POR ÐIANA ŘOCCO
Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> XXVIII <<<
— Quando Mestre Renan me deu o punhal eu era muito pequena. Mas agora… lembro perfeitamente de ele ter dito “punhal sagrado”, acrescentando que aquilo não significaria nada pra mim naquele momento, mas que no futuro eu compreenderia. Ele estava muito mais preocupado em me fazer entender que meu pai jamais poderia me ver com o punhal. Não sei por que decidiu me entregar isso naquela época, por que não me esperou crescer um pouco, pelo menos. Nunca mais nos falamos a respeito, nem mesmo quando comecei a usar o punhal no meu cinto, à mostra de todos.
— Seu pai nunca percebeu?
— Percebeu, claro. Mas o convenci de que ganhei o punhal em uma disputa com um cavalariço. Sempre me envolvi em disputas por prêmios, e as ganhava com facilidade, então foi fácil fazê-lo acreditar nisso. Quando criança, usava o punhal escondido entre as roupas, mais ou menos como você parece usar o seu. Mas quando entrei na adolescência, o desejo de tê-lo ao alcance das mãos ganhou força, se tornou uma tentação. Desde que o ganhei aproveitava qualquer oportunidade para admirá-lo, e era como se falasse com minha mãe através dele. Usá-lo no cinto era como andar de mãos dadas com ela. Dava-me a agradável segurança de ter minha mãe ao alcance das mãos. Não sei se você consegue imaginar o quanto isso é importante pra mim.
Alexandra guardou seu punhal e cerrou os dedos sobre o meu enquanto me olhava intrigada.
— Sei o quanto é importante o punhal de minha mãe para mim. E o que você fala se parece muito com o que sinto. O que eu não sei, Aléssia, é se posso confiar em você.
Talvez tenha sido aquela a primeira vez em que nos olhamos sem medo, com sinceridade.
— Gostaria de ter uma resposta, mas o fato é que me pergunto exatamente a mesma coisa. Posso confiar em você, Alexandra? Posso confiar na mulher que meu pai me ensinou a odiar com todas as forças?
— Imagino o que seu pai tenha lhe dito a meu respeito. Provavelmente você cresceu ouvindo falar nessa mulher terrível que arma o povo e o coloca contra o benevolente Rei Aran. A mulher que luta para usurpar os bens de sua família e aniquilar os Amaranto, não é?
— Para não faltar com a verdade, serei obrigada a dizer que descobri sua existência há poucos meses. Meu pai sempre me manteve afastada de assuntos polêmicos. Apenas no início desse ano mudou sua tática e me colocou como seu braço direito.
Ergueu a sobrancelha daquele jeito que lhe era característico, pelo que eu já havia percebido.
— Braço direito de Rei Aran? A situação é um pouco pior do que eu imaginava. Tinha esperanças de encontrar provas de sua inocência, Aléssia. A filha de minha tia Maura sempre foi alvo de meus melhores pensamentos e do mais profundo carinho, mesmo me sendo impossível manter contato. Adoraria tê-la visto crescer… Mas já estou habituada com a dureza da realidade e saberei ser forte quando precisar enfrentá-la numa batalha de vida e morte.
Apesar da frieza, da postura rígida e quase militar, da maneira agressiva como me tratava, havia algo de humano e cálido naquela mulher. Algo que me inspirava confiança, ainda que não me agradasse admitir.
Não falei mais nada, nem ela parecia disposta a manter o diálogo. Com um grito ríspido chamou o homem que a ajudara a me socorrer durante a crise d’ A Marca e, juntos, me escoltaram para um quarto no andar térreo. O cômodo era simples com um pequeno catre, uma cômoda e uma bacia para higiene pessoal.
— Pretendia deixá-la por uns dias no porão como forma de amansar seu espírito. Mas vou levar em consideração a crise que teve ainda há pouco. Mantenha a compressa no lugar, em breve volto para trocá-la.
Saiu rapidamente, não sem antes dar ordens para que redobrassem a vigilância em cima de mim. O que ela não sabia é que eu não tinha nenhuma intenção de fugir, simplesmente porque não tinha para onde ir.
Lavei minhas mãos e o rosto, depois sentei lentamente no catre, testando sua firmeza, e estiquei com calma meu corpo. Não conseguia lembrar ao certo a última vez que havia me deitado em uma cama.
Acordei com um toque suave e úmido em meu braço. Ajoelhada a meu lado, Alexandra cuidava de minha ferida. Abri os olhos com um sorriso que ela devolveu, mostrando-me a covinha que seus lábios formavam quando se encontravam com a bochecha, no lado direito de seu rosto.
— Não queria acordá-la, mas é preciso trocar o curativo para que a queimadura não infeccione.
— Posso lhe perguntar por que me socorreu? Por que cuidou de minha ferida quando eu estava quase enlouquecendo de dor?
— E por que não o faria? Mesmo um inimigo merece tratamento humanitário.
— Obrigada. Queria lhe dizer isso desde que a dor arrefeceu, mas…
— Eu sei. Não se preocupe em me agradecer. Não fiz nada que não faria por qualquer pessoa. Agora preste atenção, eu trouxe um pouco de água: mantenha essa compressa úmida. Ao amanhecer troco novamente. Vou mandar lhe servir uma refeição, espero que a aprecie, pois a próxima será só amanhã.
