Aléssia

Capítulo V

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> V <<<

Na manhã seguinte, levantei decidida a comentar com meu pai a conversa que ouvi. Doía-me pensar em Mestre Renan como uma espécie de traidor. Minha admiração por ele estava à beira de um abismo. Que as sementes que plantei em Aléssia floresçam soava repetidamente nos meus ouvidos. Como um mau agouro ou uma maldição. Sentia-me usada, traída.

Meu ânimo estava bastante exaltado quando entrei no salão para o desjejum. Mas, por uma infeliz coincidência, Don Otto acompanhava meu pai em sua refeição matinal. Não era uma presença usual, o que me deixou ainda mais alerta. Calaram-se tão logo entrei e, enquanto ocupava meu lugar à mesa, fiz questão de lembrá-los que eu também participava do governo de nosso país.

— Não há porque se calarem em minha presença. Não sou mais sua pequena filha, meu pai. Sou conselheira do reino. Em poucos dias terei dezoito anos e legalmente estarei apta a assumir o governo. Preciso conhecer nossos problemas para saber resolvê-los quando chegar o momento.

Meu pai pigarreou levemente contrariado, mas respondeu com a voz mansa:

— Fico feliz em ver seu interesse nos assuntos de governo. Mas, mesmo não sendo mais uma criança, ainda não tem todos os conhecimentos para compreender certos detalhes administrativos. E mesmo que esteja às vésperas da idade legal de transmissão de poder, ainda não recebeu de mim os votos que lhe darão o direito de reivindicar o trono. Quando chegar o momento, você tomará conhecimento de tudo o que é preciso saber, mas por enquanto Sir Otto e eu temos assuntos reservados a tratar.

E, sem me dar tempo de resposta, os dois se retiraram. Fiz minha refeição sozinha, jurando ter uma conversa séria com meu pai na primeira oportunidade.

Os fatos, no entanto, conspiraram contra mim. Inesperadamente meu pai partiu em campanha pouco antes do almoço. Desde meu nascimento, suas viagens eram raras e sempre programadas com antecedência. Sua ausência, inesperada, me deu a certeza de que algo sério acontecia no reino. E Mestre Renan com certeza estava envolvido até o pescoço!

Matilde foi meu desabafo naquele dia. O treinamento vespertino terminou algumas horas antes do pôr do sol. Ordenei à Lara que me preparasse um banho de cheiro e trouxesse alguma de minhas roupas velhas, que havia enviado à lavanderia dias antes. Saí de casa banhada em flores, com uma camisa creme meio surrada e uma calça de couro justa no corpo, mas usada o bastante para não chamar a atenção. Envolvi minha cintura em uma faixa branca, como os soldados faziam, e escondi meu rosto sob a aba de um chapéu largo. Circulei normalmente pelas ruas do povoado e nenhuma pessoa estranhou minha presença. Estava ficando especialmente boa em metamorfoses.

A casa de Matilde estava calma e sem nenhum aviso de que ela estivesse com visitas. Bati três vezes na madeira e seu sorriso, ao inesperadamente me ver, compensou o tormento da noite anterior. Puxou-me para seus braços e trancou a porta. Eu estava em paz, finalmente.

— Então ontem um poderoso veio lhe ver, não é?

Ela pareceu desconcertada com meu comentário. Pensei, por um instante, que talvez fosse indelicadeza de minha parte mencionar seu delicado trabalho. Mas sentia-me tão íntima e tão cúmplice de Matilde, ansiava participar de sua vida de forma tão intensa, que afastei rapidamente essa sensação desagradável.

— Eu lhe alertei que isso poderia acontecer algum dia — ela respondeu, numa voz que aparentava alguma tristeza.

Tomei-a em um beijo de profundo amor e compaixão e, encarando profundamente seus olhos castanhos, tentei tranquilizá-la.

— Sei bem disso, minha querida, e não estou lhe cobrando nada. Mas não há como negar que senti falta de seus braços.

— Eu também senti sua falta, Aléssia.

Seu sorriso nasceu vivo, pleno de uma emoção sincera. Em minutos estávamos na cama saciando nossa sede. Por algumas horas estive livre de minhas sérias preocupações. Mas, tão logo nosso fogo interno serenou, as nuvens voltaram a meu coração. Então segredei a Matilde como ter retornado cedo para casa me ofereceu a oportunidade de flagrar uma conversa escusa. Contei, detalhadamente, tudo o que tinha ouvido e a maneira inesperada como meu pai deixou o castelo com sua comitiva.

