Desde sempre

Capítulo 15

Capítulo 15 –

2007

– Pelo amor de Deus! Não ouse colocar esta foto horrenda no meu editorial.

– Mas, a foto está ótima, Liz. Seus cabelos ainda estavam longos, mas…

– Eu pareço que engoli uma espada, Theo. Pior do que isso, parece que a espada entrou por outro orifício. Use a foto que eu escolhi para ilustrar a orelha do meu livro. O Dalmo tem o arquivo.

– Certo…mas, nesta aqui você parece mais séria.

– Nesta aí, eu pareço a múmia de Tutancâmon. Faça o que eu pedi, por favor.

– Ok, ok. Mas eu acho que nesta você está melhor…

Liz mal ouviu o comentário que se perdeu no burburinho incessante da repartição do jornal que mais parecia um formigueiro em escala gigantesca. Aliás, tudo em um grande jornal parece ser enorme e, sobretudo, veloz: a notícia não espera. Não era diferente no “Diário da Cidade”. Liz olhou em volta com um sorriso de quem se sente à vontade em meio àquela barafunda aparentemente desconexa. Em seguida tornou os olhos verdes para a sala do editor-chefe. Ele a chamara ainda de manhã e marcara um horário para a primeira hora da tarde, mas não adiantara o assunto. Liz esperava que não fosse nada ligado ao tempo cada vez menor que se dedicava ao Diário. Contudo, a opção por privilegiar as matérias ligadas à revista semanal que também fazia parte do grupo coadunava-se mais com o tempo de que necessitava para a conclusão de seu primeiro livro que, esperava, não fosse o último. Enfim, aquela reunião serviria também para que ela explicitasse a intenção de cessar as suas atividades junto ao jornal.

Bateu levemente na porta de vidro. O chefe a olhou por sobre os óculos.

– Entre, Liz.

– Boa tarde, Carlão. Aqui estou – disse erguendo ambos os braços.

– Sente-se, querida. Como está o livro?

– Quase pronto para ser publicado. Devo estar fazendo a décima nona revisão – riu nervosa.

– Mas sei que preciso entregá-lo antes que resolva encontrar o vigésimo pequeno defeito. Acho que estou um pouco nervosa, mas… Bom, não foi para isso que você me chamou aqui, foi, Carlão?

– Sempre direta. Não, Liz, não foi para isso, embora eu me interesse por seu livro e sua carreira, sim.

Liz apenas sorriu e balançou a cabeça.

– Bem, primeiramente, eu estou percebendo sua clara tendência em colaborar mais com a revista do que com o jornal. Estou errado?

– Não, mas, veja bem…

– Calma. Eu sinto pelo jornal, que perderá uma jornalista de garra, mas eu concordo que o seu perfil se amolda mais a uma publicação semanal. Não vejo problemas quanto a isso.

Liz suspirou visivelmente aliviada. Carlão continuou:

– E para corroborar esta minha opinião, eu tenho um trabalho urgente para você ligado à revista e que significará uma bomba editorial equivalente a um furo jornalístico de primeira linha.

Liz se empertigou na cadeira e fixou no chefe os olhos verdes atentos.

– Trata-se de uma entrevista exclusiva com uma das personalidades mais importantes e arredias do cenário mundial. Uma das maiores beneméritas das comunidades necessitadas da África e da América Latina, tão competente e generosa quanto reclusa. Ninguém até hoje conseguiu uma exclusiva com ela. Pois bem, ela aceitou falar conosco, desde que a entrevistadora seja você.

Liz enrijeceu a mandíbula antecipando o impacto no seu coração.

– Confesso que por esta eu não esperava, Liz. Talvez você possa me elucidar esta estranha condição. De qualquer forma, Fabiana Hathaway só quer falar com você!

**********

Liz entrou no seu apartamento sentindo um cansaço extremo como há muito não sentia.

Na verdade, a sua vitalidade invejável sempre lhe rendera tanto a admiração dos colegas quanto uma série de brincadeiras sobre como ela deveria ser movida por pilhas alcalinas, enquanto o resto da humanidade se virava com as ”amarelinhas”. No entanto, agora, após quase quinze anos, ela sentia uma forte vontade de se esconder no box do banheiro.

– Fabi…- sussurrou.

Fazia muito tempo que não dizia este nome deste jeito.

Entrou para o banheiro para tomar uma ducha forte que quase sempre lhe renovava o vigor após um dia exaustivo. Não podia negar que a notícia lhe pegara de surpresa, mas ainda não sabia exatamente como se sentia em relação a isso. Gostaria de falar com Taís, mas ela estava em um congresso na Eha.

O casamento durara mais de cinco anos e Liz sentia orgulho de como relação terminara – com respeito e carinho. Não que não tivesse doído. Doera demais. Mas, ambas encararam o inevitável com elegância e, o melhor, com ternura. Taís era uma grande amiga e fora por ela que soubera, um ano depois do término de ambas, sobre o fim do casamento de Caio e Fabiana. Não que ela procurasse notícias de Fabi. Muito pelo contrário. Desde a última e fatídica vez em que se viram, Liz não mais tocou no nome da sua amiga de juventude. Taís respeitava este limite e elas tiveram um relacionamento maravilhoso enquanto durou.

