Capítulo 5
1992
Fabiana e Liz foram para a festa a pé. A noite estava agradável e a sede do DCE não era tão longe de onde moravam.
O local estava lotado de estudantes. A música alta e o chope farto. Liz e Fabi ficaram do lado de fora, na área gramada em frente da sede, observando o alvoroço das mais diversas tribos da Universidade ocupando o mesmo lugar ao mesmo tempo. Tão destacadas, tão destoantes e tão ambientadas naquele mesmo único lugar. Ali estavam as patricinhas rindo coquetes de brincadeiras pouco inspiradas de rapazes bonitos; os intelectuais engajados em furiosas discussões contra o sistema ou contra a música alienante; neo-hippies aparentemente imperturbáveis de batas indianas e bolsas de couro; os atletas desfilando seus músculos e sua misteriosa capacidade em beber litros de cerveja; os que só vieram por causa do chope grátis; os completamente deslocados fingindo dançar e beber como se estivessem á vontade…Enfim, uma miscelânea humana no mínimo interessante. Liz, cuja curiosidade por gente e suas peculiaridades era inesgotável, teve que admitir que não havia sido uma má ideia. Fabi, cuja experiência com festas sempre fora diminuta, apesar de algumas escapadelas da vigilância materna (quase sempre por causa da engenhosidade de Liz em encontrar uma infinidade de desculpas esfarrapadas plausíveis), olhava curiosa para as pessoas sorridentes.
– Vou pegar um chope. Você quer, Fabi?
– Se tiver refrigerante, eu quero sim, Liz. Se não tiver, eu prefiro não beber nada. Eu não me dou bem com cerveja.
– Cerveja é uma bebida plebeia demais para a milady?
– Ah, Liz, vai te catar!
– Ui! Que vulgar!
Fabiana deu um empurrão na amiga que saiu rindo, bem-humorada. No caminho, Liz encontrou alguns colegas e ficou um tempo conversando, mas logo em seguida, despediu-se preocupada com o fato de Fabiana ficar muito tempo sozinha principalmente por causa de sua proverbial timidez.
O fato é que durante esses quase 10 anos de amizade e apesar das substanciais modificações em sua figura, Fabi pouco mudara em relação a sua timidez. Se era certo que os meninos agora disputavam a atenção dos seus olhos azuis e cobiçavam sem disfarces o seu corpo escultural, para Fabiana isto não redundara em extroversão. Sequer lhe acrescentara um pingo de vaidade presunçosa. Ela continuava simples e reservada e ainda não se separava de Liz para quase nada. Liz sorriu, não sem uma dose de contentamento orgulhoso, à lembrança de que esta constância dera causa ao primeiro enfretamento entre Fabiana e a mãe, alguns meses após o baile de quinze anos de Fabi.
1987
– Você não desgruda dessa moça, Fabiana. Isso não pode ser natural! – exclamou, Dona Eulália.
– Ela é a minha melhor amiga – responde Fabiana.
– Sem entrar no mérito dessa amizade inconveniente com uma menina aquém do seu nível social, esse…esse…grude não é saudável. Você não faz amizade com as meninas do clube, nem ao menos responde aos telefonemas do jovem Antônio Paes Neto, um rapaz de excelente família e que parece tão interessado em você.
Fabiana reprimiu uma expressão de tédio à lembrança do rapaz tolo e esnobe.
– Mãe, aquelas meninas do clube só sabem falar de vestidos e o Neto é um chato…
– Olha o palavreado, Fabiana.
Fabi se calou.
– Já vi que eu mesma terei que resolver isso. Você está proibida de andar com essa…Liz.
– Não – a negativa foi baixa, mas audível.
– O que? – a pergunta de Dona Eulália soou com uma dose muito maior de surpresa que de indignação. Fabiana jamais lhe contradizia.
– Não – Fabi repetiu com um pouco mais de firmeza.
– Você não ousaria me desobedecer! Você não vai mais ver esta menina e ponto final.
Algo em Fabiana emergiu à lembrança de sua pequena amiga. Liz defendendo-a de Anita. Liz encorajando-a nos esportes. Liz apoiando suas inseguranças, Liz sorrindo para ela com o longo cabelo loiro cobrindo metade do rosto. Liz…
– Não – Fabiana falou com uma firmeza. – A senhora pode mandar nas minhas roupas, na minha comida e até nos meus hábitos, mas não pode mandar nos meus sentimentos. Não pode dizer de quem vou gostar. Liz é a minha melhor amiga e eu nunca, nunca vou deixá-la.