Depois de me ouvir minuciosamente, Matilde ficou gestando um longo silêncio. Por fim tentou me tranquilizar dizendo que nunca ouvira nada que desabonasse Mestre Renan.

— E se tem uma pessoa que conhece as fofocas do reino, essa pessoa sou eu. Você não imagina o que um homem é capaz de confessar em seus momentos de amor. Principalmente se está nos braços de uma mulher que o ama por obrigação. Ao comprar meus serviços, compram também meu silêncio e usam e abusam de meus ouvidos. De Mestre Renan tudo o que ouvi até hoje é que é muito severo com ética e incorruptível. E, até onde eu saiba, já tentaram comprar sua lealdade a peso de ouro. Creio que você tenha um tutor maravilhoso, seu pai não poderia ter escolhido melhor.

— Respeito sua opinião, Matilde, mas o que ele quis dizer com “as sementes que plantei em Aléssia”?

— Ele está lhe preparando para ser nossa futura Rainha. Creio que a metáfora “sementes” se aplique perfeitamente ao caso.

Não respondi, mas permaneci confusa e minha expressão, provavelmente, denunciava as dúvidas em que eu naufragava naquele momento.

— Você ouviu apenas um trecho de uma conversa, Aléssia. As palavras podem ganhar sentido muito diferente quando estão fora de contexto. Evite julgar seu tutor por menos de um minuto de conversação, quando ele se mostrou digno ao longo de muitos anos. Será que Mestre Renan não merece um voto de confiança?

Continuei em silêncio, as palavras de Matilde passando por muitos níveis de análise.

— Quando se trata do poder sobre todo o reino e suas riquezas, será que alguém merece um voto de confiança?

Matilde me olhou com ternura e uma sombra que interpretei como certa dose de compaixão.

— Espero, sinceramente, que você tenha sabedoria para responder a essa pergunta, Aléssia. Porque essa será exatamente a questão com a qual irá se deparar sua vida inteira.

Beijou minha testa com terno carinho e, num gesto quase religioso, deixou sua mão pairar um instante sobre minha cabeça:

— Que os Deuses lhe abençoem, Aléssia Valentina, e lhe deem toda a sabedoria de que você necessitará em sua jornada.

— Muito obrigada, minha querida. Obrigada por seu carinho e por sua amizade. Conhecemos-nos de maneira tão mágica, você só pode ser um presente dos Deuses pra mim.

— Ah, quem me dera ser algo assim tão nobre, minha cara Princesa. Não passo de uma cortesã, mas fico realmente feliz em poder lhe servir, Alteza.

Desde que nossa amizade ganhou cores íntimas, essas cortesias de Matilde tinham uma leve picardia e me faziam rir. Puxei-a contra meu corpo e deixei que minhas dúvidas naufragassem em seus seios, me perdi novamente em seus braços até o início da madrugada. Mas as preocupações, infelizmente, não abandonavam minha cabeça.

— Não vejo a hora de meu pai voltar. Acho que apenas depois de uma boa conversa com ele é que vou me sentir tranquila.

Meu desabafo foi pontuado pelo cantar de um galo nas vizinhanças. A hora de voltar para casa estava chegando.

— Se me permite uma opinião, Aléssia, não sei se deve incutir dúvidas no espírito de seu pai. O Rei Aran é um homem atormentado pelo poder e, muitas vezes, toma decisões precipitadas. Tome cuidado para não fazer com que alguma injustiça recaia sobre Mestre Renan.

Matilde deu uma entonação diferente à frase “atormentado pelo poder” e eu julguei que se referisse ao peso de ser responsável pelo reino, peso esse que eu vinha descobrindo cada vez com maior intensidade. Tempos depois, eu compreenderia o real sentido de suas palavras.

Pensei durante alguns minutos, mas meu coração não se demoveu da ideia de conversar com meu pai. Afinal, ele era meu esteio, meu sustento. E, se tentavam algo contra nossa casa, precisávamos nos defender, ainda que fosse contra meu tutor. Ainda que fosse contra o pai de Amaryllis.



Notas:



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