Aléssia

Capítulo IV

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> IV <<<

Tão logo entrei, Matilde me envolveu em um beijo sedento.

— Senti sua falta, minha querida! Passei esses dias me perguntando se você voltaria.

— Não vim antes, porque não me pareceu seguro. Precisava organizar uma estratégia para as minhas saídas.

— Ah, pelos Deuses, você fala como um militar!

— Eu sou uma militar!

Afoguei meu rosto em seus seios, essas últimas palavras morrendo no fundo do decote. Ela arfou sem disfarçar o prazer e puxou meus cabelos, me levando para o quarto entre sussurros e gargalhadas:

— Ah, teremos uma Rainha Guerreira! Isso me deixa muito excitada, Alteza.

O tratamento formal foi dito com profunda sensualidade e me enlouqueceu por completo. Joguei-a na cama e me deitei sobre seu corpo perfeito, desnudando-a no calor de minhas carícias. Meu corpo, treinado para batalhas, aprendia a dançar as loucuras do êxtase.

O amanhecer nos encontrou entre carícias amenas e palavras confessionais. Entreguei a seus cuidados minhas angústias secretas, meu amor inconfesso por Amaryllis, minhas apreensões quanto ao futuro, todos recebidos com comovente carinho e respeito. Minha companheira de balé noturno, no entanto, dava voltas no assunto, evitava falar de si própria. Se por pudor ou por temor eu não sabia, mas seu silêncio aguçava minha curiosidade.

— A vida do lado de cá do muro é um tanto quanto diferente da vida que você conhece, Aléssia.

— Então me conte sobre essa vida, Matilde.

— É uma vida mais dura… creio que você não imagine o quanto.

— Mais um motivo para me dizer, não é? Vou governar Âmina!

Cada vez que ela sorria, eu admirava o quanto seus dentes eram brancos e bem cuidados. Isso era raro mesmo entre os nobres, e chegava a ser etoso em alguém do povo. Admirei de novo esse fato enquanto ela, em um sorriso tímido, parecia pensar no que eu dissera.

— Que os Deuses lhe deem um reinado longo e que você tenha sabedoria para conduzir seu povo, Aléssia. Precisamos de você. De verdade.

Sempre estive ciente da responsabilidade que me aguardava, mas não acreditava que pudesse ser melhor governante do que meu pai.

— Não creio que eu possa ser melhor do que meu pai, mas tenha certeza de que conheço a responsabilidade que me aguarda e que estou me preparando da melhor forma para isso.

Matilde não disse nada, mas se afastou um pouco de meu abraço e olhou para a janela fechada, pensativa. Envolvi-a em meus braços novamente, puxando-a para o calor de meu peito.

— Mas vamos deixar de lado essa conversa, que isso está parecendo mais uma reunião ministerial do que um encontro de… ahn… amigas…

— Impressão minha ou a jovem alteza esquivou-se propositadamente da palavra amante?

Ri com satisfação de seu comentário e respondi com um beijo profundo e demorado. Depois a instiguei a me contar sua vida.

— É difícil chamar de amante uma pessoa com quem você compartilha a cama, mas não a vida.

— Ah! Isso se chama esposa, majestade.

Rimos alto e nos beijamos novamente. Mas eu estava mesmo decidida a conhecê-la melhor e deixei isso claro. Diante de minha insistência, Matilde venceu suas resistências. Não me surpreendeu que minha nova amiga fosse uma cortesã, seus modos e vestes já deixavam isso claro. Mas causou-me espécie que fosse viúva de um soldado.

— As mulheres não recebem o soldo de seus homens mortos? É isso que você está me dizendo?

— Por que a surpresa? Você não acompanha a administração do reino? Se não acompanha, deveria começar a fazê-lo com urgência.

— As decisões são tomadas em diversos escalões. Mas acho que seria bom espiar as decisões abaixo de mim.

— Você tem poder de decisão?

— Tenho poder de voto nas reuniões. Não é muito significativo, mas é melhor do que nada. Mas o que é que você está me dizendo? Ficou sem meios de se sustentar depois que seu marido foi morto em uma campanha de nosso exército? É isso? Quero saber detalhes, Matilde!

