MISHA
O que você tanto esconde, Eris?
Desculpe
Estou um pouco atrasado
Mas espero que ainda dê tempo
De dizer que andei errado
E eu entendo
Por onde andei do Nando Reis começa a tocar baixinho no rádio da cozinha e, sem que eu perceba, começo a cantar junto enquanto me sirvo. Eu vou sentir muita saudade desses cafés da manhã aqui da fazenda, dessa comida e do Brasil. Ah, mas eu vou sentir muita saudade do Brasil.
Checo as notícias do dia e abro o meu aplicativo de mensagens. Respondo meu pai e Nara, nenhum sinal da minha mãe ou Gabriel.
Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava
As imagens de ontem voltam a minha mente. Toques, aromas, a voz da Eris… será que é comigo o problema dela? Será que existe algum problema? Com certeza existe. Será que o Gabriel está certo?
Precisava me pegar do jeito que me pegou, cacete?
— Que voz bonita — algo ressoa atrás de mim — pensei que você só cantava em karaokês.
Viro meu pescoço ainda entretida com a música e encontro uma Catarina com uma blusa do Guns N Roses, calça de pijama do monstros S.A e pantufas de pelúcia em formato do Gary, o caracol do desenho do Bob Esponja. Um rabo de cavalo meio desfeito e a maior cara de sono.
Pantufas do Gary.
— Catarina? — mas antes que eu pudesse perguntar o que ela está fazendo aqui sou atingida por seu corpo pequeno e ainda quentinho o que indica que ela estava mesmo dormindo.
— Bom dia, minha fadinha — ela me abraça igual um filhotinho com sono — serei sua companhia hoje.
— Será? Bom dia!
— Uhum — ela me olha com um olhar de convencimento mas de uma forma fofa — E já estou sabendo que você anda se aventurando por aqui — você nem imagina o quanto, Catarina — como está o seu pé? — ela pergunta enquanto roda a mesa e senta à minha frente.
— Agora ele está bem. Já bati a minha cota de aventuras para essas férias.
— A Fiona é uma médica bem foda, né? Ela já precisou me dar alguns pontos no meu braço e nem dá para ver a marca da cicatriz, olhe — ela estende o antebraço em minha direção. — Mas não fale que eu falei isso porque ela vai ficar se achando — engraçado que Eris falou o mesmo sobre a Haru e isso me tirou uma risada sincera.
— A Haru te atenta mesmo.
É sempre uma troca amistosa de apelidos entre as duas. Já percebi também que Catarina gosta de colocar apelidos em todo mundo.
— É, ela é assim, mas tenho minhas próprias formas de vingança — pinçou com o indicador e o polegar o tecido da blusa, puxando-o para frente e piscou para mim.
Encaro a estampa de Use Your Illusion I, álbum do Guns N Roses. Bem que Eris disse que a Haru curtia rock.
— Então você rouba blusas?
— Tenho uma verdadeira coleção de camisas de banda, a minha última aquisição foi uma do Scorpions da Eris, tô namorando uma do Foo Fighters mas fui ameaçada de morte se eu chegasse perto dela.
A dinâmica delas é bem engraçada mas parece funcionar bastante, é uma amizade que eu gostaria de ter.
Calma, Scorpions? “Não desse rock” a voz dela me visita internamente e só confunde mais meus pensamentos em relação a essa mulher.
Concordei com a cabeça enquanto tomo um gole do café. Ainda estou tentando assimilar todas essas informações.
— Fui dormir mó tarde. Me passa o Nescau? — e bocejou — Adria, literalmente, me tirou da cama ainda dormindo. Eu trouxe meu biquíni e nós podemos fazer o que você quiser — ela me abriu um sorrisinho e mais um bocejo — hoje quem manda é você.
Então Eris está com a Adria?
— Falando na rainha de gelo, ela é boa, não é?
Senti meu rosto ruborizar, como se eu fosse uma adolescente tendo seu segredo exposto.
— Oi? — engasguei com o café.
— A cama, Misha. Você estava dormindo na melhor cama dessa casa — puta merda ela me viu no quarto da Eris.
Continuo sentindo meu rosto aquecer.