Do casamento de Fabiana com Eric Hathaway, ninguém precisou contar a Liz. O mundo todo soube do enlace de uma das maiores fortunas dos Estados Unidos com a bela brasileira. Os Hathaway eram figurinhas carimbadas no jet set internacional, embora Eric, o mais velho, sempre fosse por demais reservado e aparecesse nos noticiários muito mais por suas ações humanitárias à frente da Hathaway Foudation do que por suas conquistas amorosas – como, por exemplo, o irmão, Lucas.

Aliás, o casamento com Fabiana Couto talvez tenha sido o máximo de exposição a que Eric se submetera desde que herdara a fortuna dos pais. Eric morrera em 2002. Desde então, Fabiana Hathaway é a presidenta da fundação que leva o nome do marido e que cresceu consideravelmente sob a sua direção.

Fabiana Hathaway jamais dera uma entrevista exclusiva. Esta seria a primeira vez. E para uma revista brasileira, com uma jornalista brasileira. Um furo. A chance de uma vida. Mas, era a Fabi, a sua Fabi…

– Que sua Fabi! – Liz gritou sozinha desligando a ducha com força – Ela não é mais a sua Fabi. Nunca foi! Trate de agir como uma profissional, Liz Mello, e faça a droga desta entrevista.

**********

– Sra. Fabiana? – o atendente do escritório da Fundação no Brasil falou com voz tímida.

– Sim. – Fabiana respondeu com um sorriso simpático. Achava agradável o jeito brasileiro de chamar as pessoas pelo primeiro nome. Acostumara-se por anos a ser chamada pelos sobrenomes dos maridos e, agora, ouvir o seu nome de batismo na voz de seus compatriotas soava-lhe adorável.

– A comissão que representa a Comunidade da Vila Nova já chegou. Posso fazê-los entrar?

– Pode, sim, Ed… É Edson, não?

– É, sim, senhora. Vou pedir que entrem.

A comunidade que representava uma grande área que abrangia pelo menos cinco bairros da periferia seria uma das beneficiadas por um dos programas de educação para jovens carentes patrocinados pela Fundação. Sempre que possível, Fabiana preferia receber os representantes das comunidades pessoalmente. Sua noção do que era educação – uma das diretrizes da fundação – era a de que o ensino não deve jamais ser apartado da realidade social na qual está inserido o aluno. Estes encontros sempre deixavam Fabiana animada, mas neste momento os seus pensamentos estavam em outro lugar. A esta altura, Liz já deveria saber da sua proposta à revista. Aceitaria? Não conseguia evita um frio no estômago nem um leve mal-estar de apreensão. Abriu a gaveta da escrivaninha. O porta-retratos. Duas adolescentes risonhas. Ela nunca se esquecera. Nunca! Em nenhum desses quatorze anos de separação.

1987

A comemoração da vitória regada a litros de guaraná foi o ponto máximo da vida de Fabiana até então. Não houve um único colega ou professor que não tivesse vindo cumprimentá-la.

Irmã Maria ameaçava a sua beatitude com um semblante que denotava, claramente, a presença de um dos sete pecados capitais: o orgulho.

Por fim, na hora do jantar, Liz teve que bancar a guarda-costas de celebridade para evitar que metade do acampamento se sentasse na mesma mesa que Fabiana. Era a glória. Fabiana estava nas nuvens.

Na hora de se deitar, Liz e Fabi foram para barraca com meio mundo de assuntos para desenvolver. Arrumaram os colchonetes (Fabiana já havia conseguido um para si) e os cobertores. Vestiram os agasalhos, porque já tinham ideia do frio que fazia de madrugada e se deitaram conversando felizes e animadas. Uma hora depois o assunto morreu, Liz virou-se para o lado com um boa noite e a morena virou-se para o outro balbuciando a mesma coisa. Aquietaram-se.

Uma hora depois e nenhuma delas havia dormido, embora mal tivessem se movido. Liz estava tomada por uma ansiedade incompatível com o sono. Fabiana sentia-se intranquila como se algo indefinido a incomodasse. A menina mais alta ousou se mover estendendo as pernas e deitando-se de costas. Foi como se uma senha tivesse aberto o direito ao movimento para as habitantes da barraca. Imediatamente, Liz também se virou e encostou a perna na perna de Fabi. Apesar da barreira dos cobertores, o calor do contato foi delicioso.

A comporta estava aberta.

Os minutos seguintes foram de intensa movimentação. Parecia que para ambas, nenhuma posição era suficientemente confortável. Viravam-se, mexiam-se, levantavam e abaixavam os braços até que este samba do crioulo doido semiadormecido terminou por desalinhar os cobertores a tal ponto que os corpos se tocaram. Pararam. Como num “pas de deux” em perfeita sintonia ambas foram se movendo com lentidão e cumplicidade até que ficassem novamente na posição da noite anterior – abraçadas – perfeitamente cientes da procura mútua… perfeitamente concordes, de que na manhã seguinte, ambas creditariam a posição em que se encontravam ao acaso privilegiado pelos caprichos do sono.

Após este acampamento, Fabi adquiriu o inusitado hábito de dormir abraçada a um travesseiro.



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