E Matilde forneceu detalhes…

As histórias que ouvi naquela madrugada me instigaram a andar no meio povo. Mulheres com filhos pequenos obrigadas a entregar suas crianças a estranhos e se prostituir. Ou obrigadas a servir de concubinas de poderosos, apenas para ter garantia de alimento para si e as crianças. Homens mutilados na guerra e que também não encontravam formas de se sustentar. A maioria se matava. Outros aceitavam trabalhos sórdidos e alguns chegavam a se prostituir em festas frequentadas apenas por homens. O nojo daquela realidade me deu calafrios. Precisava ver tudo com meus próprios olhos.

Minha terceira expedição ao Círculo Intermediário foi cautelosamente estudada. Passei os dias anteriores observando o movimento no portão leste e os pontos de refúgio em suas proximidades. Nessa região ficavam as nossas oficinas e o movimento era intenso. Se parecia mais com o povoado do que com o restante do castelo e era raro encontrar algum nobre por ali. Meu pai, por exemplo, quando queria alguma arma ou confecção, ordenava a seu pajem que fosse encomendar. Não me lembro de ter estado ali com ele em nenhuma ocasião, e na minha infância tínhamos o hábito de passear muito pelo Círculo Interno…

Amora, minha égua de estimação, branca e elegante como poucos animais naquelas paragens, chamava excessivamente a atenção. Eu pretendia andar a pé pelo povoado, mas precisava de um cavalo na volta. A distância entre o portão leste e a casa principal era bastante razoável. Meu primeiro pensamento tinha sido deixá-la amarrada em local seguro, mas logo percebi que ela não passaria despercebida. Decidi, então, usar um cavalo mais discreto e guardá-lo em uma das estrebarias que funcionavam ao lado das oficinas.

Escolhi um dia chuvoso para meu primeiro passeio completo pelo povoado. Mandei através de Lara um recado para Matilde, e no horário marcado nos encontramos nas proximidades do portão. Minha concubina chegou num lindo vestido amarelo com um xale marrom que lhe dava um ar mais sério do que eu estava acostumada.

— Devíamos ser discretas e você aparece linda desse jeito?

Surpreendentemente, Matilde enrubesceu com o elogio e desviou seu olhar do meu como uma adolescente apaixonada. Sorri com orgulho por conseguir arrancar tal reação de uma mulher experiente como ela.

Perambulamos pelas ruas estreitas e quase vazias, minhas velhas roupas de treino ficaram encharcadas rapidamente e a botina velha que eu usava não me ajudava a vencer a lama. Observei com atenção as casas pobres e mal cuidadas, aqui e ali um rosto na janela, quase sempre velho, quase sempre triste.

O fim do dia foi, como de hábito, no corpo de Matilde. Seu regaço era meu aconchego, meu descanso, meu refúgio. A tristeza dos anos mais recentes me abandonou de vez. Enfrentava minha rotina atarefada com um empenho cada vez maior. Não apenas por estar feliz ao lado de Matilde, mas principalmente porque, conhecendo o povoado, começava a conhecer realmente minhas responsabilidades.

Dois invernos após minha primeira incursão ao Círculo Intermediário, minhas visitas à Matilde eram praticamente diárias. Não era raro presenciar a saída de um ou outro homem de sua casa mas, desde que nos conhecemos, ela não mais os atendia no período da noite. Suas noites eram minhas, muito embora houvesse um acordo explícito entre nós de que, caso fosse procurada por um nobre ou qualquer outro poderoso, não lhe seria permitido recusar. Em todos aqueles meses, entretanto, nada disso aconteceu. E ela tomava o cuidado de deixar o sinal de ocupado explícito na porta para que nenhum desavisado nos incomodasse. Desse modo compartilhávamos nosso amor em sossego.

Mas em uma das tardes de fevereiro daquele ano, fui surpreendida por um movimento anormal na casa de Matilde. Havia muitos cavalos e soldados nas cercanias, e precisei me esconder para que nenhum deles me reconhecesse. Num primeiro instante pensei que minha amiga estivesse em alguma encrenca, mas logo percebi que recebia a visita de um homem poderoso. Muito poderoso, aliás, a julgar pelo tamanho de sua guarda pessoal.