— Assim que eu cheguei, Eris mandou eu ficar longe do quarto dela. — Catarina diz enquanto parte o pão com as mãos e revira os olhos — Mas eu estava com tanto soninho e lá é sempre tão… confortável. Logo que saíram, corri pro quarto mas te encontrei dormindo e fiquei com medo de te acordar, você parecia a bela adormecida — ela fala isso em um tom tão despreocupado. — Acabei entrando em um outro, acho que é o seu. A chata da minha namorada diz que é feio a gente se enfiar na cama alheia sem ser convidada. Está brava comigo?
Não consegui prender o riso e balancei a cabeça em negação.
— Por isso você é a minha segunda pessoa favorita — me fala em um sorriso cheio de dentes.
*
Depois do café, fomos até o escritório do meu pai para que eu pudesse acessar meu e-mail através do notebook dele. Nota mental: comprar um notebook novo assim que chegar em Manchester.
— Meu Deus, não acredito que eu vou conhecer essa parte da casa — Catarina parece uma criança animada preparada para uma aventura.
— Nunca veio aqui? — pergunto curiosa.
— Só pessoas autorizadas entram aí. Ninguém passa do corredor e Eris não fala disso com as meninas, pelo menos, Adria não me conta nada.
Quanto mistério, seu Zeca.
Assim que adentramos o cômodo sou golpeada por uma energia muito familiar. O escritório do meu pai exala a vibe da nossa antiga casa, é como se eu tivesse voltado no tempo. Existe uma parede de pedra bruta com certificados dos mais variados tipos e uma enorme estante de madeira maciça recheada de livros. Depois me perguntam de onde veio meu hábito de leitura. Nela, há um enorme porta retrato com uma foto dele, de perfil, trajando uma farda preta, a boina e ele está rindo. Ao lado, uma notícia de jornal da época:
“Coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro; Comandante do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Graduado em Direito; Pós-graduado em Segurança Pública; Ciências Jurídicas; Ciências Sociais; Ciências Criminais.”
Catarina analisa foto a foto. Ela parou em frente a uma que tem uma equipe de homens trajando fardas pretas, conheci todos que estão na fotografia. Vários deles já morreram e os que ficaram vivos nem estão no país.
— Não brinca que o seu pai…
E ela olha para mim, incrédula.
— Foi um caveira? — eu falo e Catarina não consegue esconder seu espanto, ela leva as duas mãos à boca. Como eu disse, Catarina é muito transparente.
Eis aqui a causa mor para a separação dos meus pais: a tropa especial da PM.
Isso acabou com o casamento dos meus pais.
Isso acabou com a minha relação com o meu pai.
Isso acabou com o meu pai.
— Eu achava que seu pai tinha sido delegado ou algo assim — disse, colocando a mão na cintura enquanto analisa o restante do cômodo — mas eu nunca esperaria…
Encaro mais uma fez a foto de perfil e posso ver a farda com seu nome
Coronel Salvador O-
José Salvador Filho. Meu pai carrega o nome do meu falecido avô, seu pai, que também foi Coronel. Meu pai não disse quem era quando chegou aqui… por que isso não me surpreende? Sento-me na cadeira da escrivaninha e ligo o notebook.
— Olha, o seu pai é um dos homens mais respeitados na região e ele é bem conhecido até, mas é muito reservado e… como ele é de fora, ninguém sabe muito a respeito dele. Não vejo ninguém procurando saber também não.
Por que será?
— É sério? — agora sou eu quem não consigo disfarçar o meu espanto.
— Sim, fadinha. Só para você ter ideia, eu cheguei aqui no início do ano passado e nem precisei de muito tempo para saber a fama do Zeca, embora seu pai não goste de levar crédito por nada que faça. O que eu não entendo… já que ele faz muito mais pela cidade que o próprio bunda mole do prefeito — Catarina agora está analisando os livros de Direito que ocupam boa parte da mini biblioteca dele.
Não estamos falando da mesma pessoa, estamos? Agora faz muito sentido todo mundo saber quem eu sou antes mesmo da minha apresentação. Se ela soubesse como minha mãe e eu fomos contra tudo isso. Se ela soubesse o que isso causou em minha família… família que nem existe mais.
