POR ÐIANA ŘOCCO
Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> XX <<<
Diana observava-me enquanto organizava nosso pequeno acampamento. Acendi a fogueira e coloquei as ervas perto do fogo para que secassem. Depois, usando um galho como tocha improvisada, procurei entre as árvores alguma que pudesse nos oferecer frutos. Merecíamos mais do que aquele mato insosso de alimento.
Alheia às minhas preocupações, Amora se recuperava das horas de sacrifício refestelando-se com o pasto generoso que a floresta lhe proporcionava. Era a única de nós feliz e confortável.
Não precisei me afastar muito para encontrar medronhos e avelãs. Colhi o que foi possível com minhas mãos e voltei feliz para o acampamento, tendo o cuidado de deixar pequenas marcas em algumas árvores para reencontrar.
— Encontrei alguns frutos bastante saborosos — disse enquanto retirava uma das bolsas da sela de Amora. Fiz três viagens colhendo o que consegui, e essa foi a ração de nossa primeira noite. Faminta como estávamos, comemos sorridentes, dividindo em goles mínimos o pouco de água que nos restava.
Minha noite foi assombrada por ruídos estranhos — galhos que se quebravam, animais farejando, cascos de cavalos… Nenhum deles existia fora de minha cabeça, eu sabia, mas foi esse medo que me ajudou a suportar o cansaço e permanecer de vigia.
A meu lado Diana ressonava, usando o mesmo vestido leve com que fora raptada de sua aldeia. Deitada de bruços, suas ancas marcavam o tecido que descia cobrindo as coxas grossas. A cintura fina completava sua silhueta para desespero de meus desejos.
Quando tentava fugir da visão de seu corpo, entretanto, eu acabava refém de desesperos mais profundos. Meu quarto, o Castelo, meu pai. O exército, a viagem, os soldados tombando mortos com meus golpes certeiros…
Na manhã seguinte, colhi mais alguns frutos, depois dei minhas primeiras ordens à Diana.
— Espero que esteja mais descansada depois dessa noite. Tome conta do fogo para que não apague totalmente e mantenha olhos e ouvidos abertos. Preciso dormir um pouco.
— Alto lá, rapaz. Não sou sua criada.
— Não disse que era. Mas se quisermos sobreviver, teremos que ser uma equipe.
— É esse tipo de coisa que aprendem no exército?
— Sim, entre muitas outras.
— Aprendem a estuprar e matar também, ou isso vocês já nascem sabendo?
Olhei-a com severidade. O momento exato em que sangrei os dois soldados no acampamento voltou à lembrança. Agora eu era, de fato, uma assassina.
— Não sou um assassino — disse com a voz turva, e a afirmação era mais para mim mesma, uma maneira de dizer que não havia como evitar aquelas mortes — e muito menos um estuprador. Quando vai aprender que pode confiar em mim, Diana?
— Se essa terra algum dia conhecer tempos de paz, então pode ser que eu consiga confiar em você, Iago-Não-Sei-De-Que. Mas, por enquanto, desconfio até de minha alma.
Sua ironia me mostrou o ponto a que sua desconfiança se apegava. Eu precisava de um nome de família se pretendia sobreviver nesse mundo externo.
Naquele instante, entretanto, achei por bem fingir que não ouvi e, depois de comer mais algumas frutas, deitei para descansar.
Por qualquer coisa de contrariedade, minha companheira de aventura, tão calada o tempo inteiro, estava nessa manhã propensa a conversas. Perguntou há quanto tempo eu estava no exército, quanto tempo pretendia ficar ali e até mesmo se eu achava que iria chover naquela tarde. Cansada, respondi por monossílabos e, quando a conversa chegou ao clímax, dei uma bronca deixando claro que pretendia dormir.
Tive mesmo a sensação de ter conseguido paz para descansar. Mas quando os sonhos estavam prontos para me encontrar, Diana fez a mais intrigante de todas as perguntas:
— Você já a viu alguma vez?
— Quem? – respondi com indisfarçável mau humor.
— A Princesa Aléssia.
Ouvir meu nome de maneira tão inesperada fez-me sentar instantaneamente.
— Já a viu? — Diana repetiu com vivo interesse. Balancei a cabeça, numa negativa tímida, e ela me olhou ainda mais intrigada. Depois deu de ombros como se aquilo não fosse importante:
— Você acha que ela existe?
— Hein? Ela quem?
— A Princesa, oras!
— Mas é claro que existe! — Meu eto foi tamanho que, quando dei por mim, já estava de pé. Diana se levantou também:
— Como sabe? Não disse que nunca a viu?
— Mas… porque eu não a vi isso não significa que ela não exista, não é?
— Ninguém nunca a viu. Isso não é estranho? Ela nunca saiu do Castelo! Que Princesa é essa?
