ERIS
Nunca, em hipótese alguma, uma lésbica pode sair sem seu elástico de cabelo. Não importa se você tem o cabelo longo ou curtinho, é uma regra muito importante.
— Não está bebendo hoje? — pergunto quando vejo Misha beber o terceiro copo de água tônica com limão.
Ela não fala nada, apenas me olha com um olhar de deboche quando revira suavemente os olhos e levanta seu copo.
— E você, em? Você não bebe nunca?
— Eu bebo chopp — pisco meu olho esquerdo e ela revira o dela — já esqueceu, carioca?
— Não, eu não esqueci.
— Só não bebo quando estou trabalhando ou sendo motorista de fadas — falo só para que ela revire os olhos mais uma vez. Dito e feito.
Descobri que gosto de irritar Misha, fora que ela fica mesmo muito linda quando está nesse estado pseudo brava que faz parte de sua personalidade.
Assim que eu falei, alguém nos interrompeu.
— Copo vazio, De Mori? — uma voz familiar adentra nossa realidade.
Ruiva, 1,65 m de pura marra e falta de juízo, biquíni vermelho e cabelos de fogo. Os fios acobreados combinam com o verde dos olhos que neste exato momento estão muito mais verdes porque seus olhos estão bem avermelhados. Bruna, é claro.
Bruna também trabalha no Quimera, é uma amiga nossa e… é melhor parar a descrição por aqui.
— Cadê o seu copo? — a ruiva perguntou assim que chegou com uma lata de cerveja na mão.
— Não tenho um.
— Posso resolver isso? — ela pergunta enquanto me fuzila com o olhar. Olho para o lado e Misha rapidamente encontrou algo para fazer com suas mãos enquanto Bruna apareceu.
Calma, isso foi mais uma revirada de olhos?
Não falei nada, apenas acenei enquanto a ruiva pegava uma tulipa e a enchia.
— Posso fazer mais alguma coisa por você, De Mori? — existe um olhar brincalhão mas um sorriso que…
Conheci a Bruna assim que eu cheguei aqui, alguns anos, e foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade. Uma garrafa de whisky dezoito anos, um bar fechado e muita história para contar. Eu a conheço tempo suficiente para saber que boa parte da banca da Bruna é zoeira. Ela tem essa pira de ser bem teatral. Parece uma certa loira de cabelo descolorido que nós conhecemos bem.
— Obrigada, Bruninha — olho para Misha — estou de boas.
— Bom — ela percorre com o seu olhar a Misha de cima a baixo — sabe onde me encontrar, De Mori.
Mas também sei que Bruna é extremamente seleta em suas amizades e não me surpreende em nada que não tenha falado um A com Misha. Me deu um beijo na bochecha e saiu.
— Pensei que você não bebesse em serviço — responde atravessado.
Me aproximo dela o máximo que posso.
— Mas eu não recuso um convite para dividir a cerveja, esqueceu?
— Nossa, seus cortes são perfeitos… milimetricamente precisos — ela diz, não fazendo contato visual comigo.
Mudando de assunto, Misha?
— Você gosta de cozinhar? — ela para — você gosta de cozinhar!
A olho e aceno com a cabeça.
— O que me entregou?
— Sua fisionomia. Você parece estar em um mundo próprio desde que chegou aqui na área da churrasqueira. Sua habilidade com as facas e como é ágil cortando e… eu não sei explicar.
— Bons pontos.
— Eu sempre tenho bons pontos.
— Pelo visto, humildade também, não é?
— A metida aqui não sou eu — levanta tão rápido a mão que voa pedaços de tomate para todos os lados. Sinto uma vontade enorme de rir mas ela fica tão fofa quando está assim.
Passo meu polegar por sua bochecha no intuito de limpá-la dos pedacinhos vermelhos que atingiram sua pele. Meus olhos percorrem toda a extensão do seu rosto. A respiração dela pesa um pouco e nossos ritmos descompassam sutilmente.
Por que me sinto assim toda vez que toco nessa mulher?
O que ela tem?
Como ela faz isso?
Seus olhos desfocam dos meus e encaram minha boca. Ela molha os lábios sem perceber. Misha sempre faz isso. E por algum motivo eu adoro acompanhar esses momentos, são totalmente inconscientes. Ela não se afasta ou muda de posição, continua parada na minha frente como se estivesse a espera de algo.