Foi por conta desse acaso que naquele dia retornei ao castelo no acender das estrelas, cavalgando displicentemente um magro cavalo baio que se tornara meu constante companheiro. O animal não era novo e já era considerado aposentado para os serviços de infantaria. Até que eu o adotasse como amigo de aventuras, Lorde era um cavalo triste, constantemente preso em uma estrebaria velha, praticamente desativada. Passei a guardá-lo na estrebaria principal ao lado de Amora e foi esse o trajeto que fiz naquele início de noite. Mas eu não tinha nenhuma pressa de retornar a meus aposentos e conduzia meu cavalo num trote manso. Meu coração estava apertado pela impossibilidade de ver Matilde. Um sentimento estranho, que alguns diriam se assemelhar ao ciúme, tentava dominar meu estado de ânimo. Eu o mantinha afastado dizendo para mim mesma que sempre soube quem Matilde era e que não podia julgá-la por isso. Nem censurá-la por não estar comigo essa noite. No fundo eu sabia que, se pudesse escolher, era em meus braços que gostaria de estar, e isso me enchia com um orgulho.

Apenas um fio de lua era visível naqueles dias, o que aumentava as estrelas no céu e as sombras na terra. Apesar do escuro eu me sentia segura no interior do castelo e, estando já a uma distância razoável da estrebaria principal, apeei Lorde e o conduzi pela mão. Caminhávamos devagar e silenciosamente como soldados em uma emboscada. Não foi essa a minha intenção, apenas acontecia de ser esse meu jeito natural de andar, o que se mostrou especialmente útil naquela noite.

Já havia me aproximado do prédio da estrebaria e o contornava para entrar pelos fundos, quando ouvi vozes. A essa hora, os criados deviam estar recolhidos aos aposentos para seu descanso e apenas soldados da ronda deveriam estar no pátio. Não foi à toa que estranhei aquela conversa em voz baixa em um prédio relativamente afastado da casa principal. Como o som aparentasse vir da frente, entrei pelos fundos, exatamente como planejara, prendi Lorde em sua baia alisando-o para que não fizesse nenhum som estranho. Agachada e no mais extremo silêncio me aproximei do portão principal. A parte superior do portão estava aberta e eu conseguia ver o vulto de um soldado que, pela plumagem no chapéu, pertencia à guarda principal de meu pai. Conversava com alguém fora de meu campo de visão:

— As coisas estão caminhando bem. Fiz uma forte… amizade… digamos… com a responsável pela lavanderia. Não será difícil conseguir alguns uniformes surrados.

— Bom trabalho, Alex ficará feliz em saber. E espero que não esteja sendo nenhum sacrifício lidar com essa moça.

Horrorizada reconheci a voz de Mestre Renan, muito embora saísse de sua boca um tom irônico que eu desconhecia.

— De maneira alguma, Milorde, trata-se de uma jovem bonita e gentil. Mas mesmo que não o fosse… tudo pela boa causa, não é?

O soldado recebeu um tapa amigável no ombro e sorriu orgulhosamente.

— Só espero que as sementes que plantei em Aléssia floresçam fortes. O momento oportuno está chegando, não poderemos esperar demais. A Princesa já ocupa sua posição como Conselheira e em três invernos seu treinamento estará completo. Não podemos permitir que isso aconteça, ou tudo estará definitivamente perdido.

Mordi os lábios para não urrar de indignação ao ouvir meu nome. Minhas pernas fraquejaram e conduzi lentamente meu corpo para o chão, tomando cuidado de não produzir nenhum ruído. Os homens começaram a se afastar e, confusa, eu não conseguia manter a atenção na conversa. Mas tive a impressão de ouvir algo como “Aléssia é nossa única esperança” antes que as vozes cessassem por completo.

Naquela noite tive um sonho denso, confuso. Acordei transpirando em meu quarto abafado e com a sensação de que alguém tentava invadir meus aposentos. Lavei o rosto na bacia disposta ao lado da cama, caminhei furtivamente até a janela e observei os campos. As sentinelas andavam pelos muros. Não havia nenhum movimento no pátio. Tudo como sempre havia sido. Mas observando as sombras noturnas lembrei vagamente de ter sonhado com uma tropa invadindo o castelo. Era noite alta e não havia lua. Os portões do leste haviam sido completamente rompidos e uma enxurrada de homens enfurecidos atacava a casa principal. Em um uniforme vermelho com faixas cinzas, montada em Amora, era eu quem comandava a carnificina contra minha própria casa.



Notas:



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3 Respostas para Capítulo IV

  1. Que tenso. Mesmo o pai dela sendo horrível, não parece que esse Renan é melhor. Só torcer pela Alessia.

    • Só posso te dizer uma coisa, Anes: Aléssia preferia não ser esperança de nada nem de ninguém ☹
      Gratidão pelos comentários, querida. É uma felicidade saber que você está gostando da história.

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