— Dizem que foi ele quem investiu no hospital e comprou o maquinário todo novo. Você foi lá ontem, percebeu como tudo é direitinho?
O hospital nem parecia ser de cidade pequena.
— Se é fofoca ou não, ninguém sabe. Sei que a prefeitura levou o crédito pela reforma, mas sei também que não foram eles porque descobri isso durante um café da manhã com Dionísio e Vera.
— Dionísio e Vera?
— O prefeito e a primeira-dama daqui — caraca — infelizmente também conhecidos como meus progenitores — calma, o quê? Catarina é filha do prefeito daqui?
E vejo que alguém também tem questões familiares… a história do internato europeu. Catarina assim como Adria, Haru e Eris exala uma vibe misteriosa. Eu não estava errada quando estranhei o fato de não serem daqui… é melhor trocarmos de assunto.
— Caraca, agora eu entendo de onde vêm as histórias do seu pai.
— Meu pai conta histórias? — pergunto de canto enquanto abro meu e-mail.
— O quê? — ela colocou as duas mãos na cintura — É a melhor parte dos almoços daqui, seu pai tem aquele estilo fechadão meio Bruce Wayne mas vez ou outra senta na rede com a xícara de café dele, o pedaço de goiabada e sempre solta uma história melhor que a outra. E a gente nunca sabe se é ou não verdade… ele não diz, só deixa no ar.
Velhos hábitos não mudam mesmo. Ele tem esse hábito desde que eu sou uma criança.
— Das histórias que ele contou, alguma se passava em algum natal?
— Uma que um camarada dele — ela faz aspas com os dedos — quase morreu?
Aceno com a cabeça.
— Cara… contou e essa história é muito triste, eu espero muito que não seja verdade.
Eu também queria que não fosse verdade, Catarina.
— Gostaria de ouvir outra história, Cat? — pergunto enquanto acesso meu e-mail.
— Mas é claro que eu quero — ela saltita pela sala e rodopia ao meu lado, apoia sua cabeça nas mãos e me olha atenta. Independente de todo o ar melancólico que ela disfarça ter, Catarina é literalmente a criaturinha mais dócil que eu já tive contato.
— Assim que eu responder minha orientadora.
*
— E como você decidiu que ia para a Inglaterra? — Catarina nada de um lado para o outro.
— Ganhei uma bolsa de estudos para estudar lá. Uma das avaliadoras na minha banca de TCC da graduação gostou muito da minha pesquisa e me convidou a tentar o programa de lá. Apliquei, totalmente desacreditada, duas semanas depois eu descobri que estava apta para tentar a vaga e a bolsa.
— Caraca, que nerd! Meus parabéns! Acho que você vai gostar de lá, Manchester é um lugar meio frio… para quem gosta de futebol é maravilhoso, mas sei lá, não gosto muito dos ingleses.
— Você é viajada, não é, Cat? Aposto que já conheceu vários lugares.
— Conheço alguns… Mas ainda tem muitos lugares que eu acabei descobrindo nas aulas da Eris. Eris usava muita associação quando estava lecionando, então sempre trazia curiosidades do mundo inteiro para chamar a atenção dos alunos. Filmes, músicas, futebol… até fofocas do mundo dos famosos — Catarina sai da piscina e deita na espreguiçadeira ao lado da minha.
— Eris é professora?
— Bom, Eris foi minha professora de história depois que a Adria saiu do colégio, sabia não? E te falar… ela é perfeita lecionando pena que não seguiu na área. Eu não sabia nada de história do Brasil porque sempre estudei fora… devo muito as mil e uma horas extras de estudos que ela me deu.
Eris tem um ateliê de cerâmica e deu aulas de história? Ela é realmente uma caixinha de surpresas. Catarina vira o corpo todo para mim na espreguiçadeira e apoia seu rosto em suas mãos unidas no encosto.
— Qual não foi a minha surpresa quando eu fui a casa dela e vi fotos de vários lugares que ela já tinha citado nas aulas?
A parede de tijolinhos com as fotos… Eris conheceu todos aqueles lugares? Caralho.
