demissão de lá porque você me superou, meu certificado foi cassado – vi nos olhos de minha amiga que ela queria me esganar, mas antes disso acontecer, meu celular tocou, olhei no visor, número restrito, atendi – Alô!

– Filha?

– Pai? – fiz cara de interrogação, todas olharam em minha direção.

– Como você está?

– Bem, e você?

– Estou bem também, graças a Deus.

– Que milagre é esse que está me ligando?

– Não posso?

– Claro que pode, mas isso está mais escasso do que Coca-Cola no deserto – tentei descontrair um pouco o clima.

– Você também não me liga, filha.

– Para que? Eu tenho amor próprio, sabia?

– Tá, sei que temos algumas diferenças para resolver ainda, mas não é para falar sobre isso que te liguei.

– Aconteceu alguma coisa?

– Ainda não, mas quero te comunicar antes de acontecer – uma breve pausa e escutei sua respiração pesada – vou me casar com Regina.

– Como é que é? – disse levantando e saindo do bar, nem me dei o trabalho de pedir licença às meninas, na volta explicaria.

Eu não conseguia mais escutar meu pai, ele falava, falava e eu não entendia nada. Acho que ele estava tentando se justificar, falar suas razões para tal, mas eu não estava absorvendo nada. Essa minha reação não foi por ciúmes ou qualquer coisa do gênero, muito pelo contrário, o que mais queria era que meu pai casasse novamente, mas que fosse com alguma mulher que prestasse pelo menos, o queria feliz.

Nós dois não nos falávamos desde o episódio de tentativa que meu pai fez para que eu morasse com ele, mas não fui com a cara da Regina e brigávamos feito cão e gato. Foi por causa dela que não fiquei pelo tempo desejado, não aguentava mais olhar para a cara de pau dela, fazia de tudo para que eu e meu pai brigássemos, coisa que nunca aconteceu. O pior que ela fez foi quando voltei para Salvador, ela falou coisas para ele que nunca imaginei que um dia eu fizesse na minha vida e o pior dessa história toda foi que ele acreditou sem ao menos me dar a chance de explicar, fiquei sabendo do que aconteceu por causa da minha mãe.

Regina tentou fazer o mesmo com ela, quase conseguiu, mas minha genitora, ao contrário do meu pai, me deu a chance para falar. A partir desse dia, quando tentava ligar para ele e ela atendia, eu desligava. Minha mãe relatou nossa conversa para meu pai, mas não deu em nada, desde então que não nos falávamos direito, porque ele deixou de confiar em mim. Tanto ele, quando qualquer pessoa que seja, se demonstrar que não confia mais em minha palavra, pode ter certeza que nunca vou tentar provar que estou certa porque, se realmente me conhece, sabe que não estaria mentindo, detesto ter que provar alguma coisa.

Acordei da minha viagem ao passado quando escutei meu pai me chamando, acho que ele fez isso mais de uma vez:

– Filha? Duda?

– Estou aqui – respondi num fio de voz

– Você escutou o que eu disse?

– Olha pai, se você quer realmente quer se casar com essa mulher, não sou eu que vou impedir. Você

sabe muito bem que não vou com a cara dela e nem ela com a minha, e de uma coisa tenha certeza: se um dia eu for te visitar, não ficarei em sua casa. Não quero ter o desprazer de olhá-la mais do que alguns minutos. Ah, e isso não é uma ameaça, isso é fato. Quer casar, beleza, vá em frente e seja feliz.

– É isso o que você quer?

– Você sabe que não, mas é necessário. Não suporto essa mulher e tenho razões para isso.

– Eu queria que você estivesse aqui no dia do casamento, vai ser dia 20 de dezembro.

– Pai, presta atenção em uma coisa: primeiro eu não posso por causa do meu trabalho, afinal de contas tenho que me sustentar, não é verdade? – parei por uns instantes e respirei profundamente para continuar

 – E outra, não vou a esse casamento nem que me pague, não por você, mas por ela. Não suportaria vê-la se vangloriando que está casando contigo. A minha presença nesse casamento é dispensável.

– Tudo bem, se acha melhor assim…

– Não acho melhor, mas é necessário.

– Olha, pretendo passar uns dias aí em Salvador em janeiro, posso te ver?

– Para isso você não precisa de permissão, não é? Afinal de contas você nunca deixará de ser meu pai – frisei a última frase, pois sei que no dia que ele soube que sou gay, ele quis que eu deixasse de ser sua filha.

– Tudo bem, quando eu chegar, te ligo.

– Tem previsão de chegada?

– Acho que dia 22.

– Ok, a gente se fala antes disso – não aguentava mais aquela conversa.

– Tudo bem filha, boa noite e fica com Deus.

– Você também, beijo.

– Beijo.

Encerramos a ligação, mas eu ainda fiquei um pouco com o celular na mão olhando para o nada. Encostada no carro da Clara, tentava pôr os pensamentos em ordem, não conseguia acreditar que meu pai ia casar com aquela mulher depois tudo o que aconteceu. Ela fez minha vida e meus planos virar de cabeça para baixo em menos de dois dias e a essa altura ele já tinha noção da merda que ela fez e mesmo assim insistiu nessa loucura.

Quando dei por mim, Rafa estava calada ao meu lado, meio que esperando o momento que eu ia me abrir com ela:

– Depois Rafa – disse saindo em direção a nossa mesa.

– Tudo bem, mas sabe que é só me chamar a qualquer momento, não é?

Estanquei o passo e vir-me-ei para ela. No susto Rafa acabou se esbarrando em mim e para que ela não caísse, a abracei. Fiquei um tempo assim, eu precisava daquilo, mas não falamos nada, ela sabia que nessas horas o que menos quero é falar, principalmente sobre o assunto que me incomoda, prefiro fazer isso quando minha cabeça já está fria. Aprendi a ser assim depois de todo esse tempo morando só e quebrando a cara de vez em quando e minha infância também me ensinou e ser fechada sobre assuntos pessoais. As lembranças do meu passado que eu fazia tanta questão de esquecer, me entristeceu um pouco.

– Obrigada! – disse dando um beijo estalado no rosto.

– Por nada! – sorriu – Agradeça a Clara.

– A Clara?

– Sim, eu sei quando você precisa de seus “momentos silêncio”, mas ela estava deveras preocupada com a forma que você saiu da mesa e não parava de olhar em sua direção enquanto estava na ligação. Quando você ficou quieta, depois dela insistir muito, resolvi vim ver como estavam às coisas. Que mulher insistente essa que você foi arrumar, hein? – riu.

– Eu que o diga, amanhã terei que ir à Off com vocês – consegui rir também e seguimos para a mesas que as meninas nos esperavam.

Quando sentamos, Clara me lançou um olhar meio que perguntando se eu estava bem, cheguei próximo ao seu ouvido e sussurrei:

– Calma linda, foi uma conversa tensa, mas já estou bem. Depois te conto.

Como resposta, ela sorriu, pousou sua mão sobre a minha e apertou como se estivesse querendo me dar força. Adorei o gesto e retribui também com outro sorriso, mas o que queria mesmo era beijá-la, mas como aquele não era um bar destinado ao público gay, não queria servir de incentivo para os punheteiros de plantão.

A conversa seguiu normalmente, não houve mais nenhum “imprevisto” tentando estragar meu bom humor, muito pelo contrário. Eu estava me divertindo muito com bilhetes que chegavam à mesa para alguma das quatro, cerveja, Coca-Cola… as bebidas nós mandávamos voltar e os recados eram motivos de piadas. Decidimos ir embora por volta das 2h da madrugada.



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