Por pouco não respondi que havia visitado o povoado de Desterro uma vez, mas me dei conta do absurdo a tempo. Minha cara de eto, no entanto, era indisfarçável.
— Você nunca tinha pensado nisso, não é? Engraçado como as pessoas acreditam nas coisas, sem ter prova ou motivo para acreditar. Apenas por que o Rei disse que tem uma filha, isso significa que de fato a tenha?
— Mas… mas, se o Rei fosse mentir sobre isso, por que não disse que tinha um filho? Não é o que todos os reis querem? — Tentava raciocinar como alguém do povo, alguém que soubesse muito pouco sobre os nobres do reino.
— Um filho seria Rei, não é? Com uma filha, ele coloca no trono quem quiser. Faz um arranjo político com algum reino menor. O príncipe de lá governa aqui como se fosse esposo da Princesa, e nós nunca veremos essa mulher de verdade.
— Essa é a coisa mais absurda que já me disseram!
Minha língua frouxa mais uma vez me traiu. Diana arregalou o olho querendo saber por que era absurdo. Esperei, no entanto, que não verbalizasse a pergunta, mas minha esperança foi vã. Não só indagou como cobrou insistentemente uma resposta.
— No Castelo há uma expectativa muito grande pelo reinado da Princesa Aléssia — disse com franqueza, estranhando me referir a mim mesma daquela maneira.
— Impossível. Rainhas são figuras decorativas, todo mundo sabe.
Tive que me esforçar para não cair na risada. Nunca tinha ouvido tantos disparates juntos. Mas precisava moderar minhas palavras. Respondi da maneira que me pareceu mais coerente.
— Não sei nada das outras rainhas, perdoe-me a ignorância. Mas a Princesa Aléssia está sendo preparada desde pequena para assumir o reinado. Não acho que Rei Aran queira que sua filha seja uma figura decorativa, ele não entregaria o reino a alguém que não tem seu sangue.
— Você acredita mesmo nisso? Acredita em tudo o que dizem por aí? O Rei deve ter muitos filhos bastardos, ele pode escolher quem quiser para colocar no trono. Honestamente, não acredito na existência dessa princesa invisível. E pensar que uma mulher possa governar um reino, é uma piada maior ainda. Me admira você, um soldado, aceitando isso com tanta facilidade!
“Há uma voz popular que diz que o governo pertence aos homens. Esquecem-se de que são as mulheres que governam nossos lares, e o lar é a unidade mínima de um reino.” Quase ouvi a voz de Mestre Renan. Senti saudades de uma vida perdida há apenas dois dias, mas aparentemente a séculos de distância de mim. Amaryllis tinha toda razão, como eu podia governar se não conhecia meu povo?
— Não durmo há duas noites. Será que pode calar a boca e me deixar dormir?
Minha colega de infortúnio se afastou contrariada e eu pude, finalmente, descansar. Dormi cerca de quatro horas, o que era bastante razoável. Foi um período negro, sem sonhos, em que o benefício da não-existência me ajudou a descansar. Acordei com um feixe de luz caindo direto em meu rosto. Abri os olhos para os altos galhos acima de mim. A luz chegando filtrada pelo verde criava uma paisagem serena. Então era aquela a temida Floresta Escura?
Virei o corpo para fugir da luz. Aos poucos fui revivendo as últimas horas infernais, situando minha consciência no momento presente. Ao menos tinha conseguido descansar e me sentia revigorada. E sedenta.
— Vou procurar água e ver se arrumo alguma comida mais substancial. Não saia daqui em hipótese alguma.
— Até quando vamos ficar aqui?
— O tempo necessário pra conseguir provisões. A Floresta é generosa e nos oferece comida. Da estrada, infelizmente, não se pode dizer o mesmo.
A primeira coisa que descobri naquela manhã foi que a Floresta Escura era muito bonita e… clara! Formada predominantemente por árvores altas, permitia a passagem da luz de maneira gentil em lindos feixes coloridos. O som dos pequenos animais e dos insetos deixava a paisagem mais viva. O ar era perpassado por um aroma floral muito agradável, embora flores não fossem facilmente avistadas por ali. Precisei de pouco mais do que meia hora para encontrar a paisagem mais deslumbrante que eu já vira em minha vida: um lago com aproximadamente meia milha de extensão, a água cristalina azul intenso, calma e límpida como se fosse gelo. A luz incidia a partir dos muitos galhos de árvores e chegava ali filtrada, com vários tons de verde, refletindo no lago sua belíssima paisagem. Debrucei à margem e vi um rosto sério, marcado por uma expressão dura. O cabelo militar parecia me envelhecer. Ou foram os acontecimentos das últimas horas que se encarregaram dessa façanha?
Não tive coragem de tocar a água. Quebrar aquela paz perfeita pareceu um crime. Mas enquanto eu pensava isso, um peixe saltou alegre e retornou para seu paraíso, como se zombasse de meu estado contemplativo. Então mergulhei o rosto e descobri um mundo de paredes escuras iluminado por raios de sol que vinham do alto, um mundo rico nas mais variadas formas de vida. Voltei à superfície com vontade de urrar de alegria.