— Eu tive a prova da amizade daquelas duas quando Eris assumiu o cargo da Adria na escola. Aliás, eu não te contei a minha história com a Adria.
Balanço a cabeça em negação.
— Quer que eu conte?
— Claro que eu quero, amo histórias de amor.
— Então se prepare porque essa que eu vou te contar é das boas.
*
Miranda fez uma broa de milho para o café da tarde. Ficamos as três conversando até o anoitecer.
— Será que aconteceu alguma coisa, Catarina?
— Com elas? Ah não… quando elas saem, demoram assim mesmo. Ela está mexendo com a sua cabeça, né?
Mas eu não respondo nada. Ok, preciso falar sobre isso com alguém sem ser o Gabriel, talvez eu descubra o porquê da Eris ser tão escalada.
— Ela me confunde, Catarina. É uma mulher incrível e… mas ela é muito na dela. Não consigo ler a Eris, entende?
— E como entendo… — Catarina me responde como se não fosse descoberta alguma. — Misha, foi a Eris que pediu para a Adria me trazer para eu te fazer companhia, ela se importa com você.
A Eris pediu isso?
— Sabe… ela tem as questões dela, mas foi o que eu te falei naquele dia, dê o tempo dela. Eris não é muito de contatos, mas você conseguiu ultrapassar a casca grossa — Catarina continua falando.
— Consegui como, Catarina? Tenho a sensação que quanto mais eu me aproximo dela mais eu me afasto.
Catarina me olha com uma carinha sapeca.
— Cê não consegue ver sua carinha quando olha para ela, não é?
— Você está viajando um pouco, cupido.
— Não estou não — ela balança o indicador no ar — Vocês se olham daquele jeito, querida fada madrinha. Eris te olha de um jeitinho diferente. E você olha para ela do mesmo jeitinho diferente… e isso está rolando desde a minha formatura.
— No dia do jogo do Mundial, a Eris passou o dia inteiro fazendo compras comigo e sabe… é a Eris… fazendo compras… ela tava bem mais ranzinza que o usual. Mas quando eu cheguei com a Haru ao bar, Eris tinha uma coisa nela… sei lá. Nossos achismos foram confirmados no Teatro Municipal.
Não tenho nem como argumentar mas a questão não é essa.
— Sabe a Édra Norr? Elas se parecem um pouquinho, não são iguais… não mesmo, mas a Édra me lembra a Eris em algumas coisas. Aquele estilo fechado, sabe? Tipo o seu pai que a gente sabe que é o Bruce Wayne… acho que é por isso que os dois se dão bem… — Catarina fala mais para ela que para mim.
— Edra quem?
— Édra Norr.
— Quem é essa?
— Você não sabe quem é Édra Norr? Ah, não, vamos ter que mudar isso.
Eu sinto nossa diferença de idade nesses momentos. Não faço ideia do que ela está falando. Catarina não apenas me apresenta a tal personagem que eu descobri ser de um livro como traz toda uma análise de personagens e todos os motivos pelos quais preciso ler. Ela também pegou o meu Kindle e já até baixou o livro.
— Sabe, um dia, todas nós vamos te agradecer, fadinha.
Mas antes que eu pudesse responder, tenho a minha atenção desviada para um barulho de carro que se aproxima da casa: o motor da S10 antiga e barulhenta da Eris.
— Esse retorno da Paloma mexeu com todo mundo. Nossa, como eu detesto aquela mulher.
— Paloma? — mas assim que pergunto a Catarina me olha como se tivesse sido pega fazendo ou falando algo de errado.
— Ah, cacete, vocês não conversaram sobre isso?
Eris aponta na entrada da sala, usando um macacão de tecido escuro que julgo ser o que usa no ateliê, tomada por respingos de tinta branca e segurando uma garrafa de Coca-Cola. Adria está ao lado não muito diferente, com tinta até em seu cabelo, e carrega duas caixas grandes de pizza.
Elas estão bem afastadas e não podem nos escutar daqui. Sem tirar os olhos das duas, sussurro para a loira ao meu lado
— Catarina, quem é a Paloma?