Eu tô cansada de ficar lutando contra as minhas próprias vontades, quer saber? Foda-se.
— Onde posso colocar isso aqui? — a voz familiar adentra nosso espaço imaginário e nos desfoca, nos devolvendo para o mundo real.
Haru aparece com várias caixas de madeira que eu conheço muito bem e mais algumas coisas para o churrasco.
Misha vira o pescoço e encara a loira que chegou com várias caixas de sorvete da melhor sorveteria da cidade.
— Trouxe pra gente — abre um sorriso — o sabor que a capeta mirim ama, a chata da Adria, até o teu — disse enquanto conferia as caixas — e esse aqui eu trouxe exclusivamente para a nossa convidada mais especial — diz, me encarando.
— Para mim? — Misha a olhou com dúvida, franzindo o cenho.
Abriu a caixinha e esboçou um de seus largos sorrisos reluzentes, fechando os olhos.
— Ah não, você só pode estar brincando comigo — um sorvete escuro com um forte cheiro de café foi revelado.
— Você lembrou! — Misha disse.
— Claro que sim, como eu poderia esquecer?
Lembrou do que, porra?
Vocês conversam agora?
— Caraca, Haru, não precisava, nossa.
— Eu fiz questão de trazer.
Elas duas começaram um papo que só fazia sentido para as duas e eu tratei de terminar o que estava fazendo.
Haru começou a abrir a camisa social que está usando, ainda está de calça de alfaiataria e sapatos fechados, deduzo que tenha vindo direto do seu compromisso. Abre a blusa por completo revelando o biquíni preto por baixo.
Rodo o balcão enquanto tiro a minha camiseta e a jogo na reta da Daniela e Bruna que conversam nas espreguiçadeiras ao redor da piscina. Mergulho na água gelada da piscina natural e me permito ser abatida pela temperatura. Quando retorno a superfície nado até a borda perto das duas que estão dividindo um beck.
Olho para trás e Misha está me olhando, mas segue conversando com Haru enquanto tira seu short, depois a camiseta e revela o tecido branco de seu biquíni.
Me viro para Bruna que acompanha a cena em silêncio.
— Mudou de ideia, De Mori? — ela pergunta enquanto estende o beck para mim.
— Olha, vai com calma porque essa merda tá forte — Dani fala lentamente.
— Ela é forte — Bruna responde, mas ela não está se referindo ao cigarro, porque fala enquanto me encara dentro dos olhos — acho que você vai gostar desse, está do jeito que você curte.
— O que está rolando ali? — Dani pergunta olhando para o lado oposto da piscina e depois para mim. Não preciso olhar para saber sobre quem ela está falando.
E, então, traguei o cigarro.
*
Como em todo Natal, nós passamos o dia inteiro na piscina e com a barriga na churrasqueira comendo churrasco até dizer chega, bebendo o tanto que nossos corpos podem aguentar e cantamos parabéns em um karaokê porque enfim, tem toda aquela história de ser o aniversário do menino… já adianto que essa ideia não partiu de mim.
Findamos o dia jogando a clássica pelada Solteiras x Casadas. E, como sempre, o time das solteiras ganha o das casadas. Só tem perna de pau no time delas. Denise me aponta o dedo do meio, como eu disse, só tem perna de pau.
Está aquele clima de final de tarde gostoso, Raimundo acendeu o fogão a lenha e Miranda se juntou a nós. Estou deitada na rede com a Bruna quase apagada nos meus braços. É melhor eu levá-la para dentro, ela está toda torta e se dormir aqui assim acordará com muita dor. Experiência própria.
Acordo a ruiva e caminhamos juntas até o meu quarto, passo no banheiro, na cozinha, pego uma garrafa de água na geladeira e saio do cômodo. Quando eu volto para a varanda me deparo com a seguinte cena:
Misha está sambando ao som de algum samba enquanto as amigas de Denise improvisaram uma banda com alguns instrumentos.
É que eu sambo direitinho, assim bem miudinho
Cê não sabe acompanhar
Vou arrancar sua saia e pôr no meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar
E a filha da puta ainda me encara, de forma descarada, enquanto rodopia com classe e maestria. A sensação que tenho é que ela está em casa quando faz isso. Quando eu penso que não existem mais formas do diabo nos atentar… ele vai e supera.