Refiz o trajeto para o acampamento com cuidado e cheguei exultante. A melhor maneira de encarar as dificuldades era manter o foco no presente. E, nesse momento, estava experimentando pequenas vitórias e sentindo a esperança surgir de algum lugar.
— Vamos mudar nosso acampamento, achei um lago alguns metros à frente. É o lugar ideal para descansarmos, creio que estaremos seguros por lá. Ajude-me com a fogueira.
Enquanto falava, comecei a jogar pedras e terra sobre o fogo. Depois espalhei as cinzas e os dejetos usando gravetos.
— O que está fazendo?
— Apagando nosso rastro. Se por um acaso alguma tropa chegar aqui não é bom que percebam que alguém acampou, certo?
— Você acha que há esse perigo?
— Sempre há perigo. A vida não é segura. Mas agora vamos, não é bom ficarmos muito tempo no mesmo lugar. E temos que aproveitar a luz para avançar na floresta. Precisamos ter comida e abrigo garantido antes do anoitecer.
Com cuidado, conduzi Amora e Diana. Caminhamos devagar, tentando não quebrar galhos ou folhas. Seria preciso um olho treinado para perceber o rastro humano naquele ambiente selvagem.
Assentamos nosso acampamento cerca de três jardas do lago. A margem descampada não era um local seguro. Naquela distância, tínhamos água e comida com facilidade, além de uma terra macia para deitarmos. Não pretendia ficar muito tempo, mas precisávamos descansar e organizar provisões antes de prosseguir.
Naquela tarde pesquei, e comemos um peixe assado com ervas que causou admiração em Diana. Completamos a refeição com frutas frescas. À medida que nos habituávamos com a presença uma da outra, mais ela me observava com curiosidade. Quanto a mim, evitava ao máximo olhá-la. Arrancada de sua casa com um vestido mais propício para o quarto que para a sala, seus seios avolumavam-se indiscretamente sob o tecido cru. As coxas grossas e bem torneadas podiam ser pressentidas através do pano leve. Suas formas generosas eram uma tentação que eu evitava, forçando-me a cuidar de Amora e do acampamento, saindo em pequenas expedições para conhecer as áreas ao nosso redor.
— Você não é mais criança. Não devia ter ao menos um pouco de pelo no rosto?
A pergunta repentina me assustou, não a esperava. Enrubesci. Era a segunda pessoa observando esse detalhe.
— Vou pescar mais alguma coisa. Precisamos de comida para a viagem.
— Você é estranho. Não entendo porque não gosta de falar sobre você mesmo.
— Tenho meus motivos.
– Todos temos. Mas estamos metidos na mesma enrascada. Não seria proveitoso que nos conhecêssemos, já que vamos precisar nos ajudar mutuamente?
Em certos aspectos ela tinha razão. Mas por que era tão difícil acreditar que eu era Iago, soldado novato no exército de Âmina?
— Às vezes é melhor não saber de certas coisas. Confie em mim, Diana. Afinal, salvei sua vida. E tudo o que estou fazendo agora é para lhe deixar em um local seguro.
— Que local é esse?
Era exatamente o que eu estava me perguntando desde que começamos nossa fuga. Só havia um lugar no qual eu conseguia pensar: Forte Velho. A cidade para onde, eu acreditava, Amaryllis havia fugido.
— Forte Velho. Já ouviu falar?
— Não conheço nada além de minha aldeia. Nunca tinha saído de lá.
Comecei a cortar e limpar alguns galhos. Depois separei as folhas de um chorão e as arrumei para servir como uma espécie de corda. Amarrei na ponta dos galhos que havia preparado. Agora era só procurar algum pequeno animal que servisse de isca. Diana observava meus preparativos.
— Você é de lá?
Estava entretida com meus afazeres e não entendi a pergunta. Ela reformulou.
— Você é de Forte Velho?
— Não. Mas tenho uma amiga que, provavelmente, está lá. Acho que ela pode lhe ajudar.
— Como é a cidade?
Bati a faca com força contra o galho que estava arrumando. Aquele interrogatório estava me irritando, mas não consegui pensar em uma resposta melhor do que a verdadeira.
— Não faço ideia, nunca estive lá.
— Você está me levando para um lugar que você não conhece, onde talvez uma amiga sua esteja?
Juntei as três varas que havia preparado e fui para o lago. Diana, por sorte, resolveu ficar para trás com suas perguntas. Com a ajuda da faca cavei a terra próxima da água até que fosse possível encaixar as varas e deixá-las com a isca solta no fundo. Sentei com as pernas cruzadas e aguardei. Pela primeira vez nos últimos dois dias eu estava solta, sozinha e com tempo para pensar.