Texto: Táttah Nascimento>
Revisão: Isie Lobo e Carolina Bivard>
5.
Primeiro, Adriana quis se afastar, mas a pressão daqueles lábios, o peso daquele corpo formoso e o cheiro silvestre que ele exalava, apesar de toda a sujeira e suor, demoliram sua resistência e os seus instintos assumiram.
Entreabriu os lábios e deixou que Bianca mergulhasse neles com uma língua feroz e exigente, lhe roubando o ar furiosamente, então a puxou para si, grudando seus corpos ainda mais. Sabia que estava cometendo um erro, mas, quanto mais a beijava, mais difícil ficava se afastar.
As mãos dela, ainda atadas, repousavam sobre seu ombro e massagearam seu pescoço devagar, fazendo um carinho quase sensual, lhe arrancando um gemidinho, até que o envolveram completamente. Bianca aumentou a pressão, estrangulando-a. Usava o peso do seu corpo para mantê-la prisioneira, mas não desgrudou os lábios dos dela.
Era um beijo de morte.
Desesperada por escapar daquela armadilha, prazerosa e sufocante, Adriana mordeu o lábio dela com força. Quando Bianca se afastou, relaxou as costas contra o chão pedregoso e espalmou ambas as mãos, atingindo os ouvidos dela que rolou para o lado, tonta e gemendo de dor.
— Filha da mãe! — Sentou, tossindo e buscando o ar.
Massageava o pescoço devagar, enquanto Bianca fazia o mesmo com os ouvidos, encolhida como um feto no ventre da mãe.
— Sua maluca!
Bianca se contorceu, mais um pouco, e sentou sobre as próprias pernas, sentindo-se tonta pela pancada que recebera. Mesmo assim, reuniu suas forças em um sorrisinho metido e maldoso e, foi fuzilada pelo olhar da bandida que não sabia se a ecava pela fuga insana e quase morte ou se a puxava para um beijo de verdade.
— Você mentiu — acusou, passando uma das mãos no local onde ela a mordeu.
Adriana tossiu outra vez e se pôs de pé, ainda tonta pela falta de oxigênio. Desconfiada, preferiu se afastar dela, ainda tentando controlar o desejo de lhe dar outro tapa e que, este, arrancasse aquele sorrisinho debochado do seu rosto.
— Sobre o quê? — Resmungou, tirando parte do barro em suas roupas e notando que tinha rasgado a calça na altura dos joelhos, onde um pouco de sangue escorria.
O sorriso debochado de Bianca ganhou mais espaço em seus lábios e ela deu de ombros.
— Afinal, você baixa a guarda — respondeu, presunçosa.
Emudecida, Drica a fitou como estivesse diante de um animal peçonhento. Suas mãos tremiam pelo esforço de erguê-la até a terra firme, minutos antes. Suas bochechas arderam e a respiração se tornou mais pesada. Tinha sido vencida por um beijo e a raiva que sentia naquele instante, não superava a vontade de provar outro. Bianca se encolheu ao perceber a cólera em seu olhar e se voltou para trás, constatando que ainda estava na beirada da fenda, e fugir não era uma opção.
A bandida chegou mais perto até parar diante dela, os lábios crispados, os punhos cerrados e Bianca aguardou o soco, mas ele não veio. Em vez disso, ela começou a tremer e seus lábios se abriram devagar, um sorriso se formando, crescendo até se tornar uma gargalhada alta.
— Touché! Bandida malvada 0, Gata ninja 1. — Riu outra vez, as mãos na cintura. — Não se acostume. Na próxima, estarei preparada.
Curvou-se até seu rosto ficar próximo do dela.
— E, quando isso acontecer, se acontecer, vou te mostrar como se beija de verdade — piscou o olho, marota.
Bianca engoliu em seco e sentiu o calor dominar suas bochechas, como não acontecia desde a adolescência. Nem mesmo os olhares lascivos de Silvia, foram capazes de lhe causar rubor quando estavam juntas. Decidida a dar a última palavra, abriu os lábios para soltar uma pilhéria, mas sua resposta se perdeu no ar.
— Vocês estão bem? — A voz de Chico as alcançou, encerrando o assunto e Drica se afastou, ainda dividida pela raiva e pela vontade de outro beijo.