Fabi terminou o pequeno discurso de pé olhando com uma segurança inédita para a mãe perplexa e pela primeira vez intimidada por uma mulher alta, de olhos faiscantes em quem ela não reconhecia a própria filha.
Fabiana saiu sem esperar resposta da mãe e caminhou até o seu quarto. Teve que se recostar na porta que acabara de fechar para encontrar apoio às pernas trêmulas.
Surpreendentemente, Dona Eulália não tocou mais no assunto por um longo tempo.
1987 – O Baile de Fabiana Martins Couto
O baile corria solto.
Comida e bebida fartas, uma banda tocando músicas um tanto fora de moda e os ilustres membros da melhor sociedade presentes na festa. Em destaque, uma mesa cheia de bombons personalizados com um enorme bolo cor-de-rosa de três andares ao centro esbanjando um rebuscamento excessivo e meio decadente.
Desnecessário dizer o susto dos colegas ao se depararem com uma Fabiana engalanada em um vestido de festa, penteada e separada dos óculos medonhos, exibindo um rosto de dar inveja a muita atriz de cinema por aí. Liz, vestida com uma calça de corte clássico e camisa feminina de mangas com gola larga, sapatos altos de salto fino (os quais reprimia a custo a vontade de jogá-los pela janela à cada pontada no seu dedo mindinho), observava os olhares admirados e os comentários furtivos com orgulho de pioneira. Eles apenas constatavam o que ela já sabia há muito tempo: que sua amiga era uma beleza mesmo.
“Tolinhos” – riu em seu entretenimento solitário.
Fabiana já dançara a valsa com o tio e o padrinho e agora suportava bravamente uma dança com o jovem João Paes Neto, herdeiro de uma das tradicionais e abonadas famílias da cidade e motivo do sorriso brilhante que a mãe exibia no rosto, ante ao que ela julgava um arranjo à altura de sua filha. Fabiana tolerava a tudo com um sorriso plastificado no rosto. Ao lado, uma meia dúzia de rapazes, os mesmos que passaram anos zombando de sua figura desengonçado, esperavam impacientemente a oportunidade de dançar e observar bem de perto aquela aparição – uma verdadeira Cinderela surgida detrás da máscara negra e disforme que a menina usara durante tantos anos.
Duas horas depois, findos os rituais mundanos de praxe: valsa, parabéns, bolo e similares, Fabi sentou-se extenuada, vitimada por seus pés latejantes. Girou a cabeça procurando alguém e se deparou com olhos verdes ternos olhando para ela. Sorriu de volta com afeto. Liz encontrava- se sentada e sozinha depois de afugentar Rodrigo com a ameaça de jogá-lo no pote de ponche se ele se atrevesse a chamá-la de gatinha manhosa mais uma vez. Fabi piscou para ela e fez um sinal secreto de “siga-me” ao que Liz respondeu com um sinal quase imperceptível de assentimento. Passados cinco minutos, a morena levantou-se pretextando alguma coisa e saiu do salão por uma porta lateral. Liz foi atrás. A porta dava para um corredor um pouco escuro em comparação à luminosidade do salão. Em breve, contudo, a loirinha deparou-se com um pequeno jardim interno, escondido e malcuidado. Fabiana estava sentada num banco de concreto que já tivera dias melhores, cômica e inutilmente soprando os pés. Liz soltou uma pequena gargalhada.
– Que lugar é esse que você me trouxe, Srta Fabiana?
– Você se esqueceu que eu praticamente cresci neste clube?
J- á sei, já sei. Seu avô foi o fundador e blá, blá, blá.
Isso – Fabiana concordou com um sorriso. – Eu trouxe você aqui porque…porque hoje é meu aniversário, porque você é a minha melhor amiga e…bem…ah!, porque eu queria comemorar junto com você, sem nenhum daqueles chatos convidados da minha mãe. E porque, de todos, você é a única pessoa que eu faria questão que estivesse comigo hoje.
Liz não disse nada porque estava engasgada, como se uma felicidade abundante se misturasse a uma intensa vontade de chorar e se concentrasse exatamente na garganta enclausurando-lhe a capacidade de falar. E certamente ela teria ficado mais tempo nessa situação se Fabi não a surpreendesse, ainda mais, ao tirar uma grande e reluzente garrafa de champanhe detrás do banco.
Desta vez, Liz ficou boquiaberta.
– O que é isso, Fabi?
– Nossa comemoração.
– Céus, você já bebeu alguma vez na sua vida?
– Não…Quero dizer, só um pouco de licor de jabuticaba da minha tia.