A noite foi negra e silenciosa como há muito tempo não me acontecia. Abria meus olhos e movia meus músculos exaustos às vezes, mas dentro e fora tudo era um mesmo escuro e não era possível ter certeza se estava dormindo ou acordada. Em alguns momentos os carinhos de Lara me alcançaram, sua mão delicada deslizando suave em meu rosto, procurando minha pele, lambendo minhas pernas com seus dedos longos e suaves. Sua ausência doía mais do que minhas feridas, naquele meu primeiro despertar no cativeiro. E a preocupação com sua segurança me acompanhou ao longo do tempo em que estive trancada naquele quarto, sem ver sol ou estrelas, convivendo apenas com meus monstros e desassossegos. Nem sequer as refeições, sempre idênticas em forma e quantidade, deixavam notar a passagem do tempo. Eu estava em um ciclo constante sem passado nem futuro, uma sucessão de eventos tão monotonamente iguais que, a certo momento, nem meus pensamentos tinham mais qualquer conteúdo.
Alexandra me visitou apenas no primeiro dia para algumas trocas da compressa. Ao fim do terceiro curativo, declarou que não havia mais o que fazer, lavou com água neutra minha marca e foi embora.
À medida que me afundava naquela negra realidade, interrompida apenas por uma rápida abertura na porta e o deslizar suave de um prato de comida, perdia o nexo de quem já fui e de quem era agora. Vez por outra beijava Lara ou acariciava Matilde, corria nos campos de minha infância ou lutava em guerras que nem sabia se eram minhas. E deitava sob o sol, sentia seu calor, usufruía de sua claridade. Montava Amora, disputava corrida com os cavalariços e depois mergulhava no Lago Dourado e repousava no coração do Bosque. Até que uma chuva repentina me surpreendeu em um momento de descanso e, tentando encontrar abrigo, me perdi no interior do Bosque que, ironicamente, conhecia tão bem. A tempestade apagou o sol e a escuridão ganhou um vigor, que nem em meus pesadelos era tão intenso. Perdi-me entre as árvores e o escuro, gotas do tamanho de seixos caindo por todos os lados, até que meus passos foram interrompidos por uma pedra. A Pedra.
— Eu sabia que você ia voltar — sua voz era barrenta e profunda, antiga, como se viesse de tempos imemoriais. Mas apesar de ter nuances de terra, seu tom frio causava-me arrepios pelo corpo.
— Toque-me, Aléssia, toque-me. Sinta minha força, deixe-me salvá-la. Deixe-me libertá-la. Eu sou a solução, o fim de seus pesadelos. Por que foge? Entregue-se, Aléssia!
Os pelos de minha nuca eriçaram e um arrepio medonho percorreu minha espinha. Recuei dois passos, mas quando tentei girar o corpo e fugir não encontrei meus movimentos. Nenhum músculo de meu corpo respondia a meus comandos.
— Do que você tem medo, Aléssia? Esta é a maior herança que tenho para lhe oferecer. Aceite-a.
— Pai?
— Aqui, Aléssia, venha comigo, permaneça do meu lado.
Sua voz era nítida mas, fosse pelas trevas, fosse por qualquer outro obstáculo, não podia vê-lo.
— Onde você está? Não posso me mexer.
— Volte até a Pedra, toque-a… me dê sua mão. Essa é a porta, a entrada e a saída, Aléssia. Toque-a e venha para onde estou. Todo o seu sofrimento vai acabar, eu prometo.
Para minha surpresa podia me mover em direção à pedra com muita facilidade. A voz de meu pai me acompanhou em cada passo, calorosa, terna e amigável. Senti a vibração da Pedra em todo meu corpo. Seu chamado entrava em cada poro com um frescor de água limpa, uma promessa de felicidade plena. Liberdade. Poder absoluto. Desejos realizados. A um único toque. Coloque o braço esquerdo sobre a Pedra, disse meu pai. Meu corpo tremeu, a nuca se arrepiou como se um fio de navalha a cortasse.
— Onde diabos estavam com a cabeça? Querem que ela enlouqueça? Há quantos dias está no escuro total?
A voz de Mestre Renan parecia mais próxima e substancial que a de meu pai. Por um instante, a Pedra oscilou à minha frente, como se fosse desaparecer. Então sua voz barrenta ressurgiu prometendo o fim de todos os meus tormentos. Cheguei a erguer o braço, aflita para ter paz, mas algo semelhante a uma corda enroscou-se em meu peito puxando-me para trás ao mesmo tempo em que abaixava meu braço.
— Acorde, Aléssia!
Uma claridade intensa chegou junto com a voz de Mestre Renan. Meus olhos doeram enquanto o Bosque tremeluziu à minha frente e a Pedra desapareceu por completo.
— Ela não é tão fraca assim, Renan.
— É inadmissível a maneira como a estão tratando!
— Não podemos correr riscos! Isso é uma guerra!
— Ela é apenas uma menina!