Ele contornava o barranco, descendo por um caminho estreito e pedregoso, ladeado por alguns arbustos, nos quais se apoiava para evitar escorregar. Algumas pedrinhas rolavam à sua passagem, fazendo as duas mulheres recordarem o perigo pelo qual haviam acabado de passar. Mais atrás, Rebeca surgiu acompanhada por Rodrigo, os dois seguiram o caminho feito pelo amigo e, quando chegaram até elas, este examinava Drica com atenção.
— Não quebrou nada? — Rebeca questionou, pousando a mão no braço da amiga e enviando um olhar mortal para Bianca, cogitando seriamente atirá-la naquele buraco.
— Estou bem — a moça deu um passo atrás e ergueu as mãos para mostrar que só tinha alguns arranhões, enquanto Rebeca esticava o braço, retirando uma folha de seus cabelos que se soltaram durante a perseguição. O último raio de sol da tarde os tocava, tornando-os ainda mais vermelhos e, apesar da seriedade na face alva, Drica parecia uma criança sapeca.
Atento, Chico deu de ombros e se aproximou da refém que se encolheu, arisca. A observou brevemente, recordando o quanto era ágil e traiçoeira.
— Só quero ver como você está — disse ele, erguendo as mãos.
Bianca ainda olhou para a escuridão da fenda atrás de si. Seu estômago revolveu-se com a lembrança do perigo que ela oferecia. Receosa, assentiu e Chico a ajudou a ficar de pé, examinou as mãos e rosto arranhados, notando que não houve nada de mais e se afastou em silêncio.
Rodrigo tinha se aproximado da fenda e encarava a escuridão no fundo dela, curioso. Retirou o celular do bolso, ligando o aplicativo da lanterna e o iluminou, atirando uma pedra lá dentro. Contou os segundos mentalmente até que ouviu um baque surdo e sorriu, então voltou para junto dos amigos.
A noite se aproximava lançando uma penumbra no ambiente e começaram a ouvir os primeiros sons noturnos, junto com a queda da temperatura. Sem cerimônia, Chico agarrou o braço da refém e começou a conduzi-la, silenciosamente, e muito atento aos movimentos desta. Subiam pelo mesmo caminho pelo qual tinha decido, minutos antes.
Drica optou por se manter longe, no fim da fila que formavam, mas também seguia atenta, remoendo uma estranha mistura de ódio e desejo pela “péssima” refém que tinha escolhido e imaginou que seu dia não poderia ficar mais perigoso e estranho.
— Você conhecia esse? — Rodrigo perguntou, algum tempo depois, desviando de um galho baixo e cheio de cipós.
Quase não podia ver o rosto da irmã, que seguia ao seu lado. A bateria do seu celular tinha descarregado, alguns minutos antes, e se locomoviam pela mata usando, apenas, o conhecimento que possuíam sobre o terreno.
De vez em quando, o silêncio entre eles era quebrado quando Rebeca deixava escapar um palavrão ao receber picadas de insetos e Bianca gemia, sentindo os espinhos e pedras perfurando os pés descalços.
— Não — ela respondeu após um minuto em que seu cérebro demorou para registrar a pergunta.
Havia deixado seus pensamentos vagarem para longe, para além daquela mata e das sensações que o beijo da refém lhe trouxe. Tinha voltado sua mente para o motivo de estarem vivendo àquela loucura e fincou as unhas na própria carne, como se aquilo lhe desse forças para se manter firme e afastasse as lágrimas de seus olhos que, felizmente, não podiam ser vistas naquela escuridão.
O irmão esticou o braço à sua frente, fazendo-a parar, deixando que os outros se afastassem até não conseguirem divisar o contorno de seus corpos, mas seus passos ainda eram audíveis.
— Você está bem?
— Ótima — mentiu e tentou prosseguir, mas ele bloqueou sua passagem novamente, deixando claro que não tinha acreditado. — Só estou preocupada, está bem? Está sendo um dia bem emocionante. Emocionante até demais! E tenho medo que essa maluca acabe se matando ou a um de nós.
— Você não pareceu nem um pouco preocupada quando estavam se beijando.
Mesmo sem enxerga-lo, soube que tinha um sorrisinho cafajeste nos lábios.
— Como?
— Me recuperei rápido e entrei na mata. Segui por um caminho diferente do que fizeram e cheguei antes dos nossos amigos e, a tempo de assistir alguns momentos interessantes… Ai! — Apertou o ombro onde ela tinha acabado de socar. — Por que fez isso?
— Porque você é um idiota! Aquela doida quase me matou estrangulada, enquanto você bancava o voyeur.
Recomeçou a andar e ele seguiu ao seu lado, rindo.
— Você não sossega o facho nem quando está cometendo um crime? Ai! Quer parar de me bater? — Ela o ignorou e continuou seu caminho. — Qual é! Me conta. O que foi aquilo?
— Não vou te contar droga nenhuma e vê se fica de boca fechada. A última coisa de que preciso é que os outros ouçam essa história!
***
Alcançaram a estrada, um pouco depois do ponto onde Bianca entrou na mata. A lua, que já dominava o céu noturno há mais de uma hora, iluminou o resto do caminho até o carro.
Desesperada para aproveitar a chance de fugir, Bianca não tinha notado a construção diante da qual estacionaram. Naquele momento, tudo que enxergava era o caminho para a liberdade.
A fraca luz do luar lhe permitiu enxergar um casebre circundado por uma varanda de teto baixo e muito mato, o que evidenciava seu abandono. Com certeza, não era habitado há décadas.
Azedinha, assim Bianca decidiu chamar, mentalmente, a bandida loira, subiu os dois degraus de pedra até a varanda, onde o piso de madeira gemeu, dolorosamente, sob seu peso e alcançou a porta. Forçou-a um pouco e ouviram a tranca ceder lhe permitindo a passagem. Ela entrou, usando um isqueiro para enxergar o caminho e, um minuto depois, uma luz amarelada e forte iluminou completamente o interior da construção.
A loira voltou a aparecer na porta, segurando um lampião.
— Está tudo do jeitinho que deixamos — disse com um sorrisinho.
Adriana entrou no carro e recuperou o celular que tinha deixado sobre o painel. Seus olhos brilharam quando a luz da tela do aparelho os tocou. Parecia extremamente tensa e cansada, debaixo de toda a poeira que cobria sua pele. Os cabelos lhe caíam sobre os ombros, tão sujos que a cor cobre dos fios tinha se tornado opaca e sem vida.
Seu aspecto foi se tornando cada vez mais sombrio. Havia várias mensagens de sua irmã caçula e uma quantidade equivalente de ligações. Nervosa, estalou os dedos chamando a atenção do irmão.
— Leve a “gata ninja” para dentro e vê se não deixa ela te bater de novo, já está embaraçoso para você com um metro e noventa de altura e todos esses músculos. — Se voltou para a escuridão e afastou-se do grupo, ouvindo o riso debochado de Rebeca, que fez questão de erguer o lampião para focalizar o rosto afogueado pela vergonha do rapaz.
O sinal de telefonia, ali, era péssimo; estava sempre oscilando, mas conseguiu ligar e Luiza atendeu no primeiro toque.
— Onde você está? Estou te ligando há horas!
— Estava fazendo uma entrega, te avisei essa manhã — chutou uma pedra e recostou-se a uma árvore, passando a mão nos cabelos grossos de poeira com uma careta de nojo. Não precisava de espelho para saber que seu aspecto era péssimo e sentia-se exatamente assim.
— O dia inteiro?!
— Claro que não. O pneu furou e o estepe estava vazio, tivemos que chamar um reboque — mentiu.
Luíza não imaginava o que ela, o irmão e os amigos tinham feito. No dia em que o assalto se tornou uma opção para eles, a jovem se encontrava no hospital, cuidando da sobrinha para que ela, Adriana, e a tia de ambas, Mirian, tivessem uma noite de descanso, já que se revezavam dia e noite na companhia da criança.
— Tivemos?
— Ô, garota, se tirasse a droga dos fones de ouvido quando as pessoas falam contigo, não teria de ficar fazendo perguntas desnecessárias, sabia?
— Ah, tá, tá! Não começa de novo! Com quem você está?
Luiza só tinha dois anos quando seu pai faleceu e a mãe os abandonou, forçando-os a morar com a tia Mirian. Treze anos de idade separavam as duas irmãs e, embora Adriana sempre fosse categórica em afirmar que nunca teve um instinto materno até adotar a pequena Lis, muitas vezes agia como a mãe da irmã que já tinha vinte e dois anos. E sabia que Luiza também a enxergava assim, embora Mirian fosse a “mãe”, de verdade, para os três irmãos.
— Com a Beca e o Digo. Precisava de ajuda para descarregar.
— Graças a Deus!
— Como assim? Aconteceu alguma coisa com Lis? — Sua voz tremeu ao pensar na filha e lágrimas começaram a se formar em seus olhos, mas Luiza a acalmou, dizendo que estava tudo bem com a menina e contou o que sabia com o máximo de detalhes possíveis, o que era bem pouco.
Como Rebeca tinha comentado, mais cedo, o gerente do banco pensou ter reconhecido sua voz e, por isso, ela o nocauteou. Não era surpresa, afinal, fazia pouco menos de um ano que ela tinha pedido demissão daquele banco e era bastante plausível que a polícia suspeitasse de uma ajuda interna, já que eles iniciaram o roubo, minutos após o cofre ser abastecido.
O gerente contou o ocorrido para a polícia, que entrou em contato com a polícia da sua cidade, e investigadores foram até a residência de Rebeca. Como ela não estava, dirigiram-se para a casa da irmã dela que, obviamente, tentou entrar em contato e quando não conseguiu, buscou por Adriana na casa da tia Mirian, da qual era vizinha.
Drica massageou as têmporas, sentindo um terrível desconforto. Então, voltou sua atenção para o aparelho em suas mãos. Fez mais uma ligação, desta vez para sua tia que estava, novamente, ao lado da pequena Lis no hospital. Conversaram por poucos minutos e ela enxugou algumas lágrimas quando desligou o aparelho.
A terceira chamada, foi a mais difícil. Suas mãos suavam, fazendo a poeira grudar-se ainda mais entre os dedos e já pensava em desligar quando, finalmente, atenderam.
— Alô — disse o homem do outro lado da linha, sua voz agredindo os ouvidos dela e remexendo o ódio em seu interior.
— Estou com o seu dinheiro.
***
Alex encerrou a ligação com as sobrancelhas espessas unidas.
O cigarro, que repousava na borda do cinzeiro, liberava uma fumaça fina. Tinha sido consumido, quase até a metade, enquanto falava com Adriana. Ele o pegou e deu um trago, soltando a fumaça devagar, um sorriso malvado ganhando espaço em seu rosto marcado por uma quantidade abundante de espinhas na adolescência.
Cofiou o tufo ralo de pelos no queixo e aumentou o sorriso, então jogou o celular sobre a mesa. Marília esperava, paciente, que contasse o teor da ligação. Tinha capitado boa parte da conversa, mas queria todos os detalhes.
Ela estava jogada no sofá, do outro lado da sala. Enrolava, distraída, um cigarro de maconhae tinha os olhos vermelhos fitos no amante.
— Ela conseguiu! — Disse ele, rindo alto. — A maldita conseguiu o dinheiro. Dá para acreditar?
Marilia se empertigou no sofá, que cedeu um pouco mais sob seu peso.
— Está brincando! — Duvidou.
Em resposta, ele riu mais alto e jogou o resto do cigarro no cinzeiro, que já estava cheio. Seus pés escorregaram da cadeira, onde repousavam, até tocarem o chão com barulho.
— Parece que a subestimei — deu de ombros, ficando de pé com um movimento ágil.
Marília terminou seu baseado, pensativa, e o ascendeu com os olhos fitos no chão.
— Seja lá como conseguiu, ela fez pela garota e não por aquele imprestável do Lucas. — Ergueu o olhar para ele. — Vai cumprir sua palavra?
Alex lhe tomou o baseado e deu um trago, caminhando devagar em volta do cômodo. Tinha um gingado malandro no andar e na voz. Não era bonito, mas possuía certo charme. O peito nu, ostentava a tatuagem de uma caveira em chamas entre duas armas cruzadas, cujos dentes eram uma fileira de balas. Era o símbolo do seu “reinado” naquela comunidade e em muitas outras. Grafitado nos muros, marcava os seus domínios e nem mesmo a polícia ousava cruzar aquela barreira. Os poucos policiais que entravam na comunidade, estavam na sua folha de pagamento.