Acendo agora o meu bom e velho cigarro de tabaco e me permito aproveitar o restante da noite, quieta.
— De Mori — ela solta a fumaça do cigarro — não te encontrei com seu clã ontem — Denise se junta a mim na lateral da varanda.
— Vim mais cedo — será porque vim mais cedo? — Nara viajou de madrugada hoje.
— O Zeca tá bem? — perguntou em um tom levemente assustada.
— Você sabe… o de sempre.
— É, eu sei. O que eles estão passando não é fácil. Preciso visitar mais esses dois e preciso te falar uma coisa.
— Pode falar, Denise.
— Você sabe que eu te considero como uma irmãzinha mais nova, independente de tudo que aconteceu, não sabe?
Balanço a cabeça em afirmação.
— E é exatamente por isso que me sinto na obrigação de te falar que… — porém resolvo encurtar sua fala. Eu já sei o que ela vai falar.
— Ela me ligou, Denise. Já estou sabendo que sua irmã está no Brasil.
— Ela te ligou? — mas não parece surpresa com essa ideia.
Arqueio a sobrancelha. Todo mundo parece que está com receio de me contar algo ou do que eu posso fazer ao saber que ela voltou.
— A menina parece ser gente boa, Daniela gostou bastante dela e pelo visto não foi só ela, não é? — mas Denise não está mais falando da Paloma.
— Não sei o que você está pensando mas não estamos juntas, Denise.
— Não foi o que eu vi no dia do Mundial.
Puta merda.
— Relaxa que eu não curto voyeurismo, não é a minha praia, mas eu sei de tudo que acontece no meu bar, Eris. Eu sempre sei, esqueceu?
Como eu posso me esquecer?
— Você já abriu mão de coisa demais, Eris. Não comece a cometer os mesmos erros de novo.
Se tem uma coisa que eu fiz nessa encarnação foi abrir mão de coisas. Mas antes que eu pudesse responder, Haru chegou perto de nós duas e acendeu o cigarro dela.
— Deve ser um show na cama — Haru soltou de um jeito malicioso enquanto assistia Misha sambar.
— Cara, qual a porra do seu problema? — minha paciência decolou, foda-se.
— Não entendi — me perguntou da forma mais sonsa que pode.
Denise ajustou a postura mas Adria que apareceu do além a travou com a mão no peito como quem diz “deixa as duas”.
— Qual é o seu problema, Haru?
— Qual é o meu problema…?
— Denise, me dá uma mão ali dentro? — escuto quando Adria basicamente puxa Denise a força para dentro da casa.
— Te conheço tempo o suficiente para sentir quando está fazendo merda, Haru. O jeito como você fala da Misha é baixo até para você.
— E como eu falo dela, Eris? — agora, me pergunta da forma mais fria e calculista que ela consegue, bem típico de Haru Vauss.
— Ela não é um dos seus jogos de conquista, que você conquista e depois larga quando quiser. Se está achando que você vai fazer isso dessa vez, está muito errada.
Ela me encara por um longo tempo e depois que solta a fumaça tragada resolve acabar com nosso silêncio.
— Engraçado, Eris, você nunca se preocupou com quem eu fico ou deixo de ficar.
— Deve ser porque você nunca foi tão escrota?
— Está preocupada com a carioca? — ela ri de forma seca.
— Por que você está rindo, caralho? Não tem graça.
— Acabou de se escutar, Eris De Mori? — morde um sorrisinho e me encara de forma sarcástica como se estivesse a espera de uma grande revelação.
Por que está me olhando assim, porra?
Ela continua me encarando com um sorriso irônico enquanto todas as minhas terminações nervosas ligam os pontos.
Não, não pode ser.
Ela não fez isso.
— Está fazendo isso de propósito? — indaguei ainda incrédula porque não pode ser verdade.
Não, velho, ela não fez isso.
— Pensei que eu levaria mais tempo fingindo dar em cima da garota que está afim… mas você não durou nem 24 horas, eu estou impressionada — fala na maior cara lavada.
Ah, caralho, ela não fez isso.
Oi, Mabel!
Quero agradecer pela história. É muito bom passar por aqui e ver que postou. Continue, por favor!
Bj
Oi, Mabel!
A vida tá corrida, mas é sempre uma alegria ver que você postou!
No aguardo do próximo capítulo.
Xêro!