— Mas já tem a Marca, Renan!
Meus olhos se abriram instintivamente, então arderam e a imagem tremeu. O que era bosque ganhou outros tons e formas e me vi de frente para Alexandra dos Olhos Cinzentos.
— Não há justificativa, Alex!
A voz de Mestre Renan estava alterada como eu nunca tinha presenciado. Recobrando a consciência, me encontrei no chão do quarto de meu cativeiro, recostada em meu tutor que me abraçava suavemente. Sua presença me trazia o conforto de uma vida conhecida e mesmo sua traição, agora comprovada, surgia a meus olhos de outra forma, pois eu mesma, se tivesse forças, lutaria contra meu pai.
Alexandra olhava-o com sua expressão séria e autoritária. Ela era como um general, um comandante de exército, e nenhuma dessas posturas eram habituais em uma mulher. Não que eu me importasse com isso, justo ao contrário, sentia-me de certa forma em casa olhando aquela mulher, como se a existência dela legitimasse a minha. Como se eu não fosse tão estranha, nem tão diferente. Mas a posição em que eu me encontrava, tornava meio incômoda a situação. Eu era sua refém, estava em suas mãos e percebia nela tanta determinação de alcançar seus objetivos, que tinha medo. Alexandra não pensaria duas vezes em me liquidar, se isso servisse a seus propósitos. E se eu ainda estava viva era, provavelmente, por ela não ter certeza de que minha morte lhe fosse benéfica.
— Aléssia, minha querida, olhe para mim, me diga como está.
A familiaridade e o carinho da voz de Mestre Renan juntaram-se a meu cansaço, meus medos e incertezas produzindo uma dor que explodiu em meu peito como um soluço agudo e dolorido. Mordi a língua, cerrei a boca na vã tentativa de controlar as lágrimas. Mas naquele momento, tudo o que eu queria era minha cama, meu quarto e minha antiga vida de volta. Abençoava cada uma das minhas ilusões, tudo aquilo que sempre ignorei e que me permitiu viver inocentemente feliz até aquele instante. Ansiei pelo tempo em que meu único tormento era o amor não correspondido por Amaryllis.
Mestre Renan estava abatido e parecia anos mais velho. Seu olhar, no entanto, conservava a candura de sempre e seu sorriso paternal aqueceu meu coração desesperançado. Com um beijo na testa e um abraço meu tutor acalentou minha alma de uma maneira que, provavelmente, ninguém mais seria capaz de fazer.
— Você está bem?
— Estou sobrevivendo, Mestre, e no momento isso é o máximo que consigo.
— E creio que seja o suficiente por enquanto, minha querida. Como é bom revê-la! Estava tão aflito com seu desaparecimento. Conte-me tudo o que aconteceu. Amaryllis me fez um resumo, mas quero ouvir de você mesma.
— Sim, contarei. Mas antes, quero saber como estão as coisas no Castelo, o que se passa pela cabeça de meu pai e, principalmente, Mestre, se você tem alguma notícia de minha aia. Temo demais por sua segurança.
Mestre Renan me olhou com uma tristeza que fez meu coração doer:
— Sua aia não é vista desde seu desaparecimento, Aléssia. A versão oficial é de que foi sequestrada com você. Mas não sou capaz de dizer até onde isso é verdade. Seu pai parece acreditar, realmente, que você foi levada do Castelo contra sua vontade. Entretanto, existem “testemunhas” e até mesmo “soldados feridos” de um sequestro que nós dois sabemos que nunca existiu. Então, até onde seu pai acredita nisso, até onde aproveita seu desaparecimento para massacrar o povo, não sou capaz de responder.
— Vocês tem muito o que conversar, vou deixá-los a sós.
— Mas não pense que nosso assunto terminou, Alex. Ainda temos contas a acertar.
Alexandra saiu sem responder, os passos soando pesados no assoalho. A conversa entre eles seria tensa, eu era capaz de apostar.
— Qual sua relação com essa mulher, Mestre?
— Isso é parte do que tenho para lhe contar, Aléssia. Sei que o fato de me encontrar aqui, em seu cativeiro, a deixa com muitas dúvidas.
— Estou me movendo em areia movediça, Mestre. Já não sei mais se posso confiar nem mesmo em meus pensamentos.
— Eu lhe disse que um dia se sentiria assim…
— …e que eu deveria confiar em meu coração, quando esse momento chegasse. Sim, eu me lembro. Só não pensei que isso aconteceria tão cedo.
— Nem eu, Aléssia, embora torcesse para que fosse rápido, pois de sua conscientização depende a vida de nosso povo. Sei que está sendo extremamente doloroso, mas também sei que é um mal necessário, minha filha.
Engoli em seco e falhei em controlar as lágrimas. Agradeci por Alexandra não estar ali, me sentiria estúpida por demonstrar tanta franqueza diante dela.
Olá, Rocco!
Sou mais eloquente escrevendo histórias do que fazendo comentários e críticas, isso é certo, mas sua escrita é algo que sempre me inspira. Como não amar esse jeito poético com que elabora seus textos?
Outra vez obrigada por nos deliciar com suas histórias!
Beijo grande!