— Nem fodendo!
— Mas, você prometeu. A menina está morrendo.
Ele ergueu a mão e fez uma careta de desdém, o baseado pendurado nos lábios de uma forma quase cômica.
— Eu menti, me processe! Achava mesmo que daria àquela vadia o que quer? Ah, não! Não vou mesmo. Só queria atormentá-la. Jamais imaginei que ela conseguiria a grana.
— Não duvide do amor de uma mãe.
Ele abafou um riso de escárnio e recostou-se a parede, olhando a noite estrelada pela janela entreaberta. No andar abaixo, o burburinho do salão os alcançou, junto com uma música alta e provocante. Marília se juntou a ele, recuperando seu baseado que já estava quase no fim. Enroscou-se nele como uma serpente e buscou seu olhar.
— Não tem pena da menina?
— Por mim, aquela pirralha poderia explodir e desaparecer numa nuvem de poeira!
Marília contornava a tatuagem dele com a ponta dos dedos e baixou o rosto para que não visse o quanto suas palavras lhe desagradaram. Ela não era uma boa pessoa, de fato, era tão desprezível quanto ele, mas ainda tinha um instinto maternal e deixar uma garotinha morrer por vingança lhe revolvia as entranhas. Mas, àquela briga não era sua, embora também odiasse Adriana. Contudo, também lhe dedicava algum respeito pela coragem ou, talvez, preferia pensar assim, estupidez em desafiar um homem como Alex.
— E o que vai fazer?
O amante sorriu, quase sardônico, e a empurrou para longe. Se aproximou da mesa e acariciou o cano da pistola que descansava sobre ela.
— Acho que está na hora de acertarmos as nossas contas.
***
Silvia aspirou o ar gelado da noite com prazer.
Estava diante da casa do gerente do banco, da qual havia acabado de sair. Não precisava ter ido até ali, pois já tinha ideia da localização de Bianca, mas sempre gostou dos detalhes. Conhecer seu inimigo era uma garantia de sucesso em sua missão.
Não foi uma entrevista difícil, nem precisou mostrar uma identificação para comprovar sua identidade, pois o homem estava ansioso para contar sua história novamente. Ele tinha certeza de que reconheceu a voz de uma das assaltantes. Disse se tratar de uma ex-funcionária do banco.
— Bonita — Silvia admirou as feições de Rebeca na fotografia que ele lhe forneceu. Apesar de já ter dado uma aos policiais que o interrogaram mais cedo, fez questão de tirar uma cópia para ela.
Estava bastante seguro do seu depoimento e não havia alterado sequer uma vírgula do que tinha dito anteriormente, o que ela tinha certeza já que teve acesso ao seu depoimento, dos demais funcionários e reféns. Ainda tinha alguns contatos e amigos na polícia que poderiam ajuda-la, mas foi a influência do Juiz Ricardo que facilitou as coisas.
Mesmo tendo lido os relatos, preferiu conversar pessoalmente com o gerente, cujo nome era Milton, e não lhe passou despercebido a maneira tendenciosa com a qual o homem se referia a ex-funcionária. Era um sujeito desagradável, apesar de muito polido. Tinha um sorriso presunçoso e olhos de rapina, que a devoraram maliciosamente diante da esposa e filhos. Com certeza, o tipo de homem que Silvia abominava e, mesmo tendo sido educada e firme na maior parte do tempo, não conseguiu evitar ser rude em alguns momentos.
O vento frio se insinuou por entre as dobras da sua jaqueta, trazendo junto um arrepio que percorreu sua espinha. Mirou a lua cheia no céu e voltou a olhar para o retrato que segurava.
— Muito bonita mesmo.
Um rosto quase angelical, de olhos castanhos e lábios carnudos. Os cabelos presos em um coque severo. Era uma foto 3×4, tirada para o crachá de identificação e Rebeca parecia muito desconfortável no momento em que sua imagem foi capturada, fazendo Silvia se perguntar a razão disso. Ela não parecia uma criminosa, pelo contrário. Mas, os anos na polícia tinham lhe ensinado que as pessoas nunca são o que parecem.
Ela própria era prova disso. Ninguém a conhecia de verdade, embora fosse sempre muito verdadeira em suas atitudes e gestos. A pessoa que mais se aproximou do seu eu verdadeiro foi Bianca e, ainda assim, estava muito distante de conhece-la completamente.
O brilho de um farol chamou sua atenção ao cruzar a esquina, alguns metros adiante. Guardou a foto no bolso interno da jaqueta e caminhou em direção ao SUV preto, estacionado do outro lado da rua. Quatro homens desceram dele, todos vestindo preto e coletes à prova de balas. Não se viam há quase cinco anos, mas não houve sorrisos, nem abraços carinhosos quando ela se aproximou, apenas olhares gelados e atentos, como de costume.
Silvia não sabia seus nomes, nunca perguntou, assim como eles nunca perguntaram o seu, mas tinha certeza de que sabiam, já que sua foto saiu na primeira página dos jornais locais quando perdeu sua farda. Tratavam-se por nomes fictícios e apelidos e, isso sempre foi o bastante. Quando trabalharam juntos, reuniam-se em um local discreto, recebiam suas ordens, cumpriam sua missão e partiam, cada um para um lado, sem qualquer outro contato até a próximo chamado.
Apertou, com firmeza, a mão de cada um. Um cumprimento raro entre eles, mas que serviu para quebrar um pouco de gelo, após tantos anos afastados.
— Caramba! Olha só quem voltou! — Disse um deles, assoviando em seguida com um sorrisinho traiçoeiro nos lábios finos e rachados. O chamavam Palito, pois sempre tinha um palitinho de dentes entre os lábios e era tão magro quanto.
Ela endireitou os ombros, olhando para a rua deserta, verificando se não havia olhos curiosos a espreita-los. Retirou das costas a mochila que carregava e enterrou, um pouco mais, o boné preto na cabeça, deixando à vista apenas um rabo de cavalo de fios muito louros.
— Quem é o alvo? — Perguntou outro homem. Ela ergueu o rosto para encará-lo, pois tinha quase dois metros de altura e músculos tão maciços quanto concreto. Apesar do rosto bonito e jeito malandro, era tão mortal quanto uma serpente. Cobra, assim o chamavam, fazendo referência a tatuagem em seu braço.
— Entrem no carro, explicarei no caminho.
Acomodou-se no banco do carona e só voltou a falar quando já estavam em movimento.
— Sabem quem ela é? — Mostrou a fotografia que havia acabado de retirar do bolso, então relatou os acontecimentos e esclareceu suas ordens, ignorando o celular que vibrava, furiosamente, no bolso da sua calça.
Não precisava pegá-lo para saber que era o juiz ligando. Só retornou a ligação, quinze minutos depois, quando já se encontravam na rodovia federal.
— Estamos indo para o Parque Nacional — informou, antes que ele tivesse tempo de dizer qualquer coisa, os olhos fixos na tela do notebook em seu colo. — É lá que Bianca está.
— Como sabe?
— Não tenho tempo para explicar agora, apenas confie como ela confia.
Ouviu o som pesado da respiração dele e quase pôde imaginar a sua face lívida de raiva. As coisas jamais voltariam a ser como antes do seu romance com Bianca.
Houve um tempo em que ela o admirava e respeitava. Ricardo não se importava com sua orientação sexual ou sua vida pessoal, a tratava como uma igual, tanto que a convidou a participar daquele grupo tático “especial”, quando percebeu que suas opiniões eram bastante semelhantes em relação a alguns indivíduos e situações. Mas, quando Bianca demonstrou interesse pelo mesmo sexo, o juiz se transformou em um homem preconceituoso e capaz de qualquer coisa para evitar que o “seu nome” fosse “degradado”.
— Me mantenha informado — desligou sem esperar a resposta dela, que não se incomodou, nem um pouco, por seu jeito brusco e voltou a se concentrar no computador.
Já passava das 22h e o trânsito era quase inexistente, então seguiam em alta velocidade, até o ponto onde as viaturas da polícia avistaram a van da fuga pela última vez. A tela do notebook, exibia um mapa da região, onde um ponto vermelho com o nome de Bianca piscava, fracamente.