– Isso cheira a encrenca…
– Caramba, Liz. Não dizem que o champanhe é a bebida das grandes comemorações? Poxa!
– Hum…tem certeza?
A menina mais alta balançou a cabeça firmemente.
– Tenho. Eu gostaria muito de que a gente dividisse algo especial hoje.
Liz abriu o sorriso mais quente do mundo.
– Pois que seja. Que venha o champanhe.
Fabiana abriu a garrafa sem muito esforço e entornou um primeiro e generoso gole no bico. Liz pensou que por um bom tempo não precisaria mais de surpresa alguma.
– Que sede, menina! – brincou. – Deixe um pouco para mim também.
Os goles borbulhantes se alternaram em meio aos risos e uma alegria transbordante. Alegria que talvez se traduzisse pela transgressão de estarem bebendo longe de tudo e de todos, mas principalmente, alegria pela proximidade em que se encontravam ao dividirem uma ocasião em que eram mais que amigas, eram cúmplices.
Meia hora depois davam gargalhadas de um pobre bichinho de jardim com nada mais interessante do que aparecer na frente de duas adolescentes incrivelmente felizes…e bêbadas.
Abraçaram-se como dois camaradas de longas noites boêmias. Liz se afastou e olhou para Fabi com os olhos enevoados pelo álcool e mais uma vez sentiu aquela vertigem de quando a vira sem óculos pela primeira vez. Temerosa de trair os sentimentos que a faziam corar de vergonha, mas que a perseguiam diuturnamente com cruel constância, a loirinha baixou a cabeça embaraçada. Fabiana levantou-lhe o rosto elevando-o pelo queixo.
– O que foi? – perguntou com voz arrastada.
– Eu… – Liz tentou emendar um “Nada, acho que estou um pouco bêbada, cansada e tal…”, mas não conseguiu. De novo aquela catatonia em que os olhos de Fabi a colocavam sem cerimônia ou piedade. – Eu…
Desistiu de tentar falar. Ao invés, ergueu as mãos e tocou o rosto de sua melhor amiga com a ponta dos dedos. Fabiana fechou os olhos. Liz então passeou os dedos pela mandíbula harmoniosa. Fabiana suspirou. Com a cautela derrotada pelo champanhe, Liz tocou os lábios da morena com o coração aos saltos. Fabiana os entreabriu instintivamente e, em seguida, levou a mão à mão de Liz, sobre a sua boca, e a beijou na palma sem abrir os olhos. Liz aproximou-se do rosto de sua amiga e beijou-lhe a face com delicadeza. A outra mão de Fabiana elevou-se e segurou a cabeça de Liz grudada ao seu rosto. Liz também fechou os olhos e se deixou ficar ali absorvendo o cheiro e o calor gostoso que vinha de Fabiana. Poderia esperar o juízo final naquela posição. Mas…Ah, os nossos desejos inelutáveis!, Liz tornou a beijar o rosto de Fabi com adoração. As bochechas, as sobrancelhas. Roçou os cílios negros e longos. Pontilhou o nariz reto e parou de frente à boca vermelha.
Estancou.
Abriu os olhos e deu com os de Fabiana olhando para ela a míseros centímetros de distância. Fitaram-se silenciosamente, sentindo aquela força magnética, tão tênue quanto poderosa, que circunda as nossas vontades mais ocultas. Para culminar a noite das mais loucas surpresas, foi Fabiana que avançou a boca e tocou a boca de Liz.
Talvez a investida da parte mais tímida da dupla não fosse tão surpreendente assim. Talvez, não fosse a atitude de Fabiana, Liz jamais tomasse a iniciativa, como é comum às pessoas que já perderam tanto na vida que pensam milhares de vezes antes de se aventurar a perder, por um ato que não têm certeza de que será bem-vindo, aquilo que mais amam no mundo.
Portanto…
Liz não ousou se mexer sequer um milímetro. Deixou a sua boca à disposição dos beijos contínuos e ingênuos da sua Fabiana que os repetia como a experimentar uma textura, uma maciez, um sabor até então desconhecidos. De repente, Fabiana passou as mãos pelo pescoço da menina mais baixa e a beijou com força e sem perícia, sem saber o que fazer com aquela ânsia crescente por mais e mais sensações que lhe roía o estômago. Foi a vez de Liz finalmente reagir. A loirinha passou os dedos pelos cabelos negros e sedosos em torno da nuca de Fabiana e passou a mostrar-lhe com imensa doçura o bailado delicioso das línguas